Resumos
Este artigo propõe uma leitura do conto "Ponto de vista (Quem desdenha)", que é o último do livro Histórias da meia-noite (1873), de Machado de Assis. A presente abordagem dialoga com críticos que consideraram como aspectos relevantes da obra machadiana o desenvolvimento das motivações morais dos personagens, a imaginação deles, a maneira como dissimulam e a forma como se constituem subjetivamente. Tem-se em mente investigar as motivações de Raquel e como elas são relevantes para a constituição subjetiva da personagem.
conto; questão moral; constituição do sujeito
This essay offers a view on the short story "Ponto de vista (Quem desdenha)", which is the last title in Machado de Assis' book Histórias da meia-noite (1873). The present approach refers to critics who have considered major aspects of Machado de Assis' works, including the ones that follow: the characters development of moral motivation; their imagination; the way they mask themselves; and how they are composed as subjects. It is aimed at investigating the motivations of the character Raquel and how they are relevant to her subjective constitution.
short story; moral issue; subject constitution
ARTIGOS
Aprendizage m da dissimulação no conto machadiano" Ponto de vista (Quem desdenha)"
Learning how to dissimulate in Machado de Assis' short story" Ponto de vista (Quem desdenha)"
Ana Carolina Sá Teles
Universidade de So Paulo So Paulo, So Paulo, Brasil
RESUMO
Este artigo propõe uma leitura do conto "Ponto de vista (Quem desdenha)", que é o último do livro Histórias da meia-noite (1873), de Machado de Assis. A presente abordagem dialoga com críticos que consideraram como aspectos relevantes da obra machadiana o desenvolvimento das motivações morais dos personagens, a imaginação deles, a maneira como dissimulam e a forma como se constituem subjetivamente. Tem-se em mente investigar as motivações de Raquel e como elas são relevantes para a constituição subjetiva da personagem.
Palavras-chave: conto; questão moral; constituição do sujeito.
ABSTRACT
This essay offers a view on the short story "Ponto de vista (Quem desdenha)", which is the last title in Machado de Assis' book Histórias da meia-noite (1873). The present approach refers to critics who have considered major aspects of Machado de Assis' works, including the ones that follow: the characters development of moral motivation; their imagination; the way they mask themselves; and how they are composed as subjects. It is aimed at investigating the motivations of the character Raquel and how they are relevant to her subjective constitution.
Keywords: short story; moral issue; subject constitution.
Os contos da chamada primeira fase da obra machadiana foram recolhidos em dois volumes: Contos fluminenses (1870) e Histrias da meia-noite (1873). Alm desses contos reunidos em livro, h tambm muitos ttulos avulsos por volta dos anos 1860 e 70. Neste artigo, abordarei o conto "Ponto de vista (Quem desdenha)", de 1873, que foi publicado pela primeira vez no Jornal das Famlias, tendo integrado posteriormente a segunda coletnea de Machado de Assis.
Para desenvolver a leitura do conto, tenho em mente o problema das motivaes dos personagens. Outra questo a ser perseguida tangencia o desconhecimento que as personagens tm de si, percebendo-se, em algum ponto da narrativa, diferentes de como se declaravam. Para essa abordagem, fao referncia leitura de Jos Luiz Passos, que apresenta como hiptese no primeiro argumento de seu ensaio que o objeto dos romances de Machado de Assis " a composio das motivaes de heris e narradores, a importncia da sua reminiscncia e a imagem que o sujeito faz de si".1 1 PASSOS, Machado de Assis: o romance com pessoas, p. 15.
Outra ideia que tenho em perspectiva para a abordagem desse conto da dcada de 1870 provm da interpretao literria e psicanaltica desenvolvida por Cleusa Rios P. Passos a respeito de uma obra machadiana mais tardia: Dom Casmurro. Refiro-me principalmente ao momento em que Cleusa Passos defende que a fala do agregado Jos Dias tem desdobramentos relevantes para o romance na medida em que interpreta e revela saberes inconscientes ao menino Bento, no captulo "A denncia". Isto , penso na forma como a fala de terceiros desengatilha no sujeito a busca pelo saber de seu prprio desejo, conforme analisou Passos.2 2 PASSOS, As armadilhas do saber, p. 32-45.
Assim, abordarei esse conto, que gira tipicamente em torno do casamento, como o fazem muitos outros contos de Machado da dcada 1870. Os objetivos so, portanto: perceber como se desenvolvem as motivaes da protagonista Raquel em relao ao seu pretendente; como essas motivaes se do de forma contraditria; e como a fala de terceiros envolve-se de forma decisiva com o desejo da protagonista.
Ao analisar o conjunto de contos de Machado de Assis, Alfredo Bosi nota como um grande nmero desses textos, em especial, os contos anteriores a Papis avulsos (1882), obedeceu s convenes em voga.3 3 BOSI, O enigma do olhar, p. 75. Bosi considera os primeiros contos de Machado de Assis como "histrias de suspeita e engano", ou seja, uma forma de "pr- histria da mscara" cujo uso se tornaria corriqueiro apenas a partir das Memrias pstumas de Brs Cubas. No entanto, o crtico nota que o delineamento da mscara como elemento narrativo machadiano j ganhava substncia maior na coletnea Histrias da meia-noite4 4 "O narrador das Histórias da meia-noite já está em trânsito para um 'tempo' moral em que o que se julgaria cálculo frio ou cinismo (segundo a concepção de Alencar, por exemplo) começa a eleger-se como prática do cotidiano até mesmo no coração das relações primárias". Idem, p. 80. em comparao primeira coletnea de contos do autor, que havia sido publicada apenas trs anos antes.
Outro ponto analisado por Bosi nesses contos a desigualdade do status social e como ela pode ser superada pelo matrimnio ou pelo patrimnio, temas que esto em pauta nessas narrativas e que possuem relao estreita com a dissimulao:
Subjetivamente, o narrador acentua a composio necessria da mscara na pessoa do pretendente; e, como correlato mais provvel, os sentimentos de decepo que o beneficiador acabar experimentando quando a mscara j no for to necessria ao beneficiado e, por detrs dela, se divisar a ingratido ou mesmo a traio.5 5 Idem, p. 77.
Veremos, em especial, como os temas do casamento e do engano – tanto no sentido de autoengano quanto no sentido de dissimulao – desenvolvem-se em "Ponto de vista (Quem desdenha)". O conto se apresenta em gnero epistolar, com cartas trocadas primeiramente entre Raquel, que est na corte, e Lusa, que est em Juiz de Fora; e, mais para o fim, entre o par romntico Alberto e Raquel. No existe o recurso do narrador e a enunciao dramtica e dialgica, como no romance epistolar dos sculos XVIII e XIX, havendo a presena de lugares-comuns estabelecidos pelo romantismo.
Existem, contudo, momentos inusitados no conto que entremostram rupturas na protagonista Raquel em relao escolha no matrimnio. Nesses momentos de "Ponto de vista (Quem desdenha)", o logro (palavra cara ao ensaio de Bosi) deslocado para conflitos internos protagonista, em vez de se desenrolar numa histria de traio propriamente ou de ser colocado como interesse venal apenas. Interesse h, mas o que est nas entrelinhas das cartas o interesse de Raquel em se casar e em no ser enganada (embora ela engane a si mesma e dissimule em sua comunicao).
A primeira carta do conto, datada de 5 de outubro, de Raquel para Lusa P. Nela, apresentam-se personagens e situao. A destinatria Lusa, que se casou e mora na provncia, a melhor amiga de Raquel, que solteira, fala dos pais e mora na Corte. O primeiro assunto da carta so as encomendas que Raquel espera de Lusa. Outro assunto que aparece no comeo o "portador". Raquel comenta tambm sobre o recolhimento do pai, a doena da me e tem expectativas de que a amiga esteja grvida.6 6 ASSIS, Obra completa em quatro volumes, p. 223.
A segunda carta, datada de 15 de outubro, toca no tema do casamento j no primeiro pargrafo, por via indireta, ao falar sobre o marido de Lusa. O segundo pargrafo retoma o tema das encomendas e do portador. J no terceiro pargrafo, a aluso ao casamento direta.
A postura de Raquel nas cartas parece inquisitria e ela espera muito da parte de Lusa. A espera, alis, surge como tema relevante no conto. Raquel pergunta amiga sobre o portador, sobre uma gravidez e sobre cartas – elementos pelos quais anseia. A partir dessa cadeia de significantes, podemos analisar as motivaes de Raquel. A escrita trai a protagonista por revelar informaes que fogem de seu controle, alm de tomar parte na constituio da personagem por meio do desenvolvimento de um estilo.
Dessa forma, detalhes das cartas podem ser expandidos em significado. As primeiras frases do conto, por exemplo, esto em posio de destaque e podem ser analisadas de forma especial: "No me dir a quem entregou voc as encomendas que lhe pedi? Na sua carta vem mal escrito o nome do portador, e at hoje nem sombra dele, quem quer que seja. Ser o Lus?"7 7 Ibidem.
Perguntar sobre o portador na abertura do conto significa perguntar sobre um homem de confiana. O desejo de Raquel de saber quem o portador abre margem para a pergunta ser genericamente interpretada como a pergunta sobre a identidade de um homem que se quer descobrir. Em termos amplos, podemos interpretar a indagao de Raquel como indicativa do desejo de um pretendente. Na segunda carta, por exemplo, podemos perceber mais uma vez a impacincia da protagonista em relao ao portador, j que as encomendas chegariam no dia seguinte:
Vieram as encomendas logo no dia seguinte da ltima carta. E que quer voc que eu lhe mande? Tenho aqui uns figurinos recebidos ontem, mas no h portador. Se puder arranjar algum por estes dias ir tambm um romance que me trouxeram esta semana. Chama-se Ruth. Conhece?8 8 Ibidem.
Novamente a ideia do portador aparece, mas desta vez ligada aos significantes "figurino" e "romance". A ausncia do portador significa a impossibilidade de enviar tanto os figurinos, os moldes de roupas que esperam para ser executados, quanto o romance espera de ser lido. O trecho refora a possibilidade de interpretao da ansiedade de Raquel quanto ao portador como indicativa da busca por um pretendente. Compreendemos que a protagonista depende do portador tanto para passar adiante os "figurinos", palavra que pode ser interpretada como status social, quanto para passar adiante o "romance", significante que alude ao amor romntico. Em suma, os dois significantes, apesar de na carta terem como significado detalhes triviais, indicam, de forma espectral, a espera de algum que possibilite o matrimnio.
O romance que Raquel cita, Ruth, de Elizabeth Gaskell,9 9 GASKELL, Ruth. trata da histria de uma mulher na era vitoriana que tem um filho ilegtimo. Ademais, no emprego dos dois nomes no conto, h tambm a referncia intertextual discreta a nomes bblicos. Raquel uma personagem bblica geralmente relembrada por ter sido trada pela ganncia do pai, mas tambm por ter sido a esposa preferida de Jac. Em razo da infertilidade, Raquel foi associada igualmente ao cime e impacincia.10 10 BÍBLIA, p. 35-38. Ruth, por sua vez, foi uma personagem- smbolo da submisso e da lealdade, por ter se convertido em Israel, ao acompanhar Naomi, e por ter sido ancestral de Davi.11 11 Idem, p. 287, 288, 290. As referncias remetem, portanto, histria de mulheres envolvidas com temticas como sexualidade, casamento e maternidade, de um ponto de vista patriarcal, contudo.
No terceiro pargrafo da carta nmero II, a questo do casamento surge finalmente de forma explcita. Raquel escreve:
A Mariquinhas Rocha vai casar. Que pena! To bonitinha, to boa, to criana, vai casar... com um sujeito velho! E no s isto: casa-se por amor. Eu duvidei de semelhante coisa; mas todos dizem que tanto o pai como os mais parentes procuraram dissuadi-la de semelhante projeto; ela porm insistiu de maneira que ningum mais se lhe ops.12 12 ASSIS, cit ., p. 223.
Logo em seguida, lemos o trecho em que, pela primeira vez, Raquel menciona Alberto, seu futuro par:
Antes, mil vezes antes, casasse ela com o filho do noivo; esse sim, um rapaz digno de merecer uma moa como ela. Dizem que um bandoleiro dos quatro costados; mas voc sabe que eu no creio em bandoleiros. Quando uma pessoa quer vence o corao mais verstil deste mundo.13 13 Idem, p. 223-224.
A partir da carta de 15 de outubro, portanto, Lusa "denuncia" Raquel, ao fazer referncia sobre o assunto da paixo por Alberto. Na edio do conto em livro, no lemos as palavras da amiga Lusa, apenas a reao de Raquel na carta de 30 de outubro:
Muito velhaca voc. Ento porque lhe falei duas ou trs vezes no rapaz, imagina logo que estou apaixonada por ele? Papai nestes casos costuma dizer que falta de lgica. Eu digo que falta de amizade. [...] No, Lusa, eu nada sinto por esse moo, a quem conheo de poucos dias. Falei nele algumas vezes por comparao com o pai; se eu estivesse disposta a casar-me, certamente que preferia o moo ao velho. Mas s isto e nada mais.14 14 Idem, p. 224.
A construo discursiva de Raquel aponta no sentido da "denncia" da amiga: os elogios a Alberto; a meno a ele como bandoleiro; e, logo em seguida, a meno possibilidade de vencer os coraes versteis como expresso do desejo nascente de vencer um deles. Tambm Raquel se coloca no lugar de Mariquinhas e, nessa posio, escolhe Alberto. Outro dado que Raquel comenta a aprovao de seu pai em relao a Mariquinhas:
Papai muito aprovou a escolha dela; faz-lhe muitos elogios como pessoa de juzo, e chegou a dizer que eu devia fazer o mesmo. Que lhe parece? Eu, se tivesse de seguir algum exemplo, seguia o da minha Lusa; essa sim que teve dedo para escolher... No mostre esta carta a seu marido; capaz de rebentar de vaidade.15 15 Ibidem.
A meno do pai traz ares de insinuao edpica.16 16 Uma das primeiras defesas do complexo de Édipo foi inserida por Freud em A interpretação dos sonhos, em 1900: "Essa suposição é confirmada, com uma certeza ue não deixa margem a dúvidas, no caso dos psiconeuróticos, quando sujeitos à análise. Com eles aprendemos que os desejos sexuais de uma criança – se é que, em seu estágio embrionário, eles mereçam ser chamados assim – despertam muito cedo, e que o primeiro amor da menina é por seu pai, enquanto os primeiros desejos infantis dos meninos são pela sua mãe. Por conseguinte, o pai se transforma num rival perturbador para o menino, e a mãe, para a menina; e já demonstrei, no caso dos irmãos e irmãs, com que facilidade esses sentimentos podem levar a um desejo de morte. Também os pais dão mostras, em geral, da parcialidade sexual: [...]". FREUD, A interpretação dos sonhos, p. 258. Ou seja, Mariquinhas Rocha, a menina caracterizada como melanclica, que obstinada desde o sobrenome, casa-se com um homem velho, que poderia ser seu pai. Assim, Raquel deveria fazer o mesmo, segundo a fala paterna. No entanto, Lusa que Raquel escolhe como mentora. Nessa relao de amizade, portanto, a interpretao que Lusa faz das intenes da amiga a influencia muito e, de fato, as sugestes que Lusa faz sobre Alberto tero desdobramentos.
Estabelece-se, a partir de Raquel, para Lusa uma espcie de deslocamento das figuras materna e fraterna. Assim, Raquel teme ou recusa os julgamentos de Lusa, mas sem deixar de admir-la (como est patente no elogio ao marido). Lembremos, por exemplo, as diversas e ansiosas demandas de Raquel a Lusa: que a ltima lhe diga o nome do portador; que lhe escreva cartas grandes, no bilhetinhos; que pense na amiga, no no marido; que lhe mande um portador; que visite a Corte; que tenha um nen etc.
As conversas com Lusa adquirem uma dinmica com uma figura materna ou fraterna que vicria. Portanto, o dilogo entre as personagens contm simultaneamente admirao e rivalidade. Raquel tanto recusa o que Lusa interpreta de suas motivaes quanto adere leitura do desejo proposta pela amiga, noivando, no fim do conto, com o "bandoleiro dos quatro costados"17 17 ASSIS, p. 223- 224. , Alberto.
Nos "Romances familiares" (1909), Freud cita as fantasias comuns de substituio de pais na vida infantil, mas antes como uma forma de vingana em relao aos pais originais do que como desprezo efetivo. A vingana, no caso, alimenta-se da negligncia que alguma vez a criana sentiu ou imaginou sentir. As fantasias vo desde a substituio por pais melhores imaginao de casos de traio entre os pais e de ilegitimidade dos filhos e irmos. Freud assim conclui:
Na verdade, todo esse esforo para substituir o pai verdadeiro por um que lhe superior nada mais do que a expresso da saudade que a criana tem dos dias felizes do passado, quando o pai parecia o mais nobre dos homens, e a me a mais linda e amvel das mulheres. [...] O estudo dos sonhos nos fornece uma contribuio interessante ao assunto. Da interpretao dos mesmos conclumos que mesmo em anos posteriores, se o Imperador e a Imperatriz aparecem em sonhos, tais nobres personagens representam o pai e a me do sonhador. Assim, a supervalorizao dos pais pela criana sobrevive tambm nos sonhos de adultos normais.18 18 FREUD, "Romances familiares", p. 246-247.
Raquel coloca-se, por exemplo, numa posio oposta de Lusa, como expresso na carta de 27 de novembro, quando a amiga da provncia est finalmente grvida. Assim, alm de considerar como calnia a aluso que Lusa havia feito de que Raquel e Alberto namoravam, a protagonista afirma:
A nossa divergncia tem natural explicao. Eu sou uma moa solteira, cheia de caraminholas, sonhos, ambies e poesia; voc j uma dona de casa, esposa tranquila e feliz, me de famlia dentro de pouco tempo; v a coisa por outro prisma.19 19 Idem, p. 226.
Nesse sentido, podemos recorrer justamente fonte de provrbios inscritos no conto como chaves de leitura. O primeiro ttulo do texto, no Jornal das Famlias, era "Quem desdenha", no qual h, portanto, aluso ao provrbio "quem desdenha quer comprar". Tambm Raquel, ao escrever a Lusa, cita outro adgio: "Eu podia agora fazer- lhe uma dissertao a respeito do amor; mas retraio a pena por me lembrar que iria ensinar padre-nosso ao vigrio".20 20 Idem, p. 230.
"Ponto de vista", no conto, quer dizer divergncia de opinies. Assim, o ttulo adquire relao com a polifonia do texto, pois no mnimo trs vozes diferentes esto em evidncia nele, a partir da correspondncia trocada entre trs "pontos de vista" diferentes: o de Lusa, o de Raquel e o de Alberto.
Contudo, "ponto de vista" sugere, para alm da desigualdade entre os personagens, uma forma de acesso desigualdade dentro de uma personagem apenas, que
Raquel. Ou melhor, de um ponto de vista externo, Lusa, numa espcie de triangulao, pode entrever as motivaes que Raquel tenta encobrir. Lusa permite uma viso de Raquel que vai alm do desdm superficial do amado que a protagonista expressa. Esse desdm, alis, chama ateno pela nfase, assim como no adgio que diz "quem desdenha quer comprar". Nesse sentido, torna-se relevante tambm a inscrio do provrbio do vigrio. Raquel desloca para a figura de Lusa uma funo de autoridade, como se a ltima fosse sua me, ou conselheira vigria, que pode ajudar na interpretao de si.
Lusa, me vicria (como o vigrio do padre-nosso), na tentativa de ler as cartas da amiga, l tambm suas intenes.21 21 A ideia do olhar da mãe como uma leitura que engendra a constituição do desejo na criança foi abordada pela psicanalista e crítica literária Lucia Serrano Pereira em Um narrador incerto entre o estranho e o familiar, estudo que aborda Dom Casmurro, romance no qual o tema do olhar oblíquo é de suma importância. Pereira recorre a Bergès e Balbo: "Há certas mães, segundo Bergès, que, em relação ao corpo de seus filhos, não olhariam obliquamente, mas sim diretamente, procurando então 'adivinhar' o que se passa ali. De outra maneira, um olhar oblíquo, o que ele vai permitir é algo como uma 'leitura', relaciona-se aqui um olhar em alguma medida 'sublime' na relação com o oblíquo". PEREIRA, Um narrador incerto, entre o estranho e o familiar, p. 65. A leitura depende de uma ateno seleo dos Lucia Serrano Pereira relaciona essa interpretao angulada do desejo com o mito de Perseu, no qual a Medusa representa o inconsciente, instncia qual nunca temos acesso por via direta, necessitando, portanto, sempre de algum vis para poder tocar-lhe: "Se lembramos o mito de Perseu e Medusa, temos a indicao de que se o heri olhasse para a grgona diretamente, assim como todos os outros, sucumbiria, transformado em pedra. Seria o olhar de frente o que convocaria, de alguma maneira, o estranho. Esse olhar sem mediao, que pode produzir a irrupo do real no imaginrio. Para enfrent-la ele precisa de um olhar de lado, v a imagem refletida, ento tem algo do especular, mas ao mesmo tempo angulado, o que lhe permite salvar-se". Idem, p. 67. assuntos, ao encadeamento deles e tonalidade nas cartas de Raquel. Ponto de vista, no conto, funciona como o lugar de onde vem um olhar. No se trata de objetividade, mas sim de uma subjetividade formada a partir do olhar de terceiros. Trata-se de um olhar angulado porque originrio de um lugar que diferente ao do prprio sujeito.
Raquel, como boa ouvinte da missa do vigrio, reconhece-se diferente em relao a Alberto e investe no romance, depois de ser sugestionada por Lusa. A partir desse primeiro engano na narrativa, que desestrutura a forma estereotipada como a protagonista se v, ela aprende a dissimulao que exercer mais para o fim do conto tanto em relao a Lusa quanto em relao a Alberto. Assim, Raquel continua negando amiga que ama Alberto e ao pretendente finge indiferena.
Lusa adverte Raquel da dissimulao, por exemplo, quando, em carta de 15 de janeiro, avisa que vai Corte:
[...] Ver-nos-emos, enfim depois de alguns meses de separao. Escrevo apenas para lhe dar esta notcia que voc h de estimar decerto.
E ao mesmo tempo o meu fim preveni-la, a fim de que procure disfarar na presena aquilo que me disfara no papel.22 22 ASSIS, cit., p. 228.
Ademais, em carta de 8 de fevereiro, Alberto implora a Raquel:
Perdoe-me a audcia; peo-lhe de joelhos uma resposta que os seus olhos teimam em no me dar. No lhe digo no papel o que sinto; no o poderia exprimir cabalmente. Mas o seu esprito h de ter compreendido o que se passa no meu corao, h de ter lido no meu rosto aquilo que eu nunca me atreveria a dizer de viva voz.23 23 Idem, p. 230.
Reparemos tambm que o discurso de Alberto toca no tema da obliquidade necessria para a interpretao de desejos. Ou seja, ainda que repleta do chavo romntico, a fala de Alberto reconhece que precisa de um desvio, uma modulao escrita, no caso, para ter acesso a um contedo que cegaria se fosse abordado diretamente. Seu amor apresentado como de costume no melodrama, em que no h palavras para a descrio fiel dos sentimentos. Ainda assim, o personagem tenta revel-lo, contornando-o pelas bordas e pedindo amada uma interpretao de seu rosto. A resposta afirmativa de Raquel dada antes do dia 8 de maro (ou talvez no mesmo dia).
Portanto, h dois aspectos de logro no conto relativos percepo de Raquel e sua constituio como personagem. Num primeiro momento, Raquel deixa que suas palavras escapem-lhe e d sinais para que a amiga leia nela o desejo de casamento justamente com o homem que desdenha. Num segundo momento, a personagem esconde suas motivaes e dissimula para outros personagens.
Como mencionado, h a relevncia do ponto de vista (que ironicamente subjetivo) no conto, pois Raquel cai em autoengano. Um terceiro que prximo ao sujeito v a situao de outro ngulo, interpretando-a. Assim, a partir de seu "ponto de vista", Lusa lana provocaes amiga. Raquel uma personagem que se forma, portanto, tendo em vista o desejo que o outro nela l. Ou seja, o desejo que o outro interpreta e comunica. As motivaes da personagem esto em pauta e tm grande relevncia para a estrutura do conto. Assim, o texto pode ser lido como uma histria epistolar sobre um noivado, mas tambm como uma histria sobre as metamorfoses que se do no "ponto de vista" de Raquel.
Em momentos posteriores, Raquel, que se forma a partir do logro de si mesma, aprende a dissimular – e este o segundo tipo de logro presente no conto. Assim, no fim do texto, quando se lhe prope o casamento, Raquel esconde na carta o nome do noivo, que era justamente o bandoleiro dos quatro costados descrito no incio:
XXVII
D. LUêSA A D. RAQUEL Juiz de Fora, 22 de abril
Que cabea! disse tudo menos o nome do noivo!
Luísa
XXVIII
D. RAQUEL A D. LUêSA Corte, 27 de abril
Tem razo; sou uma cabea no ar. Mas a felicidade explica ou desculpa tudo. O meu noivo o dr. Alberto.
Raquel
XXIX
D. LUêSA A D. RAQUEL
Juiz de fora, 1¼ de maio
?!!!
Lusa.24 24 Idem, p. 234.
O adgio "Quem desdenha quer comprar" aponta tambm para o aspecto comercial do consrcio. No ttulo h apenas a inscrio da frase "quem desdenha" entre parnteses, suprimindo a caracterstica venal do matrimnio, deixando-a, portanto, subentendida. Raquel chega a criticar em carta de 30 de outubro outro pretendente que frequentava sua casa pelo motivo nico de que era rica.25 25 Idem, p. 225.
Contudo, o engano articulado pelo interesse no patrimnio por meio de casamento ou de herana, rastreado nos contos machadianos por Alfredo Bosi, ganha em "Ponto de vista (Quem desdenha)" uma espcie de fechamento. Ou seja, nenhum dos personagens enganado dessa forma e o noivado tem final feliz. Assim, h uma diferena de tratamento pela histria quanto ao tema do engano, pois este deslocado para operar em funo das motivaes e desejos de Raquel.
Dessa forma, o conto aborda um episdio sobre uma mudana na protagonista.
Ou seja, apesar de constantemente voluntariosa, a Raquel impaciente da primeira carta no exatamente a Raquel dissimulada das ltimas missivas. Para tanto, ela conta com o dilogo da amiga. Assim, com a sada do autoengano e com a aprendizagem do uso da mscara nas relaes familiares, ela passa a agir e a dissimular em funo de seus desejos.
Em "Ponto de vista (Quem desdenha)", h o percurso de uma personagem que se modifica orientada pelas sugestes da amiga. A partir do que lhe escreve Lusa, Raquel muda sua percepo em relao aos outros e a si mesma. O ponto de virada da narrativa d-se na assuno do romance por parte de Raquel. Ou seja, ocorre tanto uma mudana de ponto de vista da protagonista em relao ao seu pretendente quanto uma conquista sua em relao aprendizagem do uso da dissimulao. O olhar, no caso, uma via tanto de expresso das motivaes das personagens quanto de descentramento. A partir de olhares externos, a protagonista desvia seu prprio olhar, seja para uma percepo diferente da anterior, seja para dissimular.
O olhar e o desejo da personagem Raquel so aspectos relevantes no conto, assim como seu descentramento, que constitui um ponto de virada da narrativa. A protagonista no termina o conto como o inicia e, no ttulo, h a indicao de que o assunto a ser observado ser uma relativizao. A edio em hipertexto na base machadodeassis.net leva como ttulo apenas "Ponto de vista" e indica em nota que o primeiro ttulo era "Quem desdenha".26 26 ASSIS, "Ponto de vista". Romances e contos em hipertexto. Assim, os ttulos enunciam: "reparem, leitores, na diferena de pontos de vista"; ou no caso do primeiro ttulo, "reparem, leitores, em como Raquel desdenhava em falso". A prpria mudana de um ttulo para outro sugere a necessidade de conceder um enfoque maior para a angulao do olhar e dos desejos.
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Referncias:
ASSIS, Machado de. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, volume 2.
ASSIS, Machado de. "Ponto de vista". Romances e contos em hipertexto. Disponvel em: <http://www.machadodeassis.net/hiperTx_romances/obras/historiasdameianoite.htm>. Acesso em: maro de 2014.
BêBLIA Sagrada. Braslia: Sociedade Bblica do Brasil, 1988.
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FREUD, Sigmund. Romances familiares. Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, v. 9, 1976.
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PASSOS, Jos Luiz. Machado de Assis: o romance com pessoas. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, Nankin, 2007.
PEREIRA, Lucia Serrano. Um narrador incerto, entre o estranho e o familiar – a fico machadiana na psicanlise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2004.
Recebido: 15.03.14
Aprovado: 16.04.2014
Ana Carolina Sá Teles é doutoranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) com o projeto "Personagens machadianas em Ressurreição, Helena e D. Casmurro: entre caráter e diferença". Realizou mestrado em Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) entre 2010 e 2013 sobre "Questão moral e constituição do sujeito em contos de Machado de Assis", sob orientação do Prof. Dr. Hélio de Seixas Guimarães (USP), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Graduada e Licenciada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) e pela Faculdade de Educação (USP). E-mail: anacarolinateles2009@gmail.com
- ASSIS, Machado de. Obra completa em quatro volumes Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, volume 2.
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- PEREIRA, Lucia Serrano. Um narrador incerto, entre o estranho e o familiar – a fico machadiana na psicanlise Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2004.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jul 2014 -
Data do Fascículo
Jun 2014
Histórico
-
Recebido
15 Mar 2014 -
Aceito
16 Abr 2014