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PERUTTI, Daniela. 2022. Tecer amizade, habitar o deserto: território e política no quilombo Família Magalhães. São Paulo: Edusp. 320 pp.

PERUTTI, Daniela. . 2022. Tecer amizade, habitar o deserto: território e política no quilombo Família Magalhães. São Paulo: Edusp. 320 pp.

Tecer amizade, habitar o deserto é uma etnografia exemplar, que apresenta respeito pelos interlocutores, atenção aos detalhes e uma escrita cuidadosa. O livro resulta de tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo em 2015, mas a reflexão se iniciou bem antes de Daniela Perutti pôr os pés no quilombo Família Magalhães, lugar da pesquisa, realizada entre 2011 e 2014. Em atuação profissional na organização Comissão Pró-Índio de São Paulo entre 2004 e 2011, Perutti foi responsável por monitorar ações governamentais para a titulação de terras de quilombos. Um ano antes, o recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto de regulamentação do direito das comunidades quilombolas às terras que ocupam, afirmado pela primeira vez na Constituição de 1988. Com a nova Carta, houve uma mudança no sentido do termo “quilombo”, que deixou de ser sinônimo de lugar de fuga e isolamento para tornar-se referência de mobilização e reivindicação de direitos (Arruti 2006ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: Antropologia e História no processo de formação quilombola. Bauru: Edusc.). A máquina pública parecia finalmente ganhar tração para trabalhar a favor de grupos historicamente alijados de reconhecimento. No contato com funcionários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsáveis pelas demarcações, a autora informou-se sobre Família Magalhães. Decidiu conhecer o quilombo para compreender os efeitos concretos das ações que monitorou.

O resultado da incursão se divide em cinco capítulos. O primeiro, “Ser Kalunga, ver o Kalunga”, a autora discute as relações entre Família Magalhães e Kalunga. O primeiro reúne pouco mais de cem pessoas (em 2014) na Fazenda Lavado, município de Nova Roma (GO), e tem vínculos com o segundo, o maior quilombo contemporâneo brasileiro, formado no século XVII no nordeste de Goiás (Karasch 1996KARASCH, Mary. 1996. “Os quilombos do ouro na capitania de Goiás”. In: João José Reis & Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. p. 240-262.). A família se formou das andanças de um kalungueiro, João Magalhães (1906-1977), pelo entorno do rio Paranã. Na década de 1940, casou-se com Sebastiana (1924-), filha de uma kalungueira criada em uma fazenda da região. Na primeira década juntos viviam de trabalhos temporários enquanto nasciam os primeiros filhos. A mulher, cansada dos deslocamentos constantes, insistiu em se estabelecer na fazenda Lavado, onde criaram porcos em acordo com seu gerente, “à meia”, pois dividiam com ele os ganhos. Sebastiana vislumbrou ali o deserto, um bom lugar para seus filhos crescerem longe de vícios como o cigarro, a bebida e a “malandragem” (:101) e de gente propensa à briga. João, ao contrário, era uma pessoa exemplar, que ajudava a todos - inclusive fazia partos e curava doentes - e jamais se indispôs com alguém. Ao deserto se contrabalançavam amizades e ajudas de afilhados e compadres.

O casal tinha um acordo com o dono do lugar, que só aparecia para pescar de vez em quando e garantia que a família vivesse de seu trabalho na terra. A venda da fazenda para outras pessoas gerou as primeiras pressões para que os Magalhães saíssem da região. Na década de 1990, uma viúva e seus filhos, que afirmavam ser donos do lugar, contrataram um advogado e pistoleiro para tirar Sebastiana e seus descendentes dali. A violência tomou conta do cotidiano do Lavado com a destruição de cercas, o roubo de produtos da roça, os maus-tratos ao gado e as ameaças de morte. Também se iniciaram na Justiça as tentativas de expulsar os Magalhães da região.

Em 2003, chegaram ordens de despejo, e a família procurou se articular com políticos de Nova Roma para se manter nas suas terras. No ano seguinte, ao saber que Lula lançaria o “Programa Mais Quilombola” em um povoado Kalunga vizinho à cidade, o prefeito providenciou uma documentação e, com uma comitiva que incluía os filhos de Sebastiana, deslocou-se até lá. Um amigo da família entregou a papelada nas mãos do presidente que, de volta a Brasília, respondeu à prefeitura que tomaria as medidas cabíveis. As agressões ainda persistiram algumas semanas depois desse evento. O advogado, que ambicionava outras áreas da região e aterrorizava seus moradores como fazia com os Magalhães, foi assassinado em circunstâncias nunca esclarecidas. Foi só após essa morte violenta e o fim das ações possessórias que foi determinada a desapropriação da fazenda Lavado para Sebastiana e seus descendentes. Em 2012, Dilma Rousseff assinou o decreto de desapropriação, que declara o interesse social da área. Mas, desde então, o processo está paralisado, e a ação judicial que daria continuidade ao processo sequer foi ajuizada.

A frustração por um futuro que não se realiza - em que seria possível obter projetos como, por exemplo, de comercialização de frutos do Cerrado - se contrapõe à percepção de um passado violento e de grande necessidade material. Entre os dois, está a existência possível de Família Magalhães, que se atualiza de duas maneiras: pela amizade, a propensão às relações pessoais de fora - vizinhos, compadres, políticos -; e pela política, que provoca cizânia e, num passado recente, dividiu o grupo em dois, cada qual em apoio a um grupo político da cidade. A abordagem segue, portanto, a proposta de verificar etnograficamente como conflitos políticos constituem relações familiares no país (Marques; Comerford & Chaves 2007MARQUES, Ana Claudia; COMERFORD, John & CHAVES, Christine de Alencar. 2007. “Traições, intrigas, fofocas, vinganças: notas para uma abordagem etnográfica do conflito”. In: Ana Claudia Marques (org.), Conflitos, política e relações pessoais. Fortaleza: UFC; Campinas: Pontes. p. 27-55.).

E tal conflito tem efeitos na composição do quilombo. Este é o mote do segundo capítulo, “Geopolíticas do Lavado”, que discute os dois “lados” do quilombo. Os “de cima”, as filhas de Sebastiana e seus descendentes, estão à jusante do rio Paranã e apoiavam o PMDB e o PT; os “de baixo”, os filhos da matriarca e suas famílias, à montante e votavam no PSDB. A divisão produz ainda formas de sociabilidade. Especialmente nos momentos em que a política toma conta do cotidiano, como nas campanhas eleitorais, gestos cotidianos são evitados: madrinhas ignoram os pedidos de bênção dos afilhados; visitas entre compadres se interrompem; e, se por algum motivo são necessárias, os de fora recusam as merendas de seus anfitriões.

Os Magalhães, embora lamentem a situação e ativem uma memória positiva do tempo em que tal divisão não existia, participam apaixonadamente da política local. Para tanto, a autora apresenta, no terceiro capítulo, “Nova Roma: a rua por um fio”, a importância dos vínculos entre o quilombo e a sede do município o qual está estabelecido - sua população é de apenas 3.470 pessoas, segundo estimativa feita em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) -, em que a prefeitura é a principal empregadora e fonte de acesso a recursos variados. No capítulo seguinte, “Prefeituras em movimento e a política que não acaba”, Perutti discute cuidadosamente concepções e práticas do grupo a respeito da política municipal. O direito ao voto ali é conquista recente (talvez não seja demais lembrar que sua universalização no Brasil ocorreu apenas com a Constituição de 1988, promulgada após mais de duas décadas de ditadura) e foi viabilizada em meados da década de 1990. Para eles, o voto tem sentido de adesão - uma posição pública de compromisso entre eleitor e candidato - e não de escolha individual e impessoal. Quem vence tem à disposição a possibilidade de angariar pedidos: um emprego, algum dinheiro em situação de extrema precariedade, um carro para emergência médica. Aos perdedores, resta o exílio na própria terra e a espera de um resultado favorável nas eleições seguintes.

Nas eleições para a Presidência da República, contudo, tal dinâmica se altera. Este é o assunto do capítulo 5, “Governo federal: cada casa, uma carta”. Sendo “de cima” ou “de baixo”, os Magalhães reconhecem no encontro com Lula o fim das ameaças de despejo e a expectativa de posse de suas terras. Associam também o fato de o presidente ter vivenciado a carência material com as políticas para quilombolas promovidas no período, como o recebimento de cestas básicas pela Companhia Nacional de Abastecimento; o acesso prioritário ao Programa Bolsa Família; o recebimento de aposentadoria rural pelos idosos, uma política que já vinha sendo implantada no país, mas só se efetivou para o grupo naquele momento. Nas eleições de 2014, em que Dilma Rousseff disputou o segundo turno com Aécio Neves, todos os Magalhães votaram na candidata. Até mesmo os políticos do PSDB local reconheciam a legitimidade da adesão, pois avaliavam que Lula havia feito muito pelos quilombolas. Os moradores “de baixo”, dessa forma, apertaram o 45 para governador, senador e deputados, mas 13 para presidente. Mas não fizeram campanha aberta para o PT, de modo a não afrontar seus aliados.

Para os quilombolas da fazenda Lavado, suas práticas distintas nas escalas da política institucional vêm da percepção de que, em âmbito federal, as ações são para todo o grupo - as cestas básicas, os benefícios sociais e a terra - e não apenas para o lado que ganha as eleições, como ocorre em relação à prefeitura. Contudo, entre os candidatos, apenas a apoiada por Lula estava comprometida com o combate à pobreza. Aécio, assim, poderia obter votos entre os ricos, mas os pobres que votam nele são incompreensíveis: ao pensarem com “cabeça de rico”, se esquecem que “passaram fome” (:238). A vitória apertada de Dilma permitiu, naquele dia, uma alegria discreta entre os “de baixo” e o êxtase dos “de cima” (:237-242), que pulavam e gritavam como torcedores de um time campeão. Uma carreata na sede do município, com intensa participação dos Magalhães, se alternou entre casas de adversários políticos, provocados pelo jingle da vencedora e frases como “Toma essa taca, puxa-saco do Aécio!”, e de correligionários, cujos moradores saudavam os manifestantes dançando e agitando bandeiras vermelhas.

A pesquisa se fecha insinuando um contraponto entre o presente, que produz o quilombo sobretudo nas relações que a família estabelece com os de fora, sobretudo quando chega o “tempo da política” (:178), e um eventual andamento da titulação da terra, em que novas relações poderiam se estabelecer. Os sete anos de crise política e econômica que marcaram o intervalo entre a defesa da tese de Daniela Perutti e a publicação do livro levaram à paralisação dessas políticas - infelizmente jamais consolidadas - de titulação de terras quilombolas, bem como à vergonhosa marca de um terço da população brasileira em situação de insegurança alimentar moderada e grave. As questões que desafiam Família Magalhães e tocaram a autora ganharam, nesse intervalo, ainda mais importância. Por isso, Tecer amizade, habitar o deserto é uma leitura de interesse não apenas de especialistas, mas de todos que concebem o fazer antropológico como porta de entrada para os impasses do país, e a política, seu lugar de transformação.

Referências

  • ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: Antropologia e História no processo de formação quilombola Bauru: Edusc.
  • KARASCH, Mary. 1996. “Os quilombos do ouro na capitania de Goiás”. In: João José Reis & Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil São Paulo: Companhia das Letras. p. 240-262.
  • MARQUES, Ana Claudia; COMERFORD, John & CHAVES, Christine de Alencar. 2007. “Traições, intrigas, fofocas, vinganças: notas para uma abordagem etnográfica do conflito”. In: Ana Claudia Marques (org.), Conflitos, política e relações pessoais Fortaleza: UFC; Campinas: Pontes. p. 27-55.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2023
  • Aceito
    21 Fev 2024
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