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Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o projeto Kaiowa-Ñandeva como experiência antropológica

RESENHAS

Fabio Mura

Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

THOMAZ DE ALMEIDA, Rubem Ferreira. 2001. Do Desenvolvimento Comunitário à Mobilização Política: O Projeto Kaiowa-Ñandeva como Experiência Antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 226 pp.

Do Desenvolvimento Comunitário à Mobilização Política é a publicação de parte substantiva da dissertação de mestrado apresentada pelo autor ao PPGAS-MN-UFRJ, em 1991. Posicionando-se o leitor a distância de um empenho etnográfico e de ação sobre as povoações guarani, o livro poderia ser classificado simplesmente como um dos tantos produzidos sobre esses índios. Ele poderia destacar-se simplesmente como relato da experiência de um projeto, leitura esta fácil de ser feita considerando-se a própria moldura narrativa que o autor nos oferece. Acredito, porém, que sua originalidade se encontra, mais que tudo, na tensão constante que implicitamente se estabelece entre as experiências que são apresentadas e a literatura sobre os Guarani com a qual o autor pretende dialogar.

Em seu trabalho, Thomaz de Almeida dedica-se a descrever as fases de inserção do Projeto Kaiowa-Ñandeva (PKÑ), por ele criado em meados dos anos 70, no campo de ação indigenista onde já atuavam a FUNAI, algumas missões protestantes e, em 78, veio a apresentar-se também o CIMI. Essa inserção se caracterizava pela intenção de dar continuidade, com uma postura crítica e uma metodologia antropológica, aos Projetos de Desenvolvimento Comunitário que vinham sendo implementados pelo órgão tutelar.

Em um primeiro momento, norteado por uma literatura que apresentava os Guarani do Mato Grosso do Sul (MS) como em avançada fase de aculturação, Thomaz de Almeida pensava em apoiar os índios fomentando atividades coletivas, a partir do raciocínio de que a vida social e econômica nas aldeias deveria estar desorganizada. O trabalho desenvolvido pelo Projeto, contudo, progressivamente, trouxe à tona formas específicas de organização social e econômica baseadas em regras de trocas que apresentavam uma realidade indígena claramente destoante daquela descrita nos estudos anteriormente realizados. O PKÑ encontrou não poucos obstáculos no desenvolvimento de suas atividades, muitos deles decorrentes dessa realidade. Para poder lidar com os índios, além das pressões políticas que eram colocadas em prática pelos diversos atores que se inseriam no referido campo de ação indigenista, havia que se levar em consideração duas características reguladoras das interações sociais: respectivamente, o kise yvyra (faca de madeira), que indica a atividade de fazer fofoca ­ entendida pelos Guarani como política ­, e o ñembotavy (fazer-se de bobo), atitude socialmente organizada pelos índios e manifestada em situações em que se percebem em uma posição de subordinação.

Os relatos referentes à entrada do PKÑ em várias reservas indígenas, assim como aqueles sobre as situações políticas geradas pela relação entre índios e agentes brancos, são articulados sempre a partir dessas variáveis. A importância analítica que lhes é dada pelo autor nos parece uma relevante contribuição à etnografia sobre os Guarani e suas relações interétnicas, uma vez que permitem ver o teko (maneira de ser) "em ação", e não como a literatura específica sobre esse povo geralmente o apresenta, isto é, como ética abstrata e religiosamente regulada por um sistema teológico. De fato, embora nas passagens mais teóricas o autor sinta necessidade de lançar mão dessa literatura para fundamentar sua argumentação (levando a análise para uma desnecessária formalização e abstração da cultura do povo trabalhado), suas observações e descrições dos comportamentos indígenas em circunstâncias específicas (nas reuniões de lideranças, de representantes de "grupos de roças" fomentados pelo PKÑ, na interação com missões religiosas e representantes da FUNAI) colocam em evidência a natureza essencialmente política e processual da gestão dos valores. Os atores são apresentados politicamente posicionados, suas atuações dependendo do próprio nível de inserção nas arenas, onde os enfrentamentos diretos são geralmente regulados através do jogo do ñembotavy.

Levando em consideração essas variáveis e tentando compreender os limites impostos pelo jogo do ñembotavy, o PKÑ passou a atuar o máximo possível em consonância com as expectativas indígenas, o que no correr do tempo ocasionou a mudança de foco do Projeto das atividades agrícolas para um assessoramento jurídico, em função da crescente demanda fundiária dos Guarani do MS. Este último aspecto é pouco tratado no corpo do livro, mas claramente indicado no posfácio como prioridade atual dadas as condições socioterritoriais desses índios.

A visão dinâmica dos Guarani que o autor nos oferece com seu registro narrativo é o resultado, também, de uma abordagem que priorizava a produção de um conhecimento "comprometido", tendo presente a necessidade de entender a realidade para atuar ­ objetivo evidente do PKÑ. Nestes termos, um fenômeno muito relevante a ser entendido, tido como possível elemento de desarticulação do trabalho dos agentes antropólogos e da própria sociedade guarani, era a changa. Esta atividade realizada pelos índios constituiu-se (e ainda se constitui) como um trabalho assalariado fora das áreas indígenas (geralmente em fazendas e, recentemente, também nas usinas de álcool), freqüentemente de pouca duração, mas que mobilizava grande quantidade de indivíduos. Tendo como objetivo buscar formas de ação que levassem os Guarani, tanto quanto possível, à auto-suficiência econômica, combater a changa pareceu, em um primeiro momento, tarefa obrigatória do PKÑ. Sob esse prisma, há que se ver o esforço do autor em delinear as características desse fenômeno, ao qual dedica um capítulo inteiro, e cuja importância nos parece fundamental salientar.

A exaustiva descrição da atividade da changa nos permite observar o quanto a visão negativa que o autor tinha dessa atividade se foi transformando através do progressivo conhecimento etnográfico adquirido no correr da atividade dialógica do Projeto. Os princípios de organização social e as políticas desenvolvidas pelos Guarani são elementos fundamentais para se compreender a formação histórica desse fenômeno, e o autor os coloca em destaque. Outro fator por ele salientado e que muitas vezes decorre das atividades de changa, é o estabelecimento de relações de compadrio entre índios e "patrões" brancos, determinando interessantes formas interétnicas de patronagem. Ademais, Thomaz de Almeida deixa claro que atualmente a changa pode chegar a ter também a função de "ritual de passagem". Isto devido ao fato de que um grande número de jovens do sexo masculino se dedica a essa atividade com o propósito de ampliar as próprias experiências sobre o mundo e ganhar certa autonomia econômica em relação às famílias de origem, o que favorece a constituição de novos núcleos domésticos e a integração de novos conhecimentos.

Nesse sentido, a abordagem do autor nos leva a entender os índios em função de suas atividades contemporâneas, entre as quais se pode incluir propriamente a changa, e não da suposta "conservação" de uma autenticidade indígena, cuja elaboração conceitual e definição social seriam perpetuadas a partir de um passado remoto. Se se pensa que no Mato Grosso do Sul o ritual "tradicional" de iniciação masculina dos Guarani Kaiowa, o kunumi pepy, realiza-se em apenas uma aldeia, com um reduzido contingente de neófitos, entender quais os desdobramentos iniciáticos entre esses índios não é coisa de pouca monta. Lamentavelmente, estudos nesta linha são raros, preferindo-se privilegiar os últimos vestígios de rituais tidos como "autenticamente" guarani. Em conseqüência disso, são desprestigiados outros aspectos da vida social indígena, notoriamente os mais difundidos na realidade contemporânea. Assim, fenômenos como a changa são considerados como conseqüência de fatores exógenos, cuja presença é tida como corruptora da suposta pureza originária dos índios. Tendo em vista o panorama de pesquisas que geralmente nos oferecem os estudos sobre os Guarani, os dados e as descrições fornecidos por Thomaz de Almeida parecem-nos fundamentais para poder começar a refletir e reverter o estéril processo de essencialização ao qual foram submetidos esses índios.

No capítulo dedicado à organização espacial dos Guarani contemporâneos, o autor instaura uma discussão com Schaden, que, na década de 50, havia declarado esses índios em estado avançado de aculturação. Era nas formas de viver e de habitar contemporâneas desses índios que Schaden via, entre outros, os indícios de uma perda substancial dos traços culturais do passado e da sua organização social. Os dados e a análise apresentados no capítulo contrastam com essa tese. Thomaz de Almeida descreve como as famílias nucleares, que constituem em conjunto um te'yi (família extensa), formam um grupo articulado de produção e consumo, sendo suas habitações distribuídas em uma região específica da aldeia sobre a qual esse te'yi tem direito exclusivo. O autor mostra também como, por ocasião dos rituais, a união do grupo macrofamiliar fica evidente, visto que no pátio onde se oficia a cerimônia as famílias nucleares se distribuem espacialmente, com seus "fogos", seguindo esquemas similares aos vigentes nas habitações do passado, quando estas moravam todas juntas sob um único teto.

Embora com propósitos opostos, tanto Schaden quanto Thomaz de Almeida concentram-se sobre as perspectivas de continuidade temporal da cultura indígena. Mas se para Schaden dedicar atenção ao que se "conserva" foi central para a teoria da aculturação por ele advogada (a qual tinha como parâmetro uma vida indígena atemporal), no caso de Thomaz de Almeida as argumentações enfatizam mais as características adaptativas da organização social indígena em face do contato interétnico vivido pelos Guarani, em virtude também das diversas ações indigenistas por eles sofridas no correr da história.

Nas reflexões feitas no capítulo conclusivo, o autor, dedicando-se especificamente às características culturais dos Guarani, dá ênfase especialmente aos aspectos considerados como "símbolos antigos", os quais assumiriam funções contemporâneas em contraposição a uma visão dos mesmos elementos tomados por Schaden como reminiscências ou vestígios de instituições de um passado remoto. Porém, muitas vezes, a tentativa de exaltar uma diversidade étnica entendida como "autenticidade" leva Thomaz de Almeida ao risco de cristalizar os traços culturais considerados como imemorialmente indígenas, reproduzindo a hierarquia geralmente estabelecida nos estudos guaraníticos entre as atividades tidas como "sagradas" e aquelas consideradas "profanas". É sob essa ótica que o papel do xamã é valorizado excessivamente na sua função religiosa e filosófica, sendo colocada em segundo plano a sua contribuição para a definição dos aspectos políticos e sociológicos que favorecem a organização da realidade cultural indígena, aspectos estes que são, na verdade, os que mais ganham destaque no livro.

Precisamente para resgatar as múltiplas dimensões de uma realidade indígena contemporânea e sua relação com o mundo regional, com o qual ela dialoga e do qual se diferencia marcadamente, convidamos, então, o leitor a considerar as passagens mais formalizadas do trabalho não fechadas em si mesmas, mas em função do registro narrativo que o autor dá ao livro como um todo, narrativa esta que oferece um paradigma original para enquadrar lógicas culturais, processos sociais e relações políticas à luz de relatos tão ricos como os apresentados por Thomaz de Almeida.

Por fim, é relevante destacar quanto a qualidade das descrições etnográficas e dos dados apresentados em Do Desenvolvimento Comunitário, frutos da experiência de um projeto, permite questionar a estéril divisão entre uma antropologia acadêmica e uma antropologia prática, colocando em evidência a importância das múltiplas formas de gerar conhecimentos, todos cientificamente pertinentes para o desenvolvimento da disciplina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2002
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