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GOLDMAN, M. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.

GOLDMAN, M.. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África.Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.

“La gente acá cree en cosas que pues, otros dirían que es una mezcla rara. [...] Es que el mundo es tan grande que no hay necesidad de pensar que las cosas se hacen de una sola manera” (:57GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.): assim comenta Dimas, morador da comunidade de Zaña, no Peru. A serenidade de sua fala ressoou, em minha leitura, a força dos fluxos de vida dos povos e das comunidades cujas histórias o livro reconta: o modo como, de diferentes formas, eles e elas compõem com uma diversidade de forças, à revelia do esforço das imagens hegemônicas de pensamento em determinar a priori com quem (ou com o que) se é legítimo ou não compor.

Resultado do projeto de Pesquisa “Relações Afroindígenas: Teorias Etnográficas da Mistura, do Sincretismo e da Mestiçagem”, coordenado por Marcio Goldman, a coletânea reúne quinze textos que elaboram etnograficamente o modo como os fluxos de vida das pessoas cujas histórias temos a oportunidade de conhecer - quilombolas e outros coletivos e comunidades negras, povos de terreiro, da jurema e da encantaria, um povo indígena e um coletivo de agricultores do semiárido - são feitos e refeitos a partir de misturas diversas, ou seja, da composição com diferentes. Da aliança do povo afro-colombiano de Bojayá com os indígenas Embera para restaurar o equilíbrio entre vivos e mortos após um massacre ocorrido em 2002 à convivência de entidades diversas (caboclos, orixás, encantados, caruanas e outros) nos mesmos terreiros e casas (de candomblé, jurema, encantaria, terecô, espiritismo cruzado e outras práticas afrorreligiosas), nos deparamos com encontros que fertilizam e restauram, permitindo a atualização dos fluxos de vida.

O estranhamento em relação a essas misturas, sabe-se bem, é gramatical às imaginações dominantes: mestiçagem e sincretismo são preocupações persistentes e inerentes ao ‘problema’ da conformação das nações desde o fim do regime colonial: o problema de como reduzir a multiplicidade resultante do encontro entre povos da terra, africanos escravizados e brancos colonizadores a um povo que, desse modo, viabilizasse uma Nação. Melting pot, caldeamento, de efeitos indissociavelmente biológicos e socioculturais: condenado como foi outrora ou celebrado como identidade nacional, essa imagem hegemônica de pensamento pressupõe sempre que a relação entre diferentes só pode resultar em fusão ou homogeneização.

É contra esta que, em última instância, é uma ideologia de Estado - as conexões lusotropicais entre Brasil, Cabo Verde e Moçambique, quanto a isso, merecem atenção (como apontam os capítulos de Natalia Velloso e Helena Assunção) - que as diferentes contribuições mobilizam outras imagens de pensamento, nos oferecendo respostas etnográficas à questão do encontro - de seus efeitos ‘históricos’ e de suas possibilidades futuras. As histórias recontadas no livro ressoam entre si ao evidenciarem “gramáticas das diferenças largamente independentes dos brancos e suas vãs filosofias” (:18GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.), como diz José Carlos dos Anjos em seu belo prefácio. Gramáticas essas que codificam todo um outro modo de produzir relação entre diferentes, em que as misturas não apagam as diferenças que as compõem, mas nutrem-se delas como força de vida. Misturas, portanto, que não resultam em (nova) identidade - o ensinamento de Bispo dos Santos que reverbera ao longo do livro: “nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual” (2015:89BISPO DOS SANTOS, Antônio. 2015. Colonização, Quilombos: Modos e Significados. Brasília: INCTI.).

Nesse sentido, o volume segue na esteira das reflexões recentes sobre o que poderíamos chamar de “misturas não-fusionais” - ver Kelly (2016KELLY, Jose. 2016. Sobre a antimestiçagem. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.) e, sobretudo, Goldman (2015GOLDMAN, Marcio. 2015. “Quinhentos anos de contato”: Por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem. Mana. Estudos de Antropologia Social, 21 (3):641-659., 2017GOLDMAN, Marcio. 2017. Contradiscursos afroindígenas sobre mistura, sincretismo e mestiçagem. Estudos etnográficos. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 9 (2):11-28.). Mas a quantidade e a diversidade de casos aqui retratados trazem uma potência singular à discussão. Ao evidenciar as ressonâncias entre histórias que provêm de lugares transcontinentalmente dispersos (de norte a sul do Brasil, na Colômbia, no Peru e em ambas as costas do continente africano, em Cabo Verde e Moçambique), a coletânea provoca a inelutável sensação de que isso sempre esteve aí, em todo lugar; e, portanto, de quanta falta da imaginação foi necessária para só conseguir perceber, diante de tamanha variedade de composições, as mesmas imagens da mestiçagem e do sincretismo.

Tamanha falta de imaginação ou, talvez seja mais preciso dizer, tamanho o peso dessas noções. É justamente pela carga pejorativa que carregam, e da qual não é fácil se livrar, que as e os participantes do projeto se afastaram do uso do termo “mistura”, privilegiando a ideia de composição. Essa renovação de vocabulário é bem vinda e produtiva. Mas o livro só pode fazer esse movimento porque faz algo mais. É significativo que, ao longo dos textos, alguns temas etnográficos - pessoa e história, eu destacaria - insistam em reaparecer. Pois talvez a maior dificuldade em se lidar com as misturas seja, mais que a maneira como são usualmente caracterizadas, os pressupostos que animam tais caracterizações. É apenas a partir de um sujeito individual (ou de uma coletividade pensada como totalidade unificada) e de uma história filha do tempo (a história como o registro das mudanças ao longo do tempo, linear e irreversível) que se pode tomar a conjunção entre diferentes como resultando em fusão - toda uma ‘teoria do social’, portanto, da qual as imaginações da mestiçagem e do sincretismo são efeito.

As composições aqui etnografadas nos oferecem outras imagens. Como o que poderíamos chamar de uma “personitude partilhada” em Zaña, no duplo sentido de que as pessoas são compostas também pela própria terra - como “uma natureza da qual o humano ainda não se separou” (:47GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.) - e de que outros seres, como as montanhas, também são gente, com corpos e almas; ou como as composições de cada juremeiro com seus mestres e mestras que resultam em uma individuação singular de uns e outros. Como as várias reflexões sobre a possibilidade de, nas palavras de Barbara Cruz, “vivenciar ou experienciar um atravessamento dos tempos que não recaia necessariamente nem em um direcionamento linear, progressivo, [...] e tampouco em um circuito fechado, destinado a repetir infinitamente aquilo que já se passou” (:39GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.).

Nesse sentido, vale notar a orientação de Don Francisco Tenório e seus companheiros e companheiras de Tumaco de “volver a lo propio”, como uma retomada daquilo que “sempre esteve ali” para “tornar-se aquilo que sempre se foi” (:94, 96GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.), mas caminhando em direção ao futuro, e não ao passado; e abrindo-se ao encontro com outros, e não fechando-se sobre si mesmos - é por meio de seu encontro com as religiões afro-cubanas que Don Francisco e os seus se reencontram e se reconectam com “lo propio”. É de modo análogo que outras pessoas e coletivos retratados no livro, como a Rede Ananse em Bogotá e os ativistas da Associação Pilorinhu em Cabo Verde, constituem projetos de futuro compondo com forças outras para atualizar “o próprio”, aquilo por meio do qual é possível produzir uma vida coletiva prenhe de força vital.

A história dessas misturas, evidentemente, é inseparável da violência colonial. Por isso todas elas nos falam, de diferentes modos, sobre retomadas de territórios existenciais, no sentido proposto por Pignarre e Stengers (2005:185PIGNARRE, Philippe & STENGERS, Isabelle. 2005. La sorcellerie capitaliste. Paris: La Découverte.) para a noção de reclaiming: “habitar novamente as zonas de experiência devastadas”. Esse ímpeto de resistência e autodeterminação é magistralmente capturado pelas pessoas do assentamento Dom Helder Câmara quando se definem como um “quilombo contemporâneo”, ou na intransigência (no melhor dos sentidos) das pessoas da Morada da Paz em afirmar sua singularidade kilombola - com “k”, recuperando sua concepção bantu para contornar os significados que a palavra com “qu” carrega (da língua) do colonizador. O que encontramos nesse livro são esforços criativos de rexistência, de afirmação de modos de existência conectados “ao próprio” e enraizados na terra (outro desses elementos que insistem em aparecer ao longo dos capítulos), visando sempre à liberdade de produzir a vida de acordo com as composições desejadas ou necessárias - há as alianças que se decide fazer, mas há também o chamado dos encantados e dos orixás.

É a elaboração dessas questões que permite colocar de lado a pesada bagagem da mestiçagem e do sincretismo, essas maquinarias de dissolução das diferenças, para contar outras histórias. E é etnograficamente que as contribuições ao volume logram fazer esse movimento - pois não há outra forma de fazê-lo. Apesar de o confronto com essas imagens hegemônicas de pensamento ser uma constante ao longo dos textos, emergindo aqui e acolá à letra das narrativas, ele o é como fundo ou contexto das etnografias. Como diz José Carlos dos Anjos, mais do que confrontar “as narrativas dominantes que sustentam um implausível sentido de nação”, o que os capítulos fazem é deslocá-las (:17GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.), dando vazão a e experimentando com outras imagens de pensamento.

Ao tomar essa via, reafirma Goldman, as contribuições ao volume apostam decididamente em uma “antropologia capaz de manter a decisão incondicional de se apoiar sempre sobre [...] a força”, não sobre a fraqueza, das pessoas na companhia das quais fazemos pesquisa (:297GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.). A decisão é fundamental, e levar isso a sério, e às últimas consequências, permite reativar o que há de melhor na prática antropológica etnográfica: “cartografar outros mundos e verdades outras, que exigem de nós movimentos contínuos de desterritorialização e transversalidade; escutar e recontar outras histórias” (:295GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.). Em meio a essa diversidade e riqueza impossível de resumir no espaço de uma resenha, as histórias recontadas no livro nos colocam diante de algo elementar, mas que parece, estranhamente, ter escapado por tanto tempo: que a questão fundamental para essas pessoas, e tantas outras, não é a “pureza” de suas tradições, mas sim a pulsão de vida, a capacidade de fazer a força vital reverberar continuamente; e o que elas têm feito ao resistir e afirmar seus modos de existência, não é de hoje, é compor e experimentar (sempre, evidentemente, a partir de suas próprias estéticas relacionais) desenhando projetos de futuro em direção a mundos em que se possa viver dignamente, “sem medo, mas com respeito” (:48GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África. Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.) - para encerrar, como começamos, com palavras zañeiras.

Referências bibliográficas

  • BISPO DOS SANTOS, Antônio. 2015. Colonização, Quilombos: Modos e Significados Brasília: INCTI.
  • GOLDMAN, Marcio. 2015. “Quinhentos anos de contato”: Por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem. Mana. Estudos de Antropologia Social, 21 (3):641-659.
  • GOLDMAN, Marcio. 2017. Contradiscursos afroindígenas sobre mistura, sincretismo e mestiçagem. Estudos etnográficos. R@U - Revista de Antropologia da UFSCAR, 9 (2):11-28.
  • GOLDMAN, Marcio. (org.). 2021. Outras histórias. Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África Rio de Janeiro: 7 letras. 358 pp.
  • KELLY, Jose. 2016. Sobre a antimestiçagem Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.
  • PIGNARRE, Philippe & STENGERS, Isabelle. 2005. La sorcellerie capitaliste Paris: La Découverte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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