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FINNEGAN, Ruth. 2022. The hidden lives of taxi drivers: a question of knowledge. Milton Keynes: Callender Press. 99 pp.

FINNEGAN, Ruth. . 2022. The hidden lives of taxi drivers: a question of knowledge.Milton Keynes: Callender Press. 99pp.

A antropóloga Ruth Finnegan (nascida em 1933), professora emérita da Open University e integrante da British Academy, tem uma vasta e reconhecida obra, decorrente de pesquisas etnográficas, desde os anos 1960, na África, Oceania e Inglaterra, além de, mais recentemente, escrever romances e poemas. Em tal percurso, já abordou temas como artes verbais, práticas musicais, oralidade, alfabetização, poética, performance, transes e sonhos.1 1 Ver detalhes em Frúgoli Jr. (2015, 2018).

Esta resenha tem como foco um livro que completa, segundo ela, o último volume de sua trilogia urbana sobre a cidade inglesa de Milton Keynes (Finnegan 2022:10), onde ela reside (e na qual lecionou) desde o final da década de 1960, a pouco mais de 70 km de Londres.

O primeiro deles, The hidden musicians (Finnegan 2007FINNEGAN, Ruth . 2007 [1989]. The hidden musicians: music-making in an English town. Middletown: Wesleyan University Press. [1989]), um de seus trabalhos referenciais, alvo de uma grande conferência em 2016, abrangeu aspectos relevantes da vida cotidiana da referida cidade. Isto foi possível pela reconstituição etnográfica exaustiva de múltiplas práticas musicais (sobretudo amadoras) de residentes, bem como de redes de sociabilidade vivenciadas numa pluralidade de mundos musicais, assinalados por diversos caminhos urbanos (urban pathways), que atravessam distintas situações e domínios.

O segundo, Tales of the city (Finnegan 2004FINNEGAN, Ruth . 2004 [1998]. Tales of the city: a study of narrative and urban life. Cambridge: Cambridge University Press. [1998]), pouco dialoga com o anterior, ao enfatizar narrativas de moradoras/es locais, entendidas como modalidades de contos pessoais, construções sequenciais dotadas de coerência interna. Tais recortes permitiram analisar, por uma nova via, o imaginário da história urbana local, para além do fato de se tratar de uma cidade planejada, articulada com povoações mais antigas - e alvo de jocosidades por parte dos habitantes de outros centros urbanos ingleses quanto a um suposto deserto cultural.

Talvez se possa dizer que neste último livro da referida trilogia, The hidden lives of taxi drivers (Finnegan 2022), a autora faz uma tecitura fina e concisa entre os temas anteriormente abordados. Por um lado, ela trata das práticas de motoristas de táxi de Milton Keynes2 2 Embora o estudo abarque pontualmente outras cidades, como Londres, Cambridge, Birmingham e Belfast, ou de cidades da Nova Zelândia (Finnegan 2022:91). - em sua maioria homens3 3 Em algumas passagens, a autora se refere a mulheres taxistas, e a dificuldades vividas por elas neste ofício. e imigrantes (da Índia, Paquistão, Oriente Médio, África, Europa do Leste e Caribe) -, profissionais que fazem parte indelével da trama urbana. Ao mesmo tempo, a antropóloga argumenta que, no espaço liminar de uma viagem de táxi, podem ocorrer trocas nas quais passageiras/os e taxistas potencialmente revelam segredos (Finnegan 2022:68). Isto então permite que a autora reconstitua narrativas das trajetórias desses agentes, bem como conhecimentos adquiridos pelos mesmos, tanto sobre os meandros de ruas, avenidas, estradas e demais espaços por onde trafegam (capítulo 3), como aqueles advindos de experiências ao longo de suas próprias vidas (principalmente nos capítulos 7, 8 e 9).

Embora pertença a uma geração que encarasse o uso de táxis como algo desnecessário, a autora passou a depender de tal serviço após os 70 anos de idade (Finnegan 2022:9). Por acaso, e aos poucos - sempre que era possível se sentar ao lado, e não no banco de trás -, ela passou a encetar conversas informais com os motoristas (em geral com boa receptividade), a tomar notas posteriores, e a desenvolver pequenas entrevistas semiestruturadas,4 4 Numa rara oportunidade, ela fez uma entrevista bem mais prolongada com um motorista inglês, que era também músico e compositor (ver capítulo 9). algo que durou cinco anos - além, evidentemente, de levantar outros tipos de materiais empíricos (Finnegan 2022:91-93).

Como ela argumenta no capítulo 1, embora taxistas estejam onipresentes nos contextos urbanos - algo semelhante a uma ubiquidade -, tal familiaridade reforça um certo tipo de invisibilidade; muitas vezes aparecem em filmes, na TV ou em romances, quando então lhes são reforçados estereótipos, ou se tornam alvo de piadas. Com breves exceções, suas vidas e dimensões humanas não são objeto de estudos ou documentações aprofundadas.

No capítulo 3, a autora aborda a crescente complexidade ligada às formas de acesso ou agendamento de tais serviços, oferecidos pelos famosos black cabs (em Londres), ou por carros licenciados e os minicabs (Finnegan 2022:26-27). São detalhados os diferentes tipos de firmas operadoras, com distintas divisões de trabalho, serviços disponíveis e cobranças decorrentes (incluindo possíveis gorjetas), bem como as plataformas de acesso posteriores, como o Uber e, no caso europeu, o Bolt, que concorrem crescentemente com os táxis, sob novas dinâmicas.

O capítulo 5, por sua vez, se aprofunda nas diversas exigências para se tornar um taxista, quanto aos documentos necessários - que atestem ausência de antecedentes criminais, boas condições de saúde, permissão para morar e trabalhar no Reino Unido, posse ou aluguel de um veículo - ou quanto à estrita obediência a diversos códigos de conduta - no trânsito e na relação com clientes, com a polícia ou consigo mesmo.

Ao longo do capítulo 4 - com retomadas posteriores - são tratadas as trajetórias altamente diversificadas dos imigrantes envolvidos com tal profissão no Reino Unido. Isto envolve os desafios e, em diversos casos, os dramas para se chegar à Inglaterra (com narrativas detalhadas, em sequências encadeadas5 5 Entre “provações, traumas e triunfos” (minha tradução de “Trials, traumas and triumps”, um subtítulo do referido capítulo 4, Finnegan 2022:37). ), as adversidades enfrentadas para se tornar profissional, os ganhos auferidos, as relações de lealdade para com o contexto de origem, as diversas religiões às quais estão ligados (predominam muçulmanos, mas há também hinduístas, católicos, pentecostais e testemunhas de jeová).

No capítulo 6, Finnegan busca desmontar visões racistas, xenofóbicas ou inconscientemente negativas sobre taxistas do Reino Unido, a partir de suas interações de pesquisa. Mantendo o foco nos imigrantes, ela mostra que muitos possuem um background educacional significativo e conhecem diversas realidades nacionais e línguas correspondentes (em seus percursos até a Inglaterra). Alguns deles descendem de famílias influentes em seus contextos de origem, combinam o trabalho com inserção em outras profissões ou empreendimentos, e são em geral cuidadosos com clientes, mesmo em situações de possíveis conflitos - por sinal, ela viveu duas situações de descortesia apenas com taxistas ingleses (Finnegan 2022:55-56).

No capítulo 7, diversas facetas da dimensão do conhecimento são aprofundadas, a começar pela necessidade, quanto aos taxistas mais experientes, de saber a priori a direção do destino almejado - os aplicativos são usados apenas em último caso. Para se obter a habilitação para dirigir os black cabs londrinos, há um teste com significativo grau de dificuldade em relação ao conhecimento de nomes de ruas, localizações, rotas, locais de possível interesse (prédios, museus, galerias, pubs, locais de comércio, cemitérios etc.). Isto leva à necessidade de desenvolver seriamente o memorizar (tanto intelectual quanto inconsciente) e de estabelecer associações visuais para a criação de mapas mentais sofisticados.

Nos capítulos 8 e 9, a antropóloga discorre sobre o já mencionado espaço íntimo e temporário entre estranhos que pode se criar durante uma viagem, com possíveis confidências recíprocas,6 6 Há ONGs inglesas que buscam capacitar motoristas a detectar falas de clientes que poderiam indicar tentativas de suicídio (Finnegan 2022:69). em que predominaria a tendência de se buscar ser verdadeiro - mesmo diante de narrativas pouco verossímeis, ela busca acreditar em algo: “vivemos num sonho, bem como num mundo cotidiano”7 7 Minha tradução de “we live in a dream as well as an everyday world”. (Finnegan 2022:80). Isto no caso se torna, como vimos, uma estratégia etnográfica de acesso a algo de suas vidas, embora dependa dos modos como taxistas lidam com tais interações - quando escutam atentamente, dão conselhos, emitem opiniões, riem da própria reputação, fazem piadas ou trocadilhos, ou abordam, como já visto, aspectos assinaláveis ou existenciais de suas experiências. Era comum ela se apresentar e, ao perguntar o nome dos taxistas, abordar possíveis significados para eles próprios, o que abria portas para entender sentidos culturais ou religiosos (para muçulmanos, hindus, africanos etc.), além de casos em que adotam nomes ingleses. Outras formas de comunicação passavam pela tentativa de compreender seus sonhos, memórias, valores morais, planos futuros, dimensões sagradas e teológicas, quando então se revelavam, de forma concentrada, diversas histórias de vida.

O capítulo final, bastante sintético, busca ressaltar a humanidade dos agentes tratados na pesquisa, com ênfase em impressões positivas, embora evite angelizá-los, tampouco demonizá-los. Segundo ela, seus preciosos backgrounds culturais poderiam ser mais compartilhados, a depender de nossa abertura para ouvi-los. Nos espaços liminares de uma viagem, eles podem escutar, mas não necessariamente confortar. Possuem um potencial especial para a partilha de sua sabedoria, que poderia ser mais bem captada, a depender de uma nova forma de vê-los e de nos relacionarmos com eles.

Durante a leitura, foi incontornável pensar nas possíveis especificidades de taxistas de nossas cidades, assumindo, salvo engano, a mesma ausência de estudos a respeito. Há certamente características distintas do panorama reconstituído pela autora, a começar pela predominância, na Inglaterra, de imigrantes internacionais.

Recorro aqui às minhas memórias: ao longo do tempo, sobretudo em São Paulo, obviamente constatava que muitos taxistas eram nordestinos, porém me recordo disso de forma bastante imprecisa. Consigo reconstituir interações em que taxistas abordavam suas trajetórias ou falavam do orgulho de propiciar que filhas/os trilhassem um caminho profissional estável. Mas tenho também lembranças de pouco alento, em situações tensas de trânsito, ou em interações que naufragaram quanto à possibilidade de alguma troca nas direções apontadas pelo presente estudo. De uma forma genérica, fala-se há muito tempo do conservadorismo político entre nossos taxistas, algo ressaltado quando da chegada do Uber por aqui, quanto a certa garantia de que conversas poderiam ser reduzidas ao estritamente necessário, justamente para não haver trocas ásperas sobre temas controversos. Todavia, os efeitos do Uber têm se ampliado exponencialmente, e isto decerto impactaria uma pesquisa centrada no presente, se pensarmos, em contraponto ao livro de Ruth Finnegan, na precarização do trabalho, no desmanche de carreiras como ofício de longo prazo e na total dependência dos aplicativos, sem esgotar outras decorrências.8 8 Agradeço a orientandas/os de pós-graduação por me enfatizarem questões contemporâneas, depois de já ter praticamente finalizado a presente resenha.

De toda forma, o presente livro inspira possibilidades instigantes de pesquisa sobre tais profissionais da vida urbana, sobretudo pelo tipo de etnografia realizada, ao enfrentar a efemeridade das interações com análises aprofundadas de trajetórias de vida, numa ampliação do saber sobre citadinos tão presentes e ao mesmo tempo tão desapercebidos.

Referências

  • FINNEGAN, Ruth . 2007 [1989]. The hidden musicians: music-making in an English town Middletown: Wesleyan University Press.
  • FINNEGAN, Ruth . 2004 [1998]. Tales of the city: a study of narrative and urban life Cambridge: Cambridge University Press.
  • FRÚGOLI , JR. Heitor. 2015. “A cidade sob enfoque antropológico: as obras de Ruth Finnegan sobre Milton Keynes”. Sociologia & Antropologia, v. 5, n. 2:577-596.
  • FRÚGOLI , JR. Heitor. 2018. “A multiplicidade de caminhos na vida urbana: entrevista com Ruth Finnegan”. Revista de Antropologia, v. 61, n. 2:110-123.

Notas

  • 1
    Ver detalhes em Frúgoli Jr. (2015FRÚGOLI , JR. Heitor. 2015. “A cidade sob enfoque antropológico: as obras de Ruth Finnegan sobre Milton Keynes”. Sociologia & Antropologia, v. 5, n. 2:577-596., 2018FRÚGOLI , JR. Heitor. 2018. “A multiplicidade de caminhos na vida urbana: entrevista com Ruth Finnegan”. Revista de Antropologia, v. 61, n. 2:110-123.).
  • 2
    Embora o estudo abarque pontualmente outras cidades, como Londres, Cambridge, Birmingham e Belfast, ou de cidades da Nova Zelândia (Finnegan 2022:91).
  • 3
    Em algumas passagens, a autora se refere a mulheres taxistas, e a dificuldades vividas por elas neste ofício.
  • 4
    Numa rara oportunidade, ela fez uma entrevista bem mais prolongada com um motorista inglês, que era também músico e compositor (ver capítulo 9).
  • 5
    Entre “provações, traumas e triunfos” (minha tradução de “Trials, traumas and triumps”, um subtítulo do referido capítulo 4, Finnegan 2022:37).
  • 6
    Há ONGs inglesas que buscam capacitar motoristas a detectar falas de clientes que poderiam indicar tentativas de suicídio (Finnegan 2022:69).
  • 7
    Minha tradução de “we live in a dream as well as an everyday world”.
  • 8
    Agradeço a orientandas/os de pós-graduação por me enfatizarem questões contemporâneas, depois de já ter praticamente finalizado a presente resenha.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2023
  • Aceito
    24 Jun 2024
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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