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Fazendo casas, pessoas e mundos (no Recôncavo baiano e em uma favela carioca)

Making houses, people, and worlds (in the Recôncavo Baiano and a Rio favela)

Haciendo casas, personas y mundos (en el Recôncavo baiano y en una favela carioca)

Resumo

Parte das ideias, dos conceitos e das análises da tese de doutorado de Louis Marcelin é colocada em diálogo com pesquisa feita pela autora nos anos 2010 no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O materialismo etnográfico e a abordagem processual presentes na obra, assim como os conceitos de casa e configuração de casas, permitem pensar sobre as favelas e suas casas como expressões da construção recíproca e sempre inacabada de pessoas e dos mundos que habitam.

Palavras-chave:
Casa; Configuração de casas; Favela; Pessoa; Complexo do Alemão

Abstract

Some of the ideas, concepts and analysis of Louis Marcelin's doctoral thesis, are put into dialogue with research carried out by the author in Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, during the 2010s. The ethnographic materialism and the procedural approach of the thesis, as well as the concepts of ‘house’ and ‘configuration of houses’, allows us to think about favelas and their houses as expressions of the reciprocal and always unfinished construction of people and the worlds they inhabit.

Keywords:
house; configuration of houses; favela; person; Complexo do Alemão

Resumen

Algunas de las ideas, conceptos y análisis de la tesis doctoral de Louis Marcelin son puestasen diálogo con la investigación realizada por la autora en los años 2010 en Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. El materialismo etnográfico y el enfoque procesual presente en la obra, así como los conceptos de casa y configuración de casas, permiten pensar las favelas y sus casas como expresiones de la construcción recíproca y siempre inacabada de las personas y los mundos que habitan.

Palabras clave:
Casa; configuración de casas; favela; persona; Complexo do Alemão

Faço trabalho de campo em favelas do Complexo do Alemão desde 2012. O projeto de pesquisa que me levou até lá tratava de economia. Depois dos primeiros meses de pesquisa, já tinha reunido uma boa quantidade de material e tudo me parecia bastante interessante, mas as coisas não se juntavam. Foi a primeira leitura da tese de Louis Herns Marcelin que me fez perceber que as casas não só estavam lá, na economia, nas relações familiares, no centro da vida das pessoas, como só a partir delas era possível dar inteligibilidade a tudo o que, até ali, aparecia no meu caderno de campo de maneira fragmentada. Naquele momento, a noção de configuração de casas, que continua no centro de um grande debate entre muitos de nós, foi a principal proposta teórica que o trabalho me ofereceu para formular a interpretação que proponho, centrada no que chamo de economia cotidiana (Motta 2014MOTTA, Eugênia. 2014. “Houses and economy in the favela”. Vibrant - Virtual Brazilian Anthropology, v. 11 (1):118-158.). A partir dessa leitura e das que outros colegas fizeram do texto, Marcelin se tornou um interlocutor sempre presente. Voltar a essa obra abre sempre novos caminhos, o que expressa suas qualidades excepcionais.

Em um primeiro plano, a tese é importante por colocar a casa no centro da análise a partir da sua centralidade na vida das pessoas. Mas sua maior contribuição, pude perceber mais claramente agora, é oferecer propostas analíticas e teóricas que permitem pensar questões, objetos e realidades sociais diferentes daquelas que foram objeto da atenção mais explícita do autor. Isto se dá especialmente no que diz respeito ao enfrentamento consistente de normatividades e grandes divisões interpretativas. Esta é uma qualidade difícil de se atingir. Vou mostrar, então, como isso se aplica a algumas das minhas questões de pesquisa, chamando a atenção, primeiramente, para o que considero duas características importantes da abordagem proposta por Marcelin: um certo tipo de materialismo e a atenção aos processos e à duração.

Nessa nova leitura da tese o que mais se destacou foi o tema da gênese da casa, afinado com meu interesse nas vidas das casas, a partir do seu outro lado, o da morte. Não tanto para como as casas nascem, mas como elas morrem, desaparecem, quando fracassam projetos coletivos (Motta 2020MOTTA, Eugênia. 2020. “Uma casa boa, uma casa ruim e a morte no cotidiano”. Etnográfica, v. 24 (3): 775-795.) ou são materialmente destruídas para dar lugar a obras de urbanização. Na tese de Marcelin não há menção à morte das casas. Mas se elas nascem, elas também morrem. É no tratamento do que eu chamo de vida das casas que aparecem claramente as duas estratégias interpretativas que citei anteriormente.

Uma das características da análise proposta por Marcelin é seu materialismo antieconomicista. Um materialismo no qual não há determinação por cima, nem puro constrangimento por baixo. Marcelin recusa uma interpretação ligada à noção de “pobreza” e “classes populares” que se assente sobre a ideia de que entre algumas pessoas existe uma incapacidade de se realizarem coisas da maneira como deveriam. Na contramão disso, o que vemos é que, quando as pessoas fazem coisas - edifícios concretos, objetos, preparam comida - elas estão fazendo a si mesmas e o mundo que habitam. Esse materialismo talvez seja apenas boa etnografia.

É possível levar tal abordagem para se pensar, por exemplo, uma questão discutida há décadas e ainda presente, que diz respeito à especificidade das favelas, estendendo o fundamento da interpretação de Marcelin para espaços mais amplos que a casa. Ele mostra que a casa é a realização da possibilidade de experiência da família. Na primeira vez em que li o texto, esta proposição me pareceu tautológica. Mas agora não acho que seja. As casas na favela certamente são, como as casas no Recôncavo baiano, a realização da domesticidade, mas elas são também a realização da possibilidade de uma experiência urbana, de uma forma de se estar na cidade.

Quando as pessoas estão fazendo casas no morro e construindo a possibilidade de uma urbanidade, a efetivação dessa urbanidade, que é a própria favela, não é a concretização de um projeto que fora formulado antes em algum lugar. É o resultado de projetos, de projeções de futuro que só se expressam quando se materializam ou estão se materializando. Isto se parece com a ideia de domesticidade, que é uma potência que existe antes, mas que “precisa” da casa para se realizar, o que talvez seja o que Marcelin chamou de “imperativo de sociabilidade”:1 1 Esta expressão foi usada pelo autor na apresentação oral que abriu o evento que deu origem a este texto. aquilo que existe previamente, que move as pessoas para que façam coisas concretas - aí está a importância do materialismo que citei antes - e que se efetiva quando estão sendo construídas.

Esta possibilidade interpretativa é um bom exemplo de como as propostas de Marcelin podem ser úteis para se pensarem outros tipos de investimentos espaciais além da casa. Isso nos tira de dilemas, como se a favela fosse mais ou menos cidade, uma anomalia ou uma solução, e coloca a questão de outra forma. A pergunta passa a ser: que mundos as pessoas estão construindo quando fazem e habitam suas casas na favela? Permite pensar como a liberdade construtiva nesses lugares - a possibilidade de transformar os espaços por meio da ampliação e da modificação dos edifícios e das vias de circulação, por exemplo - participa dessa construção, prescindindo dos esforços classificatórios dicotômicos comuns.

Junto a esse materialismo e à atenção à gênese da casa está a segunda contribuição central da tese de Marcelin: a noção de processo. O trabalho tem uma parte propriamente histórica extensa, mas a atenção às transformações no tempo da vida comum traz uma dimensão completamente diferente e que me interessa mais fortemente: as casas (as pessoas, o mundo) precisam ser feitas e sua construção mesma é o que importa, já que nunca se conclui. Casas, pessoas e mundo estão sendo feitos o tempo todo, tornando-se algo, sem que cheguem a um resultado final, acabado. Esta é uma historicidade vital.

Também descrevi a importância da construção das casas na favela, mostrando como o nascimento delas se articula com hierarquias duradouras (mas não imutáveis) nas configurações. Pensando hoje sobre o fim da vida das casas (e nas casas), para mim é claro que a destruição, o desaparecimento delas, termina por completar a análise sobre as casas como processo, chamando a atenção para a duração e para as transformações.

A micro-historicidade e o materialismo etnográfico de Marcelin apontam para o cotidiano e sua importância na construção dos laços familiares, muito afim com a abordagem de vários autores contemporâneos dedicados ao estudo do parentesco e das famílias. Mas, além disso, o olhar voltado para o cotidiano também permite enxergar as ambiguidades, os conflitos e, às vezes, a violência que estão presentes no tocar a vida, além de sua contingência. E permite também evidenciar a relação disso com a construção dos espaços, das favelas, das cidades.

Quero tratar de três outras questões mais pontuais. Na tese há uma rápida menção à possível utilidade da noção de configuração de casas para se pensar sobre economia. De fato, ela permite fugir da dicotomia entre mercado e domesticidade, que é mais um desses binômios que podem nos atrapalhar na compreensão de processos reais. Mas há outra questão que cada vez mais me parece relevante, que diz respeito à relação entre movimento e fixidez. A casa é representação, é instituição e também materialidade e não conseguimos evitar apresentar esse arranjo por meio de outras polaridades como “material e simbólico”, “imaginado e concreto” etc. O que me parece cada vez mais fundamental é que, como afirmou Mary Douglas (1991DOUGLAS, Mary. 1991. “The idea of a home: a kind of space”. Social Research, v. 58 (1): 287-307.), a casa é sempre um “onde”. Ela é sempre situada. Mesmo que seja imaginada, que a ela não corresponda nenhuma materialidade, ela é sempre um lugar fixo no mundo, o que me leva ao meu penúltimo ponto.

Ficou evidente nos últimos anos o quanto a noção de casa é útil em termos comparativos. Ela permite colocar em diálogo substantivo realidades etnográficas bastante distintas, como demonstra, por exemplo, a variedade de questões e de contextos de que tratam os textos desta seção. É útil para abordar questões distintas - economia, família, urbanidade, mobilidade. Mas por que isso é possível? Que tipo de universalidade, ou recorrência, que imperativo de sociabilidade encontra na casa a sua primeira realização? Como citado no texto de André Dumans Guedes nesta seção, mesmo para as pessoas que não moram em casas, a casa está ali, pedindo para ser feita. Isto permite pensar em lugares com diferentes graus de casidade, ou seja, que possuem elementos que os aproximam ou afastam da experiência de uma casa plena, completa. Tal completude, esse ideal, é expresso pelos nossos interlocutores em campo e se manifesta por meio do desejo de fazer obras onde se mora ou de voltar para seus lugares de origem.

Lembrando do texto de Georg Simmel sobre a ponte e a porta (1958SIMMEL, Georg. 1958. Brücke und Tür. Essays des Philosophenzur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft. Stuttgart: K. F. Kohler Verlag.), me parece que a porta da casa é a primeira que se constrói, aquela que antes de todas as outras faz existir um lado de dentro e um lado de fora, e assim constitui nossa primeira maneira de estar no mundo. Será então por isso? A casa é um imperativo humano? É isso que primariamente fazemos no mundo? Moramos?

Minha última questão conecta estas perguntas novamente com a materialidade e o cotidiano. A casa opera relações entre pessoas e seus objetos. No lugar onde faço trabalho de campo, o que faz com que uma pessoa considere um lugar como “minha casa” são três fatores. É o lugar onde ela dorme preferencialmente e mais frequentemente, é onde ela pode comer a qualquer momento e cuidar de seu corpo, e é também onde estão as “suas” coisas, onde estão guardados aqueles objetos que constituem ela mesma como pessoa e como parte de coletividades e de outras pessoas: os documentos pessoais, as fotos de família, as relíquias de antepassados, por exemplo. Fazem parte da materialidade da casa esses elementos menos fixos que as paredes e o telhado, mas que promovem as relações mais íntimas e primárias entre pessoas e coisas.

Marcelin abriu um horizonte ao pensar sobre as casas etnograficamente. Não há maior qualidade em uma obra que aquela de continuar suscitando novas conversas para além de seus temas mais imediatos. Continuaremos lendo Marcelin.

Referências bibliográficas

  • DOUGLAS, Mary. 1991. “The idea of a home: a kind of space”. Social Research, v. 58 (1): 287-307.
  • MOTTA, Eugênia. 2014. “Houses and economy in the favela”. Vibrant - Virtual Brazilian Anthropology, v. 11 (1):118-158.
  • MOTTA, Eugênia. 2020. “Uma casa boa, uma casa ruim e a morte no cotidiano”. Etnográfica, v. 24 (3): 775-795.
  • SIMMEL, Georg. 1958. Brücke und Tür Essays des Philosophenzur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft Stuttgart: K. F. Kohler Verlag.

Nota

  • 1
    Esta expressão foi usada pelo autor na apresentação oral que abriu o evento que deu origem a este texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2021
  • Aceito
    19 Jul 2021
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