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HOMONÍMIA E IRONIA DO NOME EM RESSURREIÇÃO

HOMONYMY AND IRONIC NAMES IN RESSURREIÇÃO

Resumos

No século XIX, o nome próprio tornou-se uma "questão capital" para os romancistas. Machado de Assis não deixou de subscrever a esse lugar-comum de sua época; não obstante, desde seu primeiro romance, Ressurreição(1872), ele procurou singularizar sua poética da nomeação, assentando-a em preceitos distintos daqueles em voga no Romantismo. Além de ter criado um narrador que não se pronuncia sobre os antropônimos das personagens, Machado de Assis lançou mão da homonímia e da nomeação irônica. Trata-se aqui de analisar o funcionamento desses dois dispositivos de nomeação em Ressurreição, destacando-se ainda o fato paradoxal de que, a exemplo dos românticos, o escritor fez do problema do amor e do casamento o lugar de regulação do nome próprio dos protagonistas.

Machado de Assis; Nome próprio; Romantismo


In the nineteenth century, the proper name had become - in the words of Gustave Flaubert - "a key issue" for novelists. Machado de Assis also subscribed to this commonplace of his time; nevertheless, ever since his first novel,Ressurreição (1872), he sought to single out his poetics of nomination, relying on precepts distinct from those in vogue in Romanticism. Instead of abundant remarks on the names and the harmony between name and character, Machado de Assis created a narrator who does not comment on the characters' anthroponyms, but rather, resorts to homonymy and ironic naming. The objective of this text is to analyze how these two devices of nomination function inRessurreição, highlighting the paradoxical fact that, like the Romantic writers, the author turned the issue of love and marriage into the regulation of his protagonists' proper names.

Machado de Assis; proper name; Romanticism


A originalidade da onomástica machadiana chamou a atenção dos próprios contemporâneos do autor de Quincas Borba. Em seu "Machado de Assis: impressões e reminiscências", publicado exatamente um mês após a morte do escritor e amigo, José Veríssimo não deixou de observar: "As suas personagens - para as quais inventou nomes de rara felicidade na nossa novela - as suas situações e os seus incidentes, com a vida que vivem, e ainda o meio, apenas indicado, em que se movem, e os sentimentos que exprimem ou revelam são essencialmente brasileiros".1 1 VERÍSSIMO, Machado de Assis: impressões e reminiscências, p. 161. E essa não fora a primeira referência do crítico aos nomes das personagens de Machado de Assis; alguns anos antes, em sua resenha à segunda edição de Iaiá Garcia, Veríssimo havia assinalado a adequação do nome do protagonista masculino, Jorge.2 2 VERÍSSIMO, Bibliographia, p. 340. Publicada originalmente na Revista Brazileira, em novembro de 1898.

Anterior, portanto, ao estabelecimento da vasta fortuna machadiana, o interesse despertado pela nomeação das personagens de Machado de Assis não foi todavia capaz de torná-la um objeto à part entière, no âmbito daquela tradição crítica. De modo geral, os nomes suscitam, como em Veríssimo, um breve comentário em análises dedicadas a outros problemas.3 3 Gilberto Pinheiro Passos é um dos poucos estudiosos de Machado de Assis a dedicar maior atenção aos antropônimos. Não obstante, o eixo de sua problemática tampouco é o nome próprio, e sim a presença francesa na obra machadiana. Ver, em especial, PASSOS, As sugestões do Conselheiro. Tal raridade não deixa de surpreender, não só porque Machado de Assis é sem dúvida alguma o mais estudado dos escritores brasileiros, mas também devido à precocidade e à importância do problema do nome próprio em sua obra. Desde o início de sua carreira, o autor de Contos fluminenses subscreveu a um dos lugares-comuns de sua época - o lugar capital do nome próprio no romance -,4 4 Segundo a formulação de Gustave Flaubert: "Um nome próprio é uma coisa extremamente importante em um romance, uma coisa capital". Antes do autor de Madame Bovary, foi Balzac quem conferiu ao nome próprio um lugar fundamental no romance e fez da motivação um verdadeiro topos literário - em uma afirmação célebre, ele exprimiu sua ambição de, com A Comédia Humana, "fazer concorrência ao registro civil". Ora, o registro civil é justamente aquele em que a existência atesta-se pelo nome próprio. Além disso, o retorno dos personagens - dispositivo central da literatura balzaquiana - não pode ser outro senão o retorno do nome. Para uma discussão sobre o problema da nomeação no gênero do romance, permito-me remeter ao segundo capítulo de minha tese de doutorado, "Os nomes (im)próprios do romance". Ver CAMPOS, Uma poética da homonímia, p. 67-122. ao mesmo tempo em que se distanciou da poética da nomeação em voga no Romantismo, ao adotar a ironia do nome e a homonímia em Ressurreição (1872).

Homonímia

Identificável em Contos fluminenses (1870) e em Histórias da meia-noite(1873) - onde pode porém reduzir-se a fenômeno casual -, a homonímia foi incontestavelmente buscada em Ressurreição; no primeiro romance de Machado de Assis há não só um, mas dois pares de personagens homônimas.

Discutindo a questão do nome próprio literário em seu clássico "Por um estatuto semiológico do personagem", Philippe Hamon estabeleceu um contraponto entre a literatura realista e a literatura moderna, no que concerne à construção da personagem. Na primeira, a recorrência e a estabilidade do nome próprio (Luís Soares não passará a Luciano Soares) e de seus substitutos ("rapaz" não será substituído por "velho", ou "primo de Adelaide" por "irmão de Adelaide") garantem a coerência e a legibilidade do texto, ao passo que a segunda traz para o interior do texto "acabado" a instabilidade que a literatura realista só admite em esboços, manuscritos, cópias corrigidas. Assim, acrescentou Hamon, se os manuscritos de Au bonheur des dames (1883), de Émile Zola, mostram uma heroína que se chama ora Louise, ora Denise, no romance publicado ela é sempre Denise. Em autores como Beckett, Robbe-Grillet, Faulkner, por outro lado, a instabilidade da personagem é mantida, de modo que o leitor encontra: "mesma personagem (?) com nomes sensivelmente diferentes, personagens diferentes com o mesmo nome, instabilidade das permanências, a mesma personagem sendo sucessivamente homem ou mulher, loira ou morena, e permanência das transformações (personagens diferentes efetuando as mesmas ações ou recebendo as mesmas descrições)".5 5 HAMON, Pour un statut sémiologique du personnage, p. 143-144, grifos nossos.

Não se trata com isso de sugerir que Machado de Assis, com as homonímias de Ressurreição, antecipou a concepção moderna da personagem. Seria ignorar as diferenças substantivas entre esta e a concepção machadiana, que não ameaça seriamente a estabilidade da personagem. Trata-se antes de chamar a atenção para o estatuto marginal da homonímia na literatura oitocentista e, desse modo, para o fato de que sua prática por Machado de Assis indica que ele não se limitou a elaborar para seus próprios fins o topos literário da motivação do nome próprio, não se limitou a "subscrever a um bom uso do nome na poética do romance do século XIX, a um lugar comum do nome próprio"6 6 DODILLE, L'amateur des noms: essai sur l'onomastique aurevillienne, p. 38. em sua época. A homonímia, em Machado de Assis, afeta não o estatuto da personagem, mas o estatuto do nome próprio literário, contribui para fazer do escritor brasileiro um capítulo à parte na história da onomástica literária.

Sua singularidade torna-se ainda mais evidente à luz da conclusão de Hamon, naquele mesmo parágrafo. Considerando, portanto, a diferença entre a literatura realista e a moderna, afirmou ele, podia-se prever que um escritor realista se esforçasse de modo particular para garantir a especificidade e a diversidade das etiquetas significantes de suas personagens, "evitando, por exemplo, nomes próprios foneticamente muito semelhantes" ou, no caso de membros de uma mesma família, preocupando-se com diferenciar ao máximo os prenomes, já que nesses casos o sobrenome funcionaria como um radical, assegurando a permanência semântica, ao passo que o nome de batismo seria o elemento responsável pela flexão, logo, diversificação. A indiferença quanto à indiferenciação dos antropônimos é, em Hamon, uma marca do romance setecentista. E embora suas observações sejam menos pertinentes para o Brasil e a literatura brasileira oitocentista, em que o sobrenome não desempenha o papel fundamental que detém nos países europeus nem era imperativa a criação dos nomes das personagens, é inegável que a homonímia era uma prática, no limite, inadmissível. Em Machado de Assis, pelo contrário, ela chegou a ocupar o centro do problema do nome próprio, principalmente a partir do momento em que, com Brás Cubas, o combate ao Romantismo deu lugar ao problema do legado do nome.

Em Ressurreição, o primeiro par de personagens homônimas compõe-se de figuras femininas que não eram determinantes para o desenrolar da trama, duas Claras. A primeira a ser nomeada foi mucama de Luís, o filho de Lívia. Seu nome foi citado três vezes, mas em uma única passagem, aquela em que o menino irrompia na sala onde estavam a mãe e o Dr. Félix, fazendo-se conhecido deste e do leitor. O papel de babá e de escrava atribuído a Clara foi bem enfatizado: afora não dizer nada, ela limitou-se a correr atrás da criança, antes e depois do diálogo desta com a mãe.7 7 ASSIS, Ressurreição, p. 96-97.

A outra Clara era a esposa de Luís Batista, o vilão da história. Dois traços a definem, antes mesmo que se saiba seu nome: ser traída pelo marido; ser "um anjo" - inclusive em termos físicos: "moça de vinte anos, loura, assaz bonita e digna de inspirar amores".8 8 Idem, p. 77-78. Não se sabe se tinha cachinhos nos cabelos, mas é certo que estava conformada, ou melhor, mais que conformada, "estava acostumada à indiferença do marido". Longe de ser o defeito característico de uma esposa fria, essa resignação foi elogiada como "uma grande virtude" da moça - juízo indicativo, se mais precisasse haver, do moralismo do romance.9 9 Idem, p. 107. Pior que esposa traída, é esposa romântica que procure satisfazer seus sonhos fora do casamento. Mas da Clara de Luís Batista não havia notícia de que lesse romances e a referência utilizada para completar seu retrato vinha de um gênero bem apropriado ao regime axiológico do romance. Machado de Assis construiu sua personagem como um caráter detentor da sabedoria das fábulas: "Clara havia buscado a felicidade conjugal com a ânsia de um coração que tinha fome e sede de amor. Não logrou o que sonhara. Pedira um rei e deram-lhe um cepo". Felizmente para ela, a moral de "As rãs que querem um rei", de Esopo, viera já inscrita em sua personalidade: vendo que o cepo não correspondia às suas exigências, não foi a moça pedir novo rei, porque "faltava-lhe - e ainda bem que lhe faltava - aquela curiosidade funesta" dos anfíbios clássicos, que, por insatisfeitos com o cepo, terminaram engolidos pela serpente que veio substituí-lo. Preservada desse modo da grande mácula do adultério, Clara era outrossim uma moça "relativamente feliz", visto que, "como nem tinha força de aborrecer, a paz doméstica nunca fora alterada".10 10 Idem, p. 107-108.

Clara, a mucama, e Clara, a esposa de Luís Batista, não possuíam, como se vê, quaisquer relações entre si, o nome de uma não fora uma homenagem ao da outra, nem elas deviam se conhecer - na economia da narrativa não havia, portanto, quaisquer justificativas para que compartilhassem o mesmo antropônimo. Aliás, a mucama sequer precisaria sair do anonimato, não sendo, como não era, determinante para qualquer acontecimento do romance. Se Machado de Assis decidiu nomeá-la, e com o mesmo nome da esposa de Luís Batista, é porque a homonímia era parte de suas estratégias para a onomástica de seu primeiro romance. Por outro lado, do ponto de vista das implicações do procedimento para a concepção de personagem, cabe observar que jamais as duas Claras ocuparam uma cena comum. E, afora condições absolutamente opostas - uma escrava e uma senhora livre - que por si mesmas dificultam a confusão potencialmente suscitada pela homonímia, o narrador, logo após traçar o caráter compassivo da esposa, passou a referir-se a ela como "Clarinha".

Observa-se a mesma homonímia "manca" para a segunda dupla de homônimos - mas esta, por outro lado, desempenhou papéis decisivos na trama, por sua interferência na relação entre Lívia e Félix, o par amoroso. Ela era formada por dois Luíses - diretamente ligados, aliás, às duas Claras. O marido foi o primeiro a surgir no romance, dançando com Lívia em um baile na casa do coronel Morais. Já aí se ficou sabendo que ele era casado e infiel, o "mais valente" cortejador da viúva.11 11 Idem, p. 76. A segunda menção de seu nome vinha confirmar e ampliar a imagem negativa da personagem, que frequentava a casa de Lívia e era "um modelo de dissimulação e cálculo".12 12 Idem, p. 92. Nem na primeira, nem na segunda, mas apenas em sua terceira aparição deu-lhe o narrador nome completo: Luís Batista - nas duas ocorrências anteriores, o narrador referiu-se a ele como "Doutor Batista". Significativamente, essa aparição sob designação completa foi a primeira sucessiva à do outro Luís e relacionada, como a dele, à apresentação de seu par feminino. Ela ocorre na passagem do romance em que se atribui a Batista a capacidade de compreender, logo, de manipular o caráter de Félix. Por "observador e perspicaz, ao mesmo tempo sem paixões nem escrúpulos", ele percebera a correta estratégia a se adotar a fim de multiplicar as dúvidas no espírito já suspeitoso do médico e promover seu rompimento com a viúva.13 13 Idem, p. 107-108. Estratégia que Luís Batista viria a colocar em prática novamente na véspera do casamento dos dois, tornando-se o gatilho - embora não a causa, a causa era o caráter de Félix - da separação definitiva do casal.

Posto figure em diversas ocasiões, não há muito a dizer sobre Luís, o filho de Lívia, afora o fato de ter sido responsável por uma circunstância fundamental para o desenrolar do romance: a descoberta mútua de Raquel e Lívia de que não era exclusivo o amor que sentiam por Félix - elemento desencadeador, por sua vez, da reconciliação do casal e da decisão de se casarem. Além disso, o narrador preocupou-se em dar a idade exata da criança (cinco anos), em descrever sua aparência "rosada e gorda, como os anjos e cupidos que a arte nos representa em seus painéis",14 14 Idem, p. 96-97. e em narrar seu desfecho, dez anos depois dos acontecimentos. Então com quinze anos, o rapaz era, como fora ao longo do romance, "consolo e companhia" da velhice de Lívia, de quem herdara a "índole austera", mas muito pouco da "viveza da imaginação" - o que aquele narrador antirromântico considerou uma bela vantagem.15 15 Idem, p. 179-180.

Um mesmo nome para dois caracteres absolutamente dessemelhantes: de um lado, Luís Batista, um adúltero, imoral, leviano, inescrupuloso, "pecador miserável", segundo sua própria definição;16 16 Idem, p. 159. de outro, Luís, criança angélica, depois jovem de "toques varonis", "menos um adolescente que um homem"; de um lado, o algoz de Lívia, de outro, seu consolo. Unidos ambos, porém, na infidelidade ao sentido de seu nome: "famoso guerreiro", "glorioso campeador". Sequer é possível estabelecer um conteúdo predominante do nome em Machado de Assis, pois considerando-se os Luíses de todos os contos que publicara até então, ou apenas aqueles de Contos fluminenses, não se pode dizer que se tratasse do nome de um tipo. No volume de contos, o saldo contábil é favorável aos Luíses honrados, já que um era o major Luís da Cunha Vilela, de "Luís Soares", e o outro o padre Luís, de "A mulher de preto". Levando-se em conta o desenvolvimento das personagens e sua importância nas intrigas, os condenáveis Luís Soares e Luís Batista batem ligeiramente seus homônimos exemplares. Seja como for, o nome permanece sob o signo da arbitrariedade, designando ora vilões, ora mocinhos. Luís, nada o demonstra tão bem quanto a homonímia de Ressurreição, pertence à classe dos nomes que não têm poder para determinar o caráter de seus portadores, para produzir o ser físico e moral que lhe corresponda. E, além dela, a recorrência desse antropônimo evidencia como a reflexão sobre os nomes próprios - melhor, seu esforço de associar seu nome de romancista a uma outra prática de nomeação das personagens, em que a correspondência não detém o maior espaço, nem a arbitrariedade é mero efeito da falta de motivação - ocupa um lugar importante na poética machadiana - e isto, desde o primeiro romance.

Dito isto, o saldo da homonímia aí não é somente a arbitrariedade, dada a ironia de possuírem o mesmo nome tanto um dos responsáveis pela infelicidade de Lívia quanto o único que pôde garantir-lhe alguma felicidade.

E já deve ter-se tornado claro que a ironia regulamenta também a segunda homonímia de Ressurreição, em que Clara é a princípio o nome de uma escrava e, a seguir, o de uma bela jovem mal casada, isto é, uma mulher livre. Não houvesse a homonímia, haveria ainda ironia em designar por tal antropônimo uma cativa, em uma sociedade marcada pela escravidão africana. Para reforçar o contraste, Machado de Assis fez de Clarinha uma moça loira, logo branca, logo fiel ao sentido de seu nome - Clara, ao contrário, foi fiel ao antônimo de seu nome, portanto antifrástico. A esposa de Luís Batista foi até duplamente fiel, porque não o foi apenas ao nome, mas também ao marido - ou melhor, foi duplamente fiel ao nome, porque fiel também ao marido: não se contentando com ser branca, foi também pura, isenta da nódoa do adultério, resignada e até feliz com o "cepo" que os céus lhe mandaram.

Luíses e Claras, talvez para reforçar sua duplicidade de nomes arbitrários e irônicos, correspondentes e irônicos, sendo casos de homonímia conduzem portanto, simultaneamente, a um outro dispositivo de nomeação em Machado de Assis: a ironia.

Ironia

Félix e Ressurreição: abertura

E conduzem-nos ao mesmo lugar, a Ressurreição, romance sob o signo da ironia. Ela rege dois de seus nomes fundamentais: o do próprio romance e o do protagonista masculino.

No célebre e louvado trecho final da "Advertência" de Ressurreição, Machado de Assis expôs, em dois parágrafos, seu objetivo e sua própria compreensão do romance. Há a tendência em enfatizar o segundo deles, em que o escritor sugeriu a novidade de sua obra, em relação às práticas dominantes do romance no Brasil: "Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro".17 17 Idem, p. 61. É provável ainda que o sucesso dessa passagem deva-se ao fato de permitir estabelecer-se um diálogo com aquele que se tornou o principal texto de crítica de Machado de Assis: "Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade".18 18 ASSIS, Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade, p. 801-809.

De volta a Ressurreição, os termos da "Advertência", simultaneamente carta de intenções e roteiro de leitura, encontram correspondência em várias passagens da narrativa, algumas vezes de modo explícito, por exemplo no primeiro diálogo entre Lívia e Félix. Como falassem de uma projetada viagem da moça à Europa, Félix confessou que seus hábitos sedentários não o resolveriam a tanto, e acrescentou: "Eu participo da natureza da planta; fico onde nasci. Vossa Excelência será como as andorinhas..." - metáfora confirmada por Lívia, no que lhe dizia respeito: "E sou [...], andorinha curiosa de ver o que há além do horizonte".19 19 ASSIS, cit., p. 80, grifos nossos. Além disso, Lívia foi definida sobretudo como um caráter romanesco, quimérico até, ao passo que a Félix ligavam-se as imagens da frieza e da dúvida.

Dito isto, em Ressurreição há um interesse maior pelo caráter do médico que pelo da viúva. É sobretudo Félix quem é objeto do estudo, e da antipatia, do narrador - outra ironia em um romance dedicado a contestar os clichês românticos, já que, no final das contas, a luz favorável incide antes sobre as personagens quiméricas de Lívia, Meneses e Raquel, devotos do amor romântico, do que sobre Félix, para quem "não se vive como se romanceia".20 20 Idem, p. 152.

A assimetria acha sua explicação no outro parágrafo da "Advertência", em que Machado de Assis apresentou seu romance como o desenvolvimento "daquele pensamento de Shakespeare":

Our douts are traitors,

And make us lose the good we oft might win,

By fearing to attempt.21 21 Idem, p. 60-61.

Félix, e somente ele, encarna tal pensamento, a cuja confirmação ficam suspensos o destino e a promessa inscritos no nome - no antropônimo e no título. Porque o título não reverbera o propósito do contraste entre dois caracteres, referindo-se apenas ao médico, a seu coração frio e desconfiado - dissimetria apontada já na primeira recepção do romance.22 22 Hélio de Seixas Guimarães inseriu em seu Os leitores de Machado de Assis, p. 291-484, um anexo contendo a primeira crítica aos romances machadianos. Para a ênfase em Félix, ver especialmente "Litteratura, Bibliographia, Prosa e Versos", saída no Diário do Rio de Janeiro de 13 de maio de 1872, p. 307, e "Revista Bibliographica, Resurreição, romance de Machado de Assis", da Semana Ilustrada de 19 de maio de 1872, p. 313. GUIMARÃES, Os leitores de Machado de Assis. A aposta de ressurreição é feita a Félix, à sua possibilidade de contrariar o pensamento de Shakespeare, para confirmar o nome próprio. Então, o romance faz-se não apenas do contraste entre dois caracteres, mas principalmente no jogo entre o nome e o pensamento shakespeariano, é dizer, o nome e a negação do nome, o nome e a ironia do nome.

Félix - do latim, "feliz" - definiu-se de saída pela negação de seu nome próprio: "eu tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, capaz de fidelidade, incapaz de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas".23 23 ASSIS, cit., p. 69-70.

Infeliz, Félix adentrou um universo de felicidade possível, desde que se encontrou com Lívia. A viúva não demorou a apaixonar-se por ele, tornando-o correspondente a seu nome, ao menos enquanto promotor da felicidade alheia. Ela disse-lhe, na ocasião em que o médico fez sua declaração - que foi a mesma em que Luís entrou no romance: "a pouco se reduz a minha felicidade: o senhor e aquela criança".24 24 Idem, p. 97. E Félix tampouco deixou de se servir desse vocabulário, perguntando à viúva: "Não adivinhou já que a esperança do seu amor é para mim toda a felicidade do amanhã?".25 25 Idem, p. 95. Da parte dele, o arrebatamento era um embuste, como a declaração, motivada pelo desejo de dar prosseguimento ao que considerava ser uma "aventura". Não contava com Lívia, que, "radiante de felicidade e trêmula de alegria", provocou sua "queda". Apaixonado malgré soi, Félix ainda tentou resistir, deixou de frequentar a casa da viúva por oito dias, mas afinal cedeu aos apelos, dela e do nome, desculpando-se pela "singular loucura, que [o] levou tão longe do único lugar em que [lhe era] possível a felicidade".26 26 Idem, p. 104.

Mas o compromisso logo se revelou precário, culpa da desconfiança, interferência do pensamento shakespeariano: "O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas".27 27 Idem, p. 105. A relação entrou em uma espiral, alternância permanente entre felicidade e infelicidade, venturas e lágrimas, até a primeira explosão, promovida por Luís Batista com aquele saber que já lhe conhecemos. Nesta luta, Lívia e Félix mudaram de posição: se a princípio ele era causa da felicidade dela, a primeira crise fez com que ela se apresentasse - e se apresentasse sozinha com o filho, em casa dele - para garantir-lhe, pelo gesto e pela fala, que sua única preocupação era seu próprio amor e a felicidade dele. A dupla garantia apaziguou o namorado, que renovou suas crenças na realização do destino prescrito por seu nome próprio: "- O casamento me restituirá a confiança, pensava ele; quando estivermos juntos os dous, afastados da convivência e do contacto de estranhos, a paz morará no meu coração; só então seremos felizes sem amargura nem remorsos".28 28 Idem, p. 109-113. Antes mesmo do prometido enlace, o casal conheceu dias de tranquilidade e bem-aventurança, no curso dos quais Félix e Lívia confidenciaram-se sobre suas desventuras amorosas. O capítulo no qual o fazem intitula-se "O passado" e faz figura de chave explicativa para suas atitudes presentes em relação ao amor.

O passado emerge no meio do romance - convenção tipicamente romântica - mas aparece apenas para mostrar sua irrelevância, sua incapacidade de explicar o presente. Lívia contou sua grande decepção com um marido que não partilhava de seu ímpeto amoroso e declarou-se responsável pela má vida conjugal que eles tiveram. Por conta disso, acrescentou ela, receava o que poderia acontecer em um segundo casamento, temia estafar um novo marido com exigências além do razoável. Quanto à sua concepção do amor, esta não sofrera qualquer alteração - daí mesmo é que vinha o temor da viúva. Félix o percebeu e disse-lho: "Podes hoje ser feliz do mesmo modo que o queria ser então; basta que te ame alguém".29 29 Idem, p. 119-121. Ele tinha razão: o primeiro amor passou, mas o coração continua. O médico, por seu turno, traçou um quadro muito mais sombrio, "histórias de afeições malogradas e traídas", que lhe teriam subtraído a crença na sinceridade dos outros e matado seu coração.30 30 Idem, p. 121. Encontrava-se pois no passado, segundo Félix, a explicação para sua dificuldade presente de amar.

Interlúdio: Augusto

A figura do sujeito levado ao ceticismo amoroso por culpa de moças namoradeiras é corrente em narrativas românticas - no próprio Machado de Assis, esse foi o caso do Tito de "Linha reta e linha curva". Na literatura brasileira, tal sujeito faz figura de personagem fundadora, por ser a do protagonista masculino de A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo. Augusto era estudante de medicina e namorador inveterado, característica que reconhecia de bom grado:

[...] serei incorrigível, romântico ou velhaco; não digo o que sinto, não sinto o que digo, ou mesmo digo o que não sinto; sou enfim mau e perigoso, e vocês inocentes e anjinhos. Todavia, eu a ninguém escondo meus sentimentos que ainda há pouco mostrei: em toda a parte confesso que sou volúvel, inconstante e incapaz de amar três dias um mesmo objeto; verdade seja que nada há mais fácil do que me ouvirem um "Eu vos amo"; mas também a nenhuma pedi ainda que me desse fé; pelo contrário, digo a todas o como sou; e se, apesar de tal, sua vaidade é tanta que se suponham inesquecíveis, a culpa certo que não é minha.31 31 MACEDO, A Moreninha, p. 35.

A falsidade, a inconstância e a incapacidade de amar eram fruto, segundo ele, da experiência; seu coração tornara-se frio ao contato com corações frios e seu comportamento, leviano ao contato com comportamentos levianos. Especialmente significativo para nossa análise, sua volubilidade e frieza associavam-se também elas a uma ironia - não ironia do nome, mas da linguagem:

- Quem?... eu?... eu mesmo passar duas e três vezes por dia por uma só rua por causa de uma moça?... e para quê?... para vê-la lançar-me olhos de ternura, ou sorrir-se brandamente quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao lhe dar as costas?... para que ela chame as vizinhas que lhe devem ajudar a chamar-me tolo, pateta, basbaque e namorador?... Não, minhas belas senhoras da moda!... eu vos conheço; amante apaixonado quando vos vejo, esqueço-me de vós duas horas depois de deixar-vos. Fora disto, só queimarei o incenso da ironia no altar de vossa vaidade; fingirei obedecer a vossos caprichos, e somente zombarei deles. Ah!... muitas vezes alguma de vós, quando me ouve dizer "Sois encantadora", está dizendo consigo "Ele me adora", enquanto eu digo também comigo "Que vaidosa!".32 32 Idem, p. 38.

Mas o volúvel e irônico Augusto revelou-se um cético à espera de ser resgatado por um verdadeiro amor, que não seria outro senão o primeiro amor, senão o amor eterno de não outra que a "interessante moreninha". Não falhava aqui a proverbial sabedoria dos leitores. Esse resgate, pode-se concluir, fez com que Augusto correspondesse ao sentido positivo de seu nome, confirmasse o destino inscrito nele, trocando a libertinagem pela promessa de um honrado e feliz casamento.

Fundamentalmente, porém, no romance de Macedo os nomes próprios é que possuem um destino, a irrelevância. Ao relatar a história de seu primeiro amor, Augusto contou a dona Ana, avó da moreninha, que nem ele nem "a linda menina" por quem jurou amor eterno perguntaram os nomes um do outro, porque, diz ele, "nos bastavam esses, com que já nos tratávamos, de - meu marido - minha mulher".33 33 Idem, p. 90. No presente da narrativa, o estreitamento das relações entre o rapaz e Carolina - que assim se chamava a moreninha - também se fez acompanhar da desconsideração dos nomes próprios, substituídos novamente por nomes comuns: "Eles não se chamaram mais pelos seus nomes próprios: o amor tinha-lhe ensinado outros: eram 'meu aprendiz' e 'minha mestra'" - Carolina propusera ensinar bordado a Augusto.34 34 Idem, p. 245-246. Do mesmo modo, o compromisso de casamento entre os dois só pôde realizar-se mediante o reconhecimento de que Carolina era "a mulher" de Augusto: "- Achei minha mulher!... (bradava Augusto) encontrei minha mulher!... encontrei minha mulher!...".35 35 Idem, p. 284. O amor, em Macedo, despoja do nome próprio, desindividualiza, para deixar a única condição de par harmonioso, comum a todos os casais de amantes. À irrisão dos nomes, resultado e prova da vitória do amor, antecede a transformação, mesmo subversão, dos caracteres; tanto quanto Augusto, Carolina modificou-se no processo. Ela, que não se apaixonara até então por ninguém, apostara conquistar o mancebo, "reduzi-lo a obediente escravo de seus caprichos", e saiu vencedora, mas também vencida.36 36 Idem, p. 234. Não contente em retratar o processo, Macedo fez seu narrador comentar em ponto pequeno os poderes do amor:

Ora, o tal bichinho chamado amor é capaz de amoldar seus escolhidos a todas as circunstâncias, e de obrigá-los a fazer quanta parvoíce há neste mundo. O amor faz o velho criança, o sábio doido, o rei humilde cativo; faz mesmo às vezes com que o feio pareça bonito, e o grão de areia um gigante: o amor seria capaz de obrigar um coxo a brincar o tempo será, a um surdo o companheiro companhão, e a um cego o procura quem te deu.37 37 Idem, p. 254, grifos do autor; "XXI. Segundo domingo: brincando com bonecas". Na edição original, também disponível na Brasiliana USP, o título do capítulo era ligeiramente diferente: "Segundo domingo: brinca com bonecas".

Não se estivesse no primeiro romance de Machado de Assis. Com Ressurreição, ele escreveu o exato contraponto de A Moreninha, contestando o peso do passado na definição do comportamento do herói, o poder do amor de transformá-lo e sua capacidade de se conformar a seu próprio nome.38 38 Mais do que um traço do principal romance de Macedo, a interferência do amor na relação entre o nome e a personagem pode ser pensada como característica do Romantismo, uma vez que se encontra também em José de Alencar. Em Lucíola, ao se apaixonar por Paulo, a protagonista Lúcia abandona conjuntamente sua condição, seu palacete e seu nome de cortesã. Despojando-se de seu nome próprio, ela não o faz, porém, em favor de um nome comum - como Augusto e Carolina o fazem - e sim de seu verdadeiro nome, o de batismo: Maria da Glória. Pois, assim como a adoção de uma condição desonrosa impusera a adoção de um novo nome - um nome de cortesã -, deixar para trás uma tal condição impõe uma mudança simétrica, com a recuperação do nome de santa: em Alencar, não há lugar para a ironia - sequer passageira - do nome. Em Machado de Assis, pelo contrário, a ironia não é só passageira, como em Macedo, ela é vitoriosa. Para uma discussão mais detida sobre a singularidade da nomeação em Machado de Assis, frente a um Romantismo em que a nomeação harmônica é regra, permito-me remeter ainda uma vez à minha tese de doutorado, mais especificamente ao capítulo "Harmonia e ironia", e ao subcapítulo "Comentário, harmonia e ironia no Romantismo". Ver CAMPOS, A poética da homonímia, p. 123-215; 258-264.

Félix e Ressurreição: conclusão

Daí que o passado, que já não matara a crença de Lívia no amor romântico, tampouco fora o único responsável pelo ceticismo de Félix. É o que diz o narrador, desautorizando o discurso da personagem, ao mesmo tempo que lamenta a cegueira da viúva, naquela ocasião impossibilitada pelo amor de ver que o amor não podia ser vitorioso onde não fora causa única:

Se a viúva não o escutasse só com o coração, poderia perceber alguma cousa mais que ressentimento e amargura. Félix não era virtualmente mau; tinha, porém, um cepticismo desdenhoso e hipócrita, segundo a ocasião. Não perceberia só; veria também que a natureza fora um tanto cômplice na transformação moral do médico. A desconfiança dos sentimentos e das pessoas não provinha só das decepções que encontrara;tinha também raízes na mobilidade do espírito e na debilidade do coração. A energia dele era acto de vontade, não qualidade nativa: ele era mais que tudo fraco e volúvel.39 39 ASSIS, cit., p. 122, grifos nossos.

Com a metáfora do coração morto, empregada por Félix, estavam dadas as condições para que o título do romance surgisse no corpo da narrativa. Seu intermediário foi o próprio médico, que garantiu a Lívia que ela fora a responsável por ressuscitá-lo e que somente ela poderia garantir seu acesso à felicidade: "tu só haverás feito o milagre". Mas depois daqueles comentários do narrador, seria possível crer realmente nessa possibilidade? Se Félix não conseguia ver que a dúvida e, por conseguinte, a infelicidade eram-lhe congênitos, e não circunstanciais, teria a viúva realmente alguma chance? Foi ainda o narrador quem quis fazer crer que sim, visto que dois parágrafos adiante afirmou: "Se a vida pudesse ser eternamente aquilo, é provável que o coração de Félix adquirisse a paz que almejava".40 40 Idem, p. 122. Os dois namorados não tinham dúvidas disso, e continuaram acreditando na possibilidade de alcançarem a felicidade, ainda depois de um novo e mais violento rompimento, causado novamente por suspeitas de Félix. Dessa vez, em relação a Meneses, amigo que lhe revelara sua paixão por Lívia. Mais uma vez, a narrativa oscilou entre oferecer uma razão para Félix, uma circunstância, e invalidá-la como justificativa. Na ocasião, ao contrário do que faria um namorado apaixonado, desmanchando-se em confissões e louvores à "dama de seus pensamentos", o médico calou suas relações com Lívia. Fez mais: animou as pretensões do amigo com o fim de verificar se era sincero o amor da viúva, se era inquebrantável sua fidelidade. Mas se algo podia ser aí verificado era a constância de seu caráter suspeitoso, a inquebrantável fidelidade à ironia do nome: "Assim, pois, era ele artífice de seu próprio infortúnio, com suas mãos reunia os elementos do incêndio em que viria a arder, senão na realidade, ao menos na fantasia, porque o mal que não existisse depois, ele mesmo o tiraria do nada, para lhe dar vida e ação".41 41 Idem, p.127, grifos nossos. Poderia Lívia alguma coisa frente a um caráter que tirava do nada as razões de suas suspeitas? Uma vez que ao menos aparentemente houvera ali alguma coisa - além da confissão de Meneses, Raquel sugerira a Félix o namoro entre aquele e a mãe de Luís, e o próprio narrador condenara o comportamento de Lívia -, não parecia de todo injustificado guardar esperanças, sobretudo levando-se em conta o pedido de casamento afinal feito pelo médico.

Com ele, a promessa do título voltou a emergir na narrativa, associada à promessa do nome: "A viúva lia-lhe na alma, que, enfim, ressurgira, um poema de inefáveis venturas. [...] o segundo marido não era, como o primeiro, uma creatura sem alma, era, sim, uma alma sem ação. Mas o amor não começava já a reanimá-la?".42 42 Idem, p. 156, grifos nossos.

Contudo, bastou Luís Batista, o menos digno de crédito de todos quantos pudesse haver, para tudo ruir sob o império da dúvida. Tudo, menos o amor de Félix. Porque o problema do herói de Ressurreição não era de incapacidade de amar - ao menos não a Lívia. Tanto era verdade quanto Félix só se resolveu a mostrar a Meneses a fatal carta anônima, estopim da ruptura, diante da suspeita que ele levantou: "eu levo a suspeita de que não a amaste nunca, e que esse rompimento estrepitoso foi um meio de salvar a tua liberdade".43 43 Idem, p. 171. A queda fora efetiva e o amor de Félix era sincero - o que seria reconhecido por Lívia e fora atestado pelo narrador: "Não se lhe apagara o amor da viúva".44 44 Idem, p. 170. Além disso, se o relacionamento não teve continuidade, foi porque Lívia resolveu pôr termo a ele, Lívia, a quimérica, realista o bastante para se dar conta afinal de que seu amor, posto arrebatado, sincero, submisso, resistente a suspeitas e humilhações, não seria capaz de alterar o caráter de Félix. Contra o mundo idealizado de Macedo, em que o amor é onipotente, Ressurreição expõe-lhe as limitações, fortes o bastante para não conseguirem modificar o coração de um homem todavia destinado por seu nome próprio à felicidade.

Mas o saldo não é negativo, porque não se tratava com isso de contestar o amor, condenar aqueles que creem nele, senão de pôr a nu a existência de caracteres defeituosos que são surdos a seus apelos. É um otimismo em relação aos homens, e não em relação ao amor, o que Ressurreiçãopõe em xeque. Seu antirromantismo, que o há, não consiste em demonstrar a inexistência do amor verdadeiro ou em sustentar que a busca do grande amor conduz à autodestruição (nenhum eco de Madame Bovary). Ele consiste, isto sim, em evidenciar que, ainda na ausência de obstáculos familiares (não havia personagens mais favoráveis ao casamento que o irmão e o filho de Lívia, e Félix não tinha parentes) ou sociais (ambos pertenciam à mesma classe e aos mesmos círculos), o amor nem sempre triunfa. Esta a verdade que A Moreninhanão admite: a possibilidade de fracasso do amor. Mais ainda: fracasso pela ação do próprio namorado verdadeiramente enamorado e sem a intervenção de qualquer falta da mulher amada, sem que se exigisse dele um perdão que ele não conseguiria dar. Efetivamente, não há qualquer razão plausível ou implausível, fora do próprio Félix, que explique o fracasso de sua relação com Lívia. Para ele, não se tratava sequer daquilo que se passara com o primeiro marido da viúva, sufocado por expectativas amorosas que ele não se revelara capaz de ou propenso a preencher. Nesse sentido, a primeira experiência amorosa de Lívia associa-se a uma problemática distinta: o casamento infeliz. Já entre Félix e Lívia era questão de saber por que depois não se casaram e não viveram felizes para sempre, se se amavam. Nesse caso, a lição de Ressurreiçãoé que, se o amor nem sempre triunfa, não é por culpa daqueles que esperam que ele seja como nos livros. Pelo contrário, e segundo já se adiantou, as personagens romanescas e ingênuas, os leitores dos "livros de imaginação", recebem no final das contas uma avaliação muito mais positiva do que Félix, para quem aqueles eram "maus livros". Se o amor nem sempre triunfa, é por culpa justamente daqueles que, como ele, se recusam a "viver como se romanceia".45 45 Idem, p. 152. Nesse sentido, Félix aproxima-se da Cecília de "O anjo das donzelas: conto fantástico", publicado por Machado de Assis no Jornal das Famílias, em 1864. De maneira que a maior crítica revela-se paradoxalmente o maior elogio: o amor não pode tudo, mas deveria podê-lo; o amor não é como nos livros, não é como n'A Moreninha, mas deveria sê-lo e o seria, não fosse por esses caracteres que não correspondem ao sentido de seu nome próprio.

Assim se explica o insucesso da relação entre o médico e a viúva. No final das contas, isto é, no final do romance, nem livro, nem passado, nem circunstâncias redimem Félix de uma falta que é exclusivamente de caráter, uma falta em relação ao seu nome próprio: "Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: 'perdem o bem pelo receio de o buscar'".46 46 Idem, p. 180. As Scènes de la vie de bohème - único livro associado a ele -, as decepções amorosas ao longo da vida, as sugestões de Batista, a paixão de Meneses e a suspeita levantada por Raquel, a carta anônima, nada disso, enfim, explica o comportamento do médico - sobretudo, nada disso o altera - apenas acha nele terreno favorável para frutificar. Donde a impressão, cedo adquirida, de se saber qual será o final da história.

Revelando-se Félix um eterno produtor de sua infelicidade, torna-se claro que o romance não chegou a corresponder a seu título senão passageiramente. A ressurreição, não se consolidando, foi enfim reduzida a ressurgimento: "o seu coração, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões".47 47 Ibidem. Estranho romance esse chamado Ressurreiçãoe no qual não havia ressurreição nenhuma. Estranho título - e injustificável, vez que sua promessa não se cumpria - e isso principalmente para seus primeiros recenseadores, numa prova contundente da extensão da novidade machadiana, em termos de nome próprio. O "Dr. Fausto"48 48 Em nota de rodapé, Guimarães informa que Raymundo Magalhães Júnior identificara esse "Dr. Fausto" como sendo o Dr. Augusto Fausto de Sousa, colaborador da Revista Populare do Jornal das Famílias. Atento ao fato de que, neste, sua assinatura era sempre "A.F.", bem como à referência ao "angélico semblante" de Margarida, na primeira parte dessa resenha, parece provável que "Dr. Fausto" fosse apenas um pseudônimo. GUIMARÃES, cit., p. 315 da Semana Ilustrada não se limitou a criticar a escolha de Machado de Assis, ironizando igualmente aqueles que desconsideravam a importância do título para o destino do romance:

Demais o titulo não satisfaz a nenhum dos prismas por que se encare o assumpto capital do livro.

Em vez de Resurreição, o auctor poderia baptisar o seu filho intellectual com qualquer outro nome que exprimisse a duvida arraigada de Felix e a confiança apaixonada de Livia.

Outros pensam que o titulo de uma obra, principalmente romanesca, pouco influirá na importancia d'ella e nas sympatias que possa captar.

Pois, se assim é, não percam tempo em desparafusar da cabeça originalidade de rotulo; exhibam a obra sem titulo.49 49 DR. FAUSTO, Revista Bibliographica: Resurreição: romance de Machado de Assis (conclusão), p. 314.

Para "Dr. Fausto", não havendo correspondência, restava a falta de relação, inadmissível para ele. Que Machado de Assis adotasse qualquer nome, desde que este exprimisse com fidelidade o caráter de seus protagonistas.

José Carlos Rodrigues foi quem escreveu o juízo crítico publicado em O Novo Mundo - mais tarde, Machado de Assis escreveu-lhe agradecendo.50 50 ASSIS, Correspondência de Machado de Assis, vol. II, p. 82-83. Sua proximidade com o escritor não o impediu de apontar a falha do título, associando-o diretamente a Félix: "Tarde, já tarde lamenta Felix ter perdido a acquisição de uma excellente mulher. Elle que tantas vezes parecêra ter resurgido, outras tantas recahira no abysmo das suas duvidas, de modo que não ha propriamente Ressurreição, como nos diz o titulo do livro".51 51 UM ROMANCE FLUMINENSE: Resurreição, romance por Machado de Assis, p. 318. Ao contrário do colega da Semana Ilustrada, Rodrigues não chegou a fazer recomendações para Machado de Assis a esse respeito, mas encerrou sua resenha com palavras de estímulo que não deixam de soar significativas, tendo em vista o que seria o romance seguinte do escritor: "Tudo, na Ressurreição, até seus mesmos defeitos, anima-nos a pedir que o auctor prosiga nos seus estudos de 'contrastes', como elle chama a estes, na sua modestia".52 52 Idem, p. 319. Ora, A mão e a luva foi exatamente o oposto disso; talvez mais do que nenhum outro na obra machadiana, ele é o romance da total harmonia.

  • ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis. Tomo II (1870-1889). Coordenação e orientação de Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2009.
  • ______. Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade. In: ______. Obra completa em três volumes. Volume III: poesia, crítica, crônica, epistolário. Organizada por Afrânio Coutinho. 9ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 801-809.
  • ______. Ressurreição. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas de obras de Machado de Assis, v. 8).
  • CAMPOS, Raquel Machado Gonçalves. Uma poética da homonímia: o problema do nome próprio em Machado de Assis. 2014. 437f. Tese (Programa de Pós-Graduação em História Social). Faculdade de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
  • DODILLE, Norbert. L'amateur des noms: essai sur l'onomastique aurevillienne. In: BONNEFIS, Philippe; BUISINE, Alain (Org.). La chose capitale: essai sur les noms de Barbey, Barthes, Bloy, Borel, Huysmans, Maupassant, Paulhan. Lille: Presses de l'Université de Lille 3, 1981. p. 37-69.
  • DR. FAUSTO. Revista Bibliographica: Resurreição: romance de Machado de Assis (conclusão). In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin; Edusp, 2004. p. 312-315.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas . Ressurreição e A mão e a luva: o questionamento do leitor romântico. In: ______. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19., São Paulo: Nankin; Edusp 2004. p. 125-147.
  • HAMON, Philippe. Pour un statut sémiologique du personnage. In: BARTHES, Roland et alii . Poétique du récit. Paris: Éditions du Seuil, 1977. p. 115-180.
  • MACEDO, Joaquim Manoel de. A Moreninha. 4. ed. Rio de Janeiro: D. J. G. Brandão, 1860. Disponível em: www.brasiliana.usp.br. Acesso em: 12 fev. 2014.
    » www.brasiliana.usp.br
  • PASSOS, Gilberto Pinheiro. As sugestões do Conselheiro: a França em Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires. 2. ed., São Paulo: Nankin; Edusp 2008.
  • PASSOS, José Luis. Machado de Assis, o romance com pessoas. São Paulo: Edusp; Nankin, 2007.
  • UM ROMANCE FLUMINENSE: Resurreição, romance por Machado de Assis. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas .. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19, São Paulo: Nankin; Edusp 2004. p. 316-319.
  • VERÍSSIMO, José. Machado de Assis: impressões e reminiscências. Revista do Livro, 5, março de 1957, p. 151-163.
  • ______. Bibliographia. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin; Edusp, 2004. p. 338-342.
  • 1
    VERÍSSIMO, Machado de Assis: impressões e reminiscências, p. 161.
  • 2
    VERÍSSIMO, Bibliographia, p. 340. Publicada originalmente na Revista Brazileira, em novembro de 1898.
  • 3
    Gilberto Pinheiro Passos é um dos poucos estudiosos de Machado de Assis a dedicar maior atenção aos antropônimos. Não obstante, o eixo de sua problemática tampouco é o nome próprio, e sim a presença francesa na obra machadiana. Ver, em especial, PASSOS, As sugestões do Conselheiro.
  • 4
    Segundo a formulação de Gustave Flaubert: "Um nome próprio é uma coisa extremamente importante em um romance, uma coisa capital". Antes do autor de Madame Bovary, foi Balzac quem conferiu ao nome próprio um lugar fundamental no romance e fez da motivação um verdadeiro topos literário - em uma afirmação célebre, ele exprimiu sua ambição de, com A Comédia Humana, "fazer concorrência ao registro civil". Ora, o registro civil é justamente aquele em que a existência atesta-se pelo nome próprio. Além disso, o retorno dos personagens - dispositivo central da literatura balzaquiana - não pode ser outro senão o retorno do nome. Para uma discussão sobre o problema da nomeação no gênero do romance, permito-me remeter ao segundo capítulo de minha tese de doutorado, "Os nomes (im)próprios do romance". Ver CAMPOS, Uma poética da homonímia, p. 67-122.
  • 5
    HAMON, Pour un statut sémiologique du personnage, p. 143-144, grifos nossos.
  • 6
    DODILLE, L'amateur des noms: essai sur l'onomastique aurevillienne, p. 38.
  • 7
    ASSIS, Ressurreição, p. 96-97.
  • 8
    Idem, p. 77-78.
  • 9
    Idem, p. 107.
  • 10
    Idem, p. 107-108.
  • 11
    Idem, p. 76.
  • 12
    Idem, p. 92.
  • 13
    Idem, p. 107-108.
  • 14
    Idem, p. 96-97.
  • 15
    Idem, p. 179-180.
  • 16
    Idem, p. 159.
  • 17
    Idem, p. 61.
  • 18
    ASSIS, Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade, p. 801-809.
  • 19
    ASSIS, cit., p. 80, grifos nossos.
  • 20
    Idem, p. 152.
  • 21
    Idem, p. 60-61.
  • 22
    Hélio de Seixas Guimarães inseriu em seu Os leitores de Machado de Assis, p. 291-484, um anexo contendo a primeira crítica aos romances machadianos. Para a ênfase em Félix, ver especialmente "Litteratura, Bibliographia, Prosa e Versos", saída no Diário do Rio de Janeiro de 13 de maio de 1872, p. 307, e "Revista Bibliographica, Resurreição, romance de Machado de Assis", da Semana Ilustrada de 19 de maio de 1872, p. 313. GUIMARÃES, Os leitores de Machado de Assis.
  • 23
    ASSIS, cit., p. 69-70.
  • 24
    Idem, p. 97.
  • 25
    Idem, p. 95.
  • 26
    Idem, p. 104.
  • 27
    Idem, p. 105.
  • 28
    Idem, p. 109-113.
  • 29
    Idem, p. 119-121.
  • 30
    Idem, p. 121.
  • 31
    MACEDO, A Moreninha, p. 35.
  • 32
    Idem, p. 38.
  • 33
    Idem, p. 90.
  • 34
    Idem, p. 245-246.
  • 35
    Idem, p. 284.
  • 36
    Idem, p. 234.
  • 37
    Idem, p. 254, grifos do autor; "XXI. Segundo domingo: brincando com bonecas". Na edição original, também disponível na Brasiliana USP, o título do capítulo era ligeiramente diferente: "Segundo domingo: brinca com bonecas".
  • 38
    Mais do que um traço do principal romance de Macedo, a interferência do amor na relação entre o nome e a personagem pode ser pensada como característica do Romantismo, uma vez que se encontra também em José de Alencar. Em Lucíola, ao se apaixonar por Paulo, a protagonista Lúcia abandona conjuntamente sua condição, seu palacete e seu nome de cortesã. Despojando-se de seu nome próprio, ela não o faz, porém, em favor de um nome comum - como Augusto e Carolina o fazem - e sim de seu verdadeiro nome, o de batismo: Maria da Glória. Pois, assim como a adoção de uma condição desonrosa impusera a adoção de um novo nome - um nome de cortesã -, deixar para trás uma tal condição impõe uma mudança simétrica, com a recuperação do nome de santa: em Alencar, não há lugar para a ironia - sequer passageira - do nome. Em Machado de Assis, pelo contrário, a ironia não é só passageira, como em Macedo, ela é vitoriosa. Para uma discussão mais detida sobre a singularidade da nomeação em Machado de Assis, frente a um Romantismo em que a nomeação harmônica é regra, permito-me remeter ainda uma vez à minha tese de doutorado, mais especificamente ao capítulo "Harmonia e ironia", e ao subcapítulo "Comentário, harmonia e ironia no Romantismo". Ver CAMPOS, A poética da homonímia, p. 123-215; 258-264.
  • 39
    ASSIS, cit., p. 122, grifos nossos.
  • 40
    Idem, p. 122.
  • 41
    Idem, p.127, grifos nossos.
  • 42
    Idem, p. 156, grifos nossos.
  • 43
    Idem, p. 171.
  • 44
    Idem, p. 170.
  • 45
    Idem, p. 152. Nesse sentido, Félix aproxima-se da Cecília de "O anjo das donzelas: conto fantástico", publicado por Machado de Assis no Jornal das Famílias, em 1864.
  • 46
    Idem, p. 180.
  • 47
    Ibidem.
  • 48
    Em nota de rodapé, Guimarães informa que Raymundo Magalhães Júnior identificara esse "Dr. Fausto" como sendo o Dr. Augusto Fausto de Sousa, colaborador da Revista Populare do Jornal das Famílias. Atento ao fato de que, neste, sua assinatura era sempre "A.F.", bem como à referência ao "angélico semblante" de Margarida, na primeira parte dessa resenha, parece provável que "Dr. Fausto" fosse apenas um pseudônimo. GUIMARÃES, cit., p. 315
  • 49
    DR. FAUSTO, Revista Bibliographica: Resurreição: romance de Machado de Assis (conclusão), p. 314.
  • 50
    ASSIS, Correspondência de Machado de Assis, vol. II, p. 82-83.
  • 51
    UM ROMANCE FLUMINENSE: Resurreição, romance por Machado de Assis, p. 318.
  • 52
    Idem, p. 319.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2014
  • Aceito
    29 Out 2014
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