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Por um debate apaixonado

A FAVOR

Por um debate apaixonado

Almino Affonso

Secretário dos Negócios Metropolitanos do Estado de São Paulo, primeiro suplente de senador (PMDB-SP) e foi ministro do Trabalho no governo João Goulart

Faz quatro anos que o antigo MDB, em Convenção Nacional, decidiu sair às ruas defendendo a tese da convocação da Assembléia Nacional Constituinte, com o objetivo de reordenar, democraticamente, o país. A proposta era audaciosa. Considerando-se que a Constituinte, por natureza, é soberana (vale dizer, tem plenos poderes para revolver, de alto a baixo, as instituições políticas e sociais), a sua implantação implica a extinção do regime autoritário gerado pelo golpe de Estado de 1964. Embora ilegítima, havia e continua havendo uma ordem constituída. Como erigir uma nova ordem, através de uma Assembléia Constituinte, sem derrocar primeiro a que está assentada?

A proposição confrontava-se com aspectos técnicos incontornáveis. Como é óbvio, a Constituinte, para instalar-se, pressupunha dois momentos anteriores: ser convocada e ter o processo de sua eleição garantido em plena liberdade. Ora, era evidente que o poder constituído (mantido pelas armas e por setores dominantes) não iria tomar a iniciativa de convocar a Assembléia Nacional Constituinte, a ser livremente eleita e soberana em suas decisões, para decretar o seu próprio fim. Logo, o problema a contornar não era apenas técnico, mas essencialmente político. O que havia por trás do impasse era a questão do poder, em toda a sua inteireza. Tivéssemos poder e edificaríamos, sobre as ruínas da ordem derrubada, uma nova ordem política e social.

Não foram poucos os que julgaram ingênua a decisão do MDB. A vesguice de análise de seus críticos, entretanto, era enorme. O que se buscava, através da tese da Constituinte, era mobilizar as grandes massas populares e, no bojo de uma pressão social a política crescente, impor ao regime autoritário o seu próprio fim.

De que forma pode-se derrocar um regime instalado? Pela imposição direta das armas ou, politicamente, pela mudança na correlação de forças sociais. Era a segunda via o que se tentava alcançar. Um não categórico à continuidade do regime autoritário, expresso pela cidadania, abriria espaço à reorganização democrática do país através de uma Assembléia Nacional Constituinte. Portanto, a tese tinha como fundamental a mobilização popular, em proporções tais que ficasse inequívoca a vontade majoritária do país.

Trazer a constituinte ao centro do debate

Como é do conhecimento geral, entretanto, o condicionamento básico não se deu: a mobilização não se verificou, em nenhuma parte, de norte a sul. Argumentava-se que a maioria do povo não conseguiria entender a proposta... Por todos os modos, relacionou-se a Constituinte com o poder político capaz de resolver os problemas do desemprego, do salário baixo, da saúde pública, da escola, da terra. Mas, em vão: o tema não ganhou as ruas, não sensibilizou a juventude, não chegou às portas das fábricas. Ficou parecendo mais um assunto para ser tratado só por professores e, mais ainda, só por advogados. Por que, apesar de sua abrangência, a Constituinte não empolgou até agora? Por que, apesar de ser mais restritiva enquanto tema, as "eleições diretas-já" sacudiram o país em concentrações populares gigantescas?

As explicações podem ser as mais diversas e os sociólogos saberão formulá-las melhor que eu. O que importa, no entanto, neste contexto, é indagar se cabe ou não recolocar a Constituinte no centro do debate político nacional. Não tenho dúvidas em responder afirmativamente. Em termos de Teoria Geral do Estado, a questão é fundamental. Mas também do ângulo da prática política não vejo como afastá-la ignorando-a ou adiando-a. Do ponto de vista teórico, a legitimidade do poder nas sociedades democráticas só é dada pelo povo. É ele (o povo) quem detém o chamado "poder constituinte", capaz de organizar politicamente a sociedade através de seus representantes reunidos em Assembléia Constituinte. Por que é ilegítima a Constituição Federal de 1967? Porque foi imposta pela vontade militar a um Congresso Nacional castrado.

É inconcebível pensar na reorganização democrática do país sem que o povo a faça através de seus representantes especiais, os "constituintes". Ou seja: delegados do povo, eleitos em eleições livres e que assumam a sua função na plenitude dos poderes. Vale insistir: uma Assembléia Constituinte, por natureza, é soberana. Sem que tenha poder de impor, soberanamente, as suas decisões, a Assembléia pode ser apelidada de Constituinte mas não o é. Com freqüência, lideranças políticas ou juristas se referem aos "poderes constituintes" próprios do Congresso Nacional. Com base neles, argumentam que não há necessidade de se convocar uma Assembléia Nacional Constituinte, já que os parlamentares (deputados e senadores) podem fazer as emendas à Constituição que julgarem oportunas, no exercício de seus "poderes constituintes".

Vale a pena tentarmos entender a linguagem dos juristas, para evitar confusões. Classicamente, "poder constituinte" é o poder, nas democracias, de que só o povo é o titular. É, por isso mesmo, denominado "poder constituinte originário". Em que momento ele se expressa? Na formulação da Constituição quando os representantes do povo (os "constituintes") podem criar as instituições políticas e sociais que bem entenderem. Uma vez promulgada a Constituição, estamos diante de uma nova "ordem constituída" que, em princípio, nasce para permanecer. Tanto assim que, para emendar a Constituição, há um conjunto de obstáculos processuais que a própria Constituição estabelece, como a exigência do quorum qualificado de 2/3, em ambas as Casas do Congresso Nacional, para que a emenda seja aprovada. Aqui é que se dá a confusão de linguagem: a emenda à Constituição é possível graças ao chamado "poder constituinte derivado", ou "poder constituinte de segundo grau" que deputados e senadores detêm... Muitos juristas preferem designar, a esta prerrogativa de emendar a Constituição, de "poder reformador".

Pareceu-me útil esse raciocínio para poder firmar, com clareza, a minha posição política: defendendo a Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana em suas decisões, e não apenas emendas à Constituição, adequando-a aqui e acolá ao feitio democrático. Sustento essa tese pelas razões teóricas a que me referi e também por uma imperiosa necessidade política. Parece-me evidente que o país, em face do processo de abertura democrática (limitado ainda, mas em marcha), vive um remanejamento de posições políticas em todos os níveis. O ponto central da questão hoje é o seguinte: o avanço democrático abrirá espaço para as grandes maiorias populares ou o limitará às elites e vizinhanças? Tudo que, nos últimos meses, tem havido em torno do processo sucessório está condicionado por essa questão.

Não preciso ensinar padre-nosso a vigário. Todos sabem que o espaço a ser ocupado pelas classes populares, na nova ordem a ser constituída, dependerá do grau de interveniência do povo no processo político. Tanto mais as decisões se encastelem em Brasília, alheias às mobilizações populares, tanto mais elitista será a resultante. A Assembléia Constituinte, portanto, uma vez convocada, provocará um amplo e apaixonado debate sobre a realidade nacional, no plano econômico, social e político. No redemoinho dessa mobilização, carregada de questionamento, as classes populares terão mais chance de se fazerem representar na Constituinte, em termos sociais e em termos de posições políticas vinculadas a ela. Em outras palavras: o povo terá mais condições de construir uma democracia para as maiorias.

Restaria indagar se a tese da Constituinte não voltaria a cair no vazio. Suponho que não. As mobilizações nacionais revelam que a terra está pronta para a sementeira. Basta unir a continuidade da luta pelas "diretas-já" com a Constituinte, como um desdobramento natural e necessário.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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