Acessibilidade / Reportar erro

A MÁSCARA E O CONTRARREGRA: A ARTE ÉPICO-CÔMICA DA AFETAÇÃO EM MACHADO DE ASSIS E HENRY FIELDING

THE MASK AND THE STAGEHAND: THE EPIC-COMIC ART OF AFFECTATION IN MACHADO DE ASSIS AND HENRY FIELDING

Resumo

O presente artigo visa aproximar os autores Henry Fielding e Machado de Assis a partir dos seguintes pontos de contato: o manejo sofisticado da forma do romance, a mistura de gêneros e estilos, a problematização da ideia de autoria e a importância do teatro como forma literária e visão de mundo. Por meio da análise e do comentário de excertos das obras Joseph Andrews (1742) e Tom Jones (1749), de Fielding, e Os deuses de casaca (1866) e Quincas Borba (1891), de Machado, busca-se delinear uma análise comparada que resgate o nome de Henry Fielding como uma referência crucial para a crítica machadiana, sobretudo a partir da forma épico-cômica.

Palavras-chave:
Machado de Assis; Henry Fielding; romance; teatro; afetação

Abstract

This article aims to create connections between the authors Henry Fielding and Machado de Assis through the following points of contact: the sophisticated handling of the form of the novel, the mixture of genres and styles, the problematization of the idea of authorship, and the importance of theater as literary form and worldview. Through the analysis and commentary of excerpts from the works Joseph Andrews (1742) and Tom Jones (1749), by Fielding, and Os deuses de casaca (1866) and Quincas Borba (1891), by Machado, we seek to outline a comparative analysis that could rescue the name of Henry Fielding as a crucial reference for the criticism about Machado, especially in regard to the epic-comic form.

Keywords:
Machado de Assis; Henry Fielding; novel; theater; affectation

Entre o palco e os bastidores

O ano é 1734. Certo dramaturgo inglês traça o roteiro de sua consagração nos palcos do Theatre Royal Haymarket, em Londres. A peça em cartaz é Don Quixote in England, cujo singelo título desvela o intento cômico da trama: trazer o Cavaleiro da Triste Figura para a Inglaterra do século XVIII, onde encontrará "several people as mad as himself" (FIELDING, 1734FIELDING, Henry. Don Quixote in England. A Comedy. London: Printing-Office in Wild-Court, 1734. p. 13-14., p. 14).1 1 Tradução: "várias pessoas tão loucas quanto ele". Todas as traduções em nota de rodapé são minhas.

O mote cervantino é apropriado para além do conteúdo da peça e ganha ressonâncias formais logo de partida. Ao abrirem-se as cortinas, a audiência é apresentada a uma introdução, na qual há o diálogo entre dois personagens: o autor e o contrarregra. Este se apresenta visivelmente contrariado pela falta de um prólogo na peça: "No Prologue, Sir! The Audience will never bear it" (FIELDING, 1734FIELDING, Henry. Don Quixote in England. A Comedy. London: Printing-Office in Wild-Court, 1734. p. 13-14., p. 13).2 2 Tradução: "Nenhum prólogo, Senhor?! A plateia jamais aceitará isso". A tal exigência o autor responde com simples escusas: não há prólogo que já não tenha sido dito ao menos vinte vezes; é da natureza dos prólogos serem enfadonhos e puristas, e sua função não raro se resume a suscitar rivalidades e adular a audiência. Em uma inversão de papéis bastante curiosa, o contrarregra - encarregado de ficar atrás das cortinas e coordenar as cenas de modo realista3 3 Era comum na Inglaterra do início do século XVIII que o cargo do contrarregra fosse ocupado por um ator que coordenava sua própria companhia teatral. Assim, seu papel no jogo cênico era duplo, tanto em cima quanto fora do palco. - exige uma interlocução direta com o público, ao passo que o autor - entidade criadora responsável pela obra - prefere misturar-se com a plateia. No jogo cênico entre interpelação e afetação, quebra da quarta parede e ilusionismo perspectivista, a vitória é da própria arte de encenar, que embaralha os limites entre o cenário, os bastidores e o espaço empírico onde se encontra a plateia; esta, por sua vez, também é convocada para esse baile de máscaras a partir da figura do instrumentista, que sobe ao palco e ameaça: se a peça não começar imediatamente, a audiência irá derrubar o teatro de cima a baixo. É chegado o término desse prólogo em negativo. O autor acomoda-se para assistir aos cortes do contrarregra. Abram-se as cortinas! Act I. Scene I.

A carreira teatral de Henry Fielding (1728-1754) - pois é ele o autor de Don Quixote in England - foi abruptamente interrompida em 1737, quando o então primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Robert Walpole, persuadiu o Parlamento a decretar o Licensing Act, conjunto de leis que passou a censurar as críticas feitas ao governo nos palcos. Para serem encenadas, as peças deveriam contar com a aprovação de um censor (the Examiner), algo inexequível para Fielding, cujas peças eram conhecidas justamente por seu teor político e por criticarem as medidas de Walpole. A despeito de ser filho da gentry, instruído formalmente em línguas clássicas na Eton College e estudante de direito em Leiden, na Holanda, Fielding dependia de seus rendimentos como dramaturgo para sobreviver. Uma mudança de rumos fez-se necessária.

Se a concepção de ironia histórica de fato existe, eis aqui um bom exemplo, pois a medida de censura que fechou as portas do teatro para Fielding acabou por abrir-lhe uma janela com vista para o romance, gênero literário responsável por sua efetiva consagração, ao ponto de hoje serem raríssimos os estudos voltados para sua produção teatral, cuja importância ainda não foi devidamente reconhecida. Muito do Fielding dramaturgo reitera-se e renova-se em sua faceta como romancista, desde sua concepção do mundo como palco até a retomada da tradição de Cervantes. Não por acaso, seu primeiro romance, Joseph Andrews (1742), evidencia uma linhagem já em seu frontispício: "Written in Imitation of The Manner of CERVANTES, Author of Don Quixote". Ao recuperar técnicas metaliterárias e a forma da narrativa de viagens, bem como a tradição épica de Homero e Virgílio, Fielding busca enobrecer um gênero comumente visto como amorfo, bastardo e até mesmo pernicioso para os valores da sociedade puritana da Inglaterra de sua época, que colocava sob suspeita qualquer veio das histórias imaginárias.

É especialmente a faceta do romancista que cruza o Atlântico até chegar ao território brasileiro. Em meio a uma leva de romances ingleses que acompanham a chegada da Família Real e a abertura dos portos a partir de 1808, o nome de Henry Fielding, embora longe de ser uma preferência das casas editoriais, foi influente o bastante para chamar a atenção do maior escritor brasileiro do século XIX: Machado de Assis, que o citou nominalmente no romance Quincas Borba (1891) - em uma passagem que será analisada adiante - e que também possuía em sua biblioteca um exemplar de Amelia (1751), último romance do escritor inglês, bem menos divulgado.4 4 Levantamento apresentado na obra A biblioteca de Machado de Assis, organizada por José Luís Jobim (2014). Para além de Amelia e Tom Jones (1749) - citado em Quincas Borba -, é provável que Machado também tivesse familiaridade com Joseph Andrews (1742) e outros escritos esparsos de Fielding - entre peças e sátiras - que compunham The Works, disponíveis na Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro no século XIX, segundo levantamento de Sandra Vasconcelos.

Assim como Fielding, Machado tateou na escrita exercitando gêneros literários como a poesia, o teatro e a crônica, migrando para o romance apenas em uma etapa posterior de sua carreira. A importância do teatro é incontornável para a prosa de ambos os escritores, tanto no plano da forma quanto no do conteúdo. Embora as chances de Machado ter lido Don Quixote in England sejam baixíssimas - dado que não há registros da chegada dessa peça em solo brasileiro -, há também em sua obra uma cena de disputa entre um dramaturgo e um contrarregra. No capítulo LXXIII de Dom Casmurro, intitulado justamente "O contrarregra", o narrador autodiegético faz uma digressão para (des)nortear a cena de um dândi que cavalga próximo à janela de Capitu, despertando o seu ciúme incorrigível e patológico. Para Bento Santiago, "O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contrarregra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes ao diálogo, uma trovoada, um carro, um tiro" (ASSIS, 2020_______. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Obliq, 2020., p. 153).

Ora, se o destino é um dramaturgo, não seria a vida mera encenação? Se o mundo é um palco cujos atores são dispostos segundo o capricho do contrarregra, não seria este também uma espécie de autor em si mesmo, apto o suficiente para dividir os direitos autorais com o dramaturgo? Em Fielding e em Machado, a imagem moderna do autor, como uma espécie de força demiúrgica que confere o sentido e os caminhos transitáveis e a serem transitados, entra em crise ao ceder sua pena a mãos alheias - ou traçar sua escrita usando as tintas de outrem. Trata-se de uma concepção mais polivalente, matizada e até mesmo dialética da função autoral. Como no capítulo IX ("A ópera") de Dom Casmurro, a vida neste planeta passa a ser uma ópera tragicômica, cujos direitos autorais são disputados entre Deus, que compõe o libreto, e o Diabo, responsável pela música.

Há igualmente uma suspensão - para não dizer contravenção - da linha limítrofe que separa palco, bastidores e plateia. A quebra da quarta parede nas peças de Fielding formaliza-se em seus romances a partir da técnica da digressão, presente sobretudo nos capítulos introdutórios das diferentes seções (Books) de Joseph Andrews e Tom Jones. A digressão é também traço definidor da prosa de Machado, sobretudo a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Por meio dela, o correr da narrativa e a suspensão da descrença são interrompidos para que a voz autoral se manifeste, convidando também o leitor para compor o sentido dos textos.

A autorreflexividade narrativa liga Fielding e Machado a uma mesma tradição novelística, propiciando-lhes um lugar de destaque como pais do romance em seus respectivos contextos de origem. O eixo paradigmático dessa tradição é justamente o Quixote de Cervantes, responsável por inaugurar a forma do romance moderno. Para o escritor mexicano Carlos Fuentes (2000FUENTES, Carlos. O milagre de Machado de Assis. Folha de São Paulo, São Paulo, 1 out. 2000. Tradução de Sergio Molina. Disponível em: <Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0110200003.htm >. Acesso em: 15 out. 2022.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs...
), foi Machado quem recuperou primeiro essa tradição na América Latina, renegada pelos romancistas hispano-americanos oitocentistas. O Bruxo do Cosme Velho insere-se no que Fuentes denomina "Tradição de La Mancha", que se inicia com Cervantes e passa por nomes como Sterne e Diderot. Diferentemente da tendência realista da "Tradição Waterloo", que surge do contexto social, a de La Mancha coloca em primeiro plano a própria ficcionalidade das narrativas.

Ora, sendo Henry Fielding aquele que no contexto anglófono levou adiante o legado de Cervantes, alocando-o com suas devidas arestas na tradição do romance inglês, não seria inadequado considerá-lo também um membro da Tradição de La Mancha. Contudo, Fuentes não faz menção a Fielding, privilegiando a figura de Sterne. É certo que a tópica das referências inglesas é um eixo interpretativo profícuo da obra machadiana desde pelo menos a primeira recepção em vida das Memórias póstumas. Segundo Hélio de Seixas Guimarães (2008GUIMARÃES, Hélio de Seixas. A emergência do paradigma inglês no romance e na crítica de Machado de Assis. In: GUIDIN, Márcia Lígia; GRANJA, Lúcia; RICIERI, Francine Weiss (Org.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p. 95-108., p. 106), a emergência do paradigma inglês na obra de Machado permitiu-lhe distanciar-se "do mecanismo evolucionista […] e também da obrigatoriedade e da naturalização do paradigma francês, muitas vezes nem sequer percebido como estrangeiro pela intelectualidade local". Em um ambiente francófilo pouco arejado, a menção a nomes como Swift, Fielding, Smollett e Sterne não deixa de causar estranhamento.

O crítico Artur Barreiros foi o primeiro a apontar, em uma resenha de 1880, a possível filiação de Machado aos humoristas ingleses. José Veríssimo (1892VERÍSSIMO, José. Quincas Borba. Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, p. 1-2, 11 jan. 1892., p. 1-2), seguiu a deixa e formulou as famosas palavras segundo as quais "O Sr. Machado de Assis não é nem um romântico, nem um naturalista, nem um nacionalista, nem um realista, nem entra em qualquer dessas classificações em ismo ou ista. É, aliás, um humorista […]". A tópica do humour não convenceu Sílvio Romero (1897ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897.), que via em Machado um mero "macaqueador" de Sterne; por outro lado, deu frutos nas abordagens de Alcides Maya (2007MAYA, Alcides. Machado de Assis: algumas notas sobre o humour. 3. ed. Porto Alegre: Movimento; Santa Maria: Editora UFSM, 2007.) e Eugênio Gomes (1976GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.), na primeira metade do século XX.

É apenas com Eugênio Gomes que o nome de Fielding ganha certo destaque como uma "influência" importante para a compreensão da obra machadiana. Nas palavras do crítico, "A técnica de Fielding foi, até certo modo, deliberadamente seguida por Machado de Assis" (GOMES, 1976GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976., p. 45). As principais afinidades são o uso do prólogo (de preferência, curto e sintético) e o ato de dar título aos capítulos, pista já fornecida pelo próprio Machado em Quincas Borba.

Excetuando-se outras abordagens mais sucintas que aproximam os dois autores - como a de Marta de Senna (1998SENNA, Marta de. Fielding, Sterne e Machado: uma linhagem. In: ______. O olhar oblíquo do Bruxo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 23-34., p. 33), que os vincula a Sterne no manejo da autoconsciência narrativa, "unidos pela técnica de narrar, que consiste grosso modo em 'narrar' a técnica" -, o nome de Fielding é praticamente escasso nas abordagens comparatistas envolvendo Machado. Talvez tenha chegado a hora de atribuirmos ao autor de Shamela (1741) seu devido destaque, não como uma sombra de Cervantes ou um prenúncio de Sterne e da "forma shandiana" (ROUANET, 2007ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), mas sim como um pai fundador do romance moderno, dotado de especificidades literárias. Ganha-se com isso a investigação de novas camadas do texto do próprio Machado, sem que haja a intenção de fazer de Fielding uma chave de leitura absoluta e onipresente (como às vezes se tenta fazer com Sterne). Como a metáfora do espelho, recorrente na prosa de ambos os autores, trata-se de uma iluminação mútua, na qual estabelecer como Machado leu Fielding é também engendrar uma leitura da obra deste pela ótica daquele. Para tanto, retomemos a posição do contrarregra que questiona a paternidade literária e aventemos diferentes afinidades a partir de três eixos principais: a mistura de gêneros literários, a questão da autoria e a teatralidade da vida.

Um poema épico-cômico em prosa

O primeiro romance de Fielding nasceu como uma paródia de Pamela (1740), romance de teor sentimental escrito por Samuel Richardson, contemporâneo e rival de Fielding. Com o andamento do enredo, a referência principal vai mudando: entramos no reino das narrativas de viagem de Miguel de Cervantes. Dessa forma, Joseph Andrews narra as aventuras um tanto quanto picarescas do personagem homônimo e de seu companheiro mr. Abraham Adams, um pároco, por algumas cidades da Inglaterra.

Irônica, autorreferente e um tanto quanta digressiva, a obra é caracterizada pela mescla estilística, sobretudo nas cenas de batalhas mock-heroic, nas quais o narrador em terceira pessoa invoca as Musas e mimetiza a elocução épica das epopeias para narrar situações prosaicas, como a famosa batalha de Joseph contra diversos cães em uma floresta. O humor resulta do entrechoque do paradigma clássico com a contemporaneidade; formas arcaizantes, vocabulário rebuscado e epítetos dignos de deuses e deusas servem para caracterizar prostitutas, estalajadeiros e médicos corruptos. As cenas mock-heroic "contradizem os ditames do realismo formal e de representação da realidade pela sua natureza improvável" (VASCONCELOS, 2002VASCONCELOS, Sandra G. Ensaios teóricos: os capítulos introdutórios de Henry Fielding. In: ______. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 86-102., p. 91). Por outro lado, atualizam a forma da epopeia em um contexto no qual sua função endêmica parece ter se perdido.

As diferentes estilizações e invectivas paródicas de Joseph Andrews estão já destacadas em seu prefácio, um dos tratados sobre o romance mais importantes do século XVIII. Embora não chame seu livro de novel, Fielding parece intuir muito bem as bases formais desse novo gênero ainda em ascensão no contexto inglês. Para o autor do prefácio, sua obra não se confunde com as estórias romanescas francesas e nem com a epopeia de outrora; trata-se simplesmente de um "poema épico-cômico em prosa" ("a comic Epic-Poem in prose" (FIELDING, 1999_______. Joseph Andrews and Shamela. London: Penguin Books, 1999., p. 49)).

Com uma capacidade de síntese notável, Fielding condensa a mistura estilística e genérica que permeia suas obras - e, em medida diversa, o gênero novelístico como um todo. Na tentativa de unir a comédia e a épica pela primeira vez em língua inglesa, o autor rompe a hierarquia de níveis estilísticos mandatória na Antiguidade clássica, que lhe serve de inspiração. O tom elevado e solene da épica mescla-se com a irreverência da comédia. Considerando-se que "o mundo da epopeia é o passado heroico nacional" (BAKHTIN, 2019_______. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019., p. 78), quando este colide com o presente e sua "realidade fluida, passageira e 'baixa'" (BAKHTIN, 2019_______. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019., p. 87), objetos de representação da comédia e dos ditos "gêneros baixos", o resultado neutraliza a propensão ao conteúdo erudito, aristocrático e absoluto do passado épico sacralizado na epopeia, colocando-o ao rés do chão cotidiano, onde reinam a comédia dos pobres e a vida prosaica. Para Bakhtin (2015BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015., p. 191), Fielding enquadra-se em uma linha estilística do romance que se firma "por via paródica […] fazendo o objeto comparado descer ao âmago de uma baixeza sordidamente prosaica e assim destruindo o plano literário elevado, obtido por meio de uma abstração polêmica".

Do outro lado do Atlântico, Machado também elegeu a paródia como vetor produtivo de sua literatura. Seus romances são tecidos de linhas alheias, sendo estas as diferentes referências locais e cosmopolitas, bem como os muitos gêneros literários que as articulam. Como em Fielding, a mistura de gêneros é uma força motora de desnorteio, a começar pela famosa dúvida de Capistrano de Abreu: "As Memórias póstumas de Brás Cubas são um romance?" (ASSIS, 2019_______. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019., p. 15). Aqui, ser pai do romance implica ser também um parricida. O romancista compõe e decompõe as bases da própria forma com a qual trabalha, tornando-a mais maleável do que já é.

Se quisermos repetir lugares-comuns - um tanto quanto obsoletos -, poderíamos apenas centralizar a "forma livre de um Sterne" (ASSIS, 2019_______. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019., p. 17), adotada pelo defunto autor Brás Cubas, como uma linha divisória para as duas fases da obra machadiana: a primeira - juvenil e romântica - e a segunda - madura e realista. Ora, é sabido que a complexidade dos textos de Machado foge a essas classificações compressivas. Sendo assim, para rastrearmos as "estruturas primárias e primeiras [que] se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas" (SANTIAGO, 2000SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 27-46., p. 27), é necessário investigar a força da paródia e da mescla estilística antes do advento de Brás Cubas.

Acreditamos que a vertente do poema épico-cômico em prosa inaugurada por Henry Fielding possui fortes ressonâncias em Machado, ainda que este tenha chegado a tal estética por rotas alternativas. Vale lembrar que Machado trabalhou por anos na criação de um poema herói-cômico, que acabou incompleto e recebeu postumamente o título d'"O almada". É notória a relação desse texto fascinante com a forma herói-cômica d'O hissope, do poeta português António Dinis da Cruz e Silva. Machado menciona essa obra em diversos textos da juventude, como no conto de matriz fantástica "Uma excursão milagrosa" (1866).

As afinidades eletivas entre Fielding e Machado com a paródia da épica antiga demonstram como a mistura de gêneros e estilos é uma característica da produção literária de ambos. Ainda pensando em Machado, tomemos o exemplo d'Os deuses de casaca, peça teatral encenada na Arcádia Fluminense em 1865, na qual há uma recriação dos deuses greco-romanos, figuras decadentes em um mundo moderno regido pela lógica do dinheiro e da falsidade. Ao vestir os deuses com uma casaca moderna, o próprio título evidencia esse deslocamento tão caro à obra de Fielding. Como em Don Quixote in England, há também uma desarticulação da função basilar do prólogo, que é aqui personificado por um ator, o qual toma a palavra logo de início para explicar o choque cultural e temporal da peça:

Sou o Prólogo novo. O meu pé já não calça
O antigo borzeguim, mas tem obra mais fina:
Da casa do Campas arqueia uma botina.
Não me pende da espádua a clâmide severa,
Mas o flexível corpo, acomodado à era,
Enverga uma casaca, obra do Raunier.
[…]
(ASSIS, 2003ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. Edição preparada por João Roberto Faria. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 373.)

"Acomodar-se à era" traduz em miúdos a forma da paródia. Destituídos de borzeguins e clâmides, os deuses calçam botina e vestem casaca para avaliar, com olhar intransigente, a conduta dos homens modernos. Uma peça um tanto quanto singela, não raro esquecida, é fundamental para aventar a possibilidade de a mistura épico-cômica ser uma via arterial da obra machadiana, que vai se complexificando em textos como "Pálida Elvira" - poema narrativo da coletânea Falenas (1870), cujo subtítulo é "(Conto)" - e nos contos de Papéis avulsos (1882) - que se apropriam de diferentes moldes textuais como o diálogo platônico, a Bíblia Sagrada e os discursos científicos -, até atingir sua forma mais sofisticada nos romances da maturidade.

Autores de obras alheias

A redução dos deuses ao nível da casaca é, em Henry Fielding, uma manobra usual e, não obstante, surpreendente. Em The History of Tom Jones, a Foundling (1749), seu magnum opus, a invectiva herói-cômica é aprimorada em uma forma arquitetônica, descrita por Samuel Taylor Coleridge como um dos três enredos mais perfeitos que existem, ao lado de Édipo Rei de Sófocles e The Alchemist de Ben Jonson.

É justamente Tom Jones que é citado por Machado nos capítulos CXII, CXIII e CXIV de Quincas Borba, que reúnem a única menção a Fielding no conjunto da obra machadiana. No contexto do romance, o protagonista Rubião está refletindo sobre uma emenda ínfima que acabara de fazer no artigo de seu colega aproveitador, o dr. Camacho. O narrador em terceira pessoa faz dessa situação subterfúgio para discutir seus métodos artísticos:

CAPÍTULO CXII

Aqui é que eu quisera ter dado a este livro o método de tantos outros - velhos todos - em que a matéria do capítulo era posta no sumário: "De como aconteceu isto assim, e mais assim". Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Das línguas estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollett, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, capítulo I, lede este título:

Contendo cinco folhas de papel. É claro, é simples, não engana a ninguém; são cinco folhas, mais nada, quem não quer não lê, e quem quer lê, para os últimos é que o autor concluiu obsequiosamente: "E agora, sem mais prefácio, vamos ao seguinte capítulo".

CAPÍTULO CXIII

Se tal fosse o método deste livro, eis aqui um título que explicaria tudo: "De como Rubião, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lera".

Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. […] Não importa; a análise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.

CAPÍTULO CXIV

Ao contrário, não sei se o capítulo que se segue poderia estar todo no título. (ASSIS, 2021_______. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021., p. 259-261, grifos nossos).

O nome de Henry Fielding acompanha uma tradição de escritores (Bernardim Ribeiro, Cervantes, Rabelais e Smollett), elencada pelo próprio Machado a partir de uma semelhança estrutural: o ato de dar título aos capítulos. Contudo, escamoteada em meio à discussão metaliterária dos títulos, há também o debate sobre autoria - de obras alheias, mais especificamente. A sensação de Rubião ao acrescentar uma palavra ao artigo de Camacho é vista como um ato de criação, por meio do qual ele escreve e rumina "todos os livros que lera". Ora, se aplicarmos a alcunha de "autor de obras alheias" a Fielding e aos outros escritores mencionados nesses capítulos, o resultado será frutífero, pois todos têm suas práticas metaliterárias associadas à incorporação de outros autores e gêneros literários. Além disso, excetuando-se Bernardim Ribeiro, tal linhagem também se aproxima pelo vetor satírico e paródico.

A referência ao capítulo primeiro do quarto livro de Tom Jones não é fortuita, e nem enseja o descarte irônico de seu título ("Contendo cinco folhas de papel"). A pista falsa do narrador machadiano só é constatada quando nos recusamos a aceitar sua autoridade interpretativa, sendo nós também, enquanto leitores, coautores de uma obra alheia. Ao abrirmos a passagem específica do romance, veremos que há nela muito mais do que cinco folhas de papel - e que o narrador machadiano, oblíquo e dissimulado, sabe muito bem disso. Nesse entrecho, o narrador em terceira pessoa de Fielding engendra justamente uma paródia mock-heroic da antiga função das Musas, como deusas da inspiração artística. Destituídas de seu posto sacralizado, as Musas da era moderna são comparadas à cerveja e ao rum em seus efeitos embriagantes.

A distorção de uma das principais bases da epopeia depende do contato da tradição com a modernidade, exatamente como faz o narrador de Quincas Borba ao colocar na balança o método supostamente datado do autor de Tom Jones. A incidência heroica e mitológica da epopeia apresenta ainda outro agravante: com a modernidade, corre o risco de soar pagã, algo que o narrador, com uma dissimulada mesura, procura evitar para não incorrer no desagrado das leitoras. Assim, para apresentar a protagonista feminina, Sophia Western,5 5 Não por acaso, a principal personagem feminina de Quincas Borba também se chama Sofia. Porém, se a sabedoria implicada no nome da heroína de Fielding relaciona-se sobretudo à sua nobreza de coração, o mesmo atributo torna-se cálculo e dissimulação na Sofia Palha de Machado de Assis. o narrador abre mão da deusa Flora e de outras metáforas pagãs, preferindo a figura trivial de uma mulher carregando uma cesta: "those who object to the heathen theology may, if they please, change our goddess into the above-mentioned basket-woman" (FIELDING, 2008_______. Tom Jones. Oxford: Oxford University Press, 2008., p. 133).6 6 Tradução: "aqueles que se opõem à teologia pagã podem, se quiserem, trocar a nossa deusa pela mulher com a cesta mencionada anteriormente".

O excerto evidencia uma construção ambivalente, na qual o interlúdio digressivo e metaliterário justifica-se como uma preocupação com a verossimilhança. Tal preocupação se manifesta no entrechoque de períodos históricos e gêneros literários. Com seus rituais e mitos, a Antiguidade clássica permitia uma relação com a realidade e com os deuses distinta da do século XVIII - algo que Machado de Assis também intuiria no contexto do século XIX com a peça Os deuses de casaca. Por outro lado, a autorreflexividade literária da passagem de Tom Jones é um traço antirrealista por meio do qual a obra reduz a realidade ao mundo da narrativa, "the universe or economy of their own functioning and figuring" (WILLIAMS, 2004WILLIAMS, Jeffrey. Theory and the Novel: Narrative Reflexivity in the British Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., p. 7).7 7 Tradução: "o universo ou a economia de seu próprio funcionamento e representação".

A forma épico-cômica, portanto, implica necessariamente uma nova concepção de autoria. Referenciar em Fielding e Machado é um ato de (re)criação. A pista real é intuída pelo próprio narrador machadiano a partir da alcunha "autor de obras alheias", que lembra justamente a metáfora do contrarregra. É curioso constatar que dois autores totalmente engajados na discussão sobre direitos autorais em seus respectivos contextos de origem8 8 No contexto anglófono, Henry Fielding foi o primeiro romancista a tratar abertamente de noções modernas como plágio, domínio público e direitos autorais, traçando suas elucubrações no âmbito de seus próprios romances. Já Machado de Assis participou da comissão responsável por regulamentar os direitos do autor no Brasil a partir de 1890, segundo Jean-Michel Massa (2009, p. 367) sejam, na mesma medida, abertos a uma dilatação do controle autoral a partir da lapidação do material alheio. O narrador machadiano é aquele que "vive na multiplicidade das situações criadas sem se deixar levar por essa mesma multiplicação, antes subordinando-as ao seu sistema de 'tradutor'" (VILLAÇA, 1998VILLAÇA, Alcides. Machado de Assis, tradutor de si mesmo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 51, p. 3-14, jul. 1998., p. 11). Para Machado, como também para Borges, "ler é escrever com os olhos; escrever atualiza a memória das leituras prévias" (ROCHA, 2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 275). O mesmo pode ser dito de Henry Fielding, cuja obra confirma que "a prosa romanesca europeia nasce e elabora-se no processo de tradução livre (reenformadora) de obras alheias" (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015., p. 181).

A teatralidade da vida

O ato de apropriar-se é também um ato de afetação, como uma máscara vestida em frente a um espelho convexo. Reduz-se a escala e modifica-se a proporção, tudo para que novos sentidos sejam criados e veiculados, ampliando o olhar. Os narradores de Fielding e Machado usam várias máscaras estilísticas, por meio das quais dão prosseguimento a suas intenções derrisórias. A máscara enquanto gesto teatral e social é uma chave de leitura importante para ambos os escritores, que permite retomar a influência do teatro no âmbito da prosa.

No já mencionado prefácio a Joseph Andrews, Fielding define como elemento central de seu poema épico-cômico em prosa o conceito de afetação, o qual, para ele, está diretamente ligado à comicidade. O cômico aqui não se resume ao riso; é, sobretudo, uma tentativa de apreender e denunciar a afetação humana, "the only Source of the true Ridiculous" (FIELDING, 1999_______. Joseph Andrews and Shamela. London: Penguin Books, 1999., p. 52).9 9 Tradução: "a única fonte do verdadeiro ridículo". Manifestada por meio da hipocrisia e da vaidade, a afetação é o combustível que move a natureza humana. Nessa (cosmo)visão, o que os seres humanos compartilham uns com os outros é a tendência absoluta - e não obstante ridícula - ao fingimento, à dissimulação. Para Fielding, "the world and the stage may be compared because men themselves masquerade as what they are not" (WRIGHT, 1968WRIGHT, Andrew. Tom Jones: Life as Art. In: BATTESTIN, Martin C. (Org.). Twentieth Century Interpretations of Tom Jones . New Jersey: Prentice-Hall, 1968. p. 56-67., p. 56).10 10 Tradução: "o mundo e o palco podem ser comparados porque os próprios homens se mascaram como aquilo que não são". O enfoque cômico permitiria uma vista privilegiada para o baile de máscaras que é a vida, fazendo com que a ficção sirva de espelho "to thousands in their Closets, that they may contemplate their Deformity, and endeavour to reduce it, and thus by suffering private Mortification may avoid public Shame" (FIELDING, 1999_______. Joseph Andrews and Shamela. London: Penguin Books, 1999., p. 203).11 11 Tradução: "para milhares em seus gabinetes, de modo que possam contemplar sua deformidade e se esforçar para reduzi-la, conseguindo, assim, sofrendo a mortificação privada, evitar a vergonha pública".

Ao expor a afetação de um homem pobre que finge ser classudo ou de uma dama que é libertina quando ninguém está vendo, o romance, tal como um espelho, mostra os erros da humanidade e procura corrigi-los, não de um lugar autoritário e impositivo, mas de uma perspectiva um tanto quanto complacente, que associa a afetação à própria natureza humana. No âmbito da modernidade, o gesto social é quase sempre artifício e protocolo. Fielding comprova que o mundo do romance é "plenamente regido pela convenção, a verdadeira plenitude do conceito de segunda natureza" (LUKÁCS, 2000LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000., p. 119).

O mesmo acontece com a obra de Machado, fartamente povoada por cínicos e hipócritas, "figuras recorrentes nas estruturas sociais assimétricas, [que] acabam merecendo, quando avaliados por dentro, ao menos a complacência de um olhar ambivalente. Barro sim, mas barro comum à humanidade e do qual todos somos feitos" (BOSI, 2003BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003., p. 18). A condição complexa dos personagens machadianos é pautada pelo afeto, mas também - ou sobretudo - pelo gesto social. Como o alferes Jacobina do conto "O espelho", os homens e as mulheres de Machado definem-se pelas máscaras, fardas e posições sociais que ocupam ou almejam ocupar. A dinâmica da afetação centralizada por Fielding é, na obra do Bruxo do Cosme Velho, uma força potente e subterrânea.

A vida é um teatro; o mundo, um palco. Tais metáforas são recorrentes em romances como Tom Jones, Ressurreição e Dom Casmurro. Sendo assim, a dinâmica da afetação permite aproximar e complexificar os polos da realidade e da ficção. Nas palavras de Cecília Loyola (1997LOYOLA, Cecília. Machado de Assis e o teatro das convenções. Rio de Janeiro: Uapê, 1997., p. 60), "neste jogo, o cotidiano é o próprio teatro". Metaliterários por excelência, Fielding e Machado não deixam de estabelecer contatos com a realidade sócio-histórica, permitindo enxergar a vida como ela é: um ato de mascaramento e, portanto, de ficção.

É nesse âmbito que a tradição de La Mancha se alinha com a de Waterloo, diferentemente do esquema dicotômico proposto por Fuentes. Se há uma espécie de universalismo por trás da ideia de que a afetação é força e ímpeto da natureza humana, o baile de máscaras não deixa de ser matizado pelas coordenadas sócio-históricas - ao contrário, só existe e perdura graças a elas. Assim, uma grande diferença entre Fielding e Machado está justamente nos fatores sociais que influenciam o uso das máscaras. Na Inglaterra de Fielding, trata-se da mudança de uma sociedade estratificada e hierárquica para outra um pouco mais fluida, com a ascensão de burgueses que possuem riquezas, mas não possuem títulos, imitando alguns comportamentos da ideologia aristocrática que não lhes pertence. Já no Brasil de Machado, são a instituição do favor e a lógica paternalista, tão bem explicadas por Roberto Schwarz (2012SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012.), que dão as regras desse jogo de cálculo e sentimento, no qual a sorte dos dependentes está nas mãos dos seus senhores. Convivendo com a máscara da afetação, há ainda outra de porte brutal e vergonhoso: a máscara de folha de flandres, usada para castigar o anátema dessa sociedade que se finge esclarecida: a figura do escravizado, como nos lembra o parágrafo de abertura de "Pai contra mãe".

Considerações finais

Com efeito, há na obra de Machado uma "desdramatização do teatro e da ficção, em geral, a favor de uma teatralização da vida" (LOYOLA, 1997LOYOLA, Cecília. Machado de Assis e o teatro das convenções. Rio de Janeiro: Uapê, 1997., p. 9). Ora, é justamente essa concepção que é reiterada pelos dois autores aqui aproximados. Como o contrarregra que também é o destino - ou que invade a cena para dar ordens e apropriar-se de uma peça que não é dele -, Henry Fielding e Machado de Assis são escritores que exercitam a mescla estilística, a apropriação de referências e uma visão de mundo como teatro e afetação - parecida com o conceito filosófico do Theatrum mundi.

O objetivo deste artigo foi tatear alguns caminhos interpretativos, valendo-se da literatura comparada para estabelecer a importância de Fielding no conjunto da prosa machadiana, considerando-se que esse autor é reiteradamente preterido em face de outras referências inglesas. Há ainda muito material a ser explorado, como, por exemplo, uma ênfase mais detida nas coordenadas sócio-históricas por meio da análise formal de romances específicos. O convite para o baile de máscaras já está agendado. Difícil mesmo é seguir a coreografia de autores tão acostumados a dar piruetas estilísticas.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis. Edição preparada por João Roberto Faria. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • _______. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019.
  • _______. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Obliq, 2020.
  • _______. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021.
  • BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
  • _______. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019.
  • BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003.
  • FIELDING, Henry. Don Quixote in England. A Comedy. London: Printing-Office in Wild-Court, 1734. p. 13-14.
  • _______. Joseph Andrews and Shamela. London: Penguin Books, 1999.
  • _______. Tom Jones. Oxford: Oxford University Press, 2008.
  • FUENTES, Carlos. O milagre de Machado de Assis. Folha de São Paulo, São Paulo, 1 out. 2000. Tradução de Sergio Molina. Disponível em: <Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0110200003.htm >. Acesso em: 15 out. 2022.
    » http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0110200003.htm
  • GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. A emergência do paradigma inglês no romance e na crítica de Machado de Assis. In: GUIDIN, Márcia Lígia; GRANJA, Lúcia; RICIERI, Francine Weiss (Org.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p. 95-108.
  • JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2014.
  • LOYOLA, Cecília. Machado de Assis e o teatro das convenções. Rio de Janeiro: Uapê, 1997.
  • LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
  • MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp , 2009.
  • MAYA, Alcides. Machado de Assis: algumas notas sobre o humour. 3. ed. Porto Alegre: Movimento; Santa Maria: Editora UFSM, 2007.
  • ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
  • ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897.
  • ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 27-46.
  • SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012.
  • SENNA, Marta de. Fielding, Sterne e Machado: uma linhagem. In: ______. O olhar oblíquo do Bruxo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 23-34.
  • VASCONCELOS, Sandra G. Ensaios teóricos: os capítulos introdutórios de Henry Fielding. In: ______. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 86-102.
  • VERÍSSIMO, José. Quincas Borba. Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, p. 1-2, 11 jan. 1892.
  • VILLAÇA, Alcides. Machado de Assis, tradutor de si mesmo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 51, p. 3-14, jul. 1998.
  • WILLIAMS, Jeffrey. Theory and the Novel: Narrative Reflexivity in the British Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
  • WRIGHT, Andrew. Tom Jones: Life as Art. In: BATTESTIN, Martin C. (Org.). Twentieth Century Interpretations of Tom Jones . New Jersey: Prentice-Hall, 1968. p. 56-67.
  • 1
    Tradução: "várias pessoas tão loucas quanto ele". Todas as traduções em nota de rodapé são minhas.
  • 2
    Tradução: "Nenhum prólogo, Senhor?! A plateia jamais aceitará isso".
  • 3
    Era comum na Inglaterra do início do século XVIII que o cargo do contrarregra fosse ocupado por um ator que coordenava sua própria companhia teatral. Assim, seu papel no jogo cênico era duplo, tanto em cima quanto fora do palco.
  • 4
    Levantamento apresentado na obra A biblioteca de Machado de Assis, organizada por José Luís Jobim (2014)JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2014.. Para além de Amelia e Tom Jones (1749) - citado em Quincas Borba -, é provável que Machado também tivesse familiaridade com Joseph Andrews (1742) e outros escritos esparsos de Fielding - entre peças e sátiras - que compunham The Works, disponíveis na Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro no século XIX, segundo levantamento de Sandra Vasconcelos.
  • 5
    Não por acaso, a principal personagem feminina de Quincas Borba também se chama Sofia. Porém, se a sabedoria implicada no nome da heroína de Fielding relaciona-se sobretudo à sua nobreza de coração, o mesmo atributo torna-se cálculo e dissimulação na Sofia Palha de Machado de Assis.
  • 6
    Tradução: "aqueles que se opõem à teologia pagã podem, se quiserem, trocar a nossa deusa pela mulher com a cesta mencionada anteriormente".
  • 7
    Tradução: "o universo ou a economia de seu próprio funcionamento e representação".
  • 8
    No contexto anglófono, Henry Fielding foi o primeiro romancista a tratar abertamente de noções modernas como plágio, domínio público e direitos autorais, traçando suas elucubrações no âmbito de seus próprios romances. Já Machado de Assis participou da comissão responsável por regulamentar os direitos do autor no Brasil a partir de 1890, segundo Jean-Michel Massa (2009MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp , 2009., p. 367)
  • 9
    Tradução: "a única fonte do verdadeiro ridículo".
  • 10
    Tradução: "o mundo e o palco podem ser comparados porque os próprios homens se mascaram como aquilo que não são".
  • 11
    Tradução: "para milhares em seus gabinetes, de modo que possam contemplar sua deformidade e se esforçar para reduzi-la, conseguindo, assim, sofrendo a mortificação privada, evitar a vergonha pública".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2022
  • Aceito
    05 Out 2022
Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: machadodeassis.emlinha@usp.br