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O INSTINTO DA MUCAMA E O TRIUNFO DO MOLEQUE: (MAIS) UMA LEITURA D'"O ALIENISTA"1 1 Agradeço a participação dos alunos do seminário "Reading the 19th century novel with Machado de Assis" (inverno, 2024), na Northwestern University, com quem primeiro compartilhei as ideias aqui apresentadas.

THE BLACK SERVANT'S INSTINCT AND THE BLACK BOY'S TRIUMPH: (ANOTHER) READING OF "O ALIENISTA"

Resumo

O artigo propõe uma leitura do conto/novela "O Alienista" levando em conta a questão da escravidão e da negritude. Primeiro, discute a forma como a questão é incluída ou excluída das obras de alguns dos grandes nomes da crítica machadiana e, em particular, das interpretações da novela. Depois, chama a atenção para uma cena em que aparecem uma "mucama" e um "moleque", associando-a ao contexto da revista em que a novela foi publicada.

Palavras-chave:
Machado de Assis; loucura; moda; escravidão; literatura afrodescendente

Abstract

This article proposes a reading of the story/novella "The Alienist" taking into consideration the issue of slavery and blackness. First, it discusses the way in which the theme is included or excluded from the works of some of the most renown critics of Machado and, in particular, from their interpretations of the story. Then, it calls attention to passage with two black characters, and associates it with the context of the magazine in which it was published.

Keywords:
Machado de Assis; madness; fashion; slavery; Afro-Brazilian literature

E, enterrando a cara no livro, prosseguiu na leitura. Caetaninha referiu o caso às mucamas, que lhe declararam desconfiar, desde algum tempo, que ele não andava bom.

Machado de Assis, "Ex Cathedra"

Confesso que hesitei antes de, um tanto às pressas, me atrever a enviar este artigo. Em primeiro lugar, porque às vezes me pergunto, com certa impaciência: mais um estudo sobre Machado de Assis? E o que mais uma leitura d'"O alienista", um de seus textos mais famosos, poderá acrescentar a esse corpus que há quem considere próximo à exaustão? Além disso, não me considero um "machadiano" propriamente dito, muito menos especialista nas tradições literárias afrodescendentes do Brasil. Talvez ainda mais importante: apesar da atualidade do tema do dossiê, não estou certo de que esse seja o momento ou o espaço para uma intervenção de um leitor cujas experiências - ou, se quiserem, cujo "lugar de fala" - não se identificam diretamente com vivências e escrevivências afrodescendentes. Em todo caso, só posso me defender argumentando que, afinal de contas, eu, leitor, não deixo de fazer parte do público-alvo de Machado de Assis e de seus narradores-autores - e que se entenda "alvo" aqui da maneira que se julgar mais pertinente, conforme as definições que aparecem no Houaiss: 1. branco; 2. aquilo/aquele que se procura alcançar; ponto de mira; 3. "objetivo físico visado para destruição parcial ou total, ainda que figurativamente". E o dicionário explica ainda que os alvos se classificam como: "conhecido, inopinado, suspeito, falso ou de oportunidade". Em todo caso, digo apenas que li a chamada para o presente dossiê em seu sentido mais grave, quase heideggeriano, de um chamado: ou seja, não só como um convite, mas como uma interpelação, como uma exigência: talvez mesmo uma cobrança de reparação.

Desde o trabalho pioneiro de leitura e seleção feito por Eduardo de Assis Duarte (2007DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Palas; Crisálida, 2007.), muitos de nós, críticos de literatura brasileira, agora lemos a obra de Machado com um olhar mais atento ao espaço ocupado e à função desempenhada pelos temas da escravidão, do racismo e, um pouco menos explorado, do colorismo. Ao ler o conto "Noite de almirante", Paulo Dutra (2018______. "Noite de Almirante": Interracial Love in Machado de Assis's Nineteenth's Century. Aletria, Belo Horizonte, v. 28, n. 4, p. 119-136, 2018. ), por exemplo, destacou e mostrou a importância do que agora nos parece mais do que evidente, ou seja, a negritude do protagonista2 2 Apesar de não citar Dutra, Sidney Chalhoub, em leitura posterior, não deixou de notar que os dois personagens centrais são "pessoas de cor". Mesmo assim, julgo empobrecedora a ênfase na "hipótese do ponto de vista senhorial, escravista, patriarcal, branco", já que volta a trazer para o centro do interesse de Machado não a negritude, mas a ideologia do homem branco (CHALHOUB, 2007; 2020, p. 16). . Na introdução de meu A violência das letras, publicado naquele mesmo ano, em uma seção intitulada "Os amigos de Machado de Assis", chamei a atenção para o fato de que, assim como fizeram certos leitores do Bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, ao se preocuparem demasiado com a dinâmica homoerótica do romance, certos leitores de "Pílades e Orestes" (1903) deixaram de notar a dinâmica da dominação que, acredito, naquele conto pode, e talvez deva, ser lida como racializada (BRAGA-PINTO, 2018BRAGA-PINTO, César. Os amigos de Machado de Assis. In: ______. A violência das letras: amizade e inimizade na literatura brasileira (1888-1940). Rio de Janeiro: EdUerj, 2018. p. 20-30.). Venho ainda defendendo - e, acredito, não é outra a visão mais recente de Paulo Dutra (2018______. "Noite de Almirante": Interracial Love in Machado de Assis's Nineteenth's Century. Aletria, Belo Horizonte, v. 28, n. 4, p. 119-136, 2018. ; 2020______. O "recitatif" de Machado de Assis: para uma leitura "negra" de "Missa do galo" e "Teoria do medalhão". Latin American Research Review, v. 55, n. 1, p. 122-134, 2020.; 2022______. O chiaroscuro (de) Machado de Assis. Rascunho - O jornal de literatura do Brasil, maio 2022. ) - que, até prova em contrário, seria possível partir-se do pressuposto que qualquer personagem da obra de Machado pode ou deve ser considerado afrodescendente, mesmo que nada no texto o indique.

Assim, reler toda a obra de Machado sem pressupor que a maioria dos personagens são inquestionavelmente brancos ou, no limite, pressupondo afirmativamente que todos eles possam ser afrodescendentes, vale, no mínimo, como exercício de hermenêutica imaginativa ou de sociologia especulativa. Não cabe aqui entrar em detalhes, mas releia-se, por exemplo, o conto de 1896, "O enfermeiro" (semelhante em muitos aspectos a "Pílades e Orestes"), em que há indícios de que o narrador, que passara de agregado a assalariado, mas que permanece sempre suspeito, não seja branco: desde o nome, "Procópio José Gomes Valongo", que o patrão-coronel abusivo insiste em não compreender, por não julgar "nome de gente", traduzindo-o erroneamente por "Colombo" (ASSIS, 2007______. 50 contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 319); até o assunto da resistência do subalterno aos abusos do senhor e, logo, a indefinição entre "crime ou luta" (ASSIS, 2007______. 50 contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 324). Aliás, recentemente me surpreendi ao me deparar com a ilustração para o conto na edição da Aguilar, em que o personagem é claramente caracterizado como afrodescendente (ASSIS, 2007______. 50 contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 531)3 3 Um ano depois da publicação de meu A violência das letras, Marcus Wood (2019, p. 104) propôs, de forma semelhante, e bem mais desenvolvida, uma leitura da relação senhor-escravo em "O enfermeiro". Surpreende-me, porém, que afirme com tanta certeza que o personagem era branco. . De modo que não acho despropositado agora perguntar: e se Bacamarte - "filho da nobreza da terra" (e não da nobreza de sangue), sobrinho de um "caçador de pacas perante o Eterno" (ASSIS, 2007______. 50 contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 38), alusão a Nimrod (personagem do Gênesis [10: 8-12] e neto de Cam, genealogia cujas conotações étnico-raciais são conhecidas) - for mestiço? E se fosse? Ou, do mesmo modo, o boticário Crispim Soares, como sugere a alusão ao cabelo em seu prenome? Ou ainda, se consideramos a alcunha do barbeiro Porfírio - "canjica", segundo o Houaiss, palavra de origem controversa, podendo ser portuguesa, ameríndia, do quimbundo ou do quicongo -, a que interpretações não se prestaria então o episódio da "Revolta dos Canjicas" liderada por ele?

Como se sabe, "O alienista" foi publicado primeiramente n'A Estação, entre 15 de outubro de 1881 e 15 de março de 1882. Dentre os contos publicados na época d'"O alienista" e com ele reunidos em Papéis avulsos (1882), pelo menos "O segredo do bonzo", "O espelho" e "Teoria do medalhão" têm se prestado a "leituras negras" (DUARTE, 2007DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Palas; Crisálida, 2007.; CASTRO, 2015CASTRO, Alexandre de Carvalho. De narizes extraídos por Machado: eugenias raciais, traços faciais e teorias psiquiátricas no Brasil oitocentista. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 339-351, jun. 2015.; DUTRA, 2020______. O "recitatif" de Machado de Assis: para uma leitura "negra" de "Missa do galo" e "Teoria do medalhão". Latin American Research Review, v. 55, n. 1, p. 122-134, 2020.). Mas, apesar de estar entre os textos mais estudados de Machado e do fato de já ter sido objeto de análise de alguns dos mais reputados críticos de literatura brasileira, machadianos ou não, questões de raça e escravidão n'"O alienista", até onde sei, permanecem ignoradas. Um crítico menos conhecido chegou a afirmar que "[q]uanto à camada baixa, a dos brancos desprivilegiados e a dos escravos, o narrador [d'"O alienista"] a ela não se refere nem uma só vez" (RIBEIRO, 1985RIBEIRO, Cleone A. C. L. de Abreu. O mundo anômico do "Alienista". Revista de Letras, São Paulo, v. 25, p. 35-47, 1985., p. 44). O próprio Dutra (2014DUTRA, Paulo. Dom Bacamarte de Itaguaí: rastro de Dom Quixote em "O alienista". Contexto, Vitória, n. 26, v. 2, p. 185-216, 2014. ), ao escrever sobre o conto, limitou-se ao estudo da loucura e da relação intertextual com o Dom Quixote de Cervantes.

Sem querer dar conta de toda sua recepção, resumo (e, inevitavelmente, simplifico) a seguir suas mais recentes e dominantes vertentes, focos de interesse ou possibilidades de leitura, segundo os quais se têm posicionado com maior ou menor firmeza ou ortodoxia: de um lado, os que se preocuparam com o aspecto nacional ou nacionalista de sua obra; de outro, os que privilegiaram seu interesse filosófico ou universalizável. Mais especificamente, enfatizarei em que medida a questão da raça foi incluída, evitada ou teve sua relevância negada em algumas dessas leituras.

Itaguaí, meu universo

Dentre os mais expressivos representantes da linhagem historicista-alegórica, o inglês John Gledson, ao discutir os capítulos 88-92 de Dom Casmurro, é categórico: "[p]ara a maior parte de Dom Casmurro é lícito dizer que a falta de consciência de uma possível dimensão de conteúdo histórico ou político não atrapalha a leitura do livro". Apesar disso, defende que "não podemos ser complacentes com uma ignorância não compartilhada pelos leitores de Machado em 1900" (GLEDSON, 1991GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo - uma reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução de Fernando Py. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 1991., p. 120). No entanto, Gledson escolhe o caminho da alegoria, mais do que o da referência histórica propriamente dita: "Se encararmos Bento como o Brasil (mais precisamente como o Império), torna-se fácil ver Manduca como o Paraguai, pelo menos no sentido negativo que - embora o texto não diga nada que aponte decisivamente nessa direção - muito do que ele diz se encaixa nessa identificação" (GLEDSON, 1991GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo - uma reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução de Fernando Py. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 1991., p. 123, grifo meu).

Acontece que a triste história da morte do Manduca não começa no capítulo 88, como sugere Gledson, mas é introduzida já no 84. Assim, ao excluir quatro capítulos, a leitura alegórica de Gledson perde de vista a maneira pela qual o episódio se relaciona com a trama e, particularmente, o incômodo da interrupção causada pelo real, como indica o título do capítulo 84 ("Chamado"). Tais interpelações, típicas das digressões na obra de Machado, não permitem que o leitor seja completamente absorvido, nem pelo romanesco nem pelo historiográfico. Ou seja, se há alegoria, é alegoria do leitor - lacunar, para usar o epíteto de Hélio Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp; Nankin: 2004. , p. 215) - e da leitura:

Ia satisfeito com a visita, com a alegria de Capitu, com os louvores de Gurgel, a tal ponto que não acudi logo a uma voz que me chamava [...]. Quis responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz até um gesto para fugir [...]. A própria notícia era uma turvação grande [...]. Mas também não me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante era Capitu (ASSIS, 1997a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997a. v. I, p. 807-944., p. 893).

E, por mais que Bentinho tente desviar os olhos do defunto, algo o chama de volta ao corpo: "Não sei que mão oculta me compeliu a olhar outra vez, ainda que fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto" (ASSIS, 1997a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997a. v. I, p. 807-944., p. 893).

Mas de onde vem essa voz inconveniente e incômoda, que não o deixa escapar das misérias e que o faz se sentir obrigado a encarar a vida e a morte do outro? Antes de identificá-la à pessoa - "um pobre homem grisalho e malvestido" - o narrador percebe a casa de onde a voz emana: "uma loja de louça, escassa e pobre". A morte do Manduca insere-se nesse contexto de objetos (e pessoas) aparentemente inúteis e obsoletos, mas que insistem em falar. A decisão de ir ao enterro leva Bentinho a uma digressão dentro da digressão. Antes de pedir a sua mãe que alugasse um carro, o narrador (adulto) lembra-se das visitas que com ela fizera em pequeno: "Era uma velha sege de meu pai, que ela conservou o mais que pôde. O cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via à porta, vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo: - Pai João vai levar nhonhô!" (ASSIS, 1997a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997a. v. I, p. 807-944., p. 894).

A associação entre o escravizado e a "sege obsoleta" continua em uma terceira digressão, ou melhor, regressão, em que o narrador se lembra de quando, ainda "mais pequeno", observava, desde o conforto da carruagem, o cocheiro "com suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a rédea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido". A análise do sistema escravagista, conforme manifesto na realidade cotidiana, articula-se em uma breve constatação: "Tudo incômodo, as botas, o chicote e as mulas, mas ele gostava e eu também". O obsoleto, a relíquia, o elemento que está menos fora do lugar do que fora de época, mais ou menos incômodo, mas assimilado ao dia a dia do opressor e do oprimido, mesmo quando se tornara "inútil" para os primeiros, é justamente a escravidão (ou sua herança), à qual a imagem da "sege antiga" parece remeter:

A sege ia tanto com a vida recôndita de minha mãe, que quando já não havia nenhuma outra, continuamos a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro pela "sege antiga". Afinal, minha mãe consentiu em deixá-la, sem a vender logo; só abriu mão dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razão de a guardar inútil foi exclusivamente sentimental; era a lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pai era considerado como um pedaço dele, um resto da pessoa, a mesma alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho também do carrancismo que ela confessava aos amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos hábitos, velhas maneiras, velhas ideias, velhas modas. Tinha o seu museu de relíquias, pentes desusados, um trecho de mantilha, umas moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e para que tudo fosse antigo, a si mesma se queria fazer velha [...] (ASSIS, 1997a______. Dom Casmurro. In: ______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997a. v. I, p. 807-944., p. 895).

Ou seja, ao enfatizar o nacional-alegórico, e desviar o olhar da letra, a leitura de Gledson distancia-se do que há de mais humano, de tudo aquilo que o corpo leproso de Manduca pode significar para o leitor menos distraído. Pois não se trata de alegoria, mas de simples analogia. Em outra ocasião, Gledson (2003______. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. revista e aumentada. Tradução de Sônia Coutinho. São Paulo: Paz e Terra, 2003., p. 214) chega a afirmar que "os personagens têm um significado especificamente simbólico, independente de sua natureza como pessoas". Ao seguir esse caminho, a leitura deixa pouco ou nenhum espaço para questões de gênero, raça e, talvez mesmo, de classe.

Que eu saiba, Gledson não chegou a analisar detidamente "O alienista". Porém, na introdução de uma edição mais ou menos recente da novela, lembra que, segundo o narrador, a história se passa em "tempos remotos", além de situada em Itaguaí, relativamente distante do Rio de Janeiro. Constata que, até certo ponto, a novela é nada mais do que uma série de "episódios divertidos" e que quase todos os inquilinos da casa verde são "pessoas inócuas". Mesmo assim, considera o que há de comentário histórico, e que possivelmente remontaria "aos primórdios da colonização do ambiente". E finalmente conclui: "Os 'tempos remotos' falam de um Brasil antes do Brasil; mas de que foram imaginados por 'um homem do seu tempo e do seu país', não podemos duvidar" (GLEDSON, 2014______. Introdução. In: ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O alienista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 7-16., p. 14). Por mais interessante que seja a hipótese, ela ainda deixa em aberto os possíveis significados, justamente para o homem, e a mulher, os leitores do seu tempo e do seu país.

Um exemplo de leitura assumidamente alegórica encontra-se no livro de Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010.), inteiramente dedicado a "O alienista"4 4 Ver também Chauvin (2005). . Apesar de um tanto rígido em sua defesa da novela enquanto caricatura, o livro é rico em muitos de seus aspectos históricos, especialmente em sua reconstituição minuciosa dos diversos contextos de produção da obra, desde o papel de Machado no jornal A Estação, em que foi publicada em sua versão original, até os debates que precederam a fundação do Hospício de Pedro II, em 1841. De especial interesse para o crítico-historiador é o debate entre a Teologia e a Ciência, aplicado à realidade histórica brasileira. A intenção prescritiva do crítico é anunciada já no segundo parágrafo de sua nota "Ao leitor", em que defende que se privilegie a leitura a partir de determinada realidade histórica local:

Sem desconsiderar o assunto da loucura, o presente ensaio sugere que O Alienista seja, sobretudo, entendido como intervenção artística de Machado de Assis em controvérsias mais específicas de seu tempo e lugar, entre as quais destaco: dissidência da Igreja com o Estado, ascensão da medicina e unidade do Império (TEIXEIRA, 2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010., p. 15).

E logo acrescenta: "Procurei isolar Machado de Assis da suposta condição de escritor universal, preocupado com o futuro ou com a humanidade [...]" (TEIXEIRA, 2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010., p. 15). A despeito da intenção e do gesto, não diria essencial, mas certamente enriquecedor, de incorporar diversos contextos à leitura da obra, ao privilegiar o alegórico o crítico passa ao largo de questões mais imediatas, como a questão da raça ou da escravidão, cujo papel, como pretendo mostrar, pode não ser central, mas é estruturante. Ou seja, mais preocupado com o contexto de produção (o jornal, a intertextualidade), o crítico subestima a importância do contexto de recepção.

Sem por isso tratarmos a literatura como "mero documento", acredito que uma leitura de Machado como cronista e crítico da vida social e da história seja igualmente importante. Por exemplo, poderíamos expandir a análise do contexto histórico da criação do Hospício em 1841 e das referências aos estudos clássicos de psiquiatria para os debates contemporâneos em torno da loucura, de seu estudo e de seu tratamento, que Machado certamente conhecia. Mais especificamente, refiro-me ao fato de que em 1881, justamente o ano em que se começou a publicar a novela, Nuno Ferreira de Andrade (1851-1922) se oferecera para ocupar, sem qualquer remuneração, a regência provisória da recém-criada cadeira de doenças nervosas e mentais na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sendo, alguns meses depois, nomeado diretor-geral do Hospício. Além disso, alguns anos antes, em 1876, o mesmo Nuno de Andrade havia apresentado à Academia Imperial de Medicina a memória "Da natureza e do diagnóstico da alienação mental", publicada mais tarde nos Anais Brasilienses de Medicina entre janeiro de 1880 e março de 1881 (ANDRADE, 1880; 1881ANDRADE, Nuno Ferreira de. Da natureza e do diagnóstico da alienação mental. Anais Brasilienses de Medicina, tomo XXXI: n. 1, p. 4-30, jun./ago. 1879; n. 2, p. 156-184, set./dez. 1879; n. 3, p. 311-326, jan./mar. 1880; n. 4, p. 488-517, abr./jun. 1880; tomo XXXII: n. 1, p. 18-41, jul./set. 1880; n. 2, p. 141-214, out./dez, 1880; n. 3, p. 255-292, jan./mar. 1881.) - ou seja, seis meses antes do início da publicação d'"O alienista" n'A Estação. Logo, se considerarmos o horizonte do primeiro leitor da novela de Machado e o contexto em que foi publicada, não será descabido concluir que "O alienista" seja, primeiramente, uma paródia da memória de Nuno de Andrade. Por exemplo, sobre o chamado "macromaníaco", Andrade escreve:

Se é um homem de letras, procura fazer praça de seus conhecimentos, discutir e criticar as opiniões alheias, com severidade, proferir sentenças a propósito de tudo, falar exclusivamente de si, olhar com proteção para todos, sorrir-se ironicamente do mérito de outrem [...]. É o tipo do soberbo. (ANDRADE, 1881ANDRADE, Nuno Ferreira de. Da natureza e do diagnóstico da alienação mental. Anais Brasilienses de Medicina, tomo XXXI: n. 1, p. 4-30, jun./ago. 1879; n. 2, p. 156-184, set./dez. 1879; n. 3, p. 311-326, jan./mar. 1880; n. 4, p. 488-517, abr./jun. 1880; tomo XXXII: n. 1, p. 18-41, jul./set. 1880; n. 2, p. 141-214, out./dez, 1880; n. 3, p. 255-292, jan./mar. 1881., p. 267-268).

Ou, ainda, no seguinte exemplo: "Outros acreditam-se príncipes. Uma senhora idosa, dócil e estimável, cerca-se de ouropéis e bugigangas, arma-se de uma bandeira, que diz ela ser cetro, passa a tiracolo uma fita com ares de grã-cruz e distribui cumprimentos à esquerda e à direita, julgando-se imperatriz do Brasil" (ANDRADE, 1881ANDRADE, Nuno Ferreira de. Da natureza e do diagnóstico da alienação mental. Anais Brasilienses de Medicina, tomo XXXI: n. 1, p. 4-30, jun./ago. 1879; n. 2, p. 156-184, set./dez. 1879; n. 3, p. 311-326, jan./mar. 1880; n. 4, p. 488-517, abr./jun. 1880; tomo XXXII: n. 1, p. 18-41, jul./set. 1880; n. 2, p. 141-214, out./dez, 1880; n. 3, p. 255-292, jan./mar. 1881., p. 270). Esses personagens poderiam muito bem estar na galeria de lunáticos da Casa Verde. E, com efeito, a obsessão classificatória de Bacamarte não difere muito do método de Nuno de Andrade (1881ANDRADE, Nuno Ferreira de. Da natureza e do diagnóstico da alienação mental. Anais Brasilienses de Medicina, tomo XXXI: n. 1, p. 4-30, jun./ago. 1879; n. 2, p. 156-184, set./dez. 1879; n. 3, p. 311-326, jan./mar. 1880; n. 4, p. 488-517, abr./jun. 1880; tomo XXXII: n. 1, p. 18-41, jul./set. 1880; n. 2, p. 141-214, out./dez, 1880; n. 3, p. 255-292, jan./mar. 1881., p. 259), que assim organiza as chamadas "monomanias":

Historiador propriamente dito, Raymundo Faoro, por sua vez, preocupou-se menos com a alegoria do que com fatos históricos e, ao mesmo tempo, com a herança da escravidão. Faoro foi dos primeiros a destacar as cenas em que aparecem homens e mulheres escravizados na obra de Machado, como no conto "Pai contra mãe" ou, ainda mais contundentemente, a opressão sofrida pelo personagem Raimundo, de Iaiá Garcia, descrito pelo próprio narrador como "tipo africano", simultaneamente "escravo e livre" (ASSIS apudFAORO, 1974FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974., p. 326). Faoro (1974FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974., p. 327) mostra como a visão de Machado em relação à Abolição é "inédita e inesperada": "Desapareceu o cativo, mas ficaram de pé as instituições que sujeitam, prendem e agrilhoam o trabalhador livre". Além disso, para o historiador, Machado não foi apenas testemunha e intérprete da escravidão e do racismo. Ao contrário, a sua visão fatalista da história não pode ser dissociada de sua própria experiência ou parentesco: "[e]sse passo - da natureza à história - somente podia ser inspirado por quem vivesse a tragédia do escravo, a ele próximo pelo sangue, impotente para intervir no seu destino" (FAORO, 1974FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974., p. 335). Essa perspectiva, segundo ele, se aplica à postura cética do escritor em relação às rebeliões, como a dos canjicas, e a seus líderes revolucionários, como o barbeiro Porfírio que,

[v]itorioso, ocupa o lugar da Câmara, para a qual nunca conseguira se eleger em virtude de sua extração humilde, e se põe a governar, esquecido de seu mandato revolucionário [...] vingança institucionalizada, sem afronta à ordem que a gerou, cuja injustiça, apenas entrevista, revela-se superior à vontade do pobre verme que não protesta (FAORO, 1974FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974., p. 340).

Entretanto, acredito que talvez Faoro (1974FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974., p. 336) exagere ao afirmar que "o escravo, vinculado a uma família, nela se absorvia, não resignadamente, pois resignação supõe revolta íntima, mas com o aniquilamento da personalidade [...] sem a amarga reação de haver sacrificado o destino individual". Na verdade, o próprio historiador se dá conta de que o sentimento do escravizado (e, na verdade, de todo criado) com relação à família é apenas emulação de afeto e amizade. Logo - e é aonde quero chegar-, abriga sempre a possibilidade da desobediência.

Consta que posteriormente Faoro teria apresentado uma palestra, nunca publicada, em que associava Simão Bacamarte a Simon Bolívar (1783-1830), e o barbeiro Porfírio à ditatura de Porfírio Diaz (1830-1915), presidente do México entre 1877-1880 (GLEDSON, 2006______. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 87). Apesar de apenas adivinhar seu teor, a aproximação me parece sugestiva. Acredito também que o contexto hispano-americano daria margem a novos horizontes interpretativos (sobretudo na linha praticada por Gledson). Por exemplo, como se sabe, o Hospício d. Pedro II foi inaugurado no final de 1852, mas em 8 de agosto do mesmo ano fundava-se também, em Santiago do Chile, a "Casa de Orates de Nuestra Señora de los Ángeles" (FUENTES GONZÁLEZ, 2013FUENTES GONZÁLEZ, Alejandro. La creación de la Casa de Orates en 1852 y los comienzos del gran encierro en Chile: comentarios desde la Historia Cultural. Cuadernos de Historia Cultural, Crítica y Reflexión, Viña del Mar, v. 3, p. 46-56, 2013., p. 47). A expressão "casa de Orates" no título do primeiro capítulo d'"O alienista" era comum para se referir a manicômios, mas a coincidência com o nome do hospício chileno não deixa de ser significativa. Além disso, é para Santiago que levam os ossos de Bacamarte, segundo uma das versões da novela: "O cadáver foi sepultado na capela da Casa Verde, infelizmente sem epitáfio. Em 1817, desapareceram os ossos, e segundo as mais prováveis induções, foram roubados e transportados para Santiago do Chile, cuja academia supõe que são os restos de um cozinheiro do ilustre Pizarro" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Cap. XIII: Plus Ultra!. A Estação, 15 mar. 1882, p. 48-50., p. 50. O ano coincide ainda com a Batalha de Chacabuco, que consolidou a independência do Chile. Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010., p. 268) afirma que "[há] uma tradição segundo a qual um dos cozinheiros do conquistador, desprezando o outro dos Andes, teria levado a batata para a Europa". Não localizei qualquer referência relativa a isso, mas consta no testamento de Pizarro, de 1537, que ele deixara quantias a seus pajens Jerónimo de Añasco e Pedro Pizarro, a seu cavaleiro e a Gaspar, seu confeiteiro ("repostero"), além de autorização para alforriar seu escravo Alonso Negro (PORRAS BARRENECHERRA, 1960PORRAS BARRENECHERRA, Raúl. El testamento de Francisco Pizarro. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid, n. 131, p. 200-214, nov. 1960., p. 715). Esclarecedoras ou não, creio que não seria despropositado refletir sobre a função histórica ou retórica das referências às nações e capitais hispano-americanas (ou islâmicas) nas narrativas de Machado em geral, muito menos estudadas, salvo engano, do que os paradigmas inglês, francês, alemão, italiano e greco-romano (GUIMARÃES, 2017______. Machado de Assis: escritor que nos lê. São Paulo: Ed. Unesp, 2017., p. 61). Em todo caso, Gledson (2006______. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 50) tem razão ao afirmar que ali o autor nos faz "sentir que estamos num mundo que é ao mesmo tempo colonial e moderno; o que não deixa de ser uma intuição profundamente verdadeira acerca do Brasil ou até da América Latina como um todo".

O maior representante da linha nacional-historicista, desnecessário dizer, é Roberto Schwarz, de cuja sutileza de pensamento eu não poderia dar conta aqui. Até onde sei, o crítico nunca escreveu diretamente sobre "O alienista". Escreveu, no entanto, uma paródia da novela, a peça A lata de lixo da história (1977), transportada para o século XX. Em entrevista dada à Folha de S. Paulo na ocasião do seu relançamento, Schwarz resume o enredo e a recepção da novela (ou conto, como prefere) da seguinte maneira:

No conto de Machado, a pacata Itaguaí é abalada por duas revoluções modernizantes. Uma científica, que desemboca na ditadura do doutor Simão. Outra social, vagamente calcada na Revolução Francesa e oposta à primeira.

A ideia machadiana de ambientar episódios de inovação científica e de luta social moderna nos cafundós do Brasil naturalmente era satírica. Respondia a nossos complexos de ex-colônia e ao anseio de pular para a linha de frente do mundo.

Os leitores, até onde sei, se interessaram mais pelas teorias da loucura, que de fato organizam o primeiro plano do conto e têm a vantagem de estar na moda, graças a certo ar de família com os temas do celebérrimo Foucault. Mas a dinâmica da revolução num fim de mundo, com seus fluxos, refluxos e líderes oportunistas, não é menos interessante.

Se a referência dominante forem as teorias da loucura, a revolução aparecerá como um exemplo a mais de maluquice. Se a dominante for a rebelião popular, as teorias de Bacamarte aparecerão como elementos no jogo do poder, o que é mais sutil (e igualmente foucaultiano). As duas leituras são possíveis, e o melhor é balançar entre elas (SCHWARZ, 2014______. Passado remexido: a volta de A lata de lixo da história. Entrevista. Folha de S. Paulo, 18 maio 2014.).

Não há o que discordar de tão concisa interpretação. Mas, respondendo ao comentário da entrevistadora, de que, n'"O alienista", "praticamente não há escravos", Schwarz concorda, sem perceber que de certo modo contradiz tanto a ela como a si mesmo: "De fato, na obra inteira de Machado há poucos escravos. Quando aparecem, entretanto, eles são uma presença aguda, que desequilibra o quadro decoroso e bem-falante em que decorre a vida das classes altas, com suas pretensões de civilidade". É justamente desse desequilíbrio que tratarei na última parte deste ensaio.

Paris, meu continente

Poucos críticos contemporâneos deixaram de notar que a dicotomia entre o local-provinciano e o universal-cosmopolita é um dos objetos centrais da sátira d'"O alienista". Ironicamente, eles continuam divididos em dois polos análogos em que, seja a intepretação localista, seja a universalista-europeizante, é a privilegiada. É bem verdade que nem sempre se julgou que tal escolha fosse necessária. Apesar da chave foucaultiana, mas calcado na realidade nacional, Luiz Costa Lima (1991LIMA, Luiz Costa. O palimpsesto de Itaguaí. In: ______. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 253-265., p. 265), já em 1976, concluía: "O fato de que o cientificismo fosse brasileiro não o impedia de ser propriedade do Ocidente [...]. O que vale dizer, o questionamento da ciência por Machado não desvelava apenas uma situação local". Rouanet (2008ROUANET, Sergio Paulo. Machado de Assis e o mundo às avessas. In: SENNA, Marta de (Org.). Machado de Assis: cinco contos comentados. Rio de Janeiro: Ed. Casa de Rui Barbosa, 2008. p. 73-91. , p. 74), por sua vez, contentou-se em apontar dois registros presentes no conto, resultados de um duplo ceticismo do autor, sem por isso limitar cada um deles ao nacional ou ao universal: de um lado, o registro "cognitivo", não de todo dissociado da realidade local, mas relativo antes de tudo ao poder científico, por sua vez associado ao poder administrativo, ou seja, a loucura da filosofia especulativa e a loucura da razão oficial, tema que o crítico identifica em outros contos do autor; e, de outro lado, o registro político, em que não haveria personagens nobres em Itaguaí, "nem entre os que mandam nem entre os que são forçados a obedecer" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 86)

A despeito de sua preocupação primeira residir no Machado local e caricaturista, nem por isso Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010., p. 205-221) deixou de chamar a atenção para aspectos intertextuais e transnacionais da novela que, até então ignorados, agora nos parecem óbvios. Em particular, o crítico identifica algumas conexões interessantes entre "O alienista" e dois escritores de língua inglesa: Jonathan Swift e Edgar Allan Poe. Apenas surpreende, a meu ver, que, leitor tão cuidadoso da literatura anglófona, Teixeira não considere também a influência ou apropriação do Laurence Sterne de Life and Opinions of Tristam Shandy, Gentleman (1760). Sabe-se que a acusação de que Machado seria "macaqueador de Sterne" atravessa a crítica desde Sílvio Romero até pelo menos Mário de Andrade (GUIMARÃES, 2017______. Machado de Assis: escritor que nos lê. São Paulo: Ed. Unesp, 2017., p. 60)5 5 "O artifício é evidente, a macaqueação de Sterne, por exemplo, é palmar e não tem graça quase nenhuma" (ROMERO, 1897, p. 136). , e o próprio Machado nunca o escondera, sendo que em Memórias póstumas (1880-1881) a referência aparecia já na advertência. Publicado em folhetim logo depois do romance, "O alienista" terminava com uma frase que pode ser lida como uma reescritura tanto de Shakespeare como de Sterne. Refiro-me às últimas linhas da versão do jornal: "Alas! Poor Iorick! - Sic transit gloria mundi" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Cap. XIII: Plus Ultra!. A Estação, 15 mar. 1882, p. 48-50., p. 50). Teixeira não está errado em afirmar que a "associação com Yorick, personagem de Hamlet, decorre do fato de que os seus ossos, tal como os de Simão, também foram removidos da sepultura". De fato, a paródia de uma das mais conhecidas cenas da peça de Shakespeare é evidente e, com efeito, a tragédia, recém-traduzida pelo então rei de Portugal, encontrava-se à venda no Rio de Janeiro, além de ter sido publicada na imprensa pouco antes do lançamento da novela. Eis, na tradução de El-Rei Dom Luís, o trecho do discurso de Hamlet diante da caveira: "Pobre Yorick! Conheci-o, Horácio; era uma fonte inesgotável de ditos engraçados; tinha uma imaginação viva e fecunda! Quantas vezes me levou nos ombros!" (SHAKESPEARE, 1879SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de S. M. El-Rey, o Sr. D. Luiz I. O Repórter, Rio de Janeiro, 15 mar. 1879, p. 3.).

Acontece que, além de ser o protagonista de A Sentimental Journey Through France and Italy (1768) de Sterne, muitas vezes considerado uma espécie de alter ego do autor, outro personagem de nome Yorick, "um pároco", aparece também no início de Tristam Shandy. O narrador comenta que, apesar da descendência duvidosa, boatos inscreviam-no na linhagem de um bobo da corte (jester) da Dinamarca, que por sua vez teria inspirado o personagem de Shakespeare. Talvez Machado tenha decidido excluir o trecho, justamente para não enfatizar demais a importância de Sterne em sua obra. Em todo caso, mais do que a de Shakespeare, a vida e morte do personagem de Sterne, narradas nos capítulos XI e XII do Tristam Shandy, guardam alguma semelhança com as de Bacamarte. Por exemplo: ao escrever "o mundo", o narrador explica, mais de uma vez, que com isso se referia ao espaço de quatro ou cinco milhas em torno do vilarejo em que seu personagem vivera, assim como Bacamarte dizia ser Itaguaí o seu universo. Por outro lado, enquanto o túmulo de Bacamarte não trazia epitáfio, o cadáver de Yorick foi sepultado ao lado da paróquia, com uma lápide contendo a inscrição: "Alas, poor Yorick!" (STERNE, 1956STERNE, Laurence. Tristam Shandy. Londres; Nova Iorque: Dent & Son; Dutton &Co, 1956. , p. 26).

O argumento a favor da inclusão de Machado na literatura universal ou mundial, assim como as interpretações filosóficas e existenciais, tem sido defendido por diversos críticos escrevendo a partir tanto do Brasil como de outros países, com frequência, mas nem sempre, em reação às leituras alegóricas ou histórico-sociais. Um leitor europeu, no caso dirigindo-se ao público francês, e sem se preocupar em polemizar ou rivalizar com a tradição crítica machadiana (o texto foi originalmente incluído como prefácio à tradução francesa, de 1984), apresenta uma contribuição válida em que, ao mesmo tempo que universaliza a questão da loucura, contextualiza a novela dentro da tradição literária francesa e ocidental de autores como Dante Alighieri, Nikolai Gogol, Charles Nodier, Gérard de Nerval, Villiers de l'Isle-Adam, Guy de Maupassant, além do norte-americano Edgar Allan Poe (BRUNEL, 2021BRUNEL, Pierre. Itaguaí, o grande teatro do mundo. Tradução de Jean Pierre Chauvin. Revista USP, São Paulo, n. 129, p. 137-148, abr./maio/jun. 2021.).

Também europeu é o repertório de Alfredo Bosi, um dos veementes representantes da linha universalizante, cujo trabalho se opôs, ou, para utilizar o termo de Hélio Guimarães (2017______. Machado de Assis: escritor que nos lê. São Paulo: Ed. Unesp, 2017., p. 217; 228-232; 239-243), teria "resistido", à leitura histórico-social de Schwarz. Em sua leitura, Bosi (1999BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: ______. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999. p. 73-125., p. 88) defende que a novela possui uma outra dimensão que "inclui e ultrapassa a caricatura do perfeito alienista", e que seu sentido mais profundo seria, acima de tudo, "o arbítrio do poder". Curiosamente, é Bosi, e não Schwarz, seu maior adversário, que Abel Barros Baptista procura desbancar no início de sua própria leitura da novela (salvo engano, colada à crítica de Derrida à História da loucura, de Foucault). Baptista (2016BAPTISTA, Abel Barros. O paradoxo do alienista. In: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Machado de Assis: lido e relido. São Paulo: Alameda, 2016. p. 541-556. , p. 543-544) acusa Bosi de insistir, como todos os outros críticos brasileiros, em mais uma "operação alegórica" e, logo, de repetir a leitura característica do "nacionalismo crítico que tem dominado a tradição machadiana brasileira". Esse viés alegórico da crítica, ele anteriormente havia atribuído também aos estudos da norte-americana Helen Caldwell, denominado de "paradigma do pé atrás". O crítico português tem alguma razão, mas não se deixará de ver certa ironia colonial na postura do português perante os críticos, nacionalistas ou não, situados na ex-colônia.

Foi o que Schwarz pareceu querer mostrar em seu artigo de 2006, apesar de seu alvo declarado ser Michael Wood, um estadunidense. Guimarães (2017______. Machado de Assis: escritor que nos lê. São Paulo: Ed. Unesp, 2017., p. 258-269) resumiu bem o debate, iniciado com uma resenha de Wood, publicada no New York Review of Books em 2002, que, em grande medida, girava em torno da "insuficiência" do contexto histórico para se compreender a obra de Machado, ênfase que seria um "desserviço à universalidade do autor". Schwarz (2006SCHWARZ, Roberto. Leituras em competição. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 75, p. 61-79, jul. 2006., p. 68), por sua vez, fala em "prejuízo" brasileiro: "o sucesso internacional viria de mãos dadas com o desaparecimento da particularidade histórica, e a ênfase na particularidade histórica seria um desserviço prestado à universalidade do autor". É como se o crítico brasileiro estivesse defendendo algo análogo ao que hoje se tem chamado de "lugar de fala", apesar de, de início, explicar que

se a cor do passaporte e o local de residência dos críticos não são determinantes, é certo que as matrizes de reflexão a que a divergência se prende têm realidade no mapa e dimensão política, além de competirem entre si, como partes do sistema literário mundial (SCHWARZ, 2006SCHWARZ, Roberto. Leituras em competição. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 75, p. 61-79, jul. 2006., p. 65).

Eu só me pergunto o que Schwarz diria se uma nova geração de críticos, digamos, negros ou de "matriz" negra, independentemente da "cor", começar a utilizar sua retórica no âmbito de outra oposição, de outras leituras em competição, substituindo o internacional-universal pelo hegemônico nacional, e o cânone nacional-periférico pelo afrodescendente.

Não surpreende que a polêmica tenha ido parar em Itaguaí. Em sua tréplica, Wood parte justamente d'"O alienista" para desestabilizar as associações entre a província fluminense, a Paris cosmopolita e o Universo. Por falta de espaço, reproduzo apenas a conclusão:

O que lemos em O alienista não é uma história geral da loucura universal, uma espécie de parábola que poderíamos aplicar a qualquer lugar, mas uma obra-prima brasileira precisa e particular que encontra ecos e se traduz nas loucuras particulares e precisas de outras regiões e mundos (WOOD, 2009WOOD, Michael. Entre Paris e Itaguaí. Tradução de Otacílio Nunes Jr. Novos Estudos Cebrap , São Paulo, n. 83, p. 185-196, mar. 2009., p. 190).

Entre as acusações mútuas de reducionismo de uma teoria e da outra, entre a caricatura do colecionador predatório e a do libertador protecionista, entre a ilha e o continente, ou entre a pérola e a concha, mal ou bem o debate avança, e nos damos conta de que o que é o ponto de partida de um é o ponto de chegada do outro. Mas talvez o movimento não precise ser o de uma "roda dos enjeitados" ou o de uma porta giratória em que um método entra enquanto o outro sai.

Em todo caso, o que continua invisível, praticamente excluído desse debate entre mestres, da periferia ou não, ainda é a perspectiva e o lugar da mulher e, sobretudo, a dos escravos, em relação à definição e diagnóstico da loucura.

O avesso da moda

Pode-se dizer que, n'"O alienista", o excesso e a modéstia constituem a principal medida do diagnóstico da loucura e da sanidade. Aliás, se, como mostrou Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010.), Jonathan Swift é uma das inspirações da novela de Machado, é digno de nota o título do livro do escritor irlandês, A Modest Proposal for Preventing the Children of Poor People from Being a Burthen to Their Parents or Country, and for Making Them Beneficial to the Publick (1729), cujo assunto é justamente a instabilidade da noção de "modéstia", que aponta não somente para o comedimento e a necessidade de equilíbrio, mas também para a dificuldade em distingui-la da "falsa modéstia" (WILLIAMS, 2014WILLIAMS, Abigail. A Brief History of Modesty. XVII-XVIII - Revue de la Société d’études anglo-américaines des XVIIe et XVIIIe siècles, n. 71, p. 135-156, 2014. Disponível em: Disponível em: http://journals.openedition.org/1718/399 . Acesso em: 24 fev. 2024. doi: https://doi.org/10.4000/1718.399.
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, p. 11). Paradoxalmente, o uso da modéstia em elogio próprio torna-se, assim, uma demonstração de excesso, de falta de comedimento retórico. O assunto, como se sabe, é central em grande parte dos escritos de Machado, e os exemplos na novela são vários.

Recapitulando o enredo: primeiro levaram os desequilibrados, mansos ou furiosos, que viviam soltos pelas ruas ou trancados em casa, vítimas do descaso público, entre os quais os oradores exaltados e os loucos de amor. Depois, expandiu-se o conceito e o território da loucura e recolheram-se também todos os que não se encontrassem no "perfeito equilíbrio de todas as faculdades" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 261), inclusive alguns dos mais estimados cidadãos. Nem as mulheres escaparam: uma senhora, "perfeitamente ajuizada que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 263); ou as moças cujo único vício era serem namoradeiras (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 279); e por fim a própria esposa do psiquiatra, incapaz de decidir entre um colar de granada e outro de safira, um caso de "mania sumptuária" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 280) - todas elas foram levadas e trancadas no hospício da Casa Verde, em que já estavam quatro quintos da população.

Terceira fase, nova teoria: Bacamarte conclui que dignos de estudo e tratamento já não eram os desequilibrados, mas sim os indivíduos caracterizados pelo perfeito e ininterrupto equilíbrio das faculdades mentais. Eram poucos os "modestos", "tolerantes", "verídicos", "símplices", "leais", "magnânimos", "sagazes" e "sinceros", entre eles o padre e a mulher do boticário, a "máscula" D. Cesária. Uma vez confirmado o diagnóstico dos novos pacientes, chega a hora da terapia. Acontece que o tratamento, sobretudo dos modestos e dos sinceros, demonstra uma dificuldade, a saber, a de se distinguir entre cura e erro de diagnóstico: por exemplo, não havia pessoa modesta que, ao receber uma condecoração qualquer, logo não se desequilibrasse em desejo de renomada. Já em Crispim, a modéstia era nada mais do que "principal adorno do seu espírito" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 261); para D. Evarista, a "modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 279). Ou seja, sendo poucos os sinceros, de nada vale a modéstia, que se revela falsa modéstia.

Finalmente, o médico descobre em si mesmo as qualidades verdadeiramente dignas de estudo: a moderação e a singeleza, a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade e, sobretudo, a modéstia, "uma qualidade que realça as outras" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 287). Mas tal qualidade fora desmentida já no início do conto, quando Simão se exalta em vaidade nacionalista, sonhando com "'louros imarcescíveis' para a ciência brasileira - expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém os sabedores" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 254). A ausência de modéstia é assinalada novamente pelo narrador, que destaca "a nobre e austera fisionomia daquele grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento, nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 277).

Em "Teoria do medalhão", escrito no mesmo período da novela, Machado lançava mão da metáfora do corte e costura, com a figura da costureira "esperta e afreguesada" do árcade Filinto Elísio, para designar a oposição entre excesso e comedimento no uso da retórica: "Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,/ Menos alardeia de retalhos" (apudASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 292). Do mesmo modo, entre os preceitos do periódico estava a prática da "elegância com economia" (CRESTANI, 2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação : jornal ilustrado para a família. Revista da Anpoll, v. 1, n. 25, p. 325-353, jul. 2008., p. 331). De fato, de olho em seu público leitor, Machado faz da moda feminina, dos vestidos e dos adornos, e também do seu avesso, as costureiras e alfaiates, alguns de seus temas e personagens prediletos. Pois, como se sabe, "O alienista" foi publicado em um jornal de moda, o quinzenal A Estação, para o qual o autor contribuía regularmente. E, quero enfatizar, a relação entre moda e modéstia é uma das preocupações, tanto na novela como na revista.

A Estação trazia conteúdo traduzido da Die Modenwelt, incluindo "um editorial sobre a moda em Paris e uma quantidade abundante de figurinos, gravuras, riscos, trabalhos manuais, dicas e conselhos de economia e utilidade doméstica etc." (CRESTANI, 2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação : jornal ilustrado para a família. Revista da Anpoll, v. 1, n. 25, p. 325-353, jul. 2008., p. 326). A partir de 1878, passou também a incluir uma seção de literatura e de artes, e o público-alvo, pelo que o novo nome indica, parece ter sido ampliado para toda a família, apesar de o editorial do primeiro número ainda indicar que a intenção era "criar um jornal brasileiro indispensável a toda mãe de família econômica que deseja trajar e vestir suas filhas segundo os preceitos da época" (A Estação, 15 jan. 1879, p. 1). As seções "Crônica da Moda" e "Crônica Parisiense", de primeira página, eram assinadas e datadas de Paris (e, ocasionalmente, do Rio ou Bruxelas), por Antonina Aubé e, com menor frequência, Condessa de Marly e Brasília Pinheiro, esta última supostamente enviada do Brasil para "informar às minhas patrícias sobre as fazendas novas que forem aparecendo e que se prestem a ser usadas nos nossos climas" (A Estação, 28 fev. 1879, p. 1). A Estação contaria ainda com colaborações de alguns dos grandes nomes da literatura brasileira, como Olavo Bilac, Júlia Lopes de Almeida e Artur Azevedo. Ali Machado publicou, entre outros gêneros, cerca de 40 contos, a novela Casa velha e o romance Quincas Borba, além de, entre 15 de outubro de 1881 e 15 de março de 1882, "O alienista".

Como sugere Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010., p. 59-60), "ao falar de roupa e agasalho, de moda e presumivelmente preferências culturais de grupos, A Estação produzia igualmente noções essenciais sobre gesto social, intimidade doméstica, evento cultural, moralidade, lazer, saúde, higiene, trabalho e religião". Assim, além de ditar a moda, o jornal tinha uma função pedagógica, ensinando desde a moral e os bons costumes até a economia doméstica e o trabalho manual, como as técnicas da agulha, o tricô, o crochê, pontos de bordado e tapeçaria, além de problemas e charadas. A partir de 31 de outubro de 1882, por exemplo, inicia-se uma série sobre a história e a prática da criptografia, "a ciência que ensina a escrever secretamente". Em abril de 1880, a Lombaerts & Cia, livraria responsável pelo jornal, começa a lançar em fascículos um Tratado de trabalhos de agulha com 400 figuras explicativas que, segundo uma das assinantes d'A Estação, teria a missão de ensinar às filhas das leitoras "o amor ao trabalho" (A Estação, 30 abr. 1880). Alguns anos depois, A Estação propõe-se a dar continuidade ao assunto do ensino dos "trabalhos de filet" (ou ponto de rede) em uma seção que caracteriza o ensino da "urdidura" como um verdadeiro letramento: "Esta segunda dirige-se àquelas senhoras que já se acham familiarizadas com esses trabalhos e podem com um só olhar compreender uma figura completa e executá-la, como escrevemos ou lemos, sem ter que soletrar penosamente" (Suplemento, A Estação, 31 jan. 1884).

Duas semanas depois do início da publicação d'"O alienista" (no mesmo número do capítulo II, "Torrente de loucos"), a revista publica uma "Crônica da Moda", não assinada, particularmente esclarecedora. Ali, a suposta autora previne primeiramente contra o mau gosto de se seguir a "moda nas suas mais desmedidas exagerações", associando a elegância à simplicidade. Pois acima de tudo a modéstia das senhoras deve servir de exemplo às suas criadas:

Há entre nós uma questão que, talvez mais do que a moda, preocupa as senhoras brasileiras, é a questão das criadas. Pouco [sic] são as casas em que não há motivo de queixa a este respeito. [...] Numa casa honesta, respeitável, não se deveria ver (infelizmente não posso dizer, não se vê) criadas com vestidos de puff, corpinho decotado etc. Devemos vesti-las com fazendas novas e fortes, mas de feitio simples. Uma confortável simplicidade e irrepreensível limpeza são sinais distintivos de uma boa casa. Um erro considerável, cometido por muitas senhoras, é dar vestidos usados às criadas. A mucama vestida na toalete de sua ama toma gosto a trajar como ela, e quer chapéu, botinas de alto tacão e até luvas. O vestido usado já não é moda, o desejo de luxo faz brotar nessas imaginações maus pensamentos, inveja, e as leva a tudo sacrificar para obter as toaletes almejadas. A vaidade e a moleza levam muitas pessoas a ter maiores números de criados do que o realmente necessário (CRÔNICA..., 1881CRÔNICA da Moda. A Estação , Rio de Janeiro, 31 out. 1881, p. 1., p. 1).

Assim, o "desejo de luxo" da mucama parece ser uma ameaça sempre presente na mente da senhora que, para evitar que o desejo se converta em revolta, deve ensiná-la o valor da simplicidade e da modéstia:

O excesso de luxo, a dissipação, o jogo, o egoísmo ganham e gangrenam todas as classes, desde a mais baixa até a mais alta, e pervertem tanto os donos como os criados. Se a dona da casa arruína o marido exigindo camarotes no Lírico, vestidos novos para cada representação, excesso de joias etc., por que pensaria a mucama fazer mal dissipando o que não é dela? [...] (CRÔNICA..., 1881CRÔNICA da Moda. A Estação , Rio de Janeiro, 31 out. 1881, p. 1., p. 1).

Além disso, para que se evite o despertar do ódio dos escravos, o comedimento deve estar presente também na linguagem e na maneira de tratá-los, ou seja, com

deferência e urbanidade, e ao mesmo tempo proibir familiaridade [...]. O dono nunca deve ordenar com fórmulas imperativas, e nunca omitir o faça o favor nem o obrigado. Os desdéns e os caprichos das amas irritam os fracos espíritos dos criados, e daí nasce o ódio deles para todos os donos (CRÔNICA..., 1881CRÔNICA da Moda. A Estação , Rio de Janeiro, 31 out. 1881, p. 1., p. 1).

A comparação entre o desejo da mucama e o desejo da senhora aponta tanto para a possiblidade de revolta como para a necessidade de vigilância, de ambas, e a conclusão da crônica não deixa de denunciar a ambiguidade entre a vigilante e a vigiada: "Quanto maior for o número de criados numa casa, maior também será a desordem; número diminuto e ativa vigilância da dona de casa são de tudo preferíveis e vantajosos" (CRÔNICA..., 1881CRÔNICA da Moda. A Estação , Rio de Janeiro, 31 out. 1881, p. 1., p. 1).

O desejo ou a "inveja" do escravo é o tema de "História comum", conto que Machado publicou dois anos depois, ainda n'A Estação, (15 abr. 1883), uma espécie de apólogo em que o protagonista e narrador em primeira pessoa é um alfinete. Não um alfinete de adorno, mas de uso, "vilão, modesto", que uma mucama chamada Felicidade comprara para usar no peito. Apesar de parecer modesto, o alfinete tinha desejos e ambições, como devia ter sua mucama que, por sua vez, atendia em silêncio às ordens das patroas,

solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias da outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema daquela, tudo com um amor de mãe tão feliz como se fossem suas filhas [...]. Felicidade, diziam as moças à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias? (ASSIS, 1883______. História comum. A Estação, ano 7, 15 abr. 1883, p. 73., p. 73).

Mas a resignação e o comedimento da mucama são desmentidos metonimicamente pelo desejo do alfinete de escapar para o corpo de uma das moças brancas em um dia de baile. Por um acaso, seu desejo realiza-se, e o alfinete da mucama tem a oportunidade de ir ao baile, espetado no vestido de uma das moças: "bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leve escada acima, uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores... Ah! Enfim! Eis-me no meu lugar" (ASSIS, 1883______. História comum. A Estação, ano 7, 15 abr. 1883, p. 73., p. 73). O alfinete, esquecido de seu papel de mero acessório no peito da mulher branca, é descartado tão logo a moça tira a rosa do vestido para oferecê-la ao seu pretendente, "atirando-me, com a maior indiferença, à rua..." (ASSIS, 1883______. História comum. A Estação, ano 7, 15 abr. 1883, p. 73., p. 73). A história é simples, talvez comum. Mas, uma vez mais, Machado põe em evidência os objetos e os seres humanos que fazem a moda e o vestuário da classe dominante possível: o acessório, a mulher escravizada e, com eles, os seus desejos, inclusive o de ter e poder. Dois anos depois, Machado continuaria a explorar o universo do corte e costura para falar de trabalho e poder, em seu conhecido "A agulha e a linha", o primeiro de três apólogos publicados na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1º de março de 1885.

De volta à novela, à questão da mulher, da moda, da modéstia e, logo, do desejo e do ódio dos escravos: a fixação primeira d'A Estação com a origem e centro da moda, seja Paris ou o Rio de Janeiro, é o mais óbvio pano de fundo para a história de Simão Bacamarte e dos habitantes de Itaguaí. Além disso, cada etapa do episódio extraordinário na história da cidade está marcada por um momento notável na vida da ex-viúva D. Evarista da Costa e Mascarenhas, agora mulher de Simão Bacamarte. Aliás, pode-se dizer que D. Evarista é a típica leitora d'A Estação. Já no início, ainda nas cerimônias de abertura do asilo, "vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 255). Durante a primeira fase, ao se ver negligenciada pelo marido cientista, cai em profunda melancolia e, como tratamento, Simão receita-lhe uma viagem ao Rio de Janeiro. Chama a atenção o excesso no tamanho e na composição da comitiva, contrário ao que prescrevia o jornal: "a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí, cinco ou seis pajens, quatro mucamas" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 259). No auge da segunda fase, retorna da metrópole, eufórica e supostamente curada, "com a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, - ou quase toda" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 266). O narrador não revela quem teria ficado no Rio de Janeiro, nem por que razão: se o sobrinho, se o padre ou se os escravos. Desembarcando, no auge do terror, incrédula das arbitrariedades do marido, D. Evarista torna-se "a esperança de Itaguaí" e objeto de admiração dos homens e dos ciúmes de suas esposas, a que ela responde baixando os olhos "com exemplar modéstia" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 266). Qualidade logo desmentida pelo narrador e pelo marido: "A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro"; e, como Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica e poder em " O alienista". Cotia; Campinas: Ateliê Editorial; Ed. Unicamp, 2010., p. 65) aponta, a modéstia é contrária à definição do jornal, que sugeria que "quatro ou cinco eram suficientes para a mulher elegante".

Quanto ao episódio da revolta popular - e aqui reside, do meu ponto de vista, o centro da narrativa -, é importante notar que, por meio de um criado, possivelmente escravizado, D. Evarista "teve notícia da rebelião antes que ela chegasse", enquanto "provava nessa ocasião um vestido de seda, - um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 271). A "sinhá" não lhe dá ouvidos e, sem medir as palavras, chama-o de tolo, manda-lhe calar a boca, dizendo que o barulho devia ser nada mais do que "alguma patuscada". Note-se que não é a primeira vez que a narrativa relega o negro ou o escravo à posição de silêncio. Algumas páginas antes, Crispim, arrependido, culpa-se por se ter deixado convencer pelo alienista que sua esposa fosse enviada ao Rio, lançando a si mesmo insultos de "bajulador", "alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável", a que ouviam silenciosamente os seus "fâmulos" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 260). Mais uma vez, cabe ao leitor imaginar o que pensavam ou o que sentiam os escravos diante da fraqueza do senhor, ele mesmo comparado aos escravos, insultando-se a si, mas também a eles. Na cena da rebelião, porém, o moleque, assustado, se permite discordar de D. Evarista e opina: "- Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: - Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado". Mas a mulher do médico só acredita quando distingue as palavras da gritaria com os próprios ouvidos: "Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova" (ASSIS, 1997b______. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997b. v. II., p. 60).

Como se viu, a cena passa-se enquanto D. Evarista, "mudando a posição de um alfinete", provava um vestido de seda, "um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro", dando ordens à mucama:

- Benedita, vê se a barra está boa.

- Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.

- Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e... (ASSIS, 2007______. 50 contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 59).

De perspectivas opostas, uma prescritiva, a outra irônica, a crônica de moda e a novela têm em comum o fato de ambas mostrarem o avesso da moda, ou seja, o trabalho por trás da roupa que veste a madame. Além do trabalho, apenas aparentemente resignado, ambas mostram a subjetividade do trabalhador, em sentimentos de inveja, desejo e orgulho. Diante dos brados da turba que se aproxima, a reação dos escravos contrasta com a de D. Evarista: "A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele" (ASSIS, 2007______. 50 contos de Machado de Assis, selecionados por John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 60). Dois movimentos distintos.

Difícil adivinhar o que causara a fuga da mucama, além do "instinto" - palavra de significado vago, mas caro a Machado de Assis, associado à natureza, mas também à experiência e ao aprendizado. Seria o movimento de fuga, medo ou, ao contrário, a percepção de uma oportunidade? A reação do moleque é igualmente complexa: primeiramente o medo; logo demonstra uma mistura de vingança, prazer, superioridade moral e orgulho da própria inteligência. Em ambos os casos, "imperceptível" e "entranhado" no corpo de cada um deles encontra-se toda a história de um indivíduo, de um povo, toda uma teoria e uma nova poética.

Considerações finais

O instinto da mucama e o triunfo do moleque: pode parecer muito pouco, para que se conclua o que quer que seja sobre o lugar da raça e da escravidão no comentário crítico de Machado de Assis em relação à realidade a que se refere "O alienista", seja a mais remota, seja a contemporânea. Em particular, parece dizer pouco -mas não nada- sobre a relação entre raça, a instituição científica e a modéstia (ou os excessos, sejam materiais, sejam de retórica). Ou ainda sobre a maior ou menor vulnerabilidade dos negros e escravizados à medicalização e confinamento instaurados pelo novo alienista.

Acontece que, como se sabe, não há um verdadeiro consenso sobre o perfil da população do Hospício de Pedro II, apesar de que pesquisas mais recentes têm demonstrado que a população negra ali internada era mais significativa do que até então se considerava, sobretudo a de negros livres. Daniele Corrêa Ribeiro (2016RIBEIRO, Daniele Corrêa. Hospício de Pedro II (1852-1889) - um asilo para quem? In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH, 17., 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Instituto Multidisciplinar, UFRRJ, 2016.), por exemplo, indica que a população era majoritariamente de "pobres e indigentes", com uma porcentagem significativa de escravizados, declinando de 15% na década de 1850 a 2% na década de 1880 - como era de se esperar, considerando-se o declínio de escravizados em geral. Talvez seja significativo mencionar que, segundo consta, os ofícios da maioria dos negros internados no hospício entre 1844 e 1888 eram de "serviços domésticos" (SILVA, 2019SILVA, Michelly Vieira da. 2019. 184 f. As cores da loucura no Rio de Janeiro Imperial. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-Raciais) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, Rio de Janeiro, 2019., p. 130), seguido das costureiras e lavadeiras (SILVA, 2019SILVA, Michelly Vieira da. 2019. 184 f. As cores da loucura no Rio de Janeiro Imperial. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-Raciais) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, Rio de Janeiro, 2019., p. 100). No entanto, na época em que Machado escreveu a novela, a quantidade de negros no hospício estava em declínio, constando cerca de 20 internações por ano, sendo que entre os escravizados aparecem não mais do que um ou dois.

Além disso, se considerarmos que o contexto a que a novela se refere (ou seu horizonte de recepção) é o mais imediato, importa levar em conta a crescente exigência de autonomia dos médicos em relação ao trabalho das religiosas e a necessidade de se contratar um médico interno para o hospício, sobretudo a partir do final da década de 1870, com a entrada de Nuno de Andrade na instituição e a fundação da cátedra de psiquiatria em 1881 (FACCHINETTI, 2022FACCHINETTI, Cristiana. Un palacio imperial para la locura en Río de Janeiro. El Hospicio Nacional de Alienados, 1841-1944. In: MOLINA, Andrés Ríos; HONORATO, Mariano Ruperthuz (Orgs.). De manicomios a instituciones psiquiátricas: experiencias en Iberoamérica, siglos XIX y XX. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Históricas; Sílex Ediciones, 2022. p. 29-86., p. 39). Mas a já mencionada memória do psiquiatra sobre o diagnóstico da loucura não faz qualquer referência a não brancos. De forma semelhante, o relato dos dois viajantes franceses que visitaram o Hospício, Phillipe Rey, em 1875, e François Jouin, em 1880, sugere que o percentual de escravizados e negros era pequeno, em contraste com o de imigrantes europeus.

Particularmente significativa é a opinião de Jouin, para quem o número reduzido de negros confirmava sua teoria, que associava a loucura à civilização, isto é, ao excesso (TEIXEIRA; RAMOS, 2012TEIXEIRA, Manoel Olavo Loureiro; RAMOS, Fernando A. de Cunha. As origens do alienismo no Brasil: dois artigos pioneiros sobre o Hospício de Pedro II. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental , São Paulo, v. 15, n. 2, p. 364-381, jun. 2012. , p. 375). Com efeito, conforme sugerem Teixeira e Ramos, o Hospício de Pedro II viria a funcionar "como um farol simbólico que anuncia ao Ocidente a participação do Brasil no mundo civilizado da época. Uma nação suficientemente evoluída, tanto na sua capacidade de produzir loucos, quanto na sua capacidade de tratá-los com os recursos da ciência moderna" (TEIXEIRA; RAMOS, 2012TEIXEIRA, Manoel Olavo Loureiro; RAMOS, Fernando A. de Cunha. As origens do alienismo no Brasil: dois artigos pioneiros sobre o Hospício de Pedro II. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental , São Paulo, v. 15, n. 2, p. 364-381, jun. 2012. , p. 367). Talvez por isso Machado de Assis tenha introduzido aqueles dois personagens para fazer sua crítica à civilização moderna.

Pode ainda parecer pouco. Mas não será pouco quando reunidos a outros fâmulos, moleques, mucamas e costureiras, espalhados em toda a obra do autor e que, das margens da narrativa, assistem ao desenrolar da história local, quase imperceptíveis, quase em silêncio, quase modestos.

Antes de concluir, uma nota final, sobre o método: existe certo mito nos estudos literários de que não se devem ler obras de ficção como "mero" documento. Acontece que há muito se deixou de ler mesmo documentos como simples documento. O que este artigo procurou demonstrar é que, ao privilegiar o aspecto alegórico da narrativa, ou tentar extrair dela uma teoria ou uma filosofia definitiva (no caso, da loucura, com ou sem Foucault), corre-se o risco de perder de vista o que há ali de propriamente historiográfico, sua condição de arquivo e assim diminuir, desnecessariamente, a relevância de Machado de Assis enquanto cronista de seu tempo.

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  • WILLIAMS, Abigail. A Brief History of Modesty. XVII-XVIII - Revue de la Société d’études anglo-américaines des XVIIe et XVIIIe siècles, n. 71, p. 135-156, 2014. Disponível em: Disponível em: http://journals.openedition.org/1718/399 Acesso em: 24 fev. 2024. doi: https://doi.org/10.4000/1718.399.
    » http://journals.openedition.org/1718/399
  • WOOD, Marcus. Servants, Slaves, Companions: Assis and the Interrogation of Domestic Labor. In: ______. The Black Butterfly: Brazilian Slavery and the Literary Imagination. Morgantown: West Virginia University Press, 2019. p. 104-109.
  • WOOD, Michael. Entre Paris e Itaguaí. Tradução de Otacílio Nunes Jr. Novos Estudos Cebrap , São Paulo, n. 83, p. 185-196, mar. 2009.
  • 1
    Agradeço a participação dos alunos do seminário "Reading the 19th century novel with Machado de Assis" (inverno, 2024), na Northwestern University, com quem primeiro compartilhei as ideias aqui apresentadas.
  • 2
    Apesar de não citar Dutra, Sidney Chalhoub, em leitura posterior, não deixou de notar que os dois personagens centrais são "pessoas de cor". Mesmo assim, julgo empobrecedora a ênfase na "hipótese do ponto de vista senhorial, escravista, patriarcal, branco", já que volta a trazer para o centro do interesse de Machado não a negritude, mas a ideologia do homem branco (CHALHOUB, 2007CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras , 2007.; 2020______. Visões do amor num conto machadiano. Brésil(s), n. 3, hors-série, dez. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/bresils/8718.
    http://journals.openedition.org/bresils/...
    , p. 16).
  • 3
    Um ano depois da publicação de meu A violência das letras, Marcus Wood (2019WOOD, Marcus. Servants, Slaves, Companions: Assis and the Interrogation of Domestic Labor. In: ______. The Black Butterfly: Brazilian Slavery and the Literary Imagination. Morgantown: West Virginia University Press, 2019. p. 104-109., p. 104) propôs, de forma semelhante, e bem mais desenvolvida, uma leitura da relação senhor-escravo em "O enfermeiro". Surpreende-me, porém, que afirme com tanta certeza que o personagem era branco.
  • 4
    Ver também Chauvin (2005)CHAUVIN, Jean Pierre. O alienista: a teoria dos contrastes em Machado de Assis. São Paulo: Reis Editorial, 2005. .
  • 5
    "O artifício é evidente, a macaqueação de Sterne, por exemplo, é palmar e não tem graça quase nenhuma" (ROMERO, 1897ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897., p. 136).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2023
  • Aceito
    08 Fev 2024
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