Antropólogo com vasta produção nos temas relacionados ao gado nos Andes peruanos, Juan Javier Rivera Andía aborda desta vez tais temas desde uma perspectiva da antropologia das emoções, na região do Valle de Chancay (província de Huaral, departamento de Lima). O exercício, um tanto inovador no que se refere aos estudos andinos, é sumamente revelador, uma vez que, a partir dessa ótica, certos aspectos que através de outras abordagens tendiam a ficar obscurecidos agora são realçados, recobrando relevância no que diz respeito ao aprofundamento das análises sobre as relações entre humanos e animais nos Andes em sentido amplo. O pastoreio (de ovinos, bovinos, camelídeos) é uma atividade central para a sobrevivência dos povos andinos, porém, o livro de Rivera Andía nos mostra que sua importância vai além da subsistência ou de seu caráter econômico, revelando-se crucial para a própria construção da pessoa, além de manter ativas as relações entre humanos e não humanos e, ainda que pareça paradoxal, com a cidade. Tudo isso se expressa nas canções para o gado, que foram coletadas pelo autor ao longo de mais de 15 anos de trabalho de campo e agora são apresentadas em espanhol e em quéchua, língua familiar ao próprio autor que descende de camponeses andinos, conforme ele mesmo nos conta na introdução.
O livro, que integra a bela coleção argentina Ethnographica, é composto de duas partes. A primeira, “La herranza del ganado vacuno en el Valle de Chancay”, está dividida em dois capítulos. No primeiro, o autor descreve a paisagem dessa porção andina com suas características e seus detalhes a fim de que o leitor compreenda o contexto e a complexidade espacial em que se inserem o pastoreio e as herranzas de bovinos - uma celebração ao gado que envolve marcação, colocação de brincos e oferendas - facilitando assim o acesso aos sentidos desses rituais, que vão sendo elucidados ao longo do livro.
Através dessa porta de entrada para o universo pastoril, o autor mostra que a atividade é entendida como um trabalho “difícil”, “lleno de sufrimientos” (:52), já que é preciso enfrentar as intempéries com roupas humildes e escassez de alimentos, dificuldades em certa medida relacionadas à puna - também chamada de “alturas” - terreno ecológico propício para o pastoreio, um espaço árido e hostil. Devido a uma dualidade espacial que marca parte do território andino no Peru, a puna é associada a uma natureza selvagem, lugar dos Apus (montanhas protetoras) e de condores e pumas (animais selvagens), enquanto o vale é o espaço domesticado, propício para a agricultura e a fixação de povoados. O pastor é idealmente alguém jovem e solitário, distante de sua família, de seu lar, imerso em um ambiente ermo onde praticamente não há outros humanos.
No entanto, há natureza e uma gama de seres não humanos com os quais ele convive cotidianamente, interação da qual se fala nas letras das canções. A vaquerita fala com a chuva e com a neve, rogando que não “afecte su cuerpo por completo” (:52), advertindo-as de que suas roupas estão gastas e furadas. Às vezes, ela também “se compara” com a própria natureza, perguntando às plantas por que estão amarelando, pois ela própria, apesar de sua “vida amarga” e de que “sufre triste”, não amarela (:53). Para o autor, certas canções estabelecem uma “analogia tácita entre las condiciones ecológicas de un espacio (las alturas) y las características de cierto tipo de sentimiento. La rudeza del hábitat del ganado es como el dolor de una pérdida sentimental” (:54).
Parte dos argumentos centrais do livro é apresentada no segundo capítulo. De acordo com Javier Andía, podem ser abordadas as interpretações sobre a herranza de duas formas complementares: uma cujo enfoque é seu caráter extraordinário, que a opõe à vida cotidiana; e outra que busca chegar aos ideais que o ritual expressa. De acordo com a primeira, o ritual pode ser considerado como “escape”, no sentido de que “ajusta de modo homeostático el sistema social”; como “ritual subversivo”, capaz de modificar relações sociais que geram certas tensões; e como “mecanismo de expresión de la identidad comunitária” (:58). A segunda interpretação considera a herranza desde o plano moral, e é nesta perspectiva que o trabalho do autor se insere. Para Andía, esse ritual é a expressão de valores morais ligados à animalidade, à adolescência, ao desarraigamento, algo que explicita por si mesmo alguns questionamentos sobre a “humanidad cabal”, isto é, plena.
Assim, há três níveis de significação desde seu ponto de vista: o didático; outro relacionado à constituição de um sujeito coletivo; e o contratual. Seu interesse recai especialmente neste último, inclusive parte de seus argumentos já foram apresentados em Comprender los rituales ganaderos en los Andes y más allá: etnografías de lidias, herranzas y arrierías (2014), coletânea por ele organizada. A proposta do autor é de que os rituais do gado descrevem dois processos que podem ser concebidos como análogos: a domesticação dos animais e o amadurecimento dos jovens. Então, seria mais a “potencialidad asocial” da juventude, e não tanto a dos animais, que deveria ser eliminada através desses rituais, já que vista como excessiva, portanto, mais próxima dos valores da puna. Andía sugere ainda que tais rituais são um “comentário de la domesticación y la madurez” (:65), um “discurso sobre aquello que diferencia a un hombre de un adolescente” (:66), revelando quais características fazem com que um animal seja considerado doméstico e, ao mesmo tempo, aquilo que faz com que um homem seja considerado maduro, ou um membro pleno de sua sociedade.
No terceiro capítulo, já na segunda parte intitulada “Del sentimiento trágico de las canciones ganaderas”, as letras das músicas são examinadas como um comentário crítico e reflexivo sobre os processos de modernização que afetam o Valle de Chancay mais intensamente desde a segunda metade do século XX, entre eles, a migração para as grandes cidades, a integração à sociedade nacional, as relações de poder, e algumas questões econômicas, enfim, mudanças e inovações percebidas pelos moradores da região. As canções tematizam isso tudo de forma poética, fazendo chorar invariavelmente seus cantores, comoção que coloca uma pergunta para o autor: o que há de tão potente nessas canções que, mesmo fora dos contextos rituais e da euforia que tais ocasiões proporcionam, fazem chorar aqueles que as cantam? Indagando-se sobre essas emoções, as quais ele afirma não compartilhar mesmo sendo peruano e descendente de camponeses andinos, é que Rivera Andía busca mostrar quais imagens compõem esse “mundo emocional”. É assim que a relação entre emoções, paisagem e música vai se tornando cada vez mais estreita para o leitor, na medida em que Andía mostra o quanto a paisagem é um motor capaz de suscitar as emoções trazidas pela música.
No quarto capítulo, o autor trata do amor incondicional dos donos por seus animais, sentimentos profundos expressos através de letras que os enaltecem tanto por suas características físicas (cor, formas, tamanho) como por suas capacidades provedoras (leite, queijo etc.), assemelhando-se, neste ponto, aos pais/mães de seus donos, assumindo um caráter protetor e respeitável. Durante as herranzas há muitas inversões que dão ênfase à humanização do gado - que devem dançar, beber, comer e vestir certos acessórios (colares, diademas, bolsas para guardar coca etc.) - e, ao mesmo tempo, na animalização dos donos e convidados - que devem se portar como animais (ficar de joelhos ao comer e beber em recipientes sobre o chão, imitar a cópula etc.), arrancando gargalhadas dos participantes durante suas performances. Inversões rituais que, conforme o autor, marcam a diluição de uma fronteira metafísica entre esses dois mundos.
Finalmente, no quinto capítulo, o foco recai sobre o gado como uma espécie de parente muito próximo e querido e, simultaneamente, como mercadoria, pois o destino de boa parte dos rebanhos em Chancay é a venda para frigoríficos urbanos, transação que costuma acontecer logo após a herranza, momento muito conveniente para os compradores irem aos vilarejos, já que ali encontrarão os animais reunidos. Enquanto bem altamente valorizado, o gado é equiparado a uma poupança ou a um banco, capaz de proporcionar a seus donos o dinheiro de que eles necessitam. Mas sua venda, e consequentemente sua morte, é apresentada como o clímax de um paradoxo: como é possível vender aquilo que se ama? Essa contradição insolúvel parece ser a origem da dor e do sofrimento dos humanos, emoções que transbordam ao cantarem. Entretanto, Rivera Andía nos surpreende ao mostrar que isto não é tudo: a experiência do gado que vai para a cidade ao encontro da morte é análoga à experiência daqueles que migram para a cidade, tornando-se explícita sua proposição de que as canções consistem em “un comentário sobre cierta experiencia de la modernidad en el Perú” (:166). Aí vemos claramente a caracterização da cidade como espaço perigoso não apenas para o gado, mas também para os humanos, no sentido de que é uma experiência incômoda, sofrida, que requer o afastamento daqueles que se ama, ainda que seja almejada.
Em outras palavras, falar do drama da comercialização do gado é uma forma de falar do drama da migração e, por isso mesmo, um evento capaz de desencadear tantas emoções por se tratar de uma experiência cada vez mais comum a todos não apenas em Chancay, mas na sierra (Andes) peruana de forma geral. Ao fazer esta conexão, Andía nos brinda com uma leitura sensível e perspicaz das relações entre campo e cidade, além de nos revelar uma complexa “geografia sentimental”, resultando em uma grande contribuição tanto para os estudos andinos como para aqueles que se interessam pela antropologia das emoções.
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2018