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Dom Casmurro

DA TRADIÇÃO CRÍTICA

Dom Casmurro*

Agripino Grieco

RESUMO

"Sou dos que encontram uma espécie de magnetismo suspeito em Joaquim Maria. Admiro-o resmungando contra a minha admiração. E até parece que o que mais aproxima tanta gente dele é mesmo o fato de discordar tanto dele, de se irritar tanto em dados trechos. No amor a inteligências dessas há qualquer coisa de indefinível como no vício do jogo." Foi sempre nesse tom, meio a contragosto, com raiva da sua admiração incontrolável, que Agripino Grieco escreveu sobre Machado de Assis. O autor de Dom Casmurro foi uma espécie de cachaça para esse poeta, jornalista e crítico controverso, fluminense nascido em Paraíba do Sul em 1888, às vezes tão mal humorado que se tornava divertido na sua ranzinzice. Um exemplo dessa combinação peculiar de mau humor e graça: "se pudéssemos obter a média das personagens de Machado, diríamos que sua principal criação namora viúva, lê romance francês, vai passear na Tijuca, é sovina e queima rato." Seguindo a linhagem de Sílvio Romero, que viu e recriminou em Machado o macaqueador do humorismo de Sterne, Grieco deu mais um giro no estilete romeriano, apelidando Machado de "Sterne do Cais Pharoux". Amante da frase ferina, que nem sempre vem acompanhada do julgamento justo, foi capaz de sentenciar, em pleno 1959, quando o futebol já se tornara esporte nacional e promovera grandes comoções (como a perda da Copa do Mundo para o Uruguai no Maracanã, em 1950), que "duas coisas, especificamente da zona de John Bull, não convêm absolutamente aos trópicos: o futebol e o humour." A passagem do tempo se encarregou de contradizer o crítico. Mas naqueles anos, marcados por uma verdadeira machadolatria, alimentada pelas comemorações do centenário do nascimento, em 1939, e pelas homenagens ao cinquentenário da morte, celebrados em 1958, Agripino Grieco provocou a ira de muita gente. Assim, não é de espantar o estrondo que produziram os dois livros que dedicou integralmente ao criador de Capitu, Machado de Assis, de 1959, e Viagem em torno a Machado de Assis, de 1969. Nos seus ensaios, às vezes dá a impressão de ter escolhido franca e deliberadamente a contramão. No primeiro livro dedicado a Machado, chegou a autoproclamar-se herético e blasfemo. No segundo, recorrendo a Brunetière, justificou-se dizendo que "estimular uns tantos à heresia literária é a melhor maneira de fazê-los apreciar as razões de sua ortodoxia". Em ambos os livros, o crítico atribui sua dificuldade de adesão ao culto a Machado à frequentação tardia do escritor carioca - "todo o meu mal consistiu em bater à porta do mestre do Cosme Velho depois de longa visita àqueles que o haviam ajudado a formar-se: Diderot, Voltaire, Mérimée, Flaubert. Vir assim das cidades europeias para o Rio... Se eu o lesse integralmente nos tempos de rapaz, provavelmente sentiria outro afeto por ele." Entretanto, nem tudo ficou dissolvido pela sua pena ácida. Leitor voraz e erudito, Agripino Grieco contribuiu para revelar a estatura internacional do escritor brasileiro, comparando-o, entre outros, com Swift, Diderot, Heine e Flaubert, como fizeram outros críticos mais jovens que ele, tais como Augusto Meyer e Eugênio Gomes, que entre as décadas de 1930 e 1950 contribuíram para incluir a obra machadiana no âmbito dos estudos comparados. Conhecedor profundo da vida, que esmiúça, e da obra, que percorreu de cabo a rabo e em todos os seus gêneros, sem preconceito nem mesmo com a produção inicial do escritor, Agripino traz em seus textos informações preciosas e insights que ainda hoje podem interessar a pesquisadores e críticos. Com a publicação do ensaio sobre Dom Casmurro, extraído do livro de 1959, Machado de Assis em linha presta homenagem à voz dissonante, erudita e hoje pouco lembrada de Agripino Grieco, morto em 1973. Oferece também aos leitores a oportunidade de conhecer a produção desse crítico provocador, que contribuiu para temperar um pouco a machadolatria às vezes inconsequente do seu tempo. Os editores agradecem de público a Alfredo Grieco, neto do crítico, que gentilmente autorizou a publicação deste ensaio.

Palavras-chave: Dom Casmurro; crítica literária; intertextualidade.

ABSTRACT

A dissenting voice among the critics of Machado de Assis of the mid 20th century, who in their vast majority worshipped the novelist, Agripino Grieco in this particular chapter, candidly admits to his affection for Dom Casmurro, which, he claims, is one of the books he would take with himself into exile. Being extremely well-read, he establishes links between Machado and several authors of the Western tradition, often shedding new light upon the writer's fiction.

Keywords:Dom Casmurro; literary criticism; intertextuality.

Se me exilassem para sempre do Brasil, permitindo-me levar na bagagem apenas cinco livros nacionais, é evidente que não dispensaria o meu Alencar, o meu Castro Alves, Pompeia, Euclides, mas também não dispensaria este romance do não totalmente meu Machado de Assis.

Tudo aqui é em numerosos capítulos curtos, como já era no Brás Cubas e voltaria a ser no Esaú e Jacó. Entanto, se o assunto e as intenções valem pouco no trabalho, que dicção deliciosa, que arte enleante na maneira por que os detalhes, em geral prosaicos, tombam gota a gota e adquirem por vezes não sei que beleza lírica!

Imperceptível o sotaque inglês e, esquecida uma ou outra afetação de purismo, saltam mil recordações cariocas, e simples palavras revivem cenas e tipos ainda vistos ou comentados em nosso tempo de criança. Havia terraço no Passeio Público, o Imperador passava de coche, as casas não dispensavam o ornato do oratório, a sobrecasaca era a farda solene dos burocratas, lia-se Walter Scott, demandava-se com fúria.

Ignoro se Machado acreditaria fazer em Dom Casmurro livro à moda de Sterne: sei, sim, que fez, querendo ou não querendo, romance de costumes, tanto quanto era possível que ele o fizesse, e os que hoje se interessam tão fortemente pelas questões de folclore devem atentar que não lhe faltam à narrativa muitos documentos de folclore urbano. Trate-se embora de coisa desagradável, que do­çura na expressão "calundus", empregada a certa altura pelo autor!

Até a lentidão é saborosa nesse Rio em que o ritmo não era de automóvel. Raras as repetições, frequentíssimas noutros volumes seus, e as personagens não parecem na iminência de cair em catalepsia. Se eu organizasse um Baedeker

Tem-se a impressão de que nas Memórias as almas são examinadas com uma lupa, enquanto em Dom Casmurro há outro desafogo e não escapa a bonomia de determinadas passagens que começam num ar inquietante, de suposta catástrofe, e concluem em vulgares incidentes de quotidianismo burguês.

Curioso é que o romancista, divertindo-se ao de leve com a vaidade administrativa de dado sujeito ou com os ciúmes de Bentinho, prove que nós só ironizamos bem aqueles defeitos de que participamos muito ou pouco. Machado, servindo em ministério, ficava radiante quando o convidavam para fazer parte do gabinete do ministro, acolhia reverente senadores e deputados, e, em função de marido, era ciosíssimo dos seus direitos junto à alva Carolina, não franqueando a quase ninguém, em intimidades alarmantes, a sua morada do Cosme Velho.

Mesmo consentindo que o menino Bento e a menina Capitu brinquem de missa, o exato é que, receoso talvez de complicações com uma gente rancorosa, Joaquim Maria só se refere a padres e frades com relativa brandura.

Sua sege, no momento, não é a da viagem de Sterne, e seu leproso não é o da cidade de Aosta, da narração de Xavier de Maistre: uma verdade local se impõe aos leitores.

E que sutileza de toque nas insinuações que chegam de mansinho, até se aclararem subsequentemente! Noutros volumes, Machado, dando-nos o pão, dá-nos também o castigo, e aqui só nos dá o pão. Nada em ressalto, conta­-se tudo a meia voz.

Ainda que ele continue refratário a descrever a paisagem, que é nele simples nomenclatura ("Não tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos Órgãos..."), adivinha-se-lhe por estas páginas a estima dos jardins e o prazer de vagar pelas ruas velhas do centro ou dos bairros, e sente-se que ele protestaria contra a mutilação dos nossos parques, o do Passeio, onde Bentinho conversou com José Dias, e o do campo de Santana, que ele conheceu quando apenas campo e sem parque, sem a obra-prima de Glaziou, vendo talvez, ao ir como jornalista ao Senado, as lavadeiras às voltas com trouxas de roupas. É o jardim uma das raras dádivas do governo aos pobres, e querem retirá-la.

Nenhuma fatigante literatura de tese em Machado. Ninguém busque encontrar nele um corpo de doutrina, coerência de atitudes filosóficas. Nas suas tiradas, um aforismo ou um paradoxo destrói quase sempre o anterior. Contraditar-se não era a menor das suas volúpias. Porque constranger-se – pensaria ele – escolhendo entre duas opiniões, se tudo é matéria para uma boa frase?

Sem ostentação, sabe ir encaminhando placidamente o fato que, aparentemente mínimo, é na realidade o que define tudo, decide de tudo. Dos cochichos acaba saindo uma voz nítida que nos perseguirá sempre. E nem nos irritamos quando o autor retorna a um trecho anterior para melhor explicação, como os sujeitos que se despedem e voltam para procurar a bengala ou um livro esquecido.

Tanta gente a se preocupar com a infância, a juventude e a velhice de Machado de Assis, fazendo vida romanceada, fazendo o romance do romancista. Para quê? Amontoam-se as conjecturas, as hipóteses, as probabilidades em torno ao grande prosador. Ora, nesse homem, o mais importante acontecimento biográfico foi mesmo o haver composto o Dom Casmurro.

Em vão os maus exegetas tramaram tudo para tornar o ídolo odioso. Machado resiste aos que quase o espa­tifam a golpes de turíbulo. Quando me dizem: "Você não gosta de Machado de Assis!", respondo: "Não gosto é dos machadianos tais e tais (enumero os nomes de vários senhores e senhoras),

Mas posso deixar de gostar de Capitu, embora se tenha abusado dos seus olhos não menos que do sorriso de Gioconda, do nariz de Cleópatra e dos pés de Cendrillon? Lamento apenas que fiquem num detalhe e esqueçam inú­meros outros. Ruim a tendência a imobilizar-se nesses trechos seletos, que acabam convertendo-se em lugares­-comuns pela negligência dos antologistas e diminuem o interesse de conjunto em relação às obras do mestre.

Aliás a celebridade desses olhos de Capitu deve derivar de um equívoco. Dezenas de amadores creem que ressaca, no caso, é, não coisa de mar, e sim convalescença de bebedeira, a sugerir o langor, o cansaço e também o fascínio que há debaixo das pálpebras femininas após uma noite de orgia. Certo, o mais obsceno das mulheres está-lhes sempre nas pupilas. As damas ocultam tudo e o mais comprometedor se acha ali à mostra.

Todavia, antes do Dom Casmurro, que é de 1899, antes dos "olhos de cigana oblíqua e dissimulada" de Capitu, Gomes Leal, no Anticristo, livro de 1884, já falara nos "olhares oblíquos" dos judeus.

Lembre-se que a apresentação da heroína é feita em linguagem de passaporte: "Morena, olhos claros e gran­des, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo". Mas impressionante, mesmo para quem haja vivido longa vida e corrido muitas literaturas, é a perfídia sempre engatilhada dessa brasileira, o seu maquiavelismo do coração, pior que o do espírito. Capitolina recorda-nos a manta descrita por Fabre e que devora o macho depois de fecundada.

Aprendeu ela música, e isso enterneceria Machado, que foi sócio do Clube Beethoven e amigo do pianista Artur Napoleão, adorou cantoras famosas e aludia sempre a óperas, tudo com um interesse que não parece ter demonstrado pela pintura e pela escultura.

Observe-se que não fornece ele propriamente minúcias de adultério, detendo-se sempre à margem da cena escandalosa. E uma nota soberba é quando Capitu incide numa espécie de distração ou de cincada e pergunta a Bento, o pai putativo, se já reparara que os olhos do pequeno Ezequiel possuíam a "expressão esquisita" dos olhos de Escobar, o pai autêntico. Inconsciência, provocação, prazer de lembrar o delito? Um pouco de tudo nesse pedacinho admirável.

Nem se esqueça o que vai esparso pelo livro em matéria de lucidez de ódio, sendo evidente que as personagens de Machado se odeiam sempre mais do que se amam. A alguns parecerá que Bento, pela força do hábito, deveria acabar estimando o rapaz, como ocorre num dos mais conhecidos romances de Bourget, mas o nosso Bentinho, apesar de todas aquelas mansuetudes de superfície, é da raça dos implacáveis, de uma implacabilidade tanto mais forte quanto disfarçada em aparência de olvido ou perdão.

Taine, falando antes da aparição de Daudet, referiu-se à falta de crianças na literatura francesa. Também as crianças não exuberam em Machado, e este Ezequiel, aparecendo assim em ambiente difícil, não trouxe grande beleza e nobreza à classe.

Agora, perguntarei a mim mesmo se Capitu é uma grande figura universal. Poderá ela entrar na galeria em que figuram Julieta, Margarida, Manon Lescaut, Eu­gênia Grandet, Carmem? Não creio. À maneira de certos vinhos que da Europa vêm para cá, o nosso romancista não resistirá à travessia do Atlântico. Franceses, lendo-o naturalmente em tradução francesa, enxergarão nele um francês, o que lhe tira qualquer nota de sedução na originalidade americana, e preferirão os que, embora mais fracos, lhes levam umas tintas de tropicalismo.

No Dom Casmurro, onde o laboratório de experiências do autor está menos à mostra do que no Brás Cubas, Machado, como de costume, insiste em algumas palavras, mas, sendo estas sempre comuns (nada do léxico farto de Camilo ou Coelho Neto), não gritam, não adquirem cor vermelha no papel. Estranhe-se que lhe escapassem os vocábulos "chacarinha" e "taramela", assim mesmo à lusitana. Não lembro que ninguém os proferisse nunca dessa forma no Brasil e, em meu recanto de província, "chacrinha" e "tramela", muito mais doces de pronúncia, é que eram frequentes. Pior ainda um "comborço". Quando esse homem de extremo bom gosto se equivoca vai logo ao mau gosto extremo.

Diversas passagens de Dom Casmurro recordam outras de livros de Machado. A heroína, até metade do romance, faz pensar em Iaiá Garcia e Helena. Aquilo de possível arranhão nos joelhos de uma senhora qualquer traz à memória uma cena de Quincas Borba, entre Sofia e Palha. A página em que Ezequiel, ainda garoto, goza com o sofrimento do rato na boca do gato, mostra um esboço de concorrente ao sádico da "A causa secreta".

As coisas equinas e as coisas de dinheiro, especialmente as lotéricas, não se desprendem das cogitações de Machado: "a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande"; "os saldos da juventude"; "fazendo vir do credor a relevação da dívida"; "contrato feito no próprio cartório do céu"; "como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número"; "tais promessas são como a moeda fiduciária"; "não faz moratórias, perdoa as dívidas integralmente"; "ajuste de contas morais"; "reformar uma letra"; "Purgatório é uma casa de penhores"; "o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta"; "Jeová, posto que divino, ou por isso mesmo, é um Rothschild mais humano"; "a minha imaginação era uma grande égua ibera" (e, a propósito destas éguas, "que concebiam pelo vento", desfaça-se uma dúvida de Bentinho: são de Virgílio e não de Tácito).

A mania dos superlativos em José Dias é efeito repetido de velhas anedotas, especialmente italianas, havendo em Donville uma esplêndida, que só não reproduzimos devido ao fecho escabroso. "Ancianidade viçosa" representa feliz variante de "verte vieillesse". Já "inimigos contíguos" será pouco harmoniosa variante de "énnemis intimes". Quando Machado diz que "a alopatia é o catolicismo da medicina", apenas altera o conceito dos Goncourt: "Il me semble voir dans une pharmacie homéopathique le protestantisme de la médecine." Também há "olhos policiais" no poeta português Macedo Papança. De quem a prioridade?

A expressão machadiana: "não a conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os anos e a morte", deriva da frase garrettiana: "tão outro estará mudado". Na ironia: "O céu e a terra acabam conciliando-se", influíram dois versos de Molière que o uso concentrou num só: "Il est avec le ciel des accomodements". A propósito dos amores de Bentinho e Capitu: "Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas...". Garrett: "Os anjos aqueles dias / Contaram na eternidade: / Que essas horas fugidias, / Séculos na intensidade, / Por milênios marca Deus / Quando as dá aos que são seus".

Se os vermes dos livros respondem que nada sabem dos textos que roem e só querem roer, mostram-se modestos, porque devem ter aprendido alguma coisa ao roer conscientemente um volume de Lachambeaudie, onde existe a fábula intitulada "Le rat dans la bibliothêque". E tão renaniano era o nosso Machado que o seu Ezequiel morre quase como a irmã de Renan (ele de febre tifoide e ela de febre perniciosa), sendo igualmente sepultado em região da Ásia.

  • 4 Esta lenda da égua ibera consta na História natural (4: 35 e 8: 67), de Plínio, o Velho. Cf. SENNA, Marta de.  A Bíblia de Mrs. Oswald ou os cochilos do Bruxo. Machado de Assis em linha: revista eletrônica de estudos machadianos, número 1, ano 1, junho 2008. p. 81-82. Não foi localizada a referência em Virgílio.
  • 1
    para a leitura de Machado, aconselharia, mesmo perturbando a ordem cronológica, que principiassem pelo
    Dom Casmurro e só abordassem as antipáticas
    Memórias póstumas de Brás Cubas muito mais tarde, como não aconselharia ninguém a iniciar-se no Eça através das pretensiosas cartas de Fradique Mendes.
  • 2
    que o exploram em biografias ou ensaios idiotas e lhe atribuem uma onividência ge­nial...". Também declaro não gostar dos antimachadianos à Liberato Bittencourt,
  • 3
    dignos em tudo de figurarem entre aqueles machadianos.
  • 4
    Vejamos algumas reminiscências de leituras europeias. O italiano Marcolini é uma transposição (mais uma) do ator Delobelle à condição de tenor. A pirueta de José Dias ante o projeto, ainda muito vago, de uma viagem à Europa, aproveita o caso da leiteira de La Fontaine, aliás aproveitado de vários outros do Oriente e do Ocidente. Um resquício do "dormeur éveillé" das Mil e uma noites, na tradução de Galland, vem nos "sonhos do acordado" (e quantos sonhos em Dom Casmurro!).
  • 5
    Mas vou concluir narrando um caso não desinteressante a propósito de Joaquim Maria. Costumo eu passar de ônibus em frente a um sobrado do Engenho Novo, de frontaria toda descascada. Possui duas árvores à frente e, ao lado, vistosa casa de cachorro. Pois certo velhote que viaja comigo, e que me contou já haver lido quinze vezes o Dom Casmurro, afirma ter sido ali a morada de Bentinho. Foi para ali que ele se transferiu da rua Matacavalos, sentindo talvez uma diminuição nisso de tornar-se suburbano, parecendo-lhe possivelmente a primeira viagem de trem uma aventurosa expedição de sertanista. E foi naquele sobrado que lhe veio a idéia de escrever a História dos subúrbios. O tal velhote conheceu, em menino, um sujeito idoso que fora copeiro de Bento e, meio revoltado com a sua casmurrice, a sua indiferença pela vizinhança, o vira muitas vezes "hortar, jardinar e ler", como se diz no livro, vendo-o igualmente encher à noite folhas e folhas de papel. Pouco depois dessas informações, o meu companheiro de ônibus apontou para um muro coberto ao mesmo tempo de flores e de cacos de garrafa, e transmitiu-me este comentário: "A alma de Machado era também assim...".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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