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Quanto pagamos de imposto?

Quanto pagamos de imposto?

Rui Affonso

Economista e pesquisador do CEBRAP

Em que o governo usa o dinheiro dos impostos? Nos ombros de quem pesa mais a carga de pagá-los? Estas questões permitem avaliar a justiça da política de arrecadação de impostos no país. Quanto à primeira, existe praticamente um consenso de que a verba que o Estado brasileiro destina às atividades sociais, como educação, saúde e transportes coletivos, é insuficiente.

Pouco se conhece, entretanto, da estrutura tributária brasileira, que é uma das mais injustas do ponto de vista social. Aqui as pessoas de renda mais alta pagam, proporcionalmente, menos impostos. Ou seja, a porcentagem de suas rendas destinadas aos tributos é menor do que aquela que recai sobre os que ganham menos. Ura estudo recente calculou que quem ganha até um salário mínimo por mês paga 35,9% do que ganha ao Estado. Isto é muito mais do que duas vezes o que paga quem ganha mais de 100 salários mínimos nos mesmos 30 dias, isto é, 14,1% de seus rendimentos. Este sistema tributário contribui, evidentemente, para piorar a distribuição de renda no país, que, como se sabe, já é bem ruim.

Isso ocorre por duas razões. A primeira é que grande parte da arrecadação de tributos vem dos chamados impostos indiretos. E eles recaem sobre as despesas com compra e venda de bens e serviços, realizados pelas empresas industriais e comerciais, e seus custos são transferidos ao preço que o consumidor paga. Os mais importantes são ICM — Imposto sobre a Circulação de Mercadorias — e o IPI — Imposto sobre Produtos Industrializados. Os impostos indiretos podem ser considerados mais injustos do ponto de vista social porque obrigam aos consumidores um pagamento igual, independentemente de sua renda. Ao comprar um maço de cigarros, por exemplo, os mais pobres pagam exatamente o mesmo imposto que os mais ricos. Além disso, os primeiros são obrigados a dispender quase toda a sua renda com gastos de consumo, fazendo com que esses impostos pesem proporcionalmente mais em seus orçamentos, enquanto os mais ricos, tendo rapidamente satisfeita a sua ânsia de consumo, usam grande parte de suas rendas para investimentos, bem menos tributados, como veremos adiante.

Quem ganha mais deve pagar mais

Em segundo lugar, a estrutura dos impostos que incidem sobre a renda e o patrimônio, chamados impostos diretos, principalmente o Imposto de Renda, deixa muito a desejar em matéria de justiça fiscal. A progressividade deste imposto — percentuais mais elevados de imposto para rendimentos mais elevados — é insuficiente. Ou seja, para haver mais justiça no Imposto de Renda, quem ganha mais deveria pagar uma porcentagem maior do que efetivamente paga. Esta situação é agravada porque o Imposto de Renda possui um elevado número de descontos e isenções que beneficiam os indivíduos de maiores rendimentos e as grandes empresas. Finalmente, os impostos que incidem sobre a propriedade, bonificação de ações, cotas ou quinhões de capital inexistem ou são insignificantes. Em outras palavras, uma parcela substantiva dos rendimentos das pessoas mais ricas não é considerada tributável pelo governo.

O governo diz para não nos preocuparmos pois a situação já mudou. Os pacotes tributários dos últimos anos, principalmente os Decretos-Leis nº 2065 e 2072, alteraram significativamente a legislação do Imposto de Renda, provocando um extraordinário aumento da sua arrecadação. Esses pacotes foram feitos por conta do acordo com o FMI, que exige a elevação das receitas do governo e a diminuição severa dos gastos públicos, para liberação de novos empréstimos, de modo a rolar a nossa dívida externa.

O Leão visou, em seu bote, principalmente o lucro das instituições financeiras, aumentou a taxação sobre ganhos de capital e reduziu o leque de incentivos fiscais, como o Fundo 157. O governo vangloria-se de ter promovido uma maior justiça tributária. Hoje o sistema de impostos seria mais justo porque: 90% dos assalariados estão totalmente isentos do Imposto de Renda; a participação dos rendimentos de capital na arrecadação desse imposto, que, em 1979, era de 62%, passou para cerca de 80%, em 1984, cabendo os restantes 20% aos rendimentos do trabalho; e a participação dos impostos diretos na arrecadação federal passou de 40% em 1980 para cerca de 55% em 1983.

Parece convincente. Entretanto, cabe dizer que não chega a ser um exemplo de justiça fiscal a imensa maioria dos assalariados não pagar Imposto de Renda. Isso não é um problema tributário. O exemplo revela apenas que grande parte dos brasileiros vive com uma renda insuficiente para cobrir as suas necessidades mais elementares.

Trabalho é uma coisa, capital é outra

Também é bom lembrar que, se a tributação sobre os rendimentos do capital aumentou, permanece excluída das bases de cálculo do IR uma grande parcela da renda e da riqueza das classes mais abastadas da sociedade. Da mesma forma, pouco se fez no sentido de alterar a regressividade do Imposto de Renda, isto é, o fato de que quanto mais se ganha, proporcionalmente, menos imposto se paga. Por outro lado, não se pode pretender que os rendimentos de capital contribuam com a mesma soma que os rendimentos do trabalho para a receita tributária. Certamente, neste caso, tratar igualmente situações tão desiguais é profundamente injusto em termos sociais, pois o que se deixa de considerar é a relação entre os impostos recolhidos e a capacidade que cada contribuinte tem de pagá-los. A situação anterior, em que os rendimentos do trabalho arcavam com quase 40% dos recolhimentos do IR, constituía uma aberração, e seus contornos mais negros foram suprimidos. A estrutura tributária, entretanto, continua longe de poder ser considerada justa.

Nos ajustes promovidos nos últimos anos, a carga tributária paga pelos assalariados e autônomos também sofreu um aumento significativo, embora disfarçado através da forma pela qual o governo vem reajustando as tabelas de cálculo do IR cobrado na fonte pagadora.

O IR é recolhido na fonte, conforme diferentes faixas de rendimentos. Quanto maior a renda, maior a porcentagem dela destinada ao Leão. Se estas faixas não fossem corrigidas periodicamente, a cada reajuste salarial o contribuinte subiria para a faixa de renda mais elevada, pagando mais imposto. Como se o reajuste salarial não visasse apenas a recomposição do poder aquisitivo do salário, corroído pela inflação, e representasse um aumento real dos seus rendimentos. O "truque" utilizado pelo governo consiste em reajustar as tabelas do Imposto de Renda em níveis sempre inferiores aos da inflação do período. Para 1984, por exemplo, a correção das tabelas será de 150%, sendo que a inflação atingiu 220%. Isto significa que o contribuinte vai pagar mais imposto por conta de um reajuste de salário que sequer compensa a inflação.

Ou seja, tributa-se os assalariados na fonte como se estes houvessem tido aumentos reais (acima da inflação) de salários nos últimos anos. Como todo mundo sabe, a situação real é a oposta: os salários da indústria, por exemplo, declinaram 12% entre 1982 e 1984, enquanto a tributação na fonte sobre os assalariados e autônomos aumentou significativamente, numa combinação perversa de arrocho fiscal e salarial.

E quem paga é sempre o assalariado

Finalmente, a maior incidência do Imposto de Renda sobre o capital pressupõe implicitamente que os aumentos na carga tributária não sejam repassados aos preços. Entretanto, caso as empresas, que respondem por mais de 50% da arrecadação do IR, consigam transferir uma parcela do imposto aos seus preços — o que é provável nos mercados dominados por grandes empresas — este imposto assume características de um tributo indireto, penalizando novamente os assalariados de menor renda.

Por estas e outras é que aquilo que é um leão, em relação aos rendimentos do trabalho, transforma-se apenas em um gato bem-comportado, em se tratando dos ganhos de capital, ou no máximo, nos últimos tempos, em uma jaguatirica domesticada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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