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How real people are made: gender and sociality in Amazonia

RESENHAS

Oscar Calavia Sáez

Professor, PPGAS-UFSC

MCCALLUM, Cecilia. 2001. How Real People Are Made. Gender and Sociality in Amazonia. Oxford: Berg. 208 pp.

A autora realizou seu trabalho de campo no começo dos anos 80 nas aldeias kaxinawá do Alto Purus, em território brasileiro e peruano, e defendeu sua tese, em 1989, na London School of Economics ­ a introdução rememora o clima de encontro entre feminismo e culturas exóticas em que a pesquisa se originou. Ecoando aquele início e reelaborando discreta, mas significativamente, sua tese, o livro, muito fiel ao seu título, é um relato detalhado da fabricação da pessoa kaxinawá. Parte do amálgama de fluidos parentais ainda no seio materno, passa pela inscrição de nomes e desenhos, pelas restrições alimentares e matrimoniais e pela construção de uma identidade de gênero que se nutre e faz sentido na atividade produtiva adulta; culmina em rituais e mitos que ilustram o modo certo de absorver o outro na medida justa para recriá-lo como próprio.

Dois grandes festivais são pontos altos da descrição: o Nixpu Pima, a festa de comer Nixpu, uma planta que tinge de preto e fortalece os dentes, tornando as crianças consumidoras de alimentos apropriados (a autora recusa o termo "rito de iniciação", que evocaria mudanças mais abruptas e fronteiras mais claras), e o Kachanawa (a "dança da paxiúba barriguda" na tradução de Capistrano de Abreu, cuja descrição do ritual, publicada inicialmente em 1914, conta também para a análise) que, fazendo parte de uma numerosa família de rituais ameríndios, encena a visita de inimigos, selvagens ou espíritos, e sua transfiguração em afins e verdadeiros humanos, trazendo à baila todos os grandes binômios do dualismo kaxinawá. Fazendo crescer e nomeando crianças e cultivos, ao mesmo tempo que regulam simbolicamente a relação com o exterior, Nixpu Pima e Kachanawa, em conjunto, emolduram o mundo kaxinawá com metáforas agrícolas, englobando o lado predatório do mundo ­ esses dentes fortalecidos pelo Nixpu, doravante capazes de comer carne, são comparados aos grãos do milho pintado. Ponto de vista kaxinawá, ponto de vista de suas horticultoras.

O texto filia-se sem restrições a duas correntes. Uma, a da literatura sobre os Kaxinawá, especialmente rica e homogênea ­ Kensinger, Deshayes, Keifenheim e, mais recentemente, Lagrou, entre muitos outros. Outra, a dessa etnografia da Amazônia, focada na domesticidade e na intimidade, que já é de praxe contrastar com aquela que prefere tematizar os diversos avatares da predação.

A bibliografia kaxinawá alcança um volume e uma antiguidade incomparáveis com a de qualquer outro grupo pano, e há muito tem delineado um modelo com algumas feições notáveis: um sistema de metades que ­ raro feito ­ serve ao mesmo tempo como agenciador matrimonial e como classificador simbólico, e que eventualmente se traduz na organização política do grupo, um sistema kariera de transmissão de nomes que cria uma densa trama de solidariedades, tudo isso acompanhado da dose justa de exegese, que não sugere a lucubração de especialistas locais, nem obriga os especialistas externos a lançar mão a toda hora de estruturas inconscientes. Esse modelo contribui para fazer dos Kaxinawá os Pano por excelência ou, talvez, os Pano default, cujos arrazoados ­ ajuda para isso a considerável homogeneidade lingüística e cultural do conjunto ­ dão sentido às informações desconexas ou padrão aos desvios de povos vizinhos. Segue-se daí uma curiosa definição do trabalho: enquanto outros etnógrafos despendem esforços consideráveis para esclarecer quem são os Uni, os Shipibo-Conibo, os Matsés ou os Yaminawa, apontando em geral para processos de etnogênese relativamente recentes, os estudiosos dos Kaxinawá explicam-nos como eles devem ser, ou como são feitos, e assumem uma continuidade com as formas registradas na etnohistória. A rigor, o que temos são menos descrições do povo kaxinawá que da condição Huni Kuin (esse real people do título), duas entidades cujos espaços não coincidem senão parcialmente, como os próprios autores lembram vez por outra. Embora o autor desta resenha alimente uma certa curiosidade sobre quem são afinal os Kaxinawá, a literatura especializada respeita e transmite a reflexão de um povo que se identifica com um modelo (o uso cada vez mais freqüente do termo Huni Kuin é mais do que a simples vitória de uma "autodenominação"), e isso pode ser, afinal, o melhor caminho, se concedemos que o mundo pano poderia se entender melhor como um sistema de condições do que como um conjunto de povos.

Em tempo: falando, de fora, em "modelo kaxinawá", estou sendo infiel ao espírito do livro, que caminha com pés pragmáticos ­ o que se faz, o que faz, como se faz ­ e foge de sistemas, ordens e representações da sociedade. Mas não é necessário tropeçar nesses grandes arcabouços, raros e ralos no austero sudoeste amazônico, para reconhecer um modelo (no sentido moral) que marca bem a posição dos Huni Kuin entre vizinhos de tecido social ou costumes mais frouxos, e regula a relação entre eles, na bibliografia e na prática.

Voltando-nos agora para a segunda corrente, é sabido que nos últimos quinze anos tem tomado corpo na etnologia uma dicotomia entre a Amazônia britânica e feminina do amor e a Amazônia franco-tupi e masculina da guerra (é claro, as fronteiras entre ambas são ao mesmo tempo fluidas e porosas!). O livro foi escrito de olho nesse contraste, e dialogando com a escola canibal. Mas esse diálogo parece ser, aqui, um diálogo cismogênico: o intimismo do livro é ainda mais claro que o da tese, onde disputas políticas ou feitiçaria ganhavam algo mais de espaço. O malinowskianismo que a autora reivindica em certo momento tem, talvez, um alcance maior do que o pretendido: os imponderáveis da vida cotidiana podem ser reconhecidos nas agressões que se esgueiram por entre as pantomimas agressivas, ou nas más intenções que, vez por outra, estão atrás dos bons atos; mas tanto elas quanto as maldades tout court, não convidadas à festa, comparecem como estratégias individuais, sem direito a significados mais fundos.

O último capítulo do livro desenvolve uma revisão da literatura sobre gênero e, mais especificamente, de suas aplicações na, ou suas refutações desde a, etnologia amazônica. Parece claro que a autora faz um balanço (eis aqui aquela referência a Malinowski), a partir de sua experiência de campo. O regime Huni Kuin de relações de gênero identificado na constituição da pessoa, nas trocas cotidianas ou nas "batalhas" rituais entre homens e mulheres, com insultos obscenos que não contradizem o apreço pela colaboração sexual, serve para pôr entre parênteses discursos sobre a hegemonia masculina e seus desdobramentos psicanalíticos, sobre a apropriação da força de trabalho baseada no controle das filhas núbeis, ou sobre a guerra mais ou menos ideológica entre os gêneros. O comércio pano entre os gêneros é um jogo leal, mas sobretudo um jogo; e, seja ou não generalizável, o caso serve ao menos para neutralizar as pretensões de generalidade ou de crua realidade dos outros diagnósticos.

No ponto crítico da revisão, a autora se distancia da ênfase atual que os estudos de gênero dão às identidades sexuais e à percepção do gênero como subjetividade. Trata-se, comenta a autora, de descrições geradas em grandes cenários urbanos, que ficam sem espaço em uma sociedade dualista (e, lembre-se, pouco interessada no desvio). Não há, no caso Huni Kuin, lugar para terceiras identidades ­ que, no entanto, se insinuam em outros grupos pano com a lembrança de instituições do tipo berdache. Quanto ao interesse da literatura "de gênero" pela subjetividade, vale a pena ressaltar que se verifica na etnologia contemporânea uma tendência a reorganizar, a partir do sujeito, o campo outrora regrado pela oposição entre cultura e natureza (na literatura "perspectivista"). Um aparte: um diálogo poderia se desenvolver a partir daí, mas para isso seria talvez necessário um termo derivado de "sujeito" que representasse em relação à "subjetividade" o mesmo enxugamento que "socialidade" traz para "sociabilidade". McCallum, se bem entendi, propõe tomar o gênero como uma divisão fundante dos corpos, transversal àquela que o perspectivismo identifica entre o sujeito e as variáveis naturezas. Isso significaria para o gênero subtrair-se ao ciclo das reencarnações do par natureza e cultura, deixar de ser um epifenômeno da primeira ou uma mais-valia da segunda, já que o corpo de que aqui se trata ­ aquele engendrado, alimentado, moldado e desenhado pelo real people ­ é a substância da socialidade, não seu prisioneiro nem sua representação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2002
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