mana
Mana
Mana
0104-9313
1678-4944
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Abstract
This paper reflects on Veena Das's writing in Textures of the Ordinary. We argue that in the process of describing forms of life and elaborating concepts, the author keeps traces of her interlocutors lives in her writings through the different tones and subtones of the stories she heard, lived, and recounts. We argue that the different chapters of the book open up the possibility of imagining forms of ethnographic writing in which the tones an subtones present in daily life appear as constitutive oflanguage and the processes of transmitting experience.
Lembro-me claramente da sensação que senti e me levou a este comentário sobre Textures of the Ordinary. Doing Anthropology after Wittgenstein. Eu estava em casa, lendo o Capítulo 5 “Disorders of Desire or Moral Striving? Engaging the Life of the Other”, e me divertindo com a forma escolhida por Veena Das para narrar os esforços empreendidos pelo casal Kuldip e Saba para viverem o amor. A pergunta que iniciava a conversa, e que parecia algo trivial: “você soube que o Kuldip se casou?”1 (Das 2020:158, tradução minha), foi o que permitiu que Das entrasse no intenso trabalho realizado pelos membros das duas famílias para acomodar, em seu cotidiano, o encontro amoroso entre uma jovem muçulmana e um rapaz hindu. Ao se recusar a retratar hindus e muçulmanos como comunidades fechadas em si mesmas, Das traça os movimentos feitos pelos familiares do casal a fim de transformar um estranho em um parente. Todos tiveram que expandir e reabitar seu próprio mundo que fôra modificado por este encontro. O amor é, assim, pensado como um engajamento dentro da intimidade agonística do parentesco, que movimenta, na trama da vida diária, religiosidade, nacionalismo, Estado, entre outros temas. O casal apaixonado exigiu de Veena Das uma forma de escrita que, ao mesmo tempo, descrevesse os sonhos, as imaginações e os desejos de se viver uma vida juntos e as tensões, os conflitos e as decepções que esta escolha provocou nos membros de ambas as famílias e neles próprios. Ao me divertir com a escrita de Das, passei a refletir sobre o nosso encontro com as pessoas e suas histórias, e também sobre como transmitir o conhecimento que recebemos a um público mais amplo.
A história de Kuldip e Saba está localizada entre os capítulos que recontam as histórias de Sita (Capítulo 4) e a de Swapan (Capítulo 6). O leitor familiarizado com o trabalho de Das se lembrará de Sita em Life and Words (2007) e de Swapan em Affliction (2015). Kuldip e Saba também já haviam aparecido em outras “encarnações” textuais (Das 2010). Em Textures, Veena Das revive esses encontros para refletir sobre o próprio processo de produção do conhecimento antropológico como algo que não é estático, que não se encerra em uma verdade, e que existem questões que precisam do trabalho do tempo para que elas apareçam e estabeleçam um novo sentido. Os três textos discutem, por diferentes meios, aquilo que Das chama de “estética do parentesco”. No entanto, os capítulos que antecedem e sucedem aquele que trata do encontro amoroso trazem as faces sombrias e corrosivas das relações de família. O que me move no trabalho de Das é o aprendizado de que as histórias de sofrimentos, dores e ressentimentos não surgem na vida diária a partir de grandes eventos. Ao contrário, são os pequenos gestos, fugazes demais para serem rapidamente percebidos como importantes, que permitem compreender as dores que habitam as relações. No grupo de leitura em que debatíamos a obra de Das, foi unânime a percepção de que os tons da escrita destes três capítulos são bastante distintos.
Ler o livro na sequência escolhida pela autora foi fundamental para que eu pudesse perceber a importância de cada capítulo na tessitura de seu argumento. Ler Textures é se deparar com o investimento intelectual de uma vida, no qual Veena Das avança, recua, muda de direção em temas como cotidiano, evento, ordinário/extraordinário, ética e ceticismo, entre tantos outros. Ao compor a obra com reflexões que se iniciaram vinte e cinco anos atrás, Veena Das mantém as diversas temporalidades que habitam seu pensamento e permitem ao leitor se encontrar com os diferentes momentos de sua vida. Ler Textures enquanto uma obra - uma obra difícil, diga-se de passagem - me possibilitou acumular certas ideias, temas e conceitos trabalhados por Das, mas também os risos e as lágrimas de seus interlocutores e dela própria. Para este comentário, no entanto, gostaria de trazer algo que me parece pouco debatido sobre o trabalho de Veena Das: os traços da vida de seus interlocutores presentes nos diferentes tons e subtons dos capítulos, como um dos elementos que permitem ao leitor se encontrar com as formas de vida que ela descreve.
Os trabalhos de Veena Das nos falam sobre a importância de habitar a vida com as pessoas que conhecemos, movimento que nos abre para uma “descida ao ordinário” e possibilita caminhos para sair das “narrativas congeladas” e encontrar “a vida das palavras” (Das 2007, 2020). Parece-me que quanto mais habitamos a vida com as pessoas, mais diversas são as estéticas possíveis de compartilhamento de experiências. Por isso, a atenção à gama de entonações e humores faz parte daquilo que Veena Das chama de “atenção aos detalhes” (Das 2020). Tons, subtons e humores criam sensações e imagens acústicas cujo desafio é, exatamente, o de transmiti-las em formato textual. O que quero dizer é: descrever e transmitir no texto um momento de alegria é bastante diferente de escrever: “ele sorriu”, mesmo porque um sorriso pode significar exatamente o oposto. No momento em que redigia este comentário, fiquei me perguntando: ao apagarmos em nossos textos a diversidade estética do encontro, não estaríamos também “congelando” as formas de vida? Em minha leitura, os capítulos de Textures nos abrem para a possibilidade de imaginar diferentes formas de escrita etnográfica. Eles me ajudaram a compreender que o encontro com a singularidade da vida exige de nós um esforço imaginativo de escrita em que tons e subtons apareçam como constitutivos da linguagem e dos processos de transmissão de experiência. Os traços acústicos e os humores das histórias narradas pelas pessoas com as quais Das habitou a vida se fazem presentes em seus escritos e nos levam à questão sobre os limites da subjetividade.
Peço ao leitor que dê um salto comigo para o Capítulo 9, “Of Mistakes, Errors, and Superstition: Reading Wittgenstein’s Remarks on Frazer”, pois nele me deparei com uma frase que talvez ajude a explicar o que quero dizer, cito:
Semelhante à imaginação de que minha dor poderia estar em outro corpo (Das 2007), Wittgenstein também está nos provocando a imaginar que os limites de nossos corpos não são os limites de nossa subjetividade, pois nossa existência é sempre capaz de ser mais, ou outra, do que suas realizações atuais. Assim, apesar de toda a nossa mundanidade, talvez nunca estejamos totalmente em casa em um mundo particular2 (Das 2020:258, tradução e grifos meus).
Veena Das tece uma crítica aos usos dos termos subjetivo e subjetividade como se fossem sinônimos e defende que precisamos qualificar melhor o que entendemos com esses conceitos. Se a antropologia é um exercício de habitar a vida com as pessoas - e também com os textos - para depois transmiti-los a um público mais amplo, esse exercício coloca o tempo todo em questão os limites das subjetividades. Onde termina o pesquisador e onde começa o que ele viu e ouviu? E, ainda, como delimitar as fronteiras entre o pesquisador e os textos que possibilitam sua abertura de mundo? Se o livro trata do processo de habitar a vida com as pessoas e também com os textos, fiquei refletindo sobre as fronteiras borradas entre Das e Wittgenstein ou Cavell, por exemplo, e também sobre as fronteiras entre Veena, Kuldip e Saba. Aqui, me parece que Veena Das faz um jogo em que ela coloca em relação os autores com os quais ela dialoga, seus interlocutores e a si mesma. Mas Veena não para neste ponto, ela se preocupa com aquele que será o leitor de seu trabalho. O livro é um convite à expansão…
Em Textures, Veena Das parece experimentar de forma ainda mais contundente as descrições de formas de vida. Descrever formas de vida é um caminho bastante distinto da elaboração de textos em que os exemplos são recortados da vida social e se tornam ferramentas para ilustrar conceitos predefinidos ou para reforçar uma interpretação geral. Este caminho mais usual incorre no perigo de cairmos na armadilha que é a de impor uma realidade ao outro, ou aos muitos outros cujas singularidades são apagadas. A escolha por descrever formas de vida faz com que o autor encontre a vida das palavras e também os tons, os subtons e os humores que fazem aquele mundo. É perceber que as histórias que o pesquisador considera adjacentes pode ser o ponto exato que dá sentido à experiência. Em minha leitura, a maneira como Veena Das descreve as formas de vida e cria os conceitos acaba mantendo neles os traços da vida dos seus interlocutores e isto é, para mim, onde encontramos a potência de sua escrita. A ideia de opacidade, por exemplo, não dá para ser desconectada do encontro com Sita ou com a própria sogra de Das. O que ela entende por “engajamento na vida do outro” nos remete a Kuldip e Saba e aos membros de ambas as famílias. Em Das, os conceitos só podem ser pensados com as vidas que possibilitaram sua elaboração. As subjetividades do autor e de seus interlocutores se encontram no momento da descrição e produzem a conexão entre etnografia e biografia. Por isso a etnografia de Veena Das é também uma autobiografia.
Para finalizar, retomo a questão da estética dos textos e os traços das vidas presentes nos conceitos e na descrição das formas de vida. Se estamos lidando com experiências singulares, por que fazemos textos tão iguais? Um livro como Textures nos convida a não repetir fórmulas teóricas ou narrativas. O que ele coloca como tarefa é o exercício de imaginar e experimentar mais.
Referências
DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press.
DAS
Veena
2007
Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary
Berkeley
University of California Press
DAS, Veena. 2010. Engaging the Life of the Other: Love and Everyday Life”. In: Ordinary Ethics: Anthropology, Language and Action. Edited by Michael Lambek. New York: Fordham University Press. Pp. 376-400.
DAS
Veena
2010
Engaging the Life of the Other: Love and Everyday Life”
Ordinary Ethics: Anthropology, Language and Action
Edited by Michael Lambek
New York
Fordham University Press
376
400
DAS, Veena. 2015. Affliction: Health, Disease, Poverty. New York: Fordham University Press.
DAS
Veena
2015
Affliction: Health, Disease, Poverty
New York
Fordham University Press
DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein. Fordham University Press.
DAS
Veena
2020
Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein
Fordham University Press
1
Did you know that Kuldip has gotten married?
2
“Similar to the imagination that my pain could be in another body (Das 2007), Wittgenstein is also provoking us to imagine that the boundaries of our bodies are not the boundaries of our subjectivity for our existence is always capable of being more, or other, than its present realizations. For all our worldliness, then, we might never be fully at home in any particular world.”
Financiamento
Os autores agradecem o apoio financeiro da FAPESP - Número do processo: 2018/15928-2 e 2019/25691-2
Authorship
Camila Pierobon
San Diego State University, San Diego, Estados UnidosSan Diego State UniversityEstados UnidosSan Diego, Estados UnidosSan Diego State University, San Diego, Estados Unidos
Camila Pierobon é pós-doutoranda no Behner Stiefel Center for Brazilian Studies da Universidade Estadual de San Diego, Estados Unidos. Bolsista FAPESP (2018/15928-2 e 2019/25691-2), à qual agradece o financiamento que permitiu a pesquisa. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É pesquisadora junto aos grupos de pesquisa Distúrbio (UERJ/UFRRJ), Casa (IESP/UERJ), ResiduaLab (UERJ) e do Núcleo de Etnografias Urbanas (NEU/Cebrap).
Conflito de interesse
A autora declara não haver conflitos de interesse nesta submissão de trabalho.
Editora-Chefe:
María Elvira Díaz Benítez
Editor Associado:
John Cunha Comerford
Editora Associada:
Adriana Vianna
SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS
San Diego State University, San Diego, Estados UnidosSan Diego State UniversityEstados UnidosSan Diego, Estados UnidosSan Diego State University, San Diego, Estados Unidos
How to cite
Pierobon, Camila. Boundaries of us: A path open for writing. Mana [online]. 2023, v. 29, n. 2 [Accessed 7 April 2025], e2023024. Available from: <https://doi.org/10.1590/1678-49442023v29n2e2023024.pt>. Epub 28 Aug 2023. ISSN 1678-4944. https://doi.org/10.1590/1678-49442023v29n2e2023024.pt.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJQuinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 -
Rio de Janeiro -
RJ -
Brazil E-mail: revistamanappgas@gmail.com
rss_feed
Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
scite shows how a scientific paper has been cited by providing the context of the citation, a classification describing whether it supports, mentions, or contrasts the cited claim, and a label indicating in which section the citation was made.