Resumos
A afirmação genérica um nexo direto entre democracia, liberdade e descentralização não se justifica, sustenta o autor. O tema é desenvolvido em dois níveis: mediante a consideração de problemas da democracia em sociedades como a brasileira e mediante um exame da contribuição que as idéias de Tocqueville ainda têm para oferecer a respeito, que se verifica ser apreciável.
The generic affirmation of a direct nexus between democracy, liberty, and decentralization is not justified, holds the author. The theme is dealt with on two levels: twith regard to problems of democracy in societies like the Brazilian one, and through an examination of the contribution that Tocqueville's ideas still have to offer on this score, which is seen as considerable.
REPÚBLICA
Descentralização: lições atuais de Tocqueville
Decentralization: lessons from Tocqueville
Klaus Frey
Professor do Mestrado em administração da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
RESUMO
A afirmação genérica um nexo direto entre democracia, liberdade e descentralização não se justifica, sustenta o autor. O tema é desenvolvido em dois níveis: mediante a consideração de problemas da democracia em sociedades como a brasileira e mediante um exame da contribuição que as idéias de Tocqueville ainda têm para oferecer a respeito, que se verifica ser apreciável.
ABSTRACT
The generic affirmation of a direct nexus between democracy, liberty, and decentralization is not justified, holds the author. The theme is dealt with on two levels: twith regard to problems of democracy in societies like the Brazilian one, and through an examination of the contribution that Tocqueville's ideas still have to offer on this score, which is seen as considerable.
As variadas leituras do processo da globalização que caracteriza a etapa contemporânea do capitalismo permitem assinalar, para além das divergências de interpretação, uma tendência no sentido de "uma nova hierarquia dos espaços" (Dowbor 1998: 29). Isto coloca no centro de atenção os rearranjos institucionais que vêm se cristalizando e concretizando no espaço global, assim como o crescente papel das cidades e das comunidades locais na solução dos problemas trazidos pela própria globalização. Esses processos ocorrem em detrimento do Estado-nação, que de acordo com o relatório das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano de 1993 "tornou-se pequeno demais para as grandes coisas, e grande demais para as pequenas" (Cf. Dowbor 1998, p. 37).
Põe-se assim em evidência o desafio decisivo que a humanidade enfrenta. A questão é garantir o desenvolvimento das sociedades de forma sustentável neste mundo globalizado, ao mesmo tempo salvaguardando, ou recuperando, as conquistas - ou promessas - da democracia, especialmente as da igualdade e da liberdade, temas nodais de todos os teóricos clássicos e modernos. Quais podem ou devem ser as instâncias e os agentes privilegiados e quais os instrumentos e procedimentos oportunos nessa busca por um desenvolvimento sustentável e mais humano? Parece-me evidente que na busca de respostas para essas questões deveríamos buscar inspiração na própria experiência, na observação de boas práticas capazes de nos propiciar subsídios para pensar estratégias e modelos adequados. Por outro lado, recomenda-se recorrer às existentes concepções teóricas sobre a democracia, confrontando-as com as condições das sociedades contemporâneas, a fim de se chegar a concepções teóricas mais propícias à criação de modelos de desenvolvimento sustentável e democráticos.
No que tange a experiências práticas, sobressai, particularmente (mas não exclusivamente) no caso brasileiro, uma efervescência muito grande nos municípios, no tocante a inovações na área de tecnologias e serviços urbanos, mas sobretudo que se refere a novos arranjos institucionais, a novas práticas de participação - em suma, a uma revitalização substantiva da democracia no nível municipal, que se contrapõe à inércia e impotência dos estados nacionais. Porém, apesar destas experiências promissoras da política municipal, relatadas e interpretadas nos mais variados trabalhos e publicações1 1 Ver por exemplo Moura (1998), Frey (1996), e as diversas publicações do Instituto Pólis e do 1BAM no Rio de Janeiro sobre experiências de boas práticas; referente a experiências na área do desenvolvimento sustentável, compare, referente ao Brasil, o levantamento de boas práticas pela Universidade Livre do Meio Ambiente em Curitiba e, referente a experiências internacionais, o levantamento do Conselho Internacional para Iniciativas Ambientais Locais (ICLEI). , não podemos perder de vista que se trata ainda de casos isolados, embora apresentem uma tendência à multiplicação dessas práticas e sua crescente difusão. Como tendência contrária teremos que admitir a perpetuação em muitos municípios de práticas clientelistas e patrimonialistas, assim como a ocorrência da guerra fiscal, desse "hobbesianismo municipal" (Melo 1996) de uma competição sempre mais acirrada entre os municípios para atrair novos investimentos visando estimular o desenvolvimento local2 2 Ver a respeito do novo "empresariamento" ou empreendorismo e seus efeitos transformadores para a administração urbana, Harvey (1996). .
Queremos nesta segunda parte analisar estas contradições empíricas a partir de uma leitura da obra de Alexis de Tocqueville. Em primeiro lugar, os conceitos tocquevillianos podem contribuir para melhor elucidar as complexas relações entre as tendências aparentemente contraditórias de centralização e descentralização que caracterizam o processo político-institucional no país. Em segundo lugar, as observações e advertências feitas por Tocqueville podem ainda hoje fornecer subsídios para o debate acerca da reforma do Estado.
Antes de mais nada é mister chamar atenção para o fato de que muitos dos argumentos de Tocqueville têm como referência aquele país onde a revolução social "atingiu o desenvolvimento mais completo e mais pacífico" (Tocqueville 1977, p. 19): os Estados Unidos. Coloca-se pois a seguinte questão: se, por um lado, podemos hoje observar na cultura política americana muitos aspectos que representam "um retorno à aristocracia e aos privilégios das heranças à custa da igualdade" (Diggens 1999: 33) e se, por outro lado, no Brasil o processo de nivelamento social dos últimos dois séculos se deu de forma muito mais tímida, transformando as desigualdades decorrentes de privilégios hereditários em desigualdades multifacetadas decorrentes de exclusão social com suas várias manifestações (desigualdades tais que até sob as condições de uma democratização do sistema político parecem se aprofundar em vez de amenizar-se), será que podemos ainda hoje tirar proveito dos ensinamentos que Tocqueville desejou encontrar na América democrática da primeira metade do século passado para a sociedade francesa da sua época3 3 Compare o comentário de Françoise Mélonio sobre a importância da obra tocquevilliana para a sociedade francesa: "A Democracia é uma obra de auxílio ao povo em perigo ..." (Cf. Rodríguez 1998, p. 95). , tanto para a realidade norte-americana, como - o que mais nos interessa aqui - para nossa realidade brasileira?
Os temas da descentralização e do poder local parecem evidenciar de forma bastante nítida que muitos dos ensinamentos e reflexões de Tocqueville excedem o contexto histórico específico da primeira metade do século passado. Guardam ainda hoje uma força explicativa significativa para, por um lado, contribuir para o aumento de nosso entendimento da realidade brasileira e, por outro lado, subsidiar a elaboração de estratégias de transformação da nossa ordem social, das quais com certeza não podemos abrir mão, se não quisermos enterrar de vez as utopias da igualdade e da liberdade.
DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL
A descentralização ganhou espaço na literatura sobre o desenvolvimento em países do Terceiro Mundo particularmente a partir do início dos anos 80, até promovido agências internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial. Foram dois os principais males detectados como empecilhos para um desenvolvimento maior e mais justo. Em primeiro lugar, a hipertrofia administrativa e a ocorrência de conflitos distributivos dentro das próprias burocracias estatais e, associada a estes fatores, a generalizada ineficiência organizacional e técnica das administrações de desenvolvimento. Em segundo lugar, o desrespeito com relação às necessidades da população nos processos de planejamento e de decisão política, assim como um déficit de democracia e de participação política.
Tocqueville partiu na sua análise do pressuposto de uma crescente democratização e igualização das condições sociais, que por sua vez promoveria uma concentração e centralização do poder, e uma burocratização da vida pública e da estrutura do Estado. No que tange especificamente ao caso brasileiro, podemos constatar, por um lado, a existência de uma democracia, pelo menos do ponto de vista das características formais do sistema político. Todavia, dificilmente podemos falar em igualdade, nem do ponto de vista econômico ou social e nem do ponto de vista político4 4 Wanderley Guilherme dos Santos (1993, p. 80) fala de um "formalismo poliárquico" devido ao predomínio de um comportamento político autoritário na política brasileira. . Isto repõe a questão das possíveis implicações das reflexões de Tocqueville para sociedades caracterizadas por grandes desigualdades. Podemos supor que à tendência à centralização do poder em sociedades democráticas (no sentido tocquevilliano, de igualdade de condições) corresponde, de modo inverso, uma tendência à descentralização do poder no caso de povos hierarquicamente estruturados e caracterizados por desigualdades violentas, como é o caso brasileiro. Essa suposição deve despertar surpresa, pelo menos num primeiro momento, visto que o conceito de descentralização costuma ser associado à idéia da repartição e desconcentração do poder, assim como à democracia e à liberdade5 5 Ver Roversi-Monaco (1986, p. 332) que menciona que a luta pela descentralização sempre era associada à luta pela autonomia local, objetivando não somente a descentralização, mas também o fortalecimento da democracia. .
Para um melhor entendimento da concepção de Tocqueville, particularmente das suas implicações para o caso brasileiro, me parece necessário distinguir entre, por um lado, concepções de centralização e descentralização enquanto estratégias político-administrativas explícitas e, por outro lado, as noções de centralização e descentralização enquanto orientações ou inclinações "naturais" ou "instintivos" das sociedades democráticas ou, de modo correspondente, das sociedades hierárquicas e autoritárias. No meu entender, para povos caracterizados pela desigualdade e por estruturas autoritárias esta distinção significa não apenas que - como lembra Tocqueville - "nenhuma desigualdade é tão grande que chegue a chamar atenção", mas que existe ao mesmo tempo uma tendência "natural" e "instintiva" à descentralização, à formação de centros de poder descentralizado - isto é, oligarquias regionais e locais, que dedicam toda a sua atenção e esforços à manutenção e conservação da desigualdade das condições econômicas e políticas, que lhes é favorável, e que buscam resistir a quaisquer tentativas de centralização de poder que pudesse acarretar uma maior igualdade e um nivelamento das diferenças e das disparidades de poder. Como nas democracias só "pessoas muito desinteressadas ou muito medíocres (...) desejam descentralizar o poder" (Tocqueville 1977: 566), nas sociedades hierárquicas, autoritárias e heterogêneas também somente aquelas pessoas que não precisam temer a perda de posições de poder no nível local se empenharão a favor da centralização do poder no nível nacional. Segue-se disso que em sociedades desiguais e heterogêneas a centralização possa só interessar a grupos sociais que agem de forma desinteressada e altruísta, aos que não dispõem de poder ou, finalmente, aos que vêem a chance de elevar-se ao poder hegemônico, ao poder nacionalmente dominante. Podemos pensar por exemplo no interesse das massas populares, que normalmente encontram-se desprovidas de poder, em levantar-se por meio de uma revolução, para fazer valer suas pretensões hegemônicas6 6 O vácuo de poder que costuma surgir com o declínio de centros tradicionais de poder (por exemplo de dinastias ou principados), no caso de revoluções, só pode ser preenchido por um poder centralizado. Particularmente a imposição de tal pretensão de poder exige a concentração do poder: "A centralização se torna um fato de certo modo necessário" (Tocqueville 1977, p. 518). Por isso, conforme a interpretação de Tocqueville, "não se deve nem aplaudir nem censurar Napoleão por ter concentrado apenas em suas mãos quase todos os poderes administrativos, pois, após o brusco desaparecimento da nobreza e da alta burguesia, esses poderes espontaneamente chegaram a ele; foi-lhe quase tão difícil os repelir como os tomar" (1977, p. 518). , ou então nos militares que na América Latina reiteradamente se apropriam ou tentaram se apropriar do poder e, freqüentemente na história latino-americana, se revelaram como as únicas forças políticas capazes - e também só de maneira limitada - de disputar com os caudilhos e chefes políticos - pelo menos até um certo grau - o poder nas regiões do âmbito de influência destes.
De acordo com esta interpretação, a tendência natural ou instintiva à descentralização se manifesta no poderio exercido pelos caudilhos e coronéis nas sociedades hierárquicas da América Latina, comparável às dinastias e principados da Europa feudal. Essas oligarquias regionais e locais se empenham em ampliar suas posições de poder tanto por meios políticos como militares, em apropriar-se do tesouro do Estado central mediante estratégias de busca de rendas (rent-seeking), valendo-se da lealdade política como instrumento de pressão e de chantagem frente ao governo central, ao passo que o governo central, por sua vez, vê-se obrigado a fazer esforços para prescrever um sistema de ordem apto a integrar e conter os chefes locais. Na América Latina só em casos excepcionais conseguiu-se estabelecer um poder central forte e, nesses casos, geralmente só pela aplicação maciça da violência. Na maioria dos casos o poder central permaneceu relativamente fraco e viu-se impelido a recorrer a práticas clientelistas e nepotistas, assim como à distribuição de favores e recursos públicos, a fim de por meio de tais arranjos obter a benévola tolerância e o apoio dos poderes regionais.
Isto mostra a importância da descentralização e da centralização como estratégias de exercício do poder político. Assim como em sociedades democráticas a descentralização ou "a independência individual e as liberdades locais serão sempre um produto da arte" (Tocqueville 1977: 517), também em sociedades hierárquicas e autoritárias sempre dependerá de esforços artificiais a promoção de uma solidariedade coletiva e de compromissos mútuos abrangendo toda a população do país, como também a criação de um poder central, por sua vez imprescindível para o aumento da igualdade territorial.
No caso de alguns grupos políticos isolados conseguirem estabelecer um centro de poder "artificialmente" - o que raramente foi conseguido na história sem a recorrência ao uso da força e da violência, como por exemplo aconteceu no Estado Novo de Getúlio Vargas - costumam surgir, na medida em que progride a institucionalização política e burocrática, tendências de caráter centralizador, opostas à descentralização natural. Por um lado, os processos burocráticos de alocação favorecem - entre outras coisas devido ao desenvolvimento de ideologias e procedimentos institucionais específicos e de uma linguagem própria - a uniformização dos processos de decisão político-administrativa. Por outro lado, os processo organizacionais fortalecem inevitavelmente o governo central7 7 Ver também Slater (1989: 504). :
"In developing countries political institutionalization has meant increased centralization by concentrating educated manpower, decision-making, interests, values, information and leadership at the centre" (Smith 1986:458).
Contrariamente às sociedades democráticas, em sociedades hierárquicas e autoritárias temos de partir da suposição da existência de duas tendências e forças antagônicas. Por um lado, a tendência natural à descentralização, própria deste tipo de sociedade, favorece e fortalece os centros de poder regional, mais especificamente os chefes e as lideranças políticas locais e regionais - conforme Tocqueville as melhores garantias para a conservação da desigualdade. Por outro lado, as estruturas e instituições centrais, em regra geral estabelecidas pela aplicação da força e da violência, e os correspondentes processos de burocratização e institucionalização político-administrativa, opõem-se a essa tendência descentralizadora e, com isso, ao iminente desmoronamento do Estado central.
Cabe frisar que em sociedades democráticas a descentralização política e administrativa passa a ser necessária para prevenir o surgimento de um ''despotismo democrático" (Tocqueville 1977: 532), ao passo que o processo de nivelamento social e sua tendência natural à centralização devem dificultar significativamente tais estratégias de descentralização. Essa descentralização só pode ter êxito na medida em que forças sociais comprometidas com os valores da liberdade política - como por exemplo os movimentos sociais nas democracias contemporâneas - consigam impor suas demandas por uma maior participação nos processo políticos.
A permanência das estruturas centrais é vinculada por um lado ao desejo pela conservação da unidade nacional - a idéia de nation-building, em um Brasil extremamente heterogêneo, sempre tem desempenhado um papel bem mais importante do que argumentos ligados à eficiência - e por outro lado, à "única condição necessária para chegar a centralizar o poder público numa sociedade democrática", a qual, de acordo com Tocqueville, consiste em "amar a igualdade e fazer com que se creia nesse amor" (Tocqueville 1977: 521)8 8 Aparentemente este amor não está ausente no Brasil, não obstante, ou quem sabe, talvez até por causa das graves desigualdades, fato que deve ter a ver com aquela "crença mágica no poder das idéias" que, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda (1993, p. 119), é onipresente na sociedade brasileira.a .
O Estado central, sempre atento à conservação do próprio poder e, concomitantemente, acionado pela idéia da igualdade, só consegue afirmar-se face à pressão exercida pelos centros locais e regionais de poder na medida em que esteja disposto a fazer compromissos e a negociar arranjos que satisfaçam essas reivindicações das oligarquias locais, entrando com isso em um jogo de barganha política. De fato podemos observar no Brasil uma multiplicidade de "poderes intermediários" (Tocqueville 1977: 518) e de "poderes secundários" (idem: 519), os quais, segundo Tocqueville, se oporiam, em princípio, ao espírito dos povos democráticos9 9 A organização e manutenção de "poderes secundários" e a criação de "associações livres que estejam em condições de lutar contra a tirania sem destruir a ordem" exigiria em sociedade democráticas "muita inteligência, muita ciência e arte". "A concentração dos poderes e a servidão individual aumentarão, pois, nas sociedades democráticas, não somente em proporção à igualdade, mas em razão da ignorância" (Tocqueville 1977, p. 519). , mas nem por isso deixam de ser constitutivos de sociedades onde prevalecem estruturas hierárquicas e autoritárias10 10 Por isso, na América Latina, se desenvolveu, dentro de um Estado centralizado e patrimonialista, um sistema de poder local dotado de - paradoxalmente - um alto grau de autonomia (Eisenstadt 1992:, p.598). . Entretanto, trata-se no caso brasileiro menos de poderes de caráter formal quanto de agências estatais de desenvolvimento regional ou de partidos políticos, que desempenham essa função de intermediação de forma regular. Mas, acima de tudo, trata-se de padrões e práticas informais de negociação entre lideres políticos nacionais, regionais e locais, assim como de diversas instituições de intermediação - patronagem política, clientelismo, nepotismo, fisiologismo e a corrupção - que são fortemente arraigados na sociedade e no Estado brasileiro, fazendo assim parte da cultura política e sendo aceitos por amplos setores da sociedade11 11 Ver a respeito O'Donnell, que observa no caso das democracias da América Latina "uma outra institucionalização" (1996), onde o particularismo e normas informais determinam o funcionamento do processo político. Para O'Donnell tais "democracias delegativas" (1991) podem ser consideradas consolidadas e não necessariamente seguirão o caminho das democracias antigas da Europa ou dos Estados Unidos. .
Cabe salientar o caráter ambíguo destas instituições intermediárias que, por um lado, garantem o funcionamento daquelas sociedades heterogêneas, nas quais pelo menos a idéia da igualdade adquiriu um certo grau de importância e até chegou aos ouvidos das parcelas desfavorecidas. Por outro lado, elas contribuem para o acirramento das desigualdades e injustiças, visto que os maiores beneficiários dessas práticas e instituições são as elites locais, que não são sujeitas a um controle efetivo nem por parte da população e nem por parte das instâncias centrais, e que portanto, atuam basicamente em função do próprio enriquecimento e em detrimento das necessidades sociais e materiais do povo em geral12 12 Contrariando as expectativas de Tocqueville, nas democracias das sociedades mais avançadas as instituições e os procedimentos intermediários têm proporcionado uma maior integração da sociedade civil no processo político e com isso a atenuação do temido "despotismo democrático": "In destinguishing western capitalism from periphral capitalism it is posited that political subjects in the centre (advanced capitalism), although not exercising direct democratic control over the means of administration, 'do participate in this controle in a more autonomous manner'; on the other hand, in the periphery/semi-periphery 'the dominated groups as collective political subjects participate much less in the effective controle of the means of administration, and one is therefore justified in speaking of different relations of domination" (Slater 1989, p. 507). .
O argumento da repartição do poder a favor das elites locais, que tanto no Brasil como nos países em desenvolvimento em geral é temida com razão13 13 Smith chama a atenção para o freqüente abuso da descentralização no Terceiro Mundo em benefício das elites locais: "In the Third World, where decentralization is given the official ojective of mobilizing the poor in development efforts, it may be recognized that local institutions have simply provided yet more resources and power to be commandeered by already powerful elites and propertied interests" (1985, p. 5). , é freqüentemente utilizado para desacreditar por completo as concepções de descentralização. Esta argumentação ignora ou menospreza que o favorecimento das elites locais não é uma conseqüência compulsória da descentralização em si, mas a conseqüência de uma interação de tendências centralistas e descentralistas e, logo, resultado de lutas pelo poder político entre elites nacionais, regionais e locais. Nisso as formas de intermediação (nepotismo, clientelismo, corrupção, patronagem política etc), os benefícios materiais e os recursos financeiros disponíveis à repartição representam, de certo modo, os insumos e trunfos nas negociações, com auxílio dos quais consegue-se reduzir as tensões existentes entre os próprios grupos dominantes que buscam afirmar suas pretensões de poder a expensas do povo e da eficiência14 14 Convém ressaltar que o grau de solidariedade entre as oligarquias locais costuma ser limitado, impossibilitando estratégias coletivas das elites locais e regionais frente ao Estado central. Contudo, o "compromisso de elite" não é resultado de um processo conscientemente propulsionado ou negociado por uma aristocracia autônoma e unida, mas sim de estratégias individualistas de oligarquias altamente dependentes do Estado central, tanto no que diz respeito ao acesso aos recursos materiais, como referente ao acesso aos centros do poder (ver Eisenstadt 1992, p. 598). . No meu entender, o ponto nodal na discussão da descentralização não é, portanto, o grau de centralização das instituições políticas e administrativas. Outros fatores parecem pesar muito mais nessa questão, como por exemplo a possibilidade da sociedade civil e de outras instituições concorrentes de exercer um controle democrático efetivo e de influenciar nas decisões políticas. Entretanto, supondo a existência de uma certa vontade política, a probabilidade de alcançar tais condições parece bem maior no caso do predomínio de estruturas descentralizadas.
É exatamente neste sentido que os ensinamentos de Tocqueville referentes ao poder local são fundamentais, tendo em vista que a esperança por ele depositada na política comunal enquanto meio de preservação da liberdade está indissociavelmente ligada à exigência de uma participação ampla de quase todos os cidadãos no processo político local.
Diante deste pano de fundo dificilmente pode ser mantida a afirmação de que uma estrutura administrativa descentralizada seria em todos os casos um instrumento para a melhoria da aplicação de recursos, pelo menos não nesta forma generalizadora. Da mesma maneira não me parece justificável a desqualificação generalizada do gerenciamento centralizado como "padrão arcaico da administração da coisa pública" (Jacobi 1990, p. 89), sob o ponto de vista da democracia e da eficiência. Muitos autores advertem a ocorrência de uma idealização romântica da descentralização, que se basearia em uma inoportuna polarização valorativa dos dois conceitos15 15 Ver a respeito Smith (1985, p. 25f), Roversi-Monaco (1986. p. 322) e Fesler (1965, p. 538). Fesler em particular debruça-se extensamente sobre este aspecto de uma "transfiguração romântica" da descentralização e da comunidade política e cultural local. Ilustrando seu argumento com exemplos empíricos (pp.538ss), Fesler conclui que tratar-se-ia de uma inversão dos fatos históricos: "The pictures offered of a harmony among men in their little communities with a generous sharing of dignity, economic satisfaction, and happiness is often so inaccurate historically that one suspects it is borrowed from philosophers'portrayals of na idyllic state of nature before men organized politically or is a time-reversed vision of the withering away of the state" (Fesler 1965: 540). . Neste contexto convém lembrar a distinção feita por Tocqueville entre centralização "governamental" e "administrativa". Assim, Tocqueville considera imprescindível um razoável grau de centralização em questões referentes à legislação e a problemas comuns à nação como um todo (centralização governamental), ao passo que considera a centralização administrativa altamente prejudicial, por diminuir o espírito cívico (Oldfield 1990, p. 121).
A afirmação generalizadora de um nexo direto e irrestrito entre democracia, liberdade e descentralização não se justifica. Pois não só a democracia acarreta o risco de transformar-se em um despotismo democrático (Tocqueville), mas também a liberdade, na sua manifestação mais extrema, pode transformar-se em anarquia, assim como a descentralização e a autonomia local podem muito bem ser acompanhadas pela subordinação dos indivíduos a uma autocracia local. A concepção descentralizadora de cunho neoliberal, que costuma confundir descentralização com privatização16 16 Ver Felicíssimo (1994) que contrapõe a descentralização neoliberal a uma concepção de descentralização democratizante. , corre grande risco, em conseqüência da retração do poder público, de entregar os desamparados nas mãos dessa autocracia local, ou, na versão sempre mais difundida no Brasil de hoje, nas mãos do crime organizado - que nos morros de Rio de Janeiro encontra sua manifestação mais assombrosa - ou das igrejas e seitas que oferecem apoio e orientação para uma população crescentemente frágil e carente, ultimamente com métodos propagandistas sempre mais agressivos. Daí a necessidade de considerar a estrutura de poder no nível local: "Autogoverno local é um termo ambíguo. Embora com freqüência equiparado à democracia local, pode facilmente significar simplesmente autonomia local sem especificar a estrutura de poder no interior da localidade" (Fesler, 1965: 545).
No Terceiro Mundo, as forças políticas de esquerda costumavam defender concepções do desenvolvimento econômico e social com orientações centralizadoras, de acordo com a associação correntemente feita entre política local e o exercício de privilégios por parte de elites locais. As instituições locais foram vistas como não menos suscetíveis a manipulações por parte das classes dominantes do que os governos nacionais17 17 Ver Smith (1985, p.5); "In the Third World, where decentralization is given the official objective of mobilizing the poor in development efforts, it may be recognized that local institutions have simply provided yet more powerful elites and propertied interests" (idem). . De acordo com a associação feita por Tocqueville entre igualdade e centralização, a esquerda tradicional tem visto somente na centralização uma possível chance para realizar a demanda pela igualdade.
Em um país como o Brasil, com alta heterogeneidade territorial, a esperança de amenizar as disparidades regionais através de uma administração e um planejamento centralizado sempre terá - e com certa razão - intercessores influentes no debate político18 18 Ver Camargo (1994) que atribui ao governo federal "funções vitais de integração e promoção do desenvolvimento" (p.89) e na "redução dos desequilíbrios regionais" (p.90). . Cabe neste contexto lembrar da crítica marxista, de que o debate em torno da descentralização, impulsionado pelos governos nacionais e pelas organizações internacionais, teria como objetivo principal desviar a atenção, por um lado, dos conflitos estruturais de classe inerentes ao capitalismo, e por outro lado, da ordem econômica mundial altamente desfavorável aos interesses dos países do Terceiro Mundo19 19 Ver a respeito Slater (1989, p.506s) e Smith (1985, p. 183). Outro ponto da crítica marxista refere-se à subordinação do nível local à lógica predominante no nível dos estados nacionais. "Local government 'is part of a structure which as a whole and in the long term has other interests to seek' than those of the majority, a structure which protects the interests of the bourgeoisie by culturally and politically dominating the working class" (Cockburn, citado em Smith 1985, p.43s). Contudo, não existe uma teoria marxista uniforme sobre o Estado local (ver Smith 1985, p.44). .
Todavia, não obstante da omissão destes aspectos no debate "oficial" sobre descentralização, isto não deve levar a uma rejeição por princípio de quaisquer estratégias de descentralização. Como mostra a atual discussão no interior da esquerda brasileira - por sinal, impulsionada pelos êxitos eleitorais dos partidos da esquerda nas eleições municipais - a descentralização também pode ser vista como uma chance efetiva de realizar uma participação substancial dos setores marginalizados e desprivilegiados, e não exclusivamente como um mero instrumento de dominação e de controle nas mãos das elites tradicionais. Mas sim, até como o caminho mais promissor para chegar-se à liberdade democrática. Como lembra um comentador de Tocqueville, "a liberdade democrática necessita de descentralização e participação direta ainda mais extensivas" (Boesche 1987, p. 120).
Com efeito, isto pressupõe que se consiga impedir o abuso do poder pelas elites locais mediante uma democratização abrangente das unidades descentralizadas. Tal ampliação efetiva da participação política é imprescindível para que os grandes desafios que os municípios estão enfrentando hoje em dia - crescente deterioração ambiental; aumento do desemprego, da criminalidade e violência; diminuição da solidariedade comunitária e afrouxamento do tecido e dos laços sociais etc. - possam ser solucionados sem abrir mão da liberdade política.
O DEBATE NO BRASIL À LUZ DE TOCQUEVILLE
Estamos atualmente presenciando no Brasil uma discussão acirrada sobre a reforma do Estado. Por um lado o debate se dá em torno das modalidades da retração do Estado - a necessidade de tal retração já sendo posta como fato consumado - e pelos prós e contras da privatização e da descentralização em geral. Por outro lado, é dominado pela questão da necessidade da realização de uma "revolução gerencial", de modo a injetar no setor público o espírito empreendedor que supostamente predomina no mundo da economia privada20 20 Ver como representativo para este debate, Bresser-Perreira/Spink (1998). . Face à precariedade da saúde financeira do setor público todo este debate se dá basicamente em função da necessidade de limitar os gastos públicos e de aumentar a eficiência administrativa do setor. Nessa orientação, adotada pelos atuais governantes do Brasil, encontramos muitas das tendências temidas por Tocqueville, as quais, segundo ele, seriam conseqüência das condições de progressiva igualdade. O aumento de demandas sociais direcionadas ao poder central, que por sua vez se vê sempre menos em condições de atender a todas elas, conduz por um lado a uma sobrecarga do poder central, e, por outro, a uma disposição crescente por parte da população a abrir mão da participação e da liberdade política e confiar competências sempre maiores ao poder central. Esta disposição está em sintonia com uma propensão crescente por parte do governo central a acumular competências e responsabilidades.
Tocqueville imaginava que, em um sistema democrático, o espírito do comércio promoveria estabilidade social, na medida em que todos teriam acesso à propriedade privada. A participação política generalizada seria a melhor garantia para a redução do contraste entre os poucos ricos e a grande maioria de pobres, que para ele constituía a principal fonte da instabilidade social (Zetterbaum 1967, p. 131). O que se pretende hoje no Brasil é a inversão da concepção tocquevilliana em condições diametralmente opostas às encontradas por ele na Nova Inglaterra.
Visto que o espírito do comércio não pode se desenvolver e generalizar no bojo de uma sociedade altamente desigual, onde o acesso à propriedade é restrito a poucos, a própria elite resolveu prescrever e impor o novo espírito empreendedor de forma unilateral. Contudo, a viabilização desta estratégia só se torna possível à proporção que se consegue silenciar possíveis vozes dissonantes. Desta maneira obstrui-se o possível caminho para uma maior estabilidade social delineado por Tocqueville: o espírito do comércio promovido pela participação ativa de todos os cidadãos. Já a própria desigualdade econômica, reinante nos países em desenvolvimento, reduz a coesão social, gera novas injustiças e enfraquece os laços políticos que unem as sociedades (Chantornvong 1988, p.81). Com as reformas, impostas de forma autoritária este quadro se agrava ainda mais. A constatação de Chantornvong de que "a introdução de instituições e processos democráticos formais numa sociedade na qual a desigualdade de condições é a regra pode converter essa sociedade em algo muito próximo a um 'totalitarismo capitalista'" (Chantornvong 1988, p.90) parece não ter validade apenas para o caso de Singapura, ao qual o autor se refere primordialmente, mas também no caso brasileiro ocorrem tendências similares.
A recente análise de Francisco de Oliveira (1999) mostra de forma bastante reveladora a tendência da política brasileira mais recente -sobremaneira intensificada nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso - à privatização não apenas das empresas públicas, mas também da própria esfera pública, tendo como efeito uma "anulação da política"21 21 Este conceito Oliveira toma de empréstimo de Rancière. Ver Oliveira (1999, p.58). . Com efeito, é esta "anulação da política" aliada a uma "destituição da fala" (Oliveira) que constituem os temores que mais afligiram o "espírito inquieto" (Lawler 1993) de Tocqueville.
O que Tocqueville não podia prever é que o próprio "absenteísmo burguês", de acordo com Oliveira conseqüência de uma "falsa consciência da desnecessidade do público pelas burguesias e seus afiliados" (Oliveira 1999: 73), não necessariamente tem que levar ao aumento do poder central e da burocracia estatal central. Sob as condições atuais de mercados econômicos e financeiros globalizados as funções centrais do Estado nacional, de garantir a igualdade e de regulamentar a convivência entre os agentes econômicos, encontram-se enfraquecidas. As grandes empresas multinacionais que atuam nos mercados globalizados não dependem mais como antes da benevolência do governo central; pelo contrário, sempre mais essas empresas conseguem impor suas condições aos governos estatais.
O surgimento e a consolidação do welfare state nas sociedades ocidentais, conseqüência do enorme crescimento das atividades governamentais, já previsto por Tocqueville (Chantornvong 1988: 87), podia ainda levar-nos a crer - como comenta Aron (1997: 213) ao comparar a visão histórica de Tocqueville com as de Comte e Marx - que a visão tocquevilliana se aproximaria mais do desenvolvimento real, pelo menos no que diz respeito às sociedades mais desenvolvidas. Mas parece que hoje é preciso repensar tais interpretações em função dos efeitos da onda neoliberal e da globalização que acarretam um aumento das desigualdade, tanto dentro dos países no mundo todo, como também nas relações internacionais, sobretudo no que diz respeito às relações Norte-Sul.
Um dos ensinamentos mais importantes de Tocqueville, que me parece indicado para subsidiar o repensar da atual reforma do Estado, tem a ver com sua desconfiança referente a uma mera engenharia institucional, expressando dúvidas em relação à crença de que tais rearranjos poderiam fundamentar uma nova ordem estável. De acordo com Tocqueville nossos esforços não devem se esgotar na busca de melhores estruturas e instituições, mas acima de tudo é indispensável contemplar um paradigma desejável para uma ordem razoável de convivência humana. Numa sociedade meramente engajada na busca de prazeres materiais, preocupada exclusivamente em critérios de eficiência e glorificando urna ideologia privatista, as condições para tais esforços, que no entender de Tocqueville devem se estender a toda a sociedade, não são das melhores. Porém, com isso tais esforços não se tornam menos necessários. Se refutarmos de antemão nosso pensador por seu viés conservador, que sem dúvida encontra-se em vários aspectos da sua obra, corremos o risco de perder de vista suas valiosas advertências e propostas.
A criação de novas elites econômicas e financeiras e sua predominância na sociedade globalizada, assim como o insulamento ou a reclusão dos setores mais ricos em círculos fechados, que se observa atualmente no Brasil22 22 Ver Oliveira (1999, p. 70): "No Brasil, e provavelmente em todos os outros (países), o grande burguês e seus correlatos têm um cotidiano totalmente fechado em seu próprio círculo". , não desvalorizam, no meu entender, as previsões tocquevillianas no que tange ao aumento do economicismo, a tendência ao individualismo ou isolamento individual e à deterioração da vida pública, em decorrência do aumento das chances sociais na sociedade moderna. Mesmo porque Tocqueville nunca chegou a confundir o aumento das chances sociais com a realização efetiva da igualdade social. Pode ser que a atual discussão em torno do suposto desaparecimento das classes, que, de acordo com alguns autores23 23 Ver p.ex. Beck (1993). , caracteriza as sociedades avançadas na chamada "modernidade reflexiva", só se aplique de forma limitada à sociedade brasileira. Porém as pressões sociais presentes atualmente na sociedade e as reivindicações por uma maior participação na política não deixam dúvidas de que, por um lado, o Brasil superou aquele estado estático com hierarquias sociais nítidas e raramente contestadas que ainda caracterizava todos os países no século passado. Por outro lado, o centralismo, proporcionado pelo crescente igualitarismo e pela luta entre as várias elites nacionais, regionais e locais, vêm sendo crescentemente contestado - tanto no Brasil quanto pelo mundo afora - por novas forças sociais, cujo surgimento dificilmente poderia ser previsto por Tocqueville.
O resultado deste processo ambíguo e contraditório, onde coexistem o conformismo da ainda maior parte da população, o interesse predominante das elites tradicionais na manutenção do status quo e, finalmente, crescentes demandas por uma participação ampliada por parte de novas forças sociais, está em aberto. Particularmente no processo de descentralização manifestam-se essas ambigüidades, na medida em que tanto as oligarquias locais e regionais como também os novos movimentos sociais e os diversos agentes ligados à implementação de políticas públicas no nível local defendem a descentralização, ao passo que no outro pólo observa-se forças progressistas como sindicatos de trabalhadores defendendo a centralização em prol de uma maior igualdade social e territorial, aliando-se a forças corporativistas e conservadores, os rent-seekers, cujos contatos diretos com a elite burocrática e política nacional lhes assegura favores e vantagens preciosos.
Conforme a concepção tocquevilliana este processo ambíguo só pode ser decidido pela própria prática política. Os costumes e hábitos democráticos devem ser cultivados permanentemente, o que só pode ser levado a cabo por meio de uma participação substancial dos cidadãos nos processos políticos. "Traduzido numa estratégia para o desenvolvimento futuro, esse método significa simplesmente que o problema do desenvolvimento equilibrado é basicamente o problema do autodesenvolvimento, da liberdade e do interesse próprio, e que como tal ele deveria ser tratado como um sistema de autogoverno democrático" (Chantornvong 1988, p.93).
Não é a centralização e nem a descentralização que transformarão a sociedade brasileira numa sociedade democrática onde os cidadãos exerçam sua cidadania e usufruam de fato - e não apenas no paciente papel da Constituição - de suas liberdades e direitos políticos. Os hábitos e padrões de comportamento político e social são resultado de um longo processo histórico. O caminho para o despotismo democrático, de acordo com Tocqueville, só pode ser evitado pela junção da liberdade não apenas com a igualdade, mas também com a moralidade, a religião e a ordem. "Assim como a igualdade é a precondição da justiça, a moralidade e a ordem são as precondições da grandeza. A solução do problema da democracia implica mostrar que nenhum desses componentes pode ser sacrificado e, ademais, que nenhum precisa ser sacrificado, posto que juntos eles constituem uma unidade harmônica" (Zetterbaum 1967, p. 146).
Na Nova Inglaterra, segundo Tocqueville, conseguiu-se chegar mais perto deste estado harmonioso. Antes de tudo, a tradição democrática da sociedade americana se deve a um processo não-consciente e não-planejado, à prática do auto-governo e do associativismo que fortalece a perseguição do bem comum nos processos decisórios (Stone/Mennell 1982, p.37).
À medida em que a participação ativa na política contribui para o crescimento humano individual, cresce a chance da valorização do bem comum na sociedade. Muitas das preocupações do pensamento pós-materialista, que é inerente a boa parte do pensamento no movimento ecológico, já foram levantadas por Tocqueville, por exemplo quando ele questiona o consumismo, a busca por prazeres fugazes e a mera satisfação de desejos - "O materialismo é, em todas as nações, uma enfermidade perigosa do espírito humano" (Tocqueville 1977, p.415) - e sugere a busca da verdadeira felicidade, que por sua vez pressupõe a restrição de desejos: "É somente ao resistir à miríade de mesquinhas paixões do momento que pode ser satisfeita a paixão geral e insaciável por felicidade" (Tocqueville, citado em Boesche 1987, p.161).
Tocqueville defende uma ética da sobriedade e frugal idade que unicamente tem o potencial de trazer a sociedade de volta à busca do bem comum e da felicidade, o que passa necessariamente por um papel renovado da política. "Há apenas uma grande meta neste mundo, que merece os esforços do homem: é o bem da humanidade", escreve ele.
Tocqueville se evidencia um crítico feroz daquela "cultura da democracia" que prega o consumismo e o divertimento desenfreado, cujo nascimento o nosso autor observou e cuja marcha triunfal e irresistível previu e lamentou (McClelland 1996, p. 470). Uma vez que para Tocqueville democracia não corresponde apenas a um certo sistema político, mas a um peculiar "modo de vida" evidencia-se a necessidade de uma ampla transformação da cultura política, que pudesse dar sustentação a uma reorientação da política, valorizando o bem comum e a virtude pública. De acordo com o raciocínio tocquevilliano tal transformação não pode ser forçada pela simples criação de novos arranjos institucionais, nem por um sistema parlamentarista, e nem por um novo sistema eleitoral, apesar de no Brasil muitos analistas políticos depositarem muita esperança em tais reformas24 24 Particularmente em sociedades onde os espaços e processos formal e legalmente delincados e determinados costumam ser transfigurados sob a influência das relações pessoais, de amizade e de parentesco, conduzindo ao predomínio de instituições informais como clientelismo, nepotismo e corrupção, é preciso atentar aos limites de estratégias meramente institucionalistas (Ver Eisenstadt 1992, p. 599, O'Donnell 1991, p. 30, Frey 1999, pp. 29ss, DaMatta 1993). . Tocqueville deixa muito claro suas reservas em relação a tais propostas institucionalistas:
"Depois de ter esgotado todos os diferentes sistemas eleitorais, sem encontrar um que lhes convenha, admiram-se ainda e continuam a procurar, como se o mal que observam não se devesse à constituição do país, muito mais que à do corpo eleitoral" (Tocqueville 1977, p. 533).
Para Tocqueville o problema primordial não é encontrar o melhor método de escolha dos governantes que devem conduzir o Estado -para ele um aspecto secundário da democracia, ao passo que para muitos autores corresponde à sua essência - mas sim em transformar o corpo eleitoral em cidadãos ativos e virtuosos. Mas essa transformação só virá a acontecer na medida em que os indivíduos adquirem tais hábitos e habilidades através do exercício prático da política. As transformações têm que partir da própria sociedade. Enquanto autores como Locke ou Madison se dedicaram à análise das leis e das instituições e se perguntam se a Constituição consegue assegurar os direitos privados, Tocqueville vê no "caráter", no "espírito" e nos "costumes" os fatores transformadores da sociedade: "A grande utilidade das instituições populares consiste em manter a liberdade durante aqueles intervalos em que o espírito humano está ocupado de outro modo - em dar-lhe uma espécie de vida vegetativa, que possa mantê-la em existência durante esses períodos de desatenção". Mas, conclui, Tocqueville, "as leis sempre são instáveis enquanto não buscam apoio na moralidade. Os costumes são o único poder firme e durável num povo" (Boesche 1987, p. 183).
Isto não significa menosprezar as instituições políticas. Tocqueville avaliou a autonomia comunal como de central importância para a democracia americana. E certamente ele aprovaria quaisquer inovações institucionais que proporcionassem oportunidades de participação. Porém, a autonomia comunal não substitui a moralidade pública ou o bom senso. Além disso, ela possa tornar-se real apenas em uma comunidade com um razoável grau de igualdade. Numa comunidade de desiguais a mesma instituição corre o risco de criar resultados totalmente opostos e reforçar ainda mais o elitismo local. Por isso, reformas impostas unilateralmente por governos centrais freqüentemente não resultam nos objetivos pretendidos, porque não são compatíveis com os hábitos e costumes reinantes na sociedade, ao passo que reformas institucionais concedidas em decorrência da pressão da própria sociedade civil têm maiores chances de êxito. O que fazer diante deste dilema? Se não dispomos de uma moralidade pública integradora, se não podemos mais - ou sempre menos - recorrer a uma religião que desse as orientações necessários, como Tocqueville imaginou? É unicamente o penoso e moroso caminho da prática política e participativa nas bases da sociedade que pode paulatinamente levar à consolidação de uma cultura mais democrática, à transformação de habitantes e consumidores em cidadãos e à valorização do bem comum nos processos políticos e sociais.
É este raciocínio que explica a aposta tocquevilliana no poder local enquanto locus de aprendizagem do indivíduo; onde ele começa a exercer seus direitos e sua cidadania; onde ele adquire as habilidades e valores necessários e onde se consolida uma cultura democrática, que por si só é indispensável para o fortalecimento da liberdade política e para disseminação do bom senso e da inteligência prática25 25 Ver Boesche (1987, p. 185). . Portanto, uma democracia sustentável não pode dispensar instituições locais fortes e poderosas. Talvez elas não sejam uma garantia, mas possivelmente são o único caminho viável para o fortalecimento do espírito cívico e público. O baluarte mais efetivo contra as forças da tirania, estejam estas manifestas nas manipulações de demagógicos líderes "democráticos" ou na violência da plebe, é uma intensa participação nas instituições democráticas, onde os cidadãos aprendem as regras do jogo democrático (Stone/Mennell, 1982, p.38).
Enquanto, segundo Commager (1993, p. 46), os Estados Unidos abandonaram a idéia de progresso no campo da inovação política e democrática, as recentes experiências democráticas feitas em muitos municípios brasileiros testemunham o potencial que a política municipal representa, principalmente no que se refere às possibilidades de experimentação de novos padrões de ação política. O êxito duradouro dessas experiências dependerá da consolidação do processo. Porém, fica evidente que sem o fortalecimento de tal espírito renovado a sobrevivência da democracia depende apenas do sucesso da sua economia - uma perspectiva não muito animadora no atual contexto da globalização. Eis por fim uma síntese do ensinamento fundamental de Tocqueville: a democracia só pode perdurar quando os cidadãos, participando no processo político, começam a valorizar ou amar a liberdade política em si mesma, o que exige uma reconstrução radical da vida política, do pensamento filosófico e dos posicionamentos morais26 26 Ver Commager (1993, p. 117). . Colocado de outra maneira: a solução dos grandes problemas que afligem nossas sociedades contemporâneas não dependem - pelo menos não primordialmente - de novas invenções técnicas, de uma revolução de eficiência da administração pública ou da liberação das forças produtivas de mercado, mas sim de um "experimentalismo democrático"27 27 Ver Brunkhorst (1998) e Mangabeira Unger (1999). , instituído à partir das instituições básicas da sociedade e do sistema político e capaz de despertar o amor pela liberdade política, pela participação e o engajamento político e social. Só assim parece possível a criação de um ambiente mais propício ao fortalecimento da uma sociedade civil democrática e participativa, que por sua vez será capaz de reivindicar e se empenhar a favor das transformações que uma sociedade sustentável exige.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Maio 2010 -
Data do Fascículo
2000