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LIMA, Maria Raquel Passos. 2021. O Avesso do Lixo: materialidade, valor e visibilidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 408 pp.

LIMA, Maria Raquel Passos. . 2021. O Avesso do Lixo: materialidade, valor e visibilidade . Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 408pp.

Nos últimos anos a vida dos setores populares a partir do lixo na América Latina tem ganhado a atenção das acadêmicas e dos acadêmicos (Cf. Millar 2018MILLAR, Kathleen M. 2008. Reclaiming the Discarded. Life and Labor on Rio’s Garbage Dump. Durham: Duke University Press.; Perelman 2023PERELMAN, Mariano. 2023 “Informal collection in Buenos Aires. behind and beyond the crisis”. Vibrant. Virtual Brazilian Anthropology, v. 20:1-23. ; Reno & Alexander 2012RENO, Joshua & ALEXANDER, Catherine (eds.). 2012. Economies of recycling: the global transformations of materials, values and social relations. Londres: ZED books.). O Avesso do Lixo, de Maria Raquel Passos Lima, é um livro essencial para compreender a(s) vida(s) - esses múltiplos avessos - do lixo e das pessoas que vivem dele. Ao mesmo tempo, é um livro importante em termos de teoria antropológica sobre os debates em torno do trabalho, da materialidade dos objetos e da produção de valor. A autora recorre a um abundante material etnográfico construído ao longo de quinze meses, de abril de 2011 a junho de 2012, e a uma combinação teórica e metodológica que propõe abordagens inovadoras para o estudo dos catadores, bem como para a produção de valor(es). O livro traz uma lufada de ar fresco para os estudos atuais sobre a coleta informal.

O texto explora a multiplicidade de processos que geram o lixo e aqueles que vivem dele, mostrando simultaneamente que o lixo constrói relações e processos, e que os processos e as relações geram lixo. Descreve também as formas de (re)valorização envolvidas no trabalho dos catadores no aterro de resíduos da região metropolitana do Rio de Janeiro - Jardim Gramacho. No entanto, como sabemos, a etnografia requer o estudo de espaços múltiplos. A pesquisa realizada pela autora concentra-se principalmente no prédio de enterro e na cooperativa de catadores que operava no terreno da associação de catadores. Para isso, Passos Lima acompanhou o trabalho dos catadores em suas atividades diárias, demonstrando a importância de seguir as coisas (e pensar a partir das coisas e de sua natureza mediadora) e as pessoas, mostrando a inter-relação espacial e a configuração que ocorrem na produção de valor(es) ou da (re)valorização em múltiplos espaços sociais.

Segundo a autora, o lixo e sua performatividade geram efeitos e levantam três problemas principais: a visibilidade, a transitividade e o valor. Estas três noções são desenvolvidas teoricamente na introdução do livro. Além disso, a partir da discussão teórica e do caso, esta primeira seção do livro demonstra as disputas de poder e as implicações dos processos de visibilidade/invisibilidade, a produção de valor e a transitividade de objetos e pessoas (em relação aos processos de visibilização e des/revalorização das coisas e da vida para os catadores). Um primeiro ponto em que o livro contribui é para a discussão teórica, empírica e política sobre a noção de “lixo” como mero descarte, pela negativa. Conforme a própria autora assinala, sua opção não se concentra na dicotomia “verdadeiro ou falso”, as palavras apresentam uma dimensão performativa e também geram transformações sobre o que referem. Assim, ao longo do texto, Passos Lima não apenas demonstra o caráter social daquilo que é considerado descarte (lixo) - e seu caráter histórico -, mas também o valor que possui tanto em termos econômicos quanto relacionais. O lixo gera relações, estabelece vínculos, formas de ver o mundo, organizações e disputas. É por isso que os resíduos podem ser considerados, seguindo Mauss, um fato social total. Os próprios catadores têm um conhecimento sensível e habilidades para lidar com as materialidades e modificá-las.

Além da introdução, o livro é dividido em cinco capítulos e conclusões, que se destacam por sua riqueza etnográfica e teórica.

O primeiro, O governo dos resíduos e a cidade invisível, apresenta uma análise histórica sobre o tratamento e o governo dos resíduos no Rio de Janeiro. Este capítulo revela como os discursos urbanísticos, higienistas e morais apontam os resíduos como algo perigoso e estigmatizado. Em termos urbanos, isto leva a uma tentativa de tornar o lixo invisível e estigmatizar as pessoas que trabalham ou vivem com ele ou dele. A autora, a partir dessa exploração, também observa um processo de invisibilização das formas de vida dos catadores. O capítulo é interessante não apenas para compreender como discursos mais globais sobre o que fazer com o lixo têm sido produzidos, mas também as particularidades do processo histórico (urbano, social) do Rio de Janeiro e o modo em que se produzem trabalhos legítimos no Brasil.

O segundo capítulo, A economia dos recicláveis, avança sobre o circuito comercial que envolve o aterro e a associação de catadores. A autora explora como os resíduos adquirem valor por meio do trabalho dos catadores e dos diversos processos materiais, simbólicos e técnicos envolvidos. É precisamente o movimento dos resíduos de um circuito para outro que confere valor tanto aos resíduos quanto às pessoas. Importa no argumento como diferentes materiais requerem diferentes formas de diferenciação, coleta, conhecimento, força, armazenamento e relações entre os catadores. Reconhecer distintos tipos de materiais (como os tipos de plástico) é indicativo de um conhecimento necessário para trabalhar no aterro. Ao mesmo tempo, explora a inter-relação entre resíduos e catadores de uma perspectiva diferente: os efeitos que materiais - como o plástico - têm nos corpos (em suas mãos, em suas capacidades olfativas) e nas relações entre as pessoas, nas quais o corpo é um mediador central. Além disso, o trabalho explana sobre a complexidade das formas de classificação dos produtos e os efeitos coletivos disto: dentro do aterro existem lixo, achados, material, sujeira.

No terceiro capítulo, A produção das associações, o foco está na associação como organização. Apresenta o contexto histórico da emergência das organizações representativas dos catadores em nível nacional e a configuração política mais ampla que a acompanhou (a primeira década do século XXI), o que explica o surgimento e as condições de possibilidade de atores em diferentes escalas. Passos Lima mostra como enquadrar o trabalho a partir de uma perspectiva organizacional que permite compreender as mudanças nas percepções dos catadores sobre sua atividade. O processo envolveu uma espécie de formalização dos catadores, ao mesmo tempo em que produziu formas de organização política e foi produzido por elas. A riqueza etnográfica, que aborda diferentes formas de agrupamento (associações e cooperativas) a partir de uma perspectiva histórica, permite à autora indicar que, embora as normativas e as moralidades das leis imponham formas organizacionais, o processo de formalização não pode ser entendido sem a experiência das pessoas que se associam, as relações de parentesco, os projetos políticos, mas também as realizações e os interesses pessoais e circunstanciais. É a partir desse processo complexo que as fronteiras sociais entre as formas organizacionais se delineiam, se apagam e se redesenham, impactando as formas de organização, as negociações políticas e os processos de formalização, trabalho e valorização dos catadores e dos resíduos.

O quarto capítulo, Uma política da visibilidade, nos leva ao aterro de Jardim Gramacho. Durante o trabalho de campo, o aterro aparecia como um cenário em decomposição devido ao seu iminente fechamento. O capítulo aborda o aspecto político desse processo de encerramento. A autora mostra como os processos de negociação que estavam ocorrendo naquele momento permitem compreender a atividade política dos catadores por meio das disputas por liderança (relacionadas com a representatividade) entre aqueles que faziam parte da cooperativa, assim como entre os que não faziam. Os catadores estavam constantemente envolvidos em performances através de inúmeras atuações, seja diante de câmeras de cinema para a produção de filmes, reportagens de televisão, seja em reuniões com representantes do poder público, ou em assembleias para discutir o futuro. A etnografia envolveu filmes, fotos e entrevistas, além da observação. Inclusive, a própria autora produziu um filme etnográfico durante a gravação de uma obra cinematográfica ficcional no aterro, no qual os catadores e as catadoras atuavam diante das câmeras, o que também é analisado no capítulo e o complementa1 1 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=FrRls6zqnkk=9 . Ali, ela mostra como eles são verdadeiros atores políticos que utilizam o poder das imagens para tentar mudar o futuro incerto: o fechamento do aterro onde a maioria deles construiu suas vidas. Essas entrevistas e produtos visuais conferem uma riqueza ao capítulo, permitindo destacar as formas de fazer política dos catadores. Aborda, assim, outras agências das pessoas de carne e osso e formas de pensar a atividade, demonstrando a capacidade que os próprios atores têm para buscar influenciar suas vidas.

Por último, o quinto capítulo, Soluções ambientais do capitalismo do século XXI, diz respeito aos processos, aos arranjos e ao lugar dos catadores após o fechamento do aterro. O capítulo discute os debates em torno dos discursos ambientais, dos reaproveitamentos do aterro e dos resíduos (gases, reciclagem) em relação às políticas “verdes”. No entanto, Passos Lima mostra de maneira complexa como isto ocorre a partir dos interesses de empresas privadas, de novos discursos de ocultamento e visibilização (diferentes dos desenvolvidos no primeiro capítulo) em relação aos resíduos. Assim, o discurso “verde” funciona como justificação estratégica das corporações que mais uma vez revalorizam os resíduos para seus próprios interesses em um mercado de resíduos que se (re)constrói. Quanto aos catadores, o texto aponta como nesse processo de nova “inclusão” muitos deles ficaram sem trabalho, e que a formalização da atividade no polo de reciclagem implicou uma redução significativa dos salários.

Nas conclusões, a autora retoma os argumentos centrais do livro, indicando os paradoxos que envolveram a visibilização e a valorização da atividade. O livro é uma importante contribuição para os estudos sobre a coleta informal, a produção da cidade e os resíduos, abordando os múltiplos processos e avessos do lixo como uma relação e produção social. Contudo, olhar para o livro apenas pela sua vertente empírica ou de “objeto” é limitado. Seguir o lixo, pensado como mercadoria, além da possibilidade de gerar operações de desvio dos objetos para outros formas de valor, permite avaliar também como os resíduos têm uma vida que faz fazer coisas (Latour 1999LATOUR, Bruno. 1999. “Factures/fractures. From the concept of network to the concept of attachment”. Res: Anthropology and aesthetics, v. 36:20-31.; Despret 2020DESPRET, Vinciane. 2020. Quand le loup habitera avec l'agneau. Paris: La Découverte.) e nos possibilita pensar como o valor (econômico, social, político) é produzido e retirado de pessoas e coisas, e expande nossa perspectiva teórica e metodológica na antropologia.

Referências

  • DESPRET, Vinciane. 2020. Quand le loup habitera avec l'agneau. Paris: La Découverte.
  • LATOUR, Bruno. 1999. “Factures/fractures. From the concept of network to the concept of attachment”. Res: Anthropology and aesthetics, v. 36:20-31.
  • MILLAR, Kathleen M. 2008. Reclaiming the Discarded. Life and Labor on Rio’s Garbage Dump. Durham: Duke University Press.
  • PERELMAN, Mariano. 2023 “Informal collection in Buenos Aires. behind and beyond the crisis”. Vibrant. Virtual Brazilian Anthropology, v. 20:1-23.
  • RENO, Joshua & ALEXANDER, Catherine (eds.). 2012. Economies of recycling: the global transformations of materials, values and social relations. Londres: ZED books.
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    Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=FrRls6zqnkk=9

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2023
  • Aceito
    24 Ago 2024
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