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AMARASURIYA, Harini; KELLY, Tobias; MAUNAGURU, Sidharthan; OUSTINOVA-STJEPANOVIC, Galina & SPENCER, Jonathan (eds.). 2020. The Intimate Life of Dissent: Anthropological Perspectives. London: University College of London - UCL Press. 224 pp.

AMARASURIYA, Harini; KELLY, Tobias; MAUNAGURU, Sidharthan; OUSTINOVA-STJEPANOVIC, Galina; SPENCER, Jonathan. (eds.). 2020. The Intimate Life of Dissent: Anthropological Perspectives . London: University College of London - UCL Press. 224 pp.

Resultante de coletânea de artigos no periódico American Ethnologist, The Intimate Life of Dissent traz o esforço coletivo de analisar questões relacionadas com política, ética e consciência. O grupo “A Comparative Anthropology of Conscience, Ethics and Human Rights”, com pesquisadores em sua maioria da Universidade de Edimburgo, na obra com o título que se traduziria, grosso modo, como “a vida íntima da dissidência”, se aproxima de um aspecto comum às diversas pesquisas antropológicas e trabalhos etnográficos, que é a centralidade da intimidade para as relações. Tratando de contextos diversos que passam pela antiga União Soviética, Turquia, Sri-Lanka, Israel, Tibet, Indonésia e Inglaterra, a obra permite vislumbrar situações de dissidência histórica ou contemporânea informadas por diversos alinhamentos ideológicos. Para os autores, a dissidência gira em torno do caráter das relações e dos comprometimentos interpessoais que envolvem a expressão pública de sentimentos e posicionamentos políticos (para além do mero dissenso ou discordância). O propósito em destacar a intimidade é tornar paroquiais as noções liberais de dissidência em seus modos de agência e multiplicar seus significados.

Nesta resenha pretendo orientar-me a partir de modos de expressão das socialidades da intimidade apresentados (sem seguir necessariamente a ordem dos capítulos). A tradição de dissidência que serve de ponto de partida para as organizadoras do livroAMARASURIYA, Harini; KELLY, Tobias; MAUNAGURU, Sidharthan; OUSTINOVA-STJEPANOVIC, Galina & SPENCER, Jonathan (eds.). 2020. The Intimate Life of Dissent: Anthropological Perspectives. London: University College of London - UCL Press. 224 pp. (do contexto do liberalismo e do Protestantismo cristão), é baseada em uma expressão de liberdade individual ligada às ideias de consciência, interioridade e autenticidade. Por isso, não se trata de uma romantização da dissidência, que também pode ser vocalizada na forma do conservadorismo, da xenofobia ou do negacionismo. A preocupação da obra é evidenciar formas de ruptura política do indivíduo moral. Olhando para a multiplicidade da dissidência, sigo estas três noções para explorar os casos etnográficos, incluindo a materialidade ao final.

Começo pela consciência, que no primeiro capítulo da obra, assinado pela antropóloga Galina Oustina-Stjepanovic, é delineada nas margens do Estado soviético. A autora segue o rescaldo e as consequências de um protesto na antiga Praça Vermelha, em 25 de agosto de 1968, contra a invasão da Tchecoslováquia pelos países do Pacto de Varsóvia. Dois dos manifestantes foram enviados a hospitais psiquiátricos e, ao acompanhar suas trajetórias, Oustina-Stjepanovic indaga o que lhe parece ser uma ontologia paradoxal do totalitarismo soviético, em que há uma intimidade com a maioria (unitária e indistinguível). A dissidência assim aparece como um “outro-pensar” (other-thinking) só apreensível como estranhamento de uma coletividade abstrata. O esforço é evidenciar as topologias conceituais que implicam a constante primazia do todo sobre as partes - neste caso, o partido-Estado soviético sobre os agrupamentos sociais que o compunham. Círculos de dissidentes seriam, portanto, compostos de pessoas esquizofrênicas, dissociadas da realidade e ligadas a falsas convicções. A consciência destes manifestantes é uma falsa consciência esquizofrênica para o Estado totalitário.

Este tema ressoa em todos os capítulos, mas ele é mais evidente nos textos de Erica Weiss e Tobias Kelly. Weiss trata das possibilidades de dissidência entre judeus ultraortodoxos e liberais seculares pacifistas em Israel. Em sua análise ela explora as gramáticas éticas destas formas não seculares e não liberais de dissidência: exercício feito de modo comparativo para evidenciar as “nuances culturais da dissidência” - e uma espécie de idealização do dissenso comum na cultura liberal. Outra diferença é a centralidade do consenso e da continuidade, e de uma estética da solidariedade entre ultraortodoxos. Assim, a resistência aparece como um fenômeno empírico do qual se separa o fato da dissidência de sua interpretação cultural. Trata-se dos sentidos que a consciência pessoal/individual tem para ortodoxos e seculares, e/ou como consenso e dissenso ordenam seu peso moral nestes grupos.

Já Tobias Kelly recupera os modos íntimos da “consciência dissidente” entre britânicos que se negaram a lutar durante a Segunda Guerra Mundial. Kelly parte da tradição que atravessa a reforma protestante, o constitucionalismo liberal e alguns tipos de ativismo pelos direitos humanos, em que a consciência é valorizada como dissidência. Ele demonstra que comprometimentos são produzidos e se configuram segundo vínculos pessoais marcados por reflexão e obrigação e, para entendê-los, é necessário considerar a perspectiva das relações em que se inserem. Trata-se de não tomar a consciência como um modo transcendente/universal de agência moral, e sim como um aspecto contingente de valor histórico. Assim, no capítulo o autor explora os limites da dissidência sob regimes liberais, os comprometimentos religiosos e políticos dos sujeitos cujos diários são analisados, e descreve também debates públicos sobre convicção, sacrifício e isenção dentro de concepções liberais. Destacam-se as ansiedades e as instabilidades no centro de questionamentos liberais (afinal, era uma guerra contra fascistas). Além dos diários, o antropólogo explora cartas e memoriais desses objetores conscientes da participação na guerra. São trajetórias marcadas pela solidão, pela perseguição e por redes de apoio frágeis, mas cujo posicionamento divergente ao do Estado britânico era garantido por lei (desde a Primeira Guerra Mundial).

A interioridade é central no capítulo assinado por Serra Hakyemez, em que ela segue o comprometimento com formas de amizade que designam a pertença à causa curda em penitenciárias turcas. Hakyemez parte da concepção de ação política de Hannah Arendt para explorar relações de interdependência em oposição ao domínio ou à soberania. Ela aborda questões envolvendo ética, corporalidade e afeto, nos modos de resistir enquanto uma dissidência repleta de intimidades. Atenta aos momentos de suas entrevistas em que o gravador não estava ligado, a autora consegue evidenciar que os anos de detenção criaram entre estes curdos linguagens e códigos próprios para sobreviver a situações de tortura e a longos períodos de isolamento. Chama a atenção como gestos específicos daqueles que se encontraram depois de libertos indicam a manutenção dos afetos criados.

Também há interioridade na análise dos percursos de um ativista do Sri Lanka, Joe Seneviratne, feita por Harini Amarasuriya e Jonathan Spencer. A trajetória se confunde com as histórias da dissidência no Sri Lanka pós-colonial, país que lida com levantes políticos e conflitos civis armados desde 1960. Sem adentrar em detalhes nas diferenças etnonacionalistas entre Tâmeis e Cingaleses, os autores destacam os trajetos feitos por seu interlocutor em agremiações de esquerda. Os compromissos na militância conflitavam com demandas mais básicas e íntimas, como as cobranças pela escrita de um documento durante a internação de seu filho. Percebe-se que as escolhas e os direcionamentos tomados pelo interlocutor, motivados pelos comprometimentos políticos, tiveram alto custo na sua vida pessoal. Esta trajetória é marcada por forças contingentes e estruturais, em que clivagens políticas e étnicas são percorridas sem tomar a violência como meio de solução.

Ainda no contexto cingalês, o antropólogo Sidharthan Maunaguru traz dois casos em que ética e rivalidade política entre ativistas tâmiles afetam relações de amizade. Explorando as trajetórias de amizades, Maunaguru demonstra que em certas alianças feitas entre pessoas da mesma etnia ou não (tâmiles e cingaleses, por exemplo), o reconhecimento da diferença não impede a manutenção das relações. No primeiro caso, o autor descreve uma amizade entre tâmiles que discordam politicamente, e no segundo, tâmiles e cingaleses de posicionamentos semelhantes. Em ambos, no entanto, o reconhecimento de que a experiência política do Sri Lanka carrega dores e sofrimentos parece operar como base ética comum. Nestas análises, a interioridade (e seu oposto, a exterioridade) mobilizam e orientam dissidências políticas. A carga de sofrimentos também indica a autenticidade das experiências descritas. Nos capítulos de Oustina-Stjepanovic, Kelly, Weiss e Hakyemez, este ponto também é evidente.

No entanto é no capítulo de Carole McGranaham que a importância dos detalhes no diário de um dissidente tibetano oferece elementos para compor os aspectos íntimos de sujeitos atuantes em debates públicos. A pertença a famílias específicas é um indicador de dissidência no Tibet da primeira metade do século XX, antes da invasão e da colonização pela China comunista. Seguindo a trajetória de Rapga, um dos membros da família Pangdatsang (uma das mais poderosas e ricas nesse período, cujas formas de dissidência podem ser localizadas entre a submissão e a recusa), a autora utiliza os fragmentos do diário do dissidente, então influenciado por ideias da esquerda ocidental, durante exílio junto com seu filho. Ela demonstra o quanto os arquivos coloniais britânicos sobre Rapga se equivocavam a respeito de seu projeto e de suas intenções (que supunham que fosse um espião chinês). Os detalhes deste percurso também deslocam as compreensões políticas e históricas sobre a região e explicitam os mecanismos da intimidade em trajetórias políticas.

No capítulo que encerra a coletânea, uma espécie de abordagem nova se abre de modo mais enfático. Nele, Doreen Lee explora as materialidades da escrita dissidente e a intimidade dos arquivos na experiência autoritária da Indonésia. O caráter mediado da dissidência (indicado nos capítulos anteriores) é marcado por sua produção e circulação em formas textuais discretas contidas em atos de escrita, cópia e leitura que compõem uma cadeia de relações. A autora apresenta as questões macrossociais da política indonésia e demonstra como elas se atualizam nas lembranças de dissidentes a respeito da produção mecanográfica de panfletos e textos. A economia social e afetiva dos papéis remonta à disposição de cômodos em locais de reunião, e as cartas escritas por ativistas presos explicitam o valor do espaço das páginas. Quando o papel é recurso escasso, a página é um espaço de resistência.

Assim, nesta coletânea, as socialidades da intimidade se multiplicam e oferecem formas outras de acessar dissidências em mundos não tão distantes dos leitores brasileiros. Não deixa de ser uma questão pertinente, no entanto, imaginar como dissensos não informados por formas gráficas (por exemplo, a escrita) apresentariam suas intimidades, ou ainda, os modos não humanos de intimidades dissidentes. Estas são perguntas pela leitura de tais reflexões.

Referência

  • AMARASURIYA, Harini; KELLY, Tobias; MAUNAGURU, Sidharthan; OUSTINOVA-STJEPANOVIC, Galina & SPENCER, Jonathan (eds.). 2020. The Intimate Life of Dissent: Anthropological Perspectives London: University College of London - UCL Press. 224 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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