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BOYER, Véronique. 2022. Le Puzzle Amazonien: Positionnements Ethniques et Mobilisations Sociales. Paris: CNRS Éditions. 191 pp.

BOYER, Véronique. . 2022. Le Puzzle Amazonien: Positionnements Ethniques et Mobilisations Sociales . Paris: CNRS Éditions. 191pp.

Neste livro, a antropóloga Véronique Boyer se apoia sobre dois temas de seu interesse, os cultos de possessão e a emergência étnica, para propor uma abordagem sobre os reposicionamentos identitários, isto é, os movimentos de adoção ou mesmo de trânsito entre identidades étnicas, que vêm ocorrendo em grupos sociais na região. É sabido que a enunciação de identidades étnicas tem servido de estratégia para acessar direitos (Spivak 1988SPIVAK, Gayatri. 1988. “Subaltern Studies: Desconstructing Historiography”. In: R. Guha & G. Chakravorty (orgs.), Selected Subaltern Studies. New York & Oxford: Oxford University Press. pp. 3-32.). No entanto, poucos trabalhos conduzidos Amazônia têm explorado as categorias de pensamento nativas que permitem tais reposicionamentos. Ou seja, como os grupos que passam por esse processo convertem “problemas sociopolíticos” (dentre os quais figuram desde a garantia de posse e uso da terra ao crédito fornecido por instituições financeiras, serviços de saúde e educação, entre outros) em “particularismos identitários” (:10). O objetivo do livro é, pois, propor uma nova abordagem para articular esses reposicionamentos em uma cosmovisão que permita tais transformações (:21), buscando, ao cabo, esboçar uma teoria nativa acerca da mistura na Amazônia.

Os dois campos de investigação privilegiados pela autora servem como base para a organização do livro. Dividido em seis capítulos, os três primeiros são dedicados a explorar as facetas dos reposicionamentos étnicos. Este primeiro bloco é construído a partir de escalas de análise diferentes, seguindo do nível micro até o macro: parte do exame de histórias de vida e narrativas sobre a constituição de um grupo local (cap. 1); descreve como esse coletivo se transforma em um grupo étnico diferenciado (cap. 2); e, por fim, discute como esse grupo étnico se insere no jogo de classificações mais gerais sobre grupos sociais amazônicos (cap. 3). A categoria amazônica “caboclo” serve de ponte para o segundo bloco do livro. Assim, nos últimos três capítulos a autora aproxima a transformação de grupos sociais com aquelas ocorridas nos cultos de possessão amazônicos. Ela o faz delineando as características e os limites da categoria “caboclo” em relação à organização social e aos cultos de possessão (cap. 4). Debate o potencial transformacional do “caboclo” e suas implicações sobre a mistura (cap. 5). E, por último, expondo como os reposicionamentos étnicos tomaram como modelo as operações de “dessincretização” realizadas nos cultos de possessão (cap. 6).

No primeiro capítulo, a autora aborda a fluidez em que identidades são articuladas, dando ênfase à noção da “escolha” pessoal na interpretação de uma mistura (:23). Para tanto, ela toma um caso de três irmãos que, tendo a mesma origem, se autodeclaram com identidades étnicas diferentes: um indígena, um quilombola e o terceiro se considera “nem um, nem outro”. A essa discordância identitária em nível pessoal, acresce-se uma convergência em nível comunitário, quando todos estão de acordo em abandonar o rótulo de “população tradicional” em prol da identidade etnolegal quilombola. Explorando as nuances implicadas nesses posicionamentos, a autora demonstra as diferenças de fundamentação da identidade no nível pessoal (“o que podemos ser”) e aquela que deve ser sustentada no nível das relações com o Estado. A mistura emerge dos discursos de seus interlocutores como recurso simbólico que ampara interpretações diferentes, mas que se contrapõe à forma como o Estado opera as identidades etnolegais. Se o primeiro comporta, ao menos em potência, a convivência de diferentes identidades étnicas, o segundo obedece a um princípio de identidade alternativa (:43), reconhecendo para um grupo a possibilidade de ele ser apenas indígena, quilombola ou população tradicional. É por meio do escrutínio de histórias familiares, nas relações com organizações do terceiro setor e com o Estado, que a autora expõe como o consenso político por uma identidade etnolegal é construído e uma identidade étnica é, enfim, enunciada de forma coletiva. Esses momentos de reposicionamentos costumam ser expressos pelas noções de “escolha” e “decisão” (:45).

No segundo capítulo, a autora mostra como as trajetórias de vida dos três irmãos contribuíram de maneiras diferentes para a diversificação do repertório imaginativo e de ações coletivas da comunidade (:47). Boyer aponta como os momentos de “tomada de decisão” ou “escolha” presentes nessas trajetórias detonam movimentos de produção de sujeitos políticos por uma ação que se desdobra em duas etapas. Primeiramente, ela opera sobre si ao reformular a imagem que o coletivo deseja apresentar ao exterior, para, em seguida, produzir efeitos sobre outros, ao se afirmarem como um coletivo ciente de seus direitos. Esses posicionamentos visam reinserir grupos, agora etnicamente diferenciados, em posições mais combativas para romper a situação desfavorável em que vivem (:58). Assim, a autora convida a ver na criação de comunidades, aldeias, associações étnicas ou federações os resultados desse esforço transformacional de grupos sociais para se fazerem compreensíveis a diversos atores, incluindo o Estado.

A partir de fontes históricas, o terceiro capítulo expõe como o processo de ocupação colonial favoreceu a criação de uma cultura regional única, que conectou diferentes coletivos que ali viviam por redes de comércio, guerras e casamentos, nas quais circulavam pessoas, ideias e objetos. Nesse ínterim, se consolida a importância atribuída ao “passear” enquanto elemento central de grupos sociais amazônicos (:80-81). Essa ampla mobilidade e uma convergência de costumes ajudaram a borrar representações que opunham grupos negros ou indígenas, fazendo emergir, paralelamente, a categoria de “caboclo” usada para designar, principalmente de forma pejorativa, a população nativa nem indígena, nem africana, habitante do meio rural ou de bairros pobres das cidades.

No quarto capítulo, a autora mostra como a criação da categoria etnolegal “população tradicional” e as elaborações sobre os “caboclos espíritos” pelos cultos de possessão amazônicos podem ser lidas como maneiras de essa população fugir da posição estigmatizada do caboclo. No primeiro caso, pela rejeição do rótulo em prol de uma nova categoria que enfatiza uma relação harmônica com a natureza, durável no tempo e genérica o suficiente para englobar grupos diversos. No segundo, o termo caboclo é retido, mas sua ocorrência é projetada para o mundo invisível. Assim, as características usualmente desprezadas nos “caboclos homens” são acentuadas de tal forma que se tornam uma potência transgressora entre os “caboclos espíritos”.

Os paralelismos entre os “caboclos homens” e “caboclos espíritos” continuam no capítulo seguinte, quando a autora demonstra como as elaborações sobre linhas rituais e metamorfoses (chamadas de “viradas”) existentes nos cultos de possessão podem iluminar aspectos de como as pessoas pensam a mistura (:115). Ela convida, portanto, a observar os eventos de “autodefinição” e as “escolhas” sob o ângulo das metamorfoses entre estados que remetem a “raízes”. Apoiando-se no trabalho de Kelly (2016KELLY, José 2016. Sobre a antimestiçagem. Florianópolis: Cultura e Barbárie.), o ponto central do capítulo é a distinção entre uma teoria nativa sobre a mistura e a teoria da mestiçagem elaborada por elites nacionais. Na primeira, a mistura é tomada como uma metáfora física, na qual sua ocorrência não desencadeia uma fusão. Seus estados originais, que passam a ser lidos como raízes, convivem e podem ser atualizados por meio de metamorfoses. Já a segunda se vale de uma metáfora biológica, na qual a fusão desencadeia o surgimento de um híbrido, que oscila entre uma degenerescência e novidade mais apta (:128-129). Portanto, no âmbito da comunidade, o reconhecimento da mistura é a constatação da heterogeneidade existente, de patrimônio comum construído a partir das trajetórias de seus moradores e suscetível de interpretações. Enquanto objeto maleável, ela abre um campo de possibilidades no qual os reposicionamentos étnicos, usualmente expressos pelos termos como “escolha” ou “virar”, representam processos de metamorfoses subjetivas, corporais e sociais.

O último capítulo evidencia como o exercício de “dessincretização” e o retorno às origens empreendidas pelos cultos afrodescendentes serviram de modelo para as operações de reposicionamento étnico. Esse exercício gradativamente criou e reforçou uma diferença entre práticas religiosas até então indistintas, que culminou situando as religiões de matriz afro-brasileiras nas cidades em oposição às práticas de pajelança no interior. Porém, o exercício de “dessincretização” não interditou a prática de “cruzamento de linhas”, mas se mostrou um poderoso exercício de domínio sobre as diferenças de cultos e de legitimação de práticas rituais. Analogamente, no âmbito da mistura em determinado grupo social, o posicionamento étnico seria um exercício de desmestiçagem, em que o domínio sobre a diversidade que compõe o coletivo é demonstrado, assim como sua capacidade de retorno às “raízes” consagradas pelo Estado brasileiro (:152-153).

É importante ressaltar que, para a autora, a comparação entre os esforços de dessincretização e desmestiçagem não é uma derivação direta uma da outra, mas ambas estão inscritas na noção de “afinidade eletiva” de Max Weber (2004WEBER, Max. 2004. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.). Uma vez que a dessincretização antecedeu no tempo a desmestiçagem, as metamorfoses do “caboclo espírito” se inseririam nos registros de possibilidades e autorizariam as pessoas a fazerem reposicionamentos étnicos. Essa capacidade de metamorfose encontrou terreno propício com a Constituição de 1988, que abriu oportunidades de participação na esfera pública de populações desfavorecidas pela chave da identidade, consagrando certas matrizes (indígena, branco e negro). Portanto, concomitante aos esforços de desmestiçagem empreendidos por coletivos sociais para que se tornassem reconhecíveis para o Estado, desenvolveu-se uma teoria nativa sobre a mistura que amparou esses reposicionamentos (:161). A noção de “virada” do “caboclo espírito” é apresentada pela autora como um mecanismo conceitual que permite conectar populações na Amazônia brasileira, articulando todo um mosaico de possibilidades transformacionais. A teoria nativa sobre a mistura vem amparar essa metamorfose e inverter a da mestiçagem, ao afirmar que cada um é elegível de se tornar indígena, negro ou uma população tradicional (:127-128). O livro é, em suma, uma obra ambiciosa que conduz o debate de forma habilidosa entre as produções sobre populações negras, tradicionais e indígenas no contexto amazônico. Ele inclui uma proposta teórica vibrante e transversal que rompe com as produções até então estanques sobre os fenômenos de emergência étnica ao procurar dar conta de suas ocorrências em diversos contextos.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

  • KELLY, José 2016. Sobre a antimestiçagem Florianópolis: Cultura e Barbárie.
  • SPIVAK, Gayatri. 1988. “Subaltern Studies: Desconstructing Historiography”. In: R. Guha & G. Chakravorty (orgs.), Selected Subaltern Studies New York & Oxford: Oxford University Press. pp. 3-32.
  • WEBER, Max. 2004. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo São Paulo: Companhia das Letras.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2022
  • Aceito
    08 Mar 2024
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