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As muitas vidas de um chapéu de Carnaval1 1 O artigo é a versão ligeiramente modificada da conferência para promoção à professora titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ, apresentada em maio de 2024. Ele desdobra argumentos iniciais apresentados em Objetográfica, o número comemorativo dos 25 anos da revista Etnográfica, em que 26 antropólogos e antropólogas refletiram sobre o lugar das coisas na disciplina, a partir de um objeto significativo em suas pesquisas (Menezes 2022a). Agradeço a Cyril Isnart e a Octávio Sacramento pelo convite. Outras ideias surgiram na mesa-redonda Materialidades etnográficas II: o acontecer das coisas em composições fabulatórias na XIV RAM, Niterói, em agosto de 2023, organizada por Mylene Mizrahi, com comentários significativos de Marjorie Murray e de Daniela Calvo, a quem também sou grata. Assim como agradeço as observações pós-conferência de Thomas M. Leite, Mariana Ramos de Morais, Cleonardo Maurício Jr. e Edmundo Pereira. Não teria me aproximado de chapéu algum sem a colaboração, no “mundo do Carnaval”, de Paulo Ramos, Mharly Azevedo, Andréa Corrêa, Júlio Cerqueira, Leandro Vieira e Gustavo Humberto. Meu reconhecimento também às equipes das pesquisas Doces Santos, Enredamentos entre Religião e Cultura e Memória e reconstrução dos acervos antropológicos “populares” do Museu Nacional. E à Faperj e ao CNPq, que nos financiaram. Por fim, agradeço à banca de promoção - José Sergio Leite Lopes, John Dawsey, Marcelo Camurça, Miriam Rabelo e Patrícia Birman - bem como às pessoas presentes na cerimônia de titularidade, que muito a engrandeceram.

O professor Celso José da Costa, um dos mais renomados matemáticos do país, membro da Academia Brasileira de Ciências e comendador da Ordem do Mérito Científico pelos avanços que promoveu na área de Geometria Diferencial, tornou-se internacionalmente conhecido por ter demonstrado a existência de uma nova superfície mínima, resolvendo um problema do século XVIII (Alberti & Duran 2014ALBERTI, Verena, & DURAN, Maria Renata da C. 2014. Entrevista - Celso José da Costa.Revista História Hoje, 3(5):209-272. )2 2 Em sua tese de doutorado, defendida em 1982 no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), Rio de Janeiro. “As superfícies mínimas especiais são consideradas formas perfeitas da geometria e têm as qualidades de serem completas, de topologia finita, mergulhadas no espaço (R3), e que separam esse espaço em duas regiões onde a superfície é a fronteira comum” (Costa 2021). Agradeço a Thomaz M. Leite a referência ao caso do professor Costa, em que os cálculos de equações matemáticas assumiram a forma material por meio da mediação de um chapéu de carnaval. . A superfície, que terminou por levar seu nome - Superfície Costa ou Costa´s Surface - veio somar-se às três outras até então conhecidas: o plano (descrito por Euclides, em 300 a.C.), o catenóide (descrito por Euler, em 1764) e o helicóide (descrito por Meusnier, em 1776), todas consideradas formas geométricas perfeitas. Em uma palestra, o matemático explicou o processo de sua descoberta:

No ano de 1982 (...) abracei intensamente esse problema de construir novas superfícies mínimas. Enchia folhas e mais folhas de cálculos. Dormia e acordava com o problema (...). Eu era um viajante entusiasmado, buscando ultrapassar a fronteira do conhecimento matemático, na busca de uma incerta, quarta forma perfeita da geometria. Um dos momentos decisivos aconteceu quando eu fui a um filme na Cinelândia, aqui no Rio de Janeiro, Centro. Era uma época que antecedia o Carnaval, e passava na tela o desfile de um bloco de carnaval, onde um sambista portava um chapéu singular de duas formas. Uma copa entrando pelo pescoço, outra se projetando para cima da cabeça, e outra ainda com uma aba exagerada na altura do pescoço, se prolongando, prolongando. Então foi nesse momento que me salta a ideia de ajustar a superfície que eu procurava àquela aba central na forma de um canudo ondulante. Não pude continuar sentado. Saí do cinema caminhando para a minha casa em Santa Teresa (...). Eu pensava andando pelas ruas, tentando encaixar aquele chapéu de sambista na minha equação, mas não aconteceu de repente. Tive ainda que lutar vários dias até encontrar as boas equações, até o chapéu do sambista se ajustar à superfície. E assim, nesse insight, tudo se resolveu num desfile de escola de samba (Costa 2021COSTA, Celso José 2021. “Superfície Costa e a Vida Misteriosa dos Matemáticos” [Webinar]. Seminário de EDP e Matemática Aplicada. 21/10/2021. Disponível em Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ABLNh2Q3KbA .
https://www.youtube.com/watch?v=ABLNh2Q3...
).

A citação do professor Costa, que vincula sua descoberta científica a um chapéu de sambista, corrobora a opção de ancorar as reflexões aqui apresentadas em torno de outro chapéu de Carnaval, a fim de permitir que as minhas ideias se organizem, se ajustem e ganhem concretude através de uma forma material específica. Trata-se do chapéu produzido como parte da fantasia “Salve Cosme e Damião” (Figura 1), que vestiu cinquenta meninas e trinta meninos da Ala das Crianças do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira - ou, simplesmente, da Mangueira3 3 Uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio de Janeiro, a Mangueira foi criada em 1928, no morro que a nomeou, a partir da reunião de vários blocos. Suas cores são o verde e o rosa, escolhidas pelo compositor Cartola. Ela venceu 19 campeonatos e se apresenta em seu site como “a maior escola do planeta”. (http://www.mangueira.com.br, acessado em 22/05/2024). Dentre os “bambas” da escola, encontram-se sambistas como Nelson Cavaquinho, Tantinho, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, José Ramos, além de outros artistas, como Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Rosimeri e Leci Brandão. Todavia, ultrapassando as figuras ilustres, a Mangueira é reconhecida por ser “tradicional”, por ter “chão” e “samba no pé”, isto é, vínculos comunitários fortes. - no desfile de 2016. Escolhi este artefato particular por considerá-lo capaz de indexar problematizações sobre os contornos fluidos e não substantivados do religioso em associação com materialidades, que são preocupações recorrentes em minhas pesquisas dos últimos anos.

Figura 1.
O chapéu da fantasia “Salve Cosme e Damião!” - Desfile da Mangueira de 2016 - Barracão da Mangueira, 2023.

Naquele ano, a Mangueira, uma das escolas de samba mais conhecidas do país, levou para a Avenida o enredo “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá”, que homenageou a importante intérprete da Música Popular Brasileira e com o qual garantiu o campeonato após treze anos de jejum. A fantasia da Ala das Crianças representava a devoção da cantora e de sua família, originária da cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, aos santos gêmeos.

Desde então, este chapéu tem cruzado meu caminho em diversos suportes - vídeos, fotografias, desenhos, contato direto com exemplares, memórias, tópicos de conversação - e em diferentes versões. Trata-se, portanto, de uma peça que é, ao mesmo tempo, singular e múltipla, já que foi produzida a partir da lógica da reprodutibilidade técnica própria às fantasias de ala das escolas de samba, que mescla a produção em série ao acabamento artesanal. De nossa história de encontros e desencontros, destacarei três momentos: 1) aquele em que o “descobri”, ainda em 2016, no desenvolvimento da pesquisa Doces Santos, sobre a devoção a Cosme e Damião no Rio de Janeiro; 2) aquele em que o “reencontrei”, em 2019, durante o trabalho de campo da pesquisa Enredamentos entre religião e cultura no Carnaval carioca e 3) o mais recente, em 2023, durante a pesquisa Memória e reconstrução de acervos antropológicos ‘populares’ do Museu Nacional, quando viabilizei a produção de um exemplar para o acervo da instituição.

Esses três momentos correspondem a deslocamentos no estatuto do chapéu, ao longo dos quais ele se revelou sucessivamente capaz de servir de material de apoio em uma pesquisa sobre devoção; de tornar-se, ele mesmo, um objeto de culto e, ainda, de transformar-se em peça antropológica em um museu da nação. Mudanças que envolveram operações de artificação, de religiosificação e de museificação, isto é, transformações que ocorrem quando as coisas passam a ser consideradas como arte, como religião e como acervo (Heinich & Shapiro 2012HEINICH, Natalie & SHAPIRO, Roberta. 2012. “Postface. Quand y a-t-il artification?” In: HEINICH, Natalie & SHAPIRO, Roberta. (orgs.). De l’artification. Enquetes sur le passage a l’art. Paris: Éditions Ehess. p. 267-299.; Menezes 2013MENEZES, Renata de C. 2013. “Reflexões sobre a imagem sagrada a partir do ‘Cristo de Borja’”. In: P. Reinheimer & S. P. Sant’Anna (orgs.). Reflexões sobre arte e cultura material. Rio de Janeiro: Folha Seca. p. 235-263.; Menezes & Bártolo 2019MENEZES, Renata & BÁRTOLO, Lucas. 2019. “Quando devoção e carnaval se encontram". Proa: Revista de Antropologia e Arte, 9 (1):96-121.; Brulon 2013BRULON, Bruno. 2013. “Da artificação do sagrado nos museus: entre o teatro e a sacralidade”. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, 21:155-175. ; Goldstein 2012GOLDSTEIN, Ilana. S . 2012. “Autoria, autenticidade e apropriação: reflexões a partir da pintura aborígine australiana”. RBCS, 27 (79):81-106. ). E pensando na constituição mútua entre pessoas e coisas, conforme ele se transformava, eu também me desloquei em nossa relação - ou por meio de nossa relação - da posição de pesquisadora de materialidades religiosas do catolicismo e da umbanda para pesquisadora de Carnaval e, ainda, para curadora de uma coleção de Antropologia Social dentro do Museu Nacional. Transformaram-se, assim, em resposta, os coletivos de pesquisa que eu coordeno: além do Grupo de Pesquisa em Antropologia da Devoção - GPAD, em atividade oficial desde 2010, foi criado, em 2017, o Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado - Ludens, para ancorar os interesses em desdobramento.

Considerar o chapéu em movimento, articulado a e articulando teias de relações e formas de classificação, é uma inspiração vinda dos trabalhos de Arjun Appadurai (1990APPADURAI, Arjun. 1990. “Introduction”. In: APPADURAI, Arjun. The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press. p. 3-63.) e Igor Kopytoff (1990KOPYTOFF, Igor. 1990. “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: A. Appadurai (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press . p. 64-91.). Segundo esses autores, é possível tratar as coisas como pessoas, reconhecendo sua vida social, isto é, o fato de que circulam por diferentes contextos e que neles passam a adquirir significados e, consequentemente, valor. Este pode ser cultural, econômico ou moral e é gerado por meio da circulação em que as modalidades de uso e de consumo das coisas vão modelando suas trajetórias e suas classificações, que podem se reconfigurar. Kopytoff (1990KOPYTOFF, Igor. 1990. “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: A. Appadurai (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press . p. 64-91.) ressalta ainda a possibilidade de uma “coisa” singularizar-se em uma carreira bem-sucedida, adquirindo uma reputação e uma biografia de renome. Assim, as definições das coisas seriam menos “essenciais” e mais contextuais e históricas, e seguir seus rastros pode revelar processos sociais. Pois, ao mudar de posição, elas alteram ou conjugam significados e formas de atribuição de valor, acionando os dispositivos correspondentes a seu novo estatuto, e mobilizando, com isso, pessoas, instituições e modalidades de tratamento, sem necessariamente apagar o seu percurso anterior.

Isso significa dizer que as coisas são afetadas por sua passagem em esferas de circulação e de troca (Geary 1990GEARY, Patrick. 1990. "Sacred commodities: the circulation of medieval relics" In: A. Appadurai (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press . p. 169-191.; Bohannan 1955BOHANNAN, Paul. 1955. Some principles of exchange and investment among the Tiv.American anthropologist,57(1):60-70.) que, no caso específico do chapéu, embora possa envolver relações monetárias, acontece principalmente na condição de dádiva, isto é, como presente, doação e cessão de uso. Há ainda afetações provocadas por seu modo de produção e utilização particulares que, se não condicionam seu destino, ao menos direcionam seu fluxo.

Como parte de uma fantasia de Carnaval, criada a partir de materiais, técnicas e intencionalidades de um domínio bastante particular, este das escolas de samba, o chapéu foi feito também para propiciar experiências de encantamento (Gell 2001GELL, Alfred. 2001. “A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas”. Arte e Ensaios, 8:174-191. & 2005GELL, Alfred. 2005. “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia”. Revista Concinnitas, 2 (8): 40-63 ) utilizando determinadas formas sensoriais capazes de mobilizar comunidades estéticas (Meyer 2019MEYER, Birgit. 2019. “De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculo”. In: E. Giumbelli; J. Rickli & R. Toniol (orgs.) Como as coisas importam. Ensaios sobre uma abordagem material da religião. Porto Alegre: UFRGS. p. 43-80.), o que a atenção à peça e, mais ainda, a seus usos - inclusive em seu momento de plenitude, que é na performance do Sambódromo, dançando na cabeça de desfilantes durante o Carnaval - permite interrogar.

Inspirando-me nesses debates, mas experimentando radicalizar a proposta de significados contextuais, compostos em trajetórias multidimensionais e pluridirecionais que envolvam ambiguidades e ambivalências, quero apresentar aqui uma análise desse chapéu em movimento, utilizando as noções de formas de enquadramento, de modulação e, principalmente, de estabilização. A proposta é combinar, na análise do chapéu, abordagens semióticas e sensoriais aos modos de circulação das coisas (Appadurai 1990APPADURAI, Arjun. 1990. “Introduction”. In: APPADURAI, Arjun. The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press. p. 3-63.; Kopytoff 1990KOPYTOFF, Igor. 1990. “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: A. Appadurai (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press . p. 64-91.) e às técnicas de sua produção e uso (Mauss 1969MAUSS, Marcel. 1969. “Les techniques et la technologie”. In: M. Mauss. Oeuvres. 3. Cohésion sociale et division de la sociologie. Paris: Minuit. p. 250-256. & 2003MAUSS, Marcel. 2003. “As técnicas corporais.”. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify. p. 399-422.; Schlanger 2005SCHLANGER, Nathan. 2005. “La Châine operatoire”. In: C. Renfrew & P. G. Bahn (eds). Archaeology: the key concepts. London: Routledge. p. 25-31. & 2006SCHLANGER, Nathan. 2006. “Introduction. Technological Commitments: Marcel Mauss and the Study of Techniques in the French Social Sciences”. In: M. Mauss (org). Techniques, Technology and Civilization. Oxford: Durkheim Press; Berghahn Books, pp. 1-30.), ao mesmo tempo em que o utilizo para pensar um conjunto de questões sobre religião, cultura, arte, festa, museus e patrimônios. Nesse sentido, longe de tratar o chapéu como um objeto inanimado, creio ser possível, mesmo sem aprofundar o debate ontológico ou cognitivista a seu respeito, explorar sua agentividade, isto é, o que ele faz e o que faz fazer, infletindo as redes e os fluxos que integra.

Mas antes de avançar com a argumentação, cabe apresentar o universo de origem da peça, ou seja, as escolas de samba e o lugar nelas ocupado pelas fantasias, bem como os santos em questão.

As escolas de samba e suas fantasias

As escolas de samba surgem das formas de sociabilidade de comunidades negras africanas e afro-diaspóricas, compartilhadas com outros grupos subalternizados, nas quais as expressões de canto, dança e percussão assumem o formato de cortejo processional, como em muitas outras manifestações do repertório de “festas populares” do Brasil (Cascudo 2012CASCUDO, Luis da C. 2012. Dicionário do folclore brasileiro. [s.l.] Global Editora. ; Poel 2013POEL, Francisco Van Der.2013. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. [s.l.] Nossa Cultura. ).

No Rio de Janeiro, elas se organizam civilmente a partir das primeiras décadas do século XX, como grêmios recreativos carnavalescos, a fim de desfilar no Carnaval, em concursos promovidos pela imprensa e setores do turismo4 4 Segundo Cavalcanti (2006:42), o primeiro desfile competitivo aconteceu em 1932. . Crescendo rapidamente em popularidade, as escolas de samba se complexificam, absorvem influências de outras modalidades de Carnaval, como os ranchos e as grandes sociedades, e incorporam inovações. Gradualmente consolidam-se algumas de suas características distintivas. Surge um estilo musical próprio, o samba-enredo, composto especialmente para a ocasião. A partir dos anos 1950, ampliam-se suas bases sociais com a adesão de camadas médias, em paralelo à sofisticação dos desfiles, com a participação de coreógrafos, cenógrafos e figurinistas. E generaliza-se a prática de fantasiar-se, antes exclusiva das baianas, já que o mais corrente era desfilar uniformizado. A literatura aponta também para o peso que vai assumindo o enredo, isto é, a história a ser contada no desfile, que passará a guiar a organização do cortejo (Cavalcanti 2006CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2006. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Ferreira 1999FERREIRA, Felipe. 1999. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Gloria. ; Simas & Fabato 2015SIMAS, Luiz A., FABATO, Fabio. 2015. Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos enredos. Rio de Janeiro: Mórula.).

Em meados dos anos 1980, as escolas de samba já tinham se tornado espetaculares. Sua magnitude é reconhecida e, ao mesmo tempo, intensificada com a criação de um espaço especial para os desfiles no Centro do Rio de Janeiro (próximo à antiga Praça Onze, berço mítico do samba carioca): o Sambódromo da Avenida Marques de Sapucaí, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer em escala monumental e inaugurado em 1984. Nele desfilam os dois principais grupos do carnaval carioca, o Grupo Especial e o Grupo de Acesso, ou Série Ouro. Os demais grupos desfilavam na Avenida Rio Branco, também no Centro, e mais tarde, no início dos anos 2000, passaram a desfilar na Estrada Intendente Magalhães, entre os subúrbios e a zona oeste da cidade.5 5 Há mais de 70 escolas de samba no Rio de Janeiro e, para competir, elas se dividem em grupos qualitativamente hierarquizados. Em 2024, esses grupos eram o Especial, a Série Ouro, a Série Prata, a Série Bronze e o Grupo de Avaliação. A campeã de cada grupo “sobe” para o estrato imediatamente superior e a última colocada “desce” ou “cai” para o estrato inferior.

Os desfiles do Sambódromo contribuem para divulgar, nacional e internacionalmente, o Carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro como algo que tipificaria a cultura brasileira, atraindo as atenções da mídia, de turistas e de entusiastas de várias latitudes. Duas dimensões são importantes para entender seu processo de expansão e espetacularização: o papel das mídias e o mecenato do jogo do bicho. Dentro da primeira, a imprensa, num certo sentido, é uma das forças constitutivas da festa, não apenas porque promoveu os primeiros desfiles, mas também porque continua divulgando fortemente o evento a cada ano, contribuindo para a construção de reputações no “mundo do Carnaval”. As rádios, por sua vez, tocam habitualmente os sambas-enredos em suas programações, que são gravados comercialmente desde os anos 1970. Os desfiles são televisionados desde os anos 1960 e passaram a ser transmitidos ao vivo pela Rede Globo desde 1985, além de ocuparem a capa e o miolo de revistas e jornais de grande circulação.6 6 E com a Internet, os grupos de aficionados se multiplicam exponencialmente, mesmo que concentrados em um nicho de mercado que se autointitula “a bolha do Carnaval”.

A outra dimensão é o patronato dos bicheiros. Como já foi amplamente registrado em publicações (Santos 1999SANTOS, Myrian S. dos. 1999. “O Batuque Negro das Escolas de Samba”. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, 35:43-66.; Cavalcanti 2009CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2009. “Festa e contravenção: os bicheiros no carnaval do Rio de Janeiro”. In: M. L. V. C. Cavalcanti & R. Gonçalves (orgs.), Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: Aeroplano. p. 91-123.; Simas & Fabato 2015SIMAS, Luiz A., FABATO, Fabio. 2015. Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos enredos. Rio de Janeiro: Mórula.) e em documentários - como os recentes e bastante divulgados Lei da Selva (2022LEI DA SELVA. A história do jogo do bicho. Direção: Pedro Asberg, Rio de Janeiro: CNL Brasil, 2022. Streaming (207 min).) e Vale o Escrito (2023VALE O ESCRITO. A guerra do jogo do bicho . Direção Fellipe Awi, Ricardo Calil, Gian Carlo Belotti. Rio de Janeiro: Globoplay, 2023. Streaming (376 min).) - os contraventores do Rio de Janeiro, a partir dos anos 1960, passaram a se relacionar de forma mais orgânica com as escolas de samba, utilizando-as como instrumento de legitimação social, de articulação política e de mercantilização e privatização do Carnaval (Cavalcanti 2009CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2009. “Festa e contravenção: os bicheiros no carnaval do Rio de Janeiro”. In: M. L. V. C. Cavalcanti & R. Gonçalves (orgs.), Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: Aeroplano. p. 91-123.; Chinelli Silva 1993CHINELLI, Filippina & SILVA, Luiz A. Machado. 1993. "O Vazio da Ordem: Relações Políticas e Organizacionais entre as Escolas de Samba e o Jogo do Bicho. Revista Rio de Janeiro, 1 (1):42-52. ). Financiando e dirigindo as escolas de samba em troca de seu reconhecimento como benfeitores das comunidades, e mesmo como forma de inserção no segmento artístico e turístico, os patronos possibilitaram que os desfiles assumissem outro patamar, tornando-se cada vez mais luxuosos e sofisticados. A criação, em 1984, da Liga Independente das Escolas de Samba, a Liesa, que reúne a cúpula do jogo do bicho e as maiores escolas de samba do Rio de Janeiro, e que, em 1985, passou a administrar os desfiles do Grupo Especial no Sambódromo com o aval da Prefeitura (trata-se de um equipamento cultural municipal), torna mais evidente e institucionalizada a associação singular que conforma essa indústria cultural7 7 Nos últimos anos, cresce a presença das milícias, ainda que em ligas de outros grupos que não o Especial, que segue sob a hegemonia de “banqueiros” do bicho. .

Não me estenderei sobre o tema, pois ele não é o meu foco aqui. Mas registro que uma das dimensões significativas dos desfiles é regular a violência e limitar a guerra entre grupos que produzem e reproduzem formas de sociabilidade violentas, para manifestá-la, sem renunciar ao confronto agonístico, em uma competição ritualizada, que promove o realinhamento de comunidades e territórios com seus patronos. Creio que esse seja um dos mais instigantes desafios na análise das escolas de samba: lidar com a demonstração pública da sociedade violenta e excludente que é a brasileira, em simultâneo à exibição da sociedade pulsante e criativa que ela também é. O Carnaval das escolas de samba coloca em desfile as ambiguidades, ambivalências e contradições do Brasil: o seu melhor e o seu pior. E por isso mesmo, é digno de estudo8 8 Nesse sentido, é oportuno evocar o pioneirismo de Roberto da Matta, então professor do Museu Nacional, nos anos 1970 (DaMatta 1979 [1973]). Como também citar Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, colega da UFRJ que, desde sua tese de doutorado, defendida no Museu Nacional em 1993, inaugurou uma linhagem de pesquisas altamente relevante sobre Carnaval e outras festas populares (Cavalcanti 2006; Cavalcanti & Correa 2018). .

Hoje, as escolas de samba, mesmo espetaculares,9 9 Desde o século passado, as escolas de samba perdem terreno para outras modalidades de Carnaval, sejam da própria cidade, como os blocos no Carnaval de rua, ou sejam para outros estados, como o Carnaval baiano e o pernambucano, com outras manifestações culturais. Porém, o volume de pessoas envolvidas segue grande. Por exemplo, em 2020, no Carnaval pré-pandêmico, 79 escolas de samba estavam programadas para desfilar no Rio de Janeiro, sendo 52 na Intendente Magalhães, 14 no Grupo de Acesso e 13 no Grupo Especial. Pelo regulamento das associações carnavalescas, aproximadamente 62.000 pessoas devem ter desfilado no Sambódromo, sendo cerca de 45.000 no Grupo Especial e, no mínimo, 16.600 no Grupo de Acesso. consideram-se tributárias de tradições centenárias das tias baianas e desfilam no Carnaval apresentando cada qual um enredo, uma espécie de história ou libreto de forma narrativa singular: multissensorial, em movimento processional, com dança cadenciada e canto do samba-enredo em uníssono, sustentado pela orquestra percussiva (a bateria), com o apoio da visualidade de alegorias e de fantasias. A coordenação visual é responsabilidade do carnavalesco, ou da equipe de Carnaval.

Para apresentar o enredo sequencialmente, articulando continuidades e descontinuidades, os desfiles se dividem em setores, com diferentes tópicos da narrativa demarcados por carros alegóricos. Os setores são compostos por conjuntos de alas, que, por sua vez, estão fantasiadas com figurinos referidos à história que está sendo contada. As formas materiais e expressivas devem se articular harmonicamente diante da plateia e dos jurados, que avaliam e pontuam determinados quesitos dos desfiles, cuja soma define a colocação final de cada escola de samba.10 10 Detalhes sobre alas, número de participantes e quesitos pontuados encontram-se em Menezes (2020:7-11).

Trata-se, portanto, de uma modalidade narrativa singular, não referencial, nem denotativa, cujo objetivo principal não é passar informações diretas.11 11 . “Um bom carnaval [de escola de samba] pode ser visto por uma pessoa surda, compreendido só através das formas, das alegorias, dos figurinos, porque é uma linguagem formal, simbólica, uma linguagem não-verbal; e pode ser entendido por um cego, ouvindo a letra do samba” (Depoimento da carnavalesca Maria Augusta Rodrigues, 1992, apud Ferreira 1999:102). A sintaxe carnavalesca opera com fragmentos da história, reorganizados de forma evocativa a partir de uma determinada poética, que joga com formas, cores, sons, volumes, texturas, luzes e cheiros para provocar a emoção e a adesão da plateia. Dessa forma, busca-se afetar, atingir e mobilizar os espectadores. Se o principal objetivo da competição é ganhar o Carnaval, o espetáculo não consiste apenas nisso, afinal, só haverá uma escola campeã a cada ano. O fundamental é ser capaz de “passar com empolgação, levantando a Avenida”, isto é, conseguir que a plateia cante e dance em sintonia com os componentes, preferencialmente gritando “é campeã”, num reconhecimento da excelência do desfile.

Nesse jogo de sedução e encantamento, as fantasias têm um papel importante, pois são elas que vestem a unidade mínima de toda essa complexidade: o “componente”. Idealmente, elas devem se adequar ao desenvolvimento do enredo, ser facilmente decodificadas pela plateia, e ainda ser belas, criativas, dotadas de cor, brilho e bom acabamento. Também devem oferecer ao componente, motivação e liberdade de movimentos (Ferreira 1999FERREIRA, Felipe. 1999. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Gloria. ; Bártolo 2018BÁRTOLO, Lucas. 2018. O enredo de Cosme e Damião no carnaval carioca. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

Há, além disso, segmentos especiais das escolas de samba que possuem fantasias únicas, como os casais de mestre sala e porta-bandeira, os destaques e as musas. Outros segmentos desfilam com vestimentas que lembram mais uniformes, como os diretores ou o pessoal de apoio. Mas a maior parte dos componentes desfila fantasiada em alas, cada qual com seu figurino compartilhado pelo grupo.12 12 Alas consideradas fundamentais por caracterizarem uma escola de samba, como a bateria, a ala das baianas, a velha guarda, a ala dos compositores e a ala de passistas, usam fantasias que, mesmo produzidas em série, recebem cuidado especial (Bártolo 2018). Os demais componentes dividem-se em alas de comunidade, que desfilam com vestimentas cedidas pelas escolas, e em alas comerciais, com fantasias vendidas por seus diretores. As alas comerciais, comuns quando Cavalcanti (2006) fez sua etnografia nos anos 1990, reduziram-se bastante, tendo acabado em várias escolas.

A biografia padrão de uma fantasia tem início com um desenho, que dá forma e cor à ideia do Carnavalesco. Dele surge um protótipo, isto é, a peça que servirá de modelo para a confecção das demais. Uma vez aprovado, ele passa a ser reproduzido em série pelos ateliês da escola, sejam eles localizados em seu barracão ou externos, de prestadores de serviço. Pouco antes do Carnaval, as fantasias são entregues aos componentes e, após o desfile, as que foram cedidas para as alas de comunidade retornam ao barracão, a fim de serem revendidas, doadas ou desmanchadas para o reaproveitamento dos materiais (ver Figuras 2-5).13 13 Para uma noção da escala de produção envolvida, no Carnaval de 2016, em que as crianças da Mangueira usaram a fantasia de Cosme e Damião aqui analisada, a escola de samba desfilou com cerca de 4.300 componentes, divididos em 29 alas, com 28 figurinos diferentes. Para todos foram produzidos, a partir de protótipos, vestimentas, acessórios e calçados. Já as fantasias de alas comerciais ficam com seus compradores (Ferreira 1999FERREIRA, Felipe. 1999. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Gloria. , Cavalcanti 2006CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2006. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Bártolo 2018BÁRTOLO, Lucas. 2018. O enredo de Cosme e Damião no carnaval carioca. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

Figura 2.
O desenho da fantasia da bateria (sobre São Franscisco de Assis), com amostras de tecido - Barracão da Mangueira, 2017.

Figura 3.
O protótipo da fantasia das baianas (com saquinhos de Cosme e Damião) - Barracão da Mangueira, 2017.

Figura 4.
Após o protótipo, a produção em série de fantasias - Barracão da Mangueira, 2017.

Figura 5.
O acabamento artesanal que se combina à produção em série - Barracão da Mangueira, 2017.

Como o desfile é assistido pelo público do Sambódromo, mas também por telespectadores e pela imprensa em cobertura midiática, as fantasias são pensadas para operar sempre em duas escalas: a escala teatral monumental da Sapucaí, em movimento processional pela Avenida, e a escala das câmeras de fotografia e filmagem. Além da integração da fantasia à ala, o conjunto de alas deve harmonizar-se numa longa fila de cores e formas - vista de cima, ela configura o que se chama de “o tapete” da escola de samba na Avenida.

Os santos Cosme e Damião

Tendo apresentado algumas peculiaridades das escolas de samba e de suas fantasias, principalmente as do Grupo Especial, volto agora a atenção aos santos representados no chapéu e no figurino de que fazem parte. Trata-se, como dito, da fantasia “Salve Cosme e Damião!”. No Livro Abre-Alas (Liesa 2016LIESA. 2016. Livro Abre-Alas 2016 - Segunda-feira. Rio de Janeiro: LIESA.) em que são publicados os detalhamentos dos desfiles para os jurados, ela é definida da seguinte maneira:

Padroeiro (sic) das crianças, Cosme e Damião são santos populares queridos no Brasil e especialmente na Bahia. A devoção de Bethânia aos “santos meninos” é herança da mãe, Dona Canô. Na casa da matriarca da família Velloso nunca faltou o tradicional “caruru de Cosme e Damião” no dia 27 de setembro. Sincretizado com os ibejis do candomblé, uma das mais populares maneiras de festejar os santos é a tradicional prática da distribuição de doces. Para celebrar os “santos guris” a ala infantil da Mangueira apresenta uma lúdica e divertida versão do santo protetor das crianças. (Liesa 2016LIESA. 2016. Livro Abre-Alas 2016 - Segunda-feira. Rio de Janeiro: LIESA.:311)

A definição do Livro Abre-Alas resume bem a relevância e as características principais do culto aos santos gêmeos no Brasil, embora seja questionável a primazia de sua devoção na Bahia, tendo em vista sua grande dispersão pelo país e sua importância no Rio de Janeiro.

Os personagens chegam às terras americanas pelas mãos dos colonizadores europeus, na versão consagrada pela hagiografia católica, de gêmeos médicos nascidos na Síria e martirizados pelo Imperador Diocleciano no século III por praticarem, gratuitamente, curas milagrosas em nome da fé. Portanto, eram associados à medicina e à cura (Cascudo 2012CASCUDO, Luis da C. 2012. Dicionário do folclore brasileiro. [s.l.] Global Editora. :316). No contexto da plantation escravista - no Brasil, mas também no Caribe - a devoção se capilariza e se transforma ao aproximar-se das tradições africanas referentes à gemelaridade, sendo destacada, nesse processo, a hibridização com o orixá duplo Ibejis - o orixá dos gêmeos. Nesse encontro, suas funções se redefinem, vinculando-os fortemente à proteção das crianças, ao zelo pelos partos duplos e pela saúde de gêmeos (Lima 2005LIMA, Vivaldo Da C. 2005. Cosme e Damião: o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África. [s.l.] Editora Corrupio. ; Montes 2011MONTES, Maria Lucia. 2011. Cosme e Damião: a arte popular de celebrar os gêmeos. [s.l.] Expomus. ) (ver Figuras 6-10).

Figura 6.
Estátuas de São Cosme e São Damião na Igreja de São José - Taranto, Puglia, Itália, 2020.

Figura 7.
Ibeijis da Coleção Africana do Museu de Arte de São Paulo - MASP - São Paulo, 2014.

Figura 8.
Altar lateral na Igreja Católica Ortodoxa de São Jorge, São Cosme e São Damião - Olaria, Rio de Janeiro, 2015.

Figura 9.
Cosme, Damião e Doum em um altar de uma casa de umbanda - Colégio, 2015.

Figura 10.
Cosme, Damião e Doum em um saquinho de doces - Mercadão de Madureira, 2015.

O processo de hibridização encontra-se registrado na evolução histórica da estatutária dos santos. Na iconografia católica, eles surgem, lado a lado, como duas figuras idênticas: portam palmas e usam túnicas de tom vermelho, que são atributos dos mártires. Muitas vezes, possuem uma mesa com instrumentos médicos entre eles, o que enfatiza sua especialidade de cura. Ao associarem-se à infância, suas imagens rejuvenescem na estatutária sacra, tanto na católica como na de umbanda. Gradativamente, deixam de ser homens adultos, por vezes barbados, e vão se tornando jovens. Ganham báculos, algo um tanto surpreendente, pois nas convenções iconográficas, esta é uma insígnia de bispos - talvez sejam cajados de peregrinos? Provavelmente, porque essa referência combina com os pequenos chapéus e as calças que encurtam. Surge então uma versão com três personagens: Cosme, Damião e Doum, seu irmão mais novo - aquele que, pelas tradições yorubanas, seria Idowu, o terceiro filho que precisa nascer após um parto duplo, para que a mãe não enlouqueça (Montes 2011MONTES, Maria Lucia. 2011. Cosme e Damião: a arte popular de celebrar os gêmeos. [s.l.] Expomus. ; Freitas 2015FREITAS, M. B. M. DE. 2015. De doces e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Ou aquele que, numa leitura antropológica de cunho estrutural-psicanalítico, deve surgir para que a alteridade entre os gêmeos se estabeleça, como o terceiro termo na relação (Montes 2011MONTES, Maria Lucia. 2011. Cosme e Damião: a arte popular de celebrar os gêmeos. [s.l.] Expomus. ).

No Brasil, os personagens Cosme e Damião participam em vários panteões. Eles estão presentes nos diversos catolicismos (romano, ortodoxo, copta e brasileiro); em diversas religiões afro-brasileiras, como candomblé, xangô, batuque, umbanda; em religiões ayahuasqueiras, como a barquinha e o santo daime, dentre outros - ainda que com concepções ontológicas e cosmogônicas distintas em cada um deles.

Na umbanda, onde seu culto é forte, Cosme e Damião são cultuados juntamente às ibeijadas, ou beijadas, ou as Crianças: as entidades infantis que trazem para a terra a pureza e a alegria. Em dupla, ou na tríade com Doum, eles são louvados em vários pontos cantados, cujas letras e sonoridade os associam aos doces, brincadeiras e irreverência. Há um amplo repertório de coisas e músicas referidas a eles, abordado por Morena Freitas em sua tese de doutorado (Freitas 2021FREITAS, Morena B. M. de. 2021. Coisas de criança: as ibejadas da umbanda. Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

Portanto, nas religiões afro-brasileiras, a homenagem aos santos relacionados à infância estende-se a uma homenagem às próprias crianças, em 27 de setembro ou em datas próximas14 14 Com a reforma do calendário litúrgico após o Concílio Vaticano II, os santos passaram a ser comemorados no catolicismo em 26 de setembro. Porém, as religiões de matriz africana guardaram a data de 27 de setembro. O Dia das Crianças, 12 de outubro, costuma ser incorporado às celebrações, que se concluem em 25 de outubro, dia de São Crispim e São Crispiniano, padroeiros dos sapateiros, que na versão popular também seriam santos gêmeos. - seja ofertando caruru a “sete meninos”, forma mais característica da Bahia (talvez pelo peso do candomblé), seja na distribuição de saquinhos de doces pelas ruas da cidade, mais frequente no Rio de Janeiro (talvez por influência maior da umbanda). A prática, no entanto, não é exclusiva das religiões afro, pois além dos santos estarem em várias tradições religiosas, há aqueles que participam da doação de doces por costumes familiares, para reviver a própria infância ou mesmo apenas por “gostar da farra.” (Menezes, Freitas & Bártolo 2020MENEZES, Renata de C.; FREITAS, Morena B. M. & BÁRTOLO, Lucas (orgs.) 2020. Doces santos: devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro: Museu Nacional.).

O Dia de São Cosme e São Damião é marcado, assim, pela correria e algazarra das crianças atrás de doce, e dos adultos que as acompanham ou que se empenham em doar os saquinhos ativadores da festa. Saquinhos que, mesmo variando em conteúdo, devem idealmente conter alguns “doces típicos” da comemoração, como suspiro, cocada, maria mole, pé de moleque, doce de abóbora, doce de batata roxa, além de balas e pirulitos - um repertório culinário que remete aos “doces de comer com a mão” do tabuleiro das baianas, estabilizados como doces dos santos (Menezes 2021MENEZES, Renata de C. 2021. “Sobre a doçura sagrada: Cosme e Damião e as crianças”. In: M. Melchior (org.). Gastronomia, cultura e memória: Açúcares. Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem. p. 79-90.).

Foi uma versão “lúdica e divertida” dessa devoção que a Ala das Crianças da Mangueira apresentou na Avenida (ver Figuras 11-14).

Figura 11.
Distribuição de Doces em Vista Alegre - Rio de Janeiro, 2013.

Figura 12.
Saquinho de doces e seu conteúdo - Olaria, 2015.

Figura 13.
a algazarra nas ruas, com crianças da Terra - Penha, Rio de Janeiro, 2015.

Figura 14.
a algazarra em centros, terreiros, ilês: Festa de Cosme e Damião com Crianças do Céu - Olaria, Rio de Janeiro, 2015.

Descoberta (2016): o poder semântico e abdutor da arte efêmera do Carnaval

Em 2016, eu pesquisava, já há cerca de três anos, a devoção a Cosme e Damião no Rio de Janeiro, juntamente com Morena Freitas e Lucas Bártolo (Menezes, Freitas & Bártolo 2020MENEZES, Renata de C.; FREITAS, Morena B. M. & BÁRTOLO, Lucas (orgs.) 2020. Doces santos: devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro: Museu Nacional.). O nosso recorte girava em torno das relações de reciprocidade, dos fluxos urbanos e das relações inter-religiosas ativadas pela circulação dos saquinhos de doces de Cosme e Damião, já sob inspiração da vida social das coisas (Appadurai 1990APPADURAI, Arjun. 1990. “Introduction”. In: APPADURAI, Arjun. The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press. p. 3-63.; Kopytoff 1990KOPYTOFF, Igor. 1990. “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: A. Appadurai (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press . p. 64-91.).

A metodologia da pesquisa era acompanhar, com o apoio de outros pesquisadores, pesquisadoras e estudantes, a circulação dos saquinhos por meio de exercícios etnográficos multissituados. No processo etnográfico, compramos doces, montamos e distribuímos saquinhos, corremos atrás de doações e comemos e armazenamos o que foi arrecadado, na companhia de crianças e suas famílias. Visitamos casas, templos, terreiros. Aprendemos as técnicas de pedir e ofertar doces santos. Percebemos também que as relações interreligiosas quanto a Cosme e Damião não passavam apenas pela via de acolhida aos personagens: entre segmentos evangélicos e mesmo católicos, eles eram demonizados, e a distribuição de saquinhos, condenada como prática de superstição, idolatria ou enfeitiçamento. Portanto, “relações inter-religiosas” nessa festa, na atualidade do Rio de Janeiro, envolvem não somente hibridismos e trânsitos, mas também a recusa à participação, a intolerância religiosa e a violência simbólica.

Quanto aos dados históricos, diferentemente de outras devoções que eu havia pesquisado, havia pouca coisa escrita; comentários quase anedóticos sobre a farra das ruas sem atenção às origens e características da festa.15 15 Em Menezes, Freitas & Bártolo (2020) e em Freitas (2015, 2021) há um balanço dos estudos sobre o tema. Considerei que o silêncio poderia estar ligado à oralidade e ao segredo que marcam as religiões afro-brasileiras, de caráter iniciático. Ou pela discrição, como forma de proteção contra a intolerância religiosa que se agravou enormemente nas últimas décadas, mas que não começou agora. A lacuna poderia ainda se relacionar a uma concepção estreita de religião por parte da academia, que muitas vezes a aborda apenas a partir dos templos e das liturgias oficiais, e não como parte da vida doméstica, das práticas cotidianas e autônomas das pessoas.16 16 Em contraponto, é justamente o interesse em acompanhar a religião se fazendo próxima ao cotidiano e articulada por categorias êmicas e não por cânones oficiais que se caracteriza a linha de pesquisa que desenvolvo. Nesse sentido, a festa de Cosme e Damião, que se dá principalmente a partir das casas e das ruas, estaria excluída das análises.

Assim, para aprofundar o conhecimento sobre o culto, a equipe recorreu à música, ao cinema, aos ditos populares e fotos de famílias, almanaques, jornais, calendários etc. em busca de elementos para uma fabulação crítica, para imaginar o que foi e o que poderia ter sido essa devoção (Hartman 2020HARTMAN, Saidiya. 2020. “Vênus em dois atos”. Revista Eco-Pós, 23 (3):12-33.). Desenvolvemos, uma espécie de olhar arqueológico (Didi-Huberman 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. 2017. Cascas. [s.l.] Editora 34. ), isto é, uma percepção atenta aos fragmentos, às frestas, aos restos e aos gestos que permitem reconstituir as relações.17 17 A possibilidade de fabular com as coisas é das dimensões mais políticas do campo das materialidades. Porque nos processos de fabulação, elas podem ajudar a recompor a memória dos invisibilizados, dos que não tiveram direito a registros escritos sobre suas vidas e seu passado. Muitas vezes é nas coisas que restaram que as vidas se inscreveram e que podem ser recuperadas, e é através delas que conseguimos restituir às pessoas o direito à memória e à dignidade.

Um dos movimentos foi tomar os desfiles das escolas de samba como um repositório de representações sobre a religião em sua forma vivida, pois muitos deles trazem alguma referência religiosa, e vários haviam levado Cosme e Damião para a Avenida. Em 2016, inclusive, os santos seriam pela primeira vez personagens centrais de um enredo no Grupo de Acesso, acompanhado por Lucas Bártolo.18 18 No âmbito da pesquisa, Lucas Bártolo acompanhou o processo carnavalesco da Renascer de Jacarepaguá para o Carnaval de 2016. Trata-se de uma escola de samba do Grupo de Acesso que desfilou com o primeiro enredo em que Cosme e Damião, na condição de ibeijis, tiveram o protagonismo. Sua dissertação de mestrado (Bártolo 2018) resulta dessa experiência. E foi nesse mesmo ano, no desfile campeão da Mangueira, que eu encontrei, em um vídeo na plataforma YouTube, a fantasia “Salve Cosme e Damião!” (Figura 15).

Figura 15.
Ala “Salve Cosme e Damião” - Desfile da Mangueira, 2017

Encantei-me de imediato com a performance da ala na Avenida e com a habilidade do carnavalesco da escola de samba, Leandro Vieira, em criar aquela composição. A devoção da pesquisa era apresentada não em formato textual, mas materializada através da estética carnavalesca. Pouco a pouco, fui reparando nos detalhes.

As oitenta crianças componentes dividiam-se em pares, e cada dupla compartilhava a mesma casaca, como forma de representar a gemelaridade dos santos popularmente conhecidos por “dois-dois”. Contudo, de forma sutil, a ala também se referia a seu processo histórico de rejuvenescimento - àquele em que se infantilizaram na evolução de sua estatutária -, pois eram as crianças que representavam os santos.

Nas mãos, as duplas portavam balões de gás verde e rosa, que são as cores da Mangueira. O movimento delas ao longo da passarela, pulando com os balões, evocava a euforia das ruas no dia de Cosme e Damião, quando a alegria, sentimento socialmente prescrito à ocasião, deve imperar. O fato de as crianças saudarem os santos convergia com a prática recorrente nas devoções católicas em que os “protegidos” reconhecem e louvam seus “protetores”.

Essas crianças traziam em suas cabeças os chapéus cintilantes, que remetiam aos altares em homenagem aos santos, como aqueles tantas vezes encontrados em trabalho de campo: na casa de devotos, em lojas, em terreiros, em praças. Na Avenida, no entanto, eram altares “carnavalizados”, isto é, montados com base na sintaxe carnavalesca que manipula formas, cores e materiais para alegorizar o que deseja expressar (Figura 16).

Figura 16.
Altar na Praça de Cosme e Damião - Penha, Rio de Janeiro, 2015.

O chapéu assemelhava-se a uma cartola sem abas, cuja copa, adereçada em branco e dourado, com fitas de cetim, galões, paetês, miçangas, pompons e cilindros de polietileno, evocava os cuidados ornamentais das festas de santos, em que salões, altares, andores, calçamentos e janelas são enfeitados com esmero por devotos zelosos. No topo do chapéu, as figuras de Cosme e Damião, moldadas em borracha, não portavam o verde e o vermelho das imagens tradicionais católicas - nem o rosa-bebê e o azul-claro da umbanda. Na cabeça das crianças foliãs, eles se transfiguraram em mangueirenses, assumindo as cores verde e rosa, que também tingiam suas auréolas, transmutadas em pirulitos. Compunham o altar doces e balas, de resina e de biscuit, e contas de vidro imitando bolas de gude, já que as guloseimas e os brinquedos costumam fazer parte das ofertas dedicadas aos santos. A composição remetia ainda aos bolos decorados, bastante comuns nas festas de 27 de setembro.

O que eu via na tela me pareceu imenso. A ala representava, simultaneamente, os próprios santos, a infância que eles protegem, as oferendas que lhes são feitas, as características de sua festa, a algazarra na rua. Assim, os pequenos foliões eram, ao mesmo tempo, as crianças da Terra e as Crianças do Céu (entidades de umbanda), ou ainda, os próprios santos que assumiam a forma de crianças mangueirenses para brincar na Avenida.

Três anos de pesquisa apareciam ali, concentrados naquele tempo-espaço. Senti-me limitada, por ter dispendido tanto tempo para enxergar o óbvio. Mas aos poucos, dei-me conta de que só consegui perceber os muitos níveis alegóricos da composição da ala justamente porque estava sustentada pela experiência etnográfica que me dera acesso ao repertório daquele universo religioso.19 19 Constatação que encontra eco no memorial de titular de meu colega Carlos Fausto: “Minha principal contribuição no mestrado foi descrever um sistema patriavuncular com uma terminologia antes desconhecida. Claro, eu só pude vê-la por que ela estava lá, mas eu só a vi por que estava preparado para vê-la - o que aponta para a complexa imbricação entre teoria e etnografia no desenvolvimento do conhecimento antropológico”. (Fausto 2016:19) A compreensão complexa do chapéu e da ala era resultado do encontro de dois processos de produção de narrativas alegóricas: o carnavalesco e o etnográfico (Clifford 2016CLIFFORD, James. 2016. “Sobre a alegoria etnográfica”. In: J. Clifford & G. Marcus (orgs.). A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: Eduerj; Papéis Selvagens. p. 151-181. ). Narrativas em que referências fragmentárias se acumulam, se conectam e se emaranham para evocar sentidos da realidade. E o chapéu materializava esse encontro.

Do ponto de vista de uma análise simbólica que considere a dimensão comunicacional dos rituais, lembrei-me de Edmund Leach (1979LEACH, Edmund. 1979. “Ritualization in man in relation to conceptual and social development”. In: W. A. Lessa; E.Z. Vogt & J. M. Watanabe (eds.). Reader in Comparative Religion: An Anthropological Approach. [s.l.] Harper & Row. p. 333-337.), ao falar do poder de condensação dos símbolos nos rituais. O chapéu era capaz de “transmitir” informações sobre a festa, o que, inclusive, era uma das intenções de sua criação. Só que ele o fazia a partir de formas materiais e de evocações alegóricas, caracterizando um tipo de comunicação singular

Por outro lado, a fantasia não se esgotava em sua dimensão comunicativa, ou ao menos, não apenas ao aspecto informacional da comunicação. Ela era capaz de estabelecer contatos mais amplos, produzindo o engajamento corporal e sensorial dos que a vestiam, e dos que a admiravam. E capturava tanto a atenção da câmera, que nela se detinha, como a minha, na condição de espectadora. Portanto, sua capacidade de abdução lembrou-me das técnicas de encanto e do encanto das técnicas, de Gell (2005GELL, Alfred. 2005. “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia”. Revista Concinnitas, 2 (8): 40-63 ), e das formas sensoriais e formações estéticas de Meyer (2019MEYER, Birgit. 2019. “De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculo”. In: E. Giumbelli; J. Rickli & R. Toniol (orgs.) Como as coisas importam. Ensaios sobre uma abordagem material da religião. Porto Alegre: UFRGS. p. 43-80.). A habilidade técnica de alguém, que foi capaz de produzir aquele artefato com tantas camadas de compreensão e tanta eficácia, permanecia indecifrável e encantadora. Enquanto isso, a experiência estética causada pela combinação de materiais, cores e performances provocou-me uma espécie de arrebatamento, um alto grau de envolvimento com a cena, que certamente me levaria a dançar e cantar na Avenida - e me levou a reordenar a experiência de campo, tanto àquela relacionada à devoção a Cosme e Damião, quanto ao Carnaval.

Daí em diante, passei a estar mais atenta às conexões entre religião e escolas de samba. Quando, semanas depois, o carnavalesco Leandro Vieira anunciou que, em 2017, a Mangueira desfilaria com o enredo “Só com a ajuda do Santo”, focalizando na intimidade entre santos e devotos, consegui, com a equipe do Ludens, aproximar-me da escola e estabelecer parcerias. Já dentro do barracão da Mangueira, entre 2016 e 2017, pude reconstituir com Vieira o processo de criação da fantasia “Salve Cosme e Damião!”. Como na história do culto desses santos no Brasil, os primeiros desenhos do Carnavalesco traziam os atributos iconográficos, a idade e as cores semelhantes à estatutária católica oficial, até chegar à solução final, infantilizada, que vimos na Avenida - com os santos como mangueirenses no chapéu e presentificados na performance das crianças, vestidas simultaneamente com as cores da umbanda, da Mangueira e do Brasil, emblematizando toda a festa (ver Figuras 17 e 18).

Figura 17.
Leandro Vieira mostra para a equipe do Ludens a primeira proposta de fantasia - Barracão da Mangueira, 2017.

Figura 18.
Leandro Vieira mostra para a equipe do Ludens a versão definitiva da fantasia - Barracão da Mangueira, 2017.

A partir do estreitamento de relações com o “mundo do Carnaval”, recebemos a doação, para o acervo do Museu Nacional, de cerca de doze fantasias da Mangueira, a maioria do desfile de 2017 sobre os santos, além de uma fantasia da Ala das Crianças de 2016, com seu chapéu. Dádiva preciosa, mas efêmera, pois no trágico incêndio que atingiu a instituição em setembro daquele ano, nossa coleção de fantasias foi consumida pelo fogo (Menezes 2022 b MENEZES, Renata de C. 2022b. “A coleção de fantasias Mangueira-Ludens. Da efemeridade do Carnaval às cinzas do Museu Nacional”. Ventilando acervos, v. especial: 252-266.).

Reencontro (2019) - religião no barracão

Porém, a história não acaba no incêndio. Em 2019, houve um reencontro inesperado. Nesse interregno, meu interesse pelo tema da religião no Carnaval havia se ampliado a ponto de tomá-lo como foco de uma pesquisa específica, Enredamentos entre Religião e Cultura no Carnaval Carioca.

Ao aproximar-me do universo das escolas de samba, dei-me conta de que ele estava atravessado por debates e reivindicações atuais em torno das concepções de cultura e de suas dimensões religiosas. Constatei, em parceria com Lucas Bártolo, a multiplicação de desfiles de temática africana e, principalmente, afro-religiosa, a partir dos anos 2015, e as referências cada vez mais fortes contra a intolerância religiosa e o racismo religioso nos enredos e no corpo dos desfiles. Observamos também um processo de reafricanização, “empretecimento” e “religiosificação” da festa, que poderíamos considerar análogos aos movimentos de retomada, ou ao processo de “etnogênese” que marca movimentos que reivindicam a visibilização das matrizes indígenas, afro e afro-indígena no repertório nacional de manifestações culturais. Para esses grupos, o processo histórico que “culturalizou” determinadas práticas como parte do repertório da cultura nacional, isto é, que as tratou como fenômenos culturais, foi excludente, pois lhes negou a capacidade de operar com agenciamentos sagrados, em outras palavras, de ser também religião. Em um contexto de guerras culturais, de ameaça às políticas de igualdade racial e de demandas por reparação, como tem sido aquele vivido na última década, o Carnaval se consolidava como uma arena de luta por legitimidade social e direitos.20 20 Diante dos ataques que sofre, o Carnaval precisa legitimar-se - no passado, mas ainda hoje - utilizando diversas formas de enquadramento. Uma delas é como “cultura” - por oposição às qualificações de bagunça, desregramento, desperdício, alienação e de ser “apenas” um espetáculo turístico. Mas há segmentos sociais que defendem sua leitura não como “cultura” e sim como “religião” ou “religiosidade ancestral”; ou não como “cultura brasileira”, mas como “cultura africana”, “cultura negra”, ou “cultura afro-diaspórica”, o que tem ocorrido também com outras festas consideradas como patrimônio nacional. Um panorama das mudanças nas políticas de identidade e nas reinvenções da cultura quanto à questão indígena pode ser encontrado em Oliveira Fo. (2022). Sobre as passagens entre religião e cultura e cultura e religião no universo afro-brasileiro, remeto ao trabalho de Morais (2018). Pesquisas desenvolvidas no Ludens têm encontrado situações semelhantes, como a de Mendel (2020) sobre a festa de Santa Bárbara na Bahia, a de Souto (2023) sobre os congados de Ituiutaba (MG), a de Bassi (2024) sobre o samba de bumbo do Cururuquara (SP), a de Alyson Matheus sobre a devoção à Virgem de Urkupiña na Bolívia (em andamento), além das pesquisas de mestrado (Bártolo 2018) e de doutorado (em andamento) de Lucas Bártolo, pioneiras no laboratório sobre o Carnaval.

Portanto, há em curso movimentos de crítica à forma excludente de composição do repertório de expressões reconhecidas como constitutivas da “cultura nacional”, seja problematizando a noção de cultura, seja a de nação. No caso do Carnaval, as reivindicações passam pela demanda de reconhecimento de suas dimensões, ou melhor, de suas articulações religiosas, ontológicas, cosmogônicas, que trariam em si outras concepções de sagrado e outras perspectivas de mundo que não caberiam no rótulo de “cultura”, de “cultura brasileira” ou de “profano”.

Em janeiro de 2019, era esse o contexto efervescente em que eu realizava trabalho de campo no barracão da Mangueira. Acontecia a preparação do desfile “História para Ninar Gente Grande”, em que a escola de samba iria para a Avenida “contar a história que a história não conta / o avesso do mesmo lugar” e avisar ao Brasil que “chegou a vez / de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”21 21 Trechos do samba-enredo de autoria de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Danilo Firmino, Márcio Bola, Silvio Moreira Filho (Mama), Ronie de Oliveira (Liesa 2019:377). e mais uma vez ganharia o Carnaval. Eu atuava como voluntária no “adereçamento”, ajudando a confeccionar as vestimentas das 80 baianas mangueirenses, que usariam a fantasia “Irmandades Negras”, baseada no vestuário da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira, também no Recôncavo Baiano22 22 Vale a pena, para compreensão da perspectiva do enredo, retomar a definição da fantasia das baianas no Livro Abre-Alas: “Ainda no contexto da organização de meios para viabilizar práticas de resistência, o surgimento das irmandades negras no Brasil escravocrata setecentista aparece como um grande acontecimento que proporciona ao africano e seus descendentes um espaço de significativa autonomia. Para além de questões ligadas a sincretismos e fatores religiosos (...) em muitos casos, os negros que pertenciam a irmandades conseguiam produzir quantias financeiras que resultavam na compra da alforria junto a seus senhores. Há relatos de mulheres negras que, além de acumularem quantias suficientes para comprarem suas alforrias pessoais, foram capazes também de alforriar os filhos e o próprio marido. Nos séculos XVIII e XIX, muitos dos negros libertos eram membros de mais de uma irmandade, e o trabalho pessoal desses membros foi responsável pela compra de milhares de alforrias Brasil à fora. (...) É com foco no trabalho feminino das mulheres negras que as baianas da Estação Primeira ganham contorno tradicional e majestoso. Apresentam-se como uma rica negra de ganho, vestida com a indumentária tradicional das negras de tabuleiro bem-sucedidas, que ostentam as famosas “joias de crioula” e personificam o poder da negritude bem-sucedida” (Liesa 2019: 359 - grifos meus). , cujos acessórios - penca de balangandãs, joias de crioula e tabuleiros de doces - demandavam um árduo trabalho de confecção. Em uma das pausas, eu circulava pelo barracão até chegar às dependências da Escola de Samba Mirim Mangueira do Amanhã23 23 As escolas de samba mirins são semelhantes às escolas de samba tradicionais, só que compostas por crianças. Geralmente, encontram-se vinculadas a uma escola mãe, que lhes doa as fantasias e alegorias e têm por objetivo garantir a transmissão dos saberes do samba às novas gerações, além de ocupar as crianças com atividades socioculturais. , onde meu olhar foi capturado por um altar.

Àquela altura da pesquisa, a existência de altares nas escolas de samba não era propriamente uma novidade. Embora o foco principal da investigação fosse a presença da religião nos enredos e nos sambas-enredo, eu encontrava referências religiosas em alegorias e fantasias, em práticas de proteção para o sucesso do desfile, em conhecimentos artesanais e em modos de organização das equipes de artesãos que, muitas vezes, acionavam saberes e redes de relações de casas das religiões afro-brasileiras. E como cada escola de samba tem ao menos um padroeiro, geralmente santas ou santos católicos que se hibridizam com Orixás - ou Orixás que se presentificam em imagens de santos e santas católicos -, é comum encontrá-los em altares bem cuidados nos barracões e nas quadras, irradiando sua proteção. No barracão da própria Mangueira, há muito eu já havia identificado altares como o da Figura 19, com São Jorge, São Sebastião e Nossa Senhora.

Figura 19.
Altar no Barracão da Mangueira, 2017.

Mas o altar da Mangueira do Amanhã chamou-me a atenção por lembrar a composição de um altar doméstico: várias imagens superpostas, pequenos terços, santinhos de papel, flores de plástico e de papel, enfeites e brilhos feitos a partir de sobras de tecidos e de acabamentos de outros carnavais, camadas de detalhes. O conjunto estava coberto por um plástico para proteger da poeira das artes do barracão, e eu não consegui movê-lo para melhorar a qualidade da fotografia. Porém, é possível ver, no interior, o chapéu, numa curiosa composição de “altar dentro de altar” (Figura 20).

Figura 20.
Altar na Escola Mirim Mangueira do Amanhã - Barracão da Mangueira, 2023.

Primeiro, o reencontro encheu-me de emoção. Algo daquele carnaval de 2016 havia sobrevivido ao incêndio e à reciclagem. A segunda impressão foi de ternura - não só um chapéu havia sobrevivido, como, em um altar dentro da Mangueira do Amanhã, isto é, dentro da escola infantil da Mangueira, os santos Cosme e Damião seguiam a cumprir sua missão de proteger as crianças e aqueles e aquelas que delas cuidam.

Depois, atentei à composição da cena: se o chapéu na avenida me lembrou da festa de Cosme e Damião na rua, o chapéu no altar do barracão me lembrou das casas que festejam os santos e que adornam suas imagens para celebrá-los (Figura 21).

Figura 21.
Altar doméstico de Cosme e Damião -Tijuca, Rio de Janeiro, 2013.

Os altares domésticos são um lugar muito particular para compreender relações de devoção. Neles, as vidas das devotas e dos devotos vão sendo registradas e colocadas em relação a suas santas e seus santos protetores, em composições que tanto testemunham como mantêm ativa a relacionalidade. Estabelece-se um grau de exteriorização dessa relação, numa espécie de interação mediada por formas materiais arranjadas a partir de uma estética própria, que se manifesta e reconfigura a cada foto colocada, a cada enfeite agregado, a cada combinação refeita. Cada detalhe faz parte dos enredamentos que, aos poucos, vão se configurando e reconfigurando, sendo a observação dos altares domésticos um convite a interpretá-los. No altar da Mangueira do Amanhã, combinava-se a história dos Carnavais da Mangueira à dos funcionários e funcionárias do barracão, acrescida das entidades que se encontravam ali agrupadas, ligando passado, presente e futuro e potencializando forças.

O encontro com a assemblage chapéu-altar atraiu-me ainda por reforçar minha posição quanto às definições e contornos do objeto religioso: o fato de duas imagens de santo terem sido pintadas, cortadas, moldadas e alegorizadas em um chapéu, e depois terem sido usadas no desfile durante o Carnaval, não impedia que elas voltassem à condição de imagens de culto, se é que em algum momento haviam deixado de sê-lo. Quando pensamos na biografia social das coisas, precisamos ir além das formulações de Kopytoff (1990KOPYTOFF, Igor. 1990. “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: A. Appadurai (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press . p. 64-91.) e considerá-la de forma não linear, tampouco unívoca. Ou seja, a crítica de Pierre Bourdieu à ilusão biográfica (Bourdieu 1986BOURDIEU, Pierre. 1986. “L'illusion biographique” . Actes de la recherche en Sciences Sociales, 62-63:69-72.) serve também para a biografia das coisas: as trajetórias não são lineares. Há idas e vindas, o fim pode ser um novo começo, há ambivalências a serem consideradas.

Isso quer dizer que tornar as imagens de santos adereços de Carnaval não significa, necessariamente, apagar suas potências sagradas. Há virtualidades, devires, formas de enquadramento que as reativam, ou que as mantêm ativadas, mesmo que não consensualmente, e mesmo que não de forma óbvia. Talvez o objeto religioso não esteja em uma essência, mas ele seja feito e refeito por meio de formas de enquadramento e de modulações que permitem ativar ou deixar latentes suas potências sagradas. Essa forma de tratamento, que caracteriza minha posição no estudo de materialidades religiosas, torna-se demonstrável através do acompanhamento das distintas posições e estabilizações desse chapéu.

Musealização (2023): efeitos de sacralização dos museus

Ano passado, a trajetória do chapéu ganhou um novo capítulo, no curso da pesquisa Memória e reconstrução dos acervos antropológicos “populares” do Museu Nacional, montada para colaborar com o processo de recuperação da instituição.

Reconstruir o Museu Nacional não é algo dado, ainda mais quando o “mundo dos museus e dos patrimônios” está aquecido pela multiplicação de reivindicações quanto ao direito à memória, à diversidade, à visibilidade, bem como pela crítica decolonial aos processos de espoliação e pilhagem que garantiram a composição de acervos museais; críticas que sustentam demandas de repatriação, devolução e reparação. O desafio posto é saber em que medida é possível transformar um museu da nação em um lugar de produção e guarda de acervos e exposições significativas, de forma respeitosa, dialógica, que contribua para a garantia de direitos, como posto na noção de cidadania patrimonial, que, como ensinou Manuel Ferreira Lima Filho (Lima Fo. 2015LIMA , FILHO Manuel F. 2015. “Cidadania Patrimonial”. Revista Anthropológicas, 26: 134-155.), preocupa-se com os direitos das cidadãs e cidadãos relativos à memória e ao patrimônio.

Na luta pela reinstalação, o Museu conseguiu mais um terreno, o novo Campus de Ensino e Pesquisa, defronte à Quinta da Boa Vista, bem próximo ao morro da Mangueira. Ele conta com um centro de acolhida de visitantes, a Estação Museu Nacional, que será aberta ao público brevemente com uma exposição para crianças: Um Museu de Descobertas. A fim de compor os oito módulos expositivos, o Setor de Museologia convidou alguns professores e professoras da casa para a curadoria. Fui chamada para desenvolver algo sobre o Carnaval, dada a relevância cultural do tema e devido ao fato de estar recompondo a coleção de fantasias do Ludens a partir de doações de algumas escolas de samba, como a Acadêmicos da Grande Rio, a Unidos do Viradouro e a própria Mangueira.24 24 As doações da Grande Rio passam pela mediação dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que apoiam o Ludens desde 2019, quando ainda atuavam no Grupo de Acesso. As doações da Viradouro, pela diretoria da escola, chegaram graças à mediação do enredista João Gustavo Melo. A todos, agradeço a solidariedade e interlocução.

Para a composição do módulo, os critérios estabelecidos eram simples: apresentar pesquisas feitas depois do incêndio, a fim de demonstrar que o Museu Nacional segue vivo e trabalhando intensamente, escolher uma peça de ancoragem, junto à síntese de sua biografia cultural, propor uma atividade lúdica para a interação dos visitantes infantis. E foi assim que conceituei o módulo “Quem sabe, samba - Carnaval e formas de conhecimento”, que explora os saberes associadas às escolas de samba em dois níveis: os conhecimentos narrativos e técnicos trazidos pelos desfiles, com destaques para a bateria e as fantasias; e os conhecimentos que as pesquisadoras e os pesquisadores podem adquirir ao estudá-los.

A peça de ancoragem do módulo, como já deve ser possível imaginar, é um novo chapéu. A partir das relações construídas com os artistas-artesãos do Carnaval, um outro exemplar foi feito para a nova exposição do Museu Nacional, tomando por base o que estava no altar da Mangueira do Amanhã. Entretanto, ele não é a réplica do anterior, mas uma recriação, realizada por um artista do barracão (Figura 22).

Figura 22.
O artista Gustavo Humberto recria o chapéu em sua casa - Duque de Caxias - RJ, 2023.

No processo, foi possível perceber uma série de especificidades da fabricação das fantasias de ala, que, como dissemos, combina a produção em série de elementos de base à acabamentos artesanais. Isto torna as condições de confecção de uma peça única bem diferentes da produção de 80. Há itens que não são feitos ou vendidos por unidade, mas apenas em grandes quantidades, materiais desapareceram do mercado no intervalo de oito anos, e alguns dos procedimentos anteriores, Gustavo Humberto, o artista, recusou-se a repetir - por exemplo, ele disse que jamais cortaria os santos, como haviam sido cortados para estabilizar o primeiro chapéu, porque “santo não se corta”. Optou, para manter o equilíbrio, por utilizar imagens menores, porém inteiras. Portanto, para fazer o chapéu atual, foi preciso contar com a habilidade do artista em recriar o anterior a partir de adaptações, reinterpretações e suas próprias opções estéticas e mesmo religiosas. Isso ajuda a aproximar as fantasias carnavalescas da “arte efêmera”, ou do evento, já que elas não são reproduzíveis e devem florescer em plenitude durante seu uso no desfile.

Além disso, a peça em exposição não é capaz de condensar a experiência do chapéu em uso na Avenida. Ela é algo que materializa e emblema, mas também que simplifica. No entanto, a montagem do módulo tenta recompor sua multidimensionalidade por meio de recursos como vídeos, áudios, fotos e em jogos cenográficos. Sem a pretensão de reproduzir o desfile carnavalesco, nem o Dia de Cosme e Damião na rua, a narrativa expositiva procura evocar essas cerimônias e reuni-las em torno do chapéu, numa ambientação que busca, de alguma forma, remeter a experiências vividas nesses eventos, ou motivar as pessoas a viverem-nas.

Mesmo sendo diferente do chapéu anterior, ou talvez por isso mesmo, trata-se de uma peça extremamente relevante, já que o que interessa etnograficamente não é a pretensa aura de um objeto original, nem a qualidade da reprodução exata de um protótipo. O chapéu recriado é significativo pelo que ele nos permitiu conhecer do processo carnavalesco e por sua capacidade de manter ativo o fluxo de relações que serve de base ao ofício antropológico. E, ainda, por trazer para o acervo de um museu nacional algo do encantamento produzido pelas escolas de samba na Avenida.

Finalizando, sem concluir

Recuperar as muitas vidas de um chapéu de Carnaval me permitiu tratar aqui, a partir da microescala das interações etnográficas, de dinâmicas de classificação e reclassificação das coisas, dando, para isso, exemplos da artificação do religioso, da religiosificação do artístico e da museificação de ambos, em movimentos não-lineares e pluridirecionais, explorando a ambiguidade e a ambivalência, e as situações sociais em que as coisas adquirem o que eu chamei de estabilização - de posição, de significado, de classificação, mesmo que parcial e contingente - ao assumir determinada forma de enquadramento.

Como o professor Costa, meus encontros com o chapéu estimularam novas formas de percepção e de compreensão de meus temas de estudo. No desfile, deparei-me com o chapéu como um elemento que destacava aspectos da devoção a Cosme e Damião em narrativa alegórica. Isso, além de condensar informações sobre a celebração, compunha uma ala que reproduzia sensações e emoções comuns aos dois eventos - busca de doces e desfile carnavalesco - de farra, euforia, alegria. Já o encontrar no barracão possibilitou recuperá-lo na função de altar, ou peça de altar, protegendo os pequenos sambistas e os que deles cuidam, em composição que exemplifica a presença cotidiana dos santos a zelar por seus devotos e dos devotos a cuidar e enfeitar seus santos. Por fim, em exposição, tornando-se acervo, ele se metamorfoseia em artefato cultural que ancora uma narrativa sobre Carnaval como forma de conhecimento, colaborando assim no processo de reconstrução do Museu Nacional.

Retomar nossos encontros permitiu-me retraçar um percurso de pesquisas que remonta a 2013 e que envolve temas como religião vivida, materialidades e festas populares, demonstrando o rendimento de uma antropologia da religião que conceda atenção a objetos, mas que os considere em movimento, com agência e com mudanças de estatuto. Afinal, se no início de tudo havia um chapéu de Carnaval, antes dele havia uma devoção a santos gêmeos, que assumiram a copa de um chapéu como altar. Um suporte devocional singular, porém, que pode integrar-se ao conjunto que inclui imagens tri e bidimensionais, medalhas, camisetas, chaveiros, tatuagens etc. (Menezes, Freitas & Bártolo 2020MENEZES, Renata de C.; FREITAS, Morena B. M. & BÁRTOLO, Lucas (orgs.) 2020. Doces santos: devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro: Museu Nacional.).

Foi também possível atentar aos contornos fluidos e não substantivados do religioso. E, nesse caminho, os objetos religiosos, potentes, apareceram menos como essências ou formas substantivas e mais como resultantes de reenquadramentos e de modulações, que é a abordagem que eu defendo no estudo de materialidades religiosas (Figura 23).

Figura 23.
O chapéu de Carnaval na exposição Um Museu de Descobertas - Museu Nacional, 2023.

Como a história com o chapéu termina? Não tenho como prevê-la. Creio que seguirá aberta, pois, como nos lembra Peter Stallybrass em O Casaco de Marx (Stallybrass 2010STALLYBRASS, Peter. 2010. O casaco de Marx - Roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica Editora.), há coisas que interagem conosco que, apesar de guardarem nossas marcas, adquirirem autonomia e nos ultrapassam. O que imagino e lhe desejo, em sua estabilização atual de peça em exposição no Museu Nacional, é que faça muito sucesso, que ajude as crianças a se identificar com o museu e a ciência, que propicie que os adultos ativem suas memórias e, em alguma medida, possam voltar felizes à infância. E que aqueles e aquelas que não conhecem as duas festas do módulo - a de Cosme e Damião e a do Carnaval das escolas de samba - fiquem com vontade de conhecer. Principalmente, desejo que sua exposição contribua, como a ciência é chamada a contribuir na atual conjuntura, com conhecimento para vencer os preconceitos e combater a intolerância religiosa e o racismo que atacam essas manifestações.

Referências

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  • STALLYBRASS, Peter. 2010. O casaco de Marx - Roupas, memória, dor Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Documentários

  • VALE O ESCRITO. A guerra do jogo do bicho . Direção Fellipe Awi, Ricardo Calil, Gian Carlo Belotti. Rio de Janeiro: Globoplay, 2023. Streaming (376 min).
  • LEI DA SELVA. A história do jogo do bicho. Direção: Pedro Asberg, Rio de Janeiro: CNL Brasil, 2022. Streaming (207 min).

Notas

  • 1
    O artigo é a versão ligeiramente modificada da conferência para promoção à professora titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ, apresentada em maio de 2024. Ele desdobra argumentos iniciais apresentados em Objetográfica, o número comemorativo dos 25 anos da revista Etnográfica, em que 26 antropólogos e antropólogas refletiram sobre o lugar das coisas na disciplina, a partir de um objeto significativo em suas pesquisas (Menezes 2022aMENEZES, Renata de C. 2022a. “Allegorical inspirations of a hat-altar”. Etnográfica, (special number):133-138.). Agradeço a Cyril Isnart e a Octávio Sacramento pelo convite. Outras ideias surgiram na mesa-redonda Materialidades etnográficas II: o acontecer das coisas em composições fabulatórias na XIV RAM, Niterói, em agosto de 2023, organizada por Mylene Mizrahi, com comentários significativos de Marjorie Murray e de Daniela Calvo, a quem também sou grata. Assim como agradeço as observações pós-conferência de Thomas M. Leite, Mariana Ramos de Morais, Cleonardo Maurício Jr. e Edmundo Pereira. Não teria me aproximado de chapéu algum sem a colaboração, no “mundo do Carnaval”, de Paulo Ramos, Mharly Azevedo, Andréa Corrêa, Júlio Cerqueira, Leandro Vieira e Gustavo Humberto. Meu reconhecimento também às equipes das pesquisas Doces Santos, Enredamentos entre Religião e Cultura e Memória e reconstrução dos acervos antropológicos “populares” do Museu Nacional. E à Faperj e ao CNPq, que nos financiaram. Por fim, agradeço à banca de promoção - José Sergio Leite Lopes, John Dawsey, Marcelo Camurça, Miriam Rabelo e Patrícia Birman - bem como às pessoas presentes na cerimônia de titularidade, que muito a engrandeceram.
  • 2
    Em sua tese de doutorado, defendida em 1982 no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), Rio de Janeiro. “As superfícies mínimas especiais são consideradas formas perfeitas da geometria e têm as qualidades de serem completas, de topologia finita, mergulhadas no espaço (R3), e que separam esse espaço em duas regiões onde a superfície é a fronteira comum” (Costa 2021COSTA, Celso José 2021. “Superfície Costa e a Vida Misteriosa dos Matemáticos” [Webinar]. Seminário de EDP e Matemática Aplicada. 21/10/2021. Disponível em Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ABLNh2Q3KbA .
    https://www.youtube.com/watch?v=ABLNh2Q3...
    ). Agradeço a Thomaz M. Leite a referência ao caso do professor Costa, em que os cálculos de equações matemáticas assumiram a forma material por meio da mediação de um chapéu de carnaval.
  • 3
    Uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio de Janeiro, a Mangueira foi criada em 1928, no morro que a nomeou, a partir da reunião de vários blocos. Suas cores são o verde e o rosa, escolhidas pelo compositor Cartola. Ela venceu 19 campeonatos e se apresenta em seu site como “a maior escola do planeta”. (http://www.mangueira.com.br, acessado em 22/05/2024). Dentre os “bambas” da escola, encontram-se sambistas como Nelson Cavaquinho, Tantinho, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, José Ramos, além de outros artistas, como Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Rosimeri e Leci Brandão. Todavia, ultrapassando as figuras ilustres, a Mangueira é reconhecida por ser “tradicional”, por ter “chão” e “samba no pé”, isto é, vínculos comunitários fortes.
  • 4
    Segundo Cavalcanti (2006CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2006. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.:42), o primeiro desfile competitivo aconteceu em 1932.
  • 5
    Há mais de 70 escolas de samba no Rio de Janeiro e, para competir, elas se dividem em grupos qualitativamente hierarquizados. Em 2024, esses grupos eram o Especial, a Série Ouro, a Série Prata, a Série Bronze e o Grupo de Avaliação. A campeã de cada grupo “sobe” para o estrato imediatamente superior e a última colocada “desce” ou “cai” para o estrato inferior.
  • 6
    E com a Internet, os grupos de aficionados se multiplicam exponencialmente, mesmo que concentrados em um nicho de mercado que se autointitula “a bolha do Carnaval”.
  • 7
    Nos últimos anos, cresce a presença das milícias, ainda que em ligas de outros grupos que não o Especial, que segue sob a hegemonia de “banqueiros” do bicho.
  • 8
    Nesse sentido, é oportuno evocar o pioneirismo de Roberto da Matta, então professor do Museu Nacional, nos anos 1970 (DaMatta 1979 DAMATTA, Roberto. 1979. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar.[1973DAMATTA, Roberto. 1973. “O Carnaval como rito de passagem”. In: DAMATTA, Roberto. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes. p. 19-66.]). Como também citar Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, colega da UFRJ que, desde sua tese de doutorado, defendida no Museu Nacional em 1993, inaugurou uma linhagem de pesquisas altamente relevante sobre Carnaval e outras festas populares (Cavalcanti 2006CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2006. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Cavalcanti & Correa 2018CAVALCANTI, Maria Laura V. C. & CORREA, Joana (orgs). 2018. Enlaces. Estudos de Folclore e Cultura Popular. Rio de Janeiro: IPHAN.).
  • 9
    Desde o século passado, as escolas de samba perdem terreno para outras modalidades de Carnaval, sejam da própria cidade, como os blocos no Carnaval de rua, ou sejam para outros estados, como o Carnaval baiano e o pernambucano, com outras manifestações culturais. Porém, o volume de pessoas envolvidas segue grande. Por exemplo, em 2020, no Carnaval pré-pandêmico, 79 escolas de samba estavam programadas para desfilar no Rio de Janeiro, sendo 52 na Intendente Magalhães, 14 no Grupo de Acesso e 13 no Grupo Especial. Pelo regulamento das associações carnavalescas, aproximadamente 62.000 pessoas devem ter desfilado no Sambódromo, sendo cerca de 45.000 no Grupo Especial e, no mínimo, 16.600 no Grupo de Acesso.
  • 10
    Detalhes sobre alas, número de participantes e quesitos pontuados encontram-se em Menezes (2020MENEZES, Renata de C. 2020. “Caos, crise e a etnografia das escolas de samba do Rio de Janeiro”. Hawò, 1:1-38.:7-11).
  • 11
    . “Um bom carnaval [de escola de samba] pode ser visto por uma pessoa surda, compreendido só através das formas, das alegorias, dos figurinos, porque é uma linguagem formal, simbólica, uma linguagem não-verbal; e pode ser entendido por um cego, ouvindo a letra do samba” (Depoimento da carnavalesca Maria Augusta Rodrigues, 1992, apud Ferreira 1999FERREIRA, Felipe. 1999. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de Janeiro: Altos da Gloria. :102).
  • 12
    Alas consideradas fundamentais por caracterizarem uma escola de samba, como a bateria, a ala das baianas, a velha guarda, a ala dos compositores e a ala de passistas, usam fantasias que, mesmo produzidas em série, recebem cuidado especial (Bártolo 2018BÁRTOLO, Lucas. 2018. O enredo de Cosme e Damião no carnaval carioca. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Os demais componentes dividem-se em alas de comunidade, que desfilam com vestimentas cedidas pelas escolas, e em alas comerciais, com fantasias vendidas por seus diretores. As alas comerciais, comuns quando Cavalcanti (2006CAVALCANTI, Maria Laura V. C. 2006. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.) fez sua etnografia nos anos 1990, reduziram-se bastante, tendo acabado em várias escolas.
  • 13
    Para uma noção da escala de produção envolvida, no Carnaval de 2016, em que as crianças da Mangueira usaram a fantasia de Cosme e Damião aqui analisada, a escola de samba desfilou com cerca de 4.300 componentes, divididos em 29 alas, com 28 figurinos diferentes. Para todos foram produzidos, a partir de protótipos, vestimentas, acessórios e calçados.
  • 14
    Com a reforma do calendário litúrgico após o Concílio Vaticano II, os santos passaram a ser comemorados no catolicismo em 26 de setembro. Porém, as religiões de matriz africana guardaram a data de 27 de setembro. O Dia das Crianças, 12 de outubro, costuma ser incorporado às celebrações, que se concluem em 25 de outubro, dia de São Crispim e São Crispiniano, padroeiros dos sapateiros, que na versão popular também seriam santos gêmeos.
  • 15
    Em Menezes, Freitas & Bártolo (2020MENEZES, Renata de C.; FREITAS, Morena B. M. & BÁRTOLO, Lucas (orgs.) 2020. Doces santos: devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro: Museu Nacional.) e em Freitas (2015FREITAS, M. B. M. DE. 2015. De doces e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2021FREITAS, Morena B. M. de. 2021. Coisas de criança: as ibejadas da umbanda. Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.) há um balanço dos estudos sobre o tema.
  • 16
    Em contraponto, é justamente o interesse em acompanhar a religião se fazendo próxima ao cotidiano e articulada por categorias êmicas e não por cânones oficiais que se caracteriza a linha de pesquisa que desenvolvo.
  • 17
    A possibilidade de fabular com as coisas é das dimensões mais políticas do campo das materialidades. Porque nos processos de fabulação, elas podem ajudar a recompor a memória dos invisibilizados, dos que não tiveram direito a registros escritos sobre suas vidas e seu passado. Muitas vezes é nas coisas que restaram que as vidas se inscreveram e que podem ser recuperadas, e é através delas que conseguimos restituir às pessoas o direito à memória e à dignidade.
  • 18
    No âmbito da pesquisa, Lucas Bártolo acompanhou o processo carnavalesco da Renascer de Jacarepaguá para o Carnaval de 2016. Trata-se de uma escola de samba do Grupo de Acesso que desfilou com o primeiro enredo em que Cosme e Damião, na condição de ibeijis, tiveram o protagonismo. Sua dissertação de mestrado (Bártolo 2018BÁRTOLO, Lucas. 2018. O enredo de Cosme e Damião no carnaval carioca. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.) resulta dessa experiência.
  • 19
    Constatação que encontra eco no memorial de titular de meu colega Carlos Fausto: “Minha principal contribuição no mestrado foi descrever um sistema patriavuncular com uma terminologia antes desconhecida. Claro, eu só pude vê-la por que ela estava lá, mas eu só a vi por que estava preparado para vê-la - o que aponta para a complexa imbricação entre teoria e etnografia no desenvolvimento do conhecimento antropológico”. (Fausto 2016FAUSTO, Carlos. 2016. Memorial para promoção a titular. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Departamento de Antropologia. Disponível em https://ufrj.academia.edu/CarlosFausto.
    https://ufrj.academia.edu/CarlosFausto...
    :19)
  • 20
    Diante dos ataques que sofre, o Carnaval precisa legitimar-se - no passado, mas ainda hoje - utilizando diversas formas de enquadramento. Uma delas é como “cultura” - por oposição às qualificações de bagunça, desregramento, desperdício, alienação e de ser “apenas” um espetáculo turístico. Mas há segmentos sociais que defendem sua leitura não como “cultura” e sim como “religião” ou “religiosidade ancestral”; ou não como “cultura brasileira”, mas como “cultura africana”, “cultura negra”, ou “cultura afro-diaspórica”, o que tem ocorrido também com outras festas consideradas como patrimônio nacional. Um panorama das mudanças nas políticas de identidade e nas reinvenções da cultura quanto à questão indígena pode ser encontrado em Oliveira Fo. (2022OLIVEIRA FILHO João Pacheco. 2022. “A luta pelo território como chave analítica para a reorganização da cultura”. In: J. P. de Oliveira Filho (org.). A reconquista do território. Rio de Janeiro: E-papers. p. 11-36.). Sobre as passagens entre religião e cultura e cultura e religião no universo afro-brasileiro, remeto ao trabalho de Morais (2018MORAIS, Mariana Ramos de. 2018. De religião a cultura, de cultura a religião: travessias afro-religiosas no espaço público. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.). Pesquisas desenvolvidas no Ludens têm encontrado situações semelhantes, como a de Mendel (2020MENDEL, Debora Simões de Souza. 2020. Entre raios, trovões e tempestades: festas de Santa Bárbara e Iansã em Salvador. Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.) sobre a festa de Santa Bárbara na Bahia, a de Souto (2023) sobre os congados de Ituiutaba (MG), a de Bassi (2024BASSI, Maria Clara Guiral. 2024. “Vamos fazer uma festa, depois a gente pensa”: família, catolicismo, raça e patrimônio na Festa do Cururuquara/SP. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.) sobre o samba de bumbo do Cururuquara (SP), a de Alyson Matheus sobre a devoção à Virgem de Urkupiña na Bolívia (em andamento), além das pesquisas de mestrado (Bártolo 2018BÁRTOLO, Lucas. 2018. O enredo de Cosme e Damião no carnaval carioca. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e de doutorado (em andamento) de Lucas Bártolo, pioneiras no laboratório sobre o Carnaval.
  • 21
    Trechos do samba-enredo de autoria de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Danilo Firmino, Márcio Bola, Silvio Moreira Filho (Mama), Ronie de Oliveira (Liesa 2019LIESA. 2019. Livro Abre-Alas 2019- Segunda-Feira. Rio de Janeiro: LIESA .:377).
  • 22
    Vale a pena, para compreensão da perspectiva do enredo, retomar a definição da fantasia das baianas no Livro Abre-Alas: “Ainda no contexto da organização de meios para viabilizar práticas de resistência, o surgimento das irmandades negras no Brasil escravocrata setecentista aparece como um grande acontecimento que proporciona ao africano e seus descendentes um espaço de significativa autonomia. Para além de questões ligadas a sincretismos e fatores religiosos (...) em muitos casos, os negros que pertenciam a irmandades conseguiam produzir quantias financeiras que resultavam na compra da alforria junto a seus senhores. Há relatos de mulheres negras que, além de acumularem quantias suficientes para comprarem suas alforrias pessoais, foram capazes também de alforriar os filhos e o próprio marido. Nos séculos XVIII e XIX, muitos dos negros libertos eram membros de mais de uma irmandade, e o trabalho pessoal desses membros foi responsável pela compra de milhares de alforrias Brasil à fora. (...) É com foco no trabalho feminino das mulheres negras que as baianas da Estação Primeira ganham contorno tradicional e majestoso. Apresentam-se como uma rica negra de ganho, vestida com a indumentária tradicional das negras de tabuleiro bem-sucedidas, que ostentam as famosas “joias de crioula” e personificam o poder da negritude bem-sucedida” (Liesa 2019LIESA. 2019. Livro Abre-Alas 2019- Segunda-Feira. Rio de Janeiro: LIESA .: 359 - grifos meus).
  • 23
    As escolas de samba mirins são semelhantes às escolas de samba tradicionais, só que compostas por crianças. Geralmente, encontram-se vinculadas a uma escola mãe, que lhes doa as fantasias e alegorias e têm por objetivo garantir a transmissão dos saberes do samba às novas gerações, além de ocupar as crianças com atividades socioculturais.
  • 24
    As doações da Grande Rio passam pela mediação dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que apoiam o Ludens desde 2019, quando ainda atuavam no Grupo de Acesso. As doações da Viradouro, pela diretoria da escola, chegaram graças à mediação do enredista João Gustavo Melo. A todos, agradeço a solidariedade e interlocução.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2024
  • Aceito
    26 Jun 2024
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