Open-access Etnoarqueologia de dois aterros Guató no Pantanal: dinâmica construtiva e história de lugares persistentes

Ethnoarchaeology of two Guató mounds in the Pantanal: building dynamics and history in persistent places

Etnoarqueología de dos montículos Guató en el Pantanal: dinámica constructiva e historia de lugares persistentes

Resumo

Sítios arqueológicos indígenas, compostos por montículos de terra e transformações topográficas adjacentes, são conhecidos em praticamente toda a América do Sul. Os processos construtivos desses lugares e sua funcionalidade são objetos de investigação na arqueologia desde o século XIX. Os modelos interpretativos sugerem diversas funções aos montículos: locais de moradia temporária e permanente, cemitérios, praças centrais de assentamentos mais amplos, espaços com solo fértil para produção de alimentos vegetais, demarcadores territoriais e lugares de memória, dentre outras possibilidades. No intuito de contribuir para a discussão, neste trabalho são apresentados dados etnoarqueológicos registrados no contexto da ocupação tradicional da Terra Indígena Baía dos Guató, localizada na região do Pantanal, estado de Mato Grosso, Brasil. A observação direta sobre antigos e recentes assentamentos, associada às narrativas de indígenas sobre os lugares, permitiu compreender o significado social e funcional das estruturas arqueológicas.

Palavras-chave: Aterros; Arqueologia do Pantanal; Arqueologia indígena; Etnoarqueologia; Índios guató

Abstract

Indigenous archaeological sites composed of earth-mounds and surrounding earth-works are known throughout South America. The building processes of these places and their functionality have been the object of archaeological investigation since the 19th century. The available interpretative models suggest several uses for the mounds: temporary and permanent dwelling places, cemeteries, central plazas of larger settlements, spaces with fertile soil for the production of vegetal foods, territorial landmarks and places of memory, among other possibilities. In order to contribute to the discussion, this article presents ethnoarchaeological data registered in the context of the traditional occupation of the Indigenous Land of the Baía dos Guató, located in the Pantanal wetland, State of Mato Grosso, Brazil. Direct observation of ancient and recent settlements, alongside indigenous narratives about places, allow us to understand the social and functional meaning of archaeological structures.

Keywords: Mounds; Archaeology of the Pantanal; Indigenous Archaeology; Ethnoarchaeology; Guató Indians

Resumen

Los sitios arqueológicos indígenas, compuestos por montículos de tierra y transformaciones topográficas adyacentes, son conocidos en prácticamente toda América del Sur. Los procesos de construcción de estos lugares y su funcionalidad han sido objeto de investigación en arqueología desde el siglo XIX. Los modelos interpretativos sugieren varias funciones para los montículos: lugares de vivienda temporal y permanente, cementerios, plazas centrales de asentamientos más grandes, espacios con tierra fértil para la producción de alimentos vegetales, demarcaciones territoriales y lugares de memoria, entre otras posibilidades. Para contribuir con la discusión, este trabajo presenta datos etnoarqueológicos registrados en el contexto de la ocupación tradicional de la Tierra Indígena Baía dos Guató, ubicada en la región del Pantanal, en el estado de Mato Grosso, Brasil. La observación directa de los antiguos y recientes asentamientos, asociada con las narraciones de los indígenas sobre los lugares, permitió comprender el significado social y funcional de las estructuras arqueológicas.

Palabras clave: Montículos; Arqueología del Pantanal; Arqueología Indígena; Etnoarqueología; Indios Guató

Introdução

Desde o século XIX, sobretudo, têm sido estudados na América do Sul sítios arqueológicos compostos por montículos ou mounds predominantemente de terra, associados a diferentes populações indígenas que construíram e ocuparam pontos artificialmente elevados nas regiões Amazônica, Platina e outras. As pesquisas realizadas apresentam diversas interpretações sobre a origem sociocultural dos aterros e envolvem distintas hipóteses sobre seus aspectos funcionais, simbólicos e históricos: áreas de moradia, cemitérios, praças centrais de assentamentos, locais para produção de alimentos vegetais, demarcadores territoriais, espaços de memória etc. Trata-se de lugares em que elementos como depressões topográficas, elevações em terra, valas, canais e sedimentos manejados estão associados a vestígios materiais, como vasilhas cerâmicas, instrumentos líticos, restos alimentares e corpos humanos. Compõem marcas espaciais e estruturas materiais que denotam significados culturais e agências sociais (Gianotti 2000; Heckenberger 2001; Erickson 2009, e outros).

Há dois grandes modelos interpretativos acerca da formação dos aterros, aqui resumidos de maneira simplificada. O primeiro modelo, mais corrente entre fins do século XIX até os anos 1970 e 1980, diz respeito à ideia de que os montículos teriam sido erguidos com pouca ou nenhuma intencionalidade marcada por razões práticas e simbólicas, quer dizer, que antigas populações indígenas não teriam uma agência ou um devir particular na constituição dos pontos artificialmente elevados. O segundo modelo, mais conhecido a partir da última década do século XX em diante, considera que os mounds teriam sido construídos para além de mera resposta adaptativa aos estímulos do meio ambiente, ou seja, que haveria uma intenção proposital, um conjunto de estratégias e conhecimentos socialmente compartilhados com a finalidade de edificar e ocupar os locais. Ambos os modelos remetem a debates sobre o processo de formação dos sítios arqueológicos e, na medida em que as pesquisas avançam, tornam-se mais evidentes a intencionalidade plural e holística na construção e o uso multifuncional das estruturas monticulares (Moraes & Neves 2012; Lopez Mazz 2001; Villagran & Gianotti 2013; Bonomo & Politis 2018, entre outros).

Para contribuir com a discussão, neste trabalho consta um estudo etnoarqueológico sobre dois dos três aterros identificados na Terra Indígena Baía dos Guató, localizada na região do Pantanal, município de Barão de Melgaço, estado de Mato Grosso, área sob influência dos rios Cuiabá, São Lourenço e Perigara. São eles: Aterradinho do Bananal, o mais antigo, e Aterro da Sandra, o mais recente, situados à margem direita do rio Cuiabá. O terceiro aterro, correspondente à parte da área da Aldeia São Benedito, construído a partir das últimas décadas do século XX, à margem esquerda do rio Perigara, ainda necessita de estudos mais detalhados. Os trabalhos de campo foram realizados durante as diligências de uma perícia antropológica e histórica para a Justiça Federal em Cuiabá, relativa à regularização fundiária da referida terra indígena (TI) (Eremites de Oliveira 2018). Na oportunidade, foram identificados vários assentamentos em uso por famílias guató, as quais ensinaram aos pesquisadores aspectos funcionais, simbólicos e construtivos dos montículos.

Alguns elementos e dinâmicas construtivas apreendidos sobre o assunto dizem respeito às seguintes questões: composição estratigráfica e manejo de sedimentos dos aterros e de áreas adjacentes; estruturas arqueológicas pretéritas visíveis na superfície dos sítios; roça, plantio e manejo de espécies florísticas; construção, reaproveitamento e significado social e territorial das estruturas arquitetônicas. Com base em observações empíricas, busca-se entender aspectos relativos à multifuncionalidade e à dinâmica construtiva das estruturas monticulares que ocorrem nesta parte da América do Sul, dentre outros assuntos relevantes ao tema.

Este trabalho insere-se em uma perspectiva de etnoarqueologia à brasileira, que busca compreender, dentre outras coisas, o estático registro arqueológico por meio do conhecimento da dinâmica sociocultural observada no presente etnográfico. Isto é feito com vistas a contribuir para o conhecimento de uma história indígena de longa duração ou tempo longo em termos espaciais e temporais (e não, necessariamente, do ponto de vista das estruturas de pensamento) (Binford 1991; Hodder 1989; Eremites de Oliveira 2002; Silva 2008; Politis 2009). Proceder desta maneira implica considerar a situação histórica vivida pela comunidade indígena, o que pressupõe uma análise diacrônica de modo a refutar a ideia de aculturação ou perdas culturais (cf. Pacheco de Oliveira 1998; Souza & Eremites de Oliveira 2019, e outros autores). Desta maneira, o trabalho está orientado pela perspectiva de entender a dinâmica da vida em sociedade e a materialidade das relações sociais que a caracteriza no tempo e no espaço.

Aterros e sítios construídos no leste da América do Sul

Pesquisas sobre montículos de terra e outros componentes têm ganhado significativa visibilidade no panorama da arqueologia do leste da América do Sul, especialmente nas regiões Amazônica e Platina. Destacam-se trabalhos realizados a partir dos anos 1980 e 1990 em distintos contextos arqueológicos, como, por exemplo: Planície de Mojos, na Bolívia, com canais construídos e retificados que ligavam aldeias ou comunidades indígenas (Erickson 2009); planícies arenosas do litoral guayanense, na Guiana Francesa, onde ocorrem campos elevados para o manejo ambiental e o plantio de espécies botânicas usadas na alimentação humana (Rostain 2010); e delta do rio Apure, na planície do rio Orinoco, na Venezuela (Gassón 2002). Também chama a atenção a ocorrência de tesos como na Ilha do Marajó, localizados na planície deltaica do rio Amazonas, onde foram encontrados diversos aterros, alguns com grandes dimensões e apelo monumental (Schaan 2009). Neste último caso, os sítios têm certa semelhança com os da Amazônia Central, que remontam a antigas aldeias circulares (Moraes & Neves 2012). Dentre os sítios arqueológicos, os chamados geoglifos do sudoeste amazônico impressionam pela monumentalidade porque são estruturas escavadas em larga escala, com formatos geométricos e formas variadas (Schaan 2012). Na bacia do rio Guaporé, região meridional da Amazônia, ocorrem montículos caraterizados como sambaquis fluviais (Miller 1983; Pugliese Junior 2018).

Além disso, no planalto meridional brasileiro e no nordeste argentino há estruturas semissubterrâneas, associadas a montículos de terra utilizados como estruturas funerárias, nomeadas de danceiros (Iriarte et al. 2013; Copé 2015). Na Laguna dos Patos, sul do Brasil, também existem aterros em terrenos alagadiços, denominados cerritos, semelhantes aos encontrados em parte do ambiente pampiano, como no delta do rio Paraná, na Argentina, no baixo rio Uruguai e na bacia da Lagoa Mirim, em território nacional uruguaio (Schmitz 1976; Bracco, Cabrera & Lopez Mazz 2000; Lopez Mazz 2001; Loponte & Acosta 2008; Bonomo, Politis & Gianotti 2011; Bonomo & Politis, 2018; Milheira, Atorre & Borges 2019). No Paraguai há aterros com grande quantidade de conchas de moluscos aquáticos, ossos de peixes e outros materiais, chamados de yvy chovi e conchales; alguns lembram os sambaquis do litoral brasileiro e do interior da Amazônia, e ainda os aterros do Pantanal (Eremites de Oliveira 1996, 2002; Lamenza, Calandra & Salceda 2015).

A visibilidade científica sobre esses sítios arqueológicos não se dá apenas pela complexidade arquitetônica, visto que são verdadeiras obras da engenharia indígena, mas porque as estruturas arqueológicas são sistemicamente conectadas e reportam a um estilo de vida “aldeão”, bastante antigo, que alcança em torno de 4.500-5.000 AP (Anos antes do Presente). Comumente tem sido apontado que os sítios e as áreas anexas corresponderiam a sistemas de aldeias planificadas e hierarquizadas, que conformariam territórios delimitados em períodos de longa duração, configurados de maneira a compor paisagens monumentalizadas, sacralizadas e historicamente constituídas. Em alguns contextos, apresentam morfologias tão complexas que remontariam a típicas “vilas comunitárias”, assim percebidas em comparação à arqueologia de outras grandes áreas das Américas e de diversos contextos do Velho Mundo (Gianotti 2000; Heckenberger 2001; Erickson 2009; Rostain 2010; Bonomo, Politis & Gianotti 2011; Bonomo & Politis, 2018).

Sítios monticulares são ainda descritos e estudados na bacia do rio Xingu, associados a grandes aldeias interconectadas, que sugerem complexidade em termos demográficos, econômicos e políticos desde tempos pré-coloniais. No tempo presente, os Kuikuru constroem estruturas deste tipo, resultado de acúmulo em terra como espaços de plantio (“jardins”) e depósito de lixo (Heckenberger 2001). Entre os Mapuche, no Chile, montículos de terra são utilizados como espaços de memória, mas não mais teriam sido construídos desde o período do pós-contato com os europeus (Dillehay 2000).

Neste cenário mais amplo, o Pantanal apresenta-se como um bioma singular para o estudo etnoarqueológico dos aterros e seus significados, pois na região há comunidades Guató que mantêm a tradição de construir estruturas monticulares, as quais são usadas como espaços de moradia e outras finalidades.

A ocupação humana do Pantanal e os aterros Guató

O Pantanal está situado no interior da bacia hidrográfica do Alto Paraguai, na porção central da América do Sul, reconhecido como a maior planície de inundação do globo. No território nacional do Brasil, possui uma extensão de aproximadamente 150.000 km2 e um regime hídrico muito complexo, caracterizado por um pulso de inundação anual e uma sazonalidade marcante, mais bem observados em períodos alternados de cheia e seca. Por conta disso, grande parte das paisagens locais se modifica sob o ritmo das águas, abriga diversos ecossistemas e possui grande biodiversidade. As terras baixas da planície de inundação do Pantanal, com um relevo de baixíssima declividade, de 0,7 a 5 cm/km no sentido norte-sul e entre 7 e 50 cm/km no sentido leste-oeste, contrastam com as terras altas do Alto Paraguai, como os planaltos residuais de Urucum e Amolar e outros pontos elevados que chegam a alcançar cotas superiores a 300 m (Eremites de Oliveira 1996, 2002).

As origens da ocupação humana do Pantanal são antigas, com datas radiocarbônicas ao redor de 8.400 e 8.200 AP para o aterro MS-CP-22, à margem direita do rio Paraguai, no perímetro urbano de Ladário, Mato Grosso do Sul. O montículo está associado a populações canoeiras portadoras da tecnologia lítica batizada de Fase Corumbá, e se apresenta como um dos montículos mais antigos de que se tem conhecimento para o subcontinente. O aumento da ocorrência de aterros se deu por volta de 5.000 e 4.500 AP, quando houve a gradual intensificação da ocupação humana das terras baixas. Esta situação é mais bem notada a partir de 4.000 a 3.000 AP. Desde então, o aumento do número de montículos indica o crescimento demográfico de populações canoeiras, portadoras da macrotradição tecnológica ceramista denominada Tradição Pantanal, que em tese teria continuidade em relação à Fase Corumbá. Em linhas gerais, a Tradição Pantanal está diretamente vinculada à presença de milhares de montículos que ali passaram ser construídos e ocupados, a maioria localizada nos campos alagáveis e às margens de rios, lagoas ou baías e canais conhecidos como corixos; também está vinculada a outros assentamentos que ocorrem nas margens dos cursos d’água, mas que não são mounds (Eremites de Oliveira 1996, 2002; Schmitz et al. 1998; Eremites de Oliveira & Viana 2000; Migliacio 2000; Peixoto 2003; Bespalez 2014).

Em termos arqueológicos, etnológicos e etno-históricos, o Pantanal é apontado como um mosaico de povos indígenas e, consequentemente, uma área com expressiva diversidade linguística e sociocultural, assim constituída a partir de uns 3.000 a 2.000 AP. Esta configuração é explicada por conta do estabelecimento de outras populações humanas na região, portadoras de diferentes tradições tecnológicas ceramistas. Este é o caso das populações vinculadas à Tradição Tupi-guarani e à Tradição Descalvado, respectivamente associadas a povos falantes da língua guarani e a povos falantes de línguas da família linguística arawak, cuja presença é marcante nas terras altas. Mais recentemente, foi verificada a presença de populações portadoras da Tradição Chaquenha, provavelmente vinculadas a povos falantes de línguas associadas à família linguística guaikuru, dos quais descendem os Kadiwéu, estabelecidas nas terras baixas da porção meridional do Pantanal e no Planalto de Bodoquena (Herberts 1998; Eremites de Oliveira 1996, 2002; Eremites de Oliveira & Viana 2000).

A partir da primeira metade do século XVI, povos mencionados como Guató e Guasarapo (Guaxarapo), provavelmente uma mesma grande população aparentada em termos socioculturais, passaram a ser citados em fontes textuais como índios canoeiros, cujos territórios incidem sobre áreas onde foram estudados dezenas de aterros, especialmente nas bacias hidrográficas dos rios Miranda, Alto Paraguai, São Lourenço e Cuiabá (Eremites de Oliveira 1996, 2002, 2018). Mais ao sul, abaixo da confluência entre os rios Miranda e Paraguai e dali em direção ao território nacional paraguaio, os Payaguá, povo linguisticamente guaikuru, também passaram a ser chamados de índios canoeiros em fontes escritas do mesmo período (Magalhães 1999). Em ambos os casos, a água é percebida como um elemento total e a canoa de tronco de árvore, como a embarcação que marca modos de vida canoeiro.

Os Guató em geral se identificam com os aterros indígenas, chamados de marabohó na língua nativa, ora apontada como língua isolada, ora como hipoteticamente filiada à família linguística guató e ao tronco Macro-Jê. Eles sabem que as estruturas monticulares foram construídas por antigas populações indígenas, das quais entendem descender. Na cosmologia guató, há a explicação de que aprenderam a construir aterros com um povo mitológico chamado Tchubé ou Matchubé, grafados como Matschubehe ou Matsubehe por Schmidt (1942), que lhes teria ensinado as técnicas de construção dos aterrados. Em reciprocidade, teriam aprendido com eles a utilizar a canoa como meio de transporte nos pantanais e, desta maneira, Guató e Matchubé mantêm no plano cosmológico uma aliança interétnica de interdependência e complementaridade (Eremites de Oliveira, 1996, 2002, 2018).

Os marabohó são obras da engenharia nativa e legado cultural de origem indígena. Devem ser entendidos como montículos cuidadosamente planejados, gradualmente (re)construídos e transmitidos ao longo das gerações. Apresentam-se como elevações protegidas das cheias anuais e posicionadas em lugares estratégicos para a sobrevivência das comunidades, bem como para o controle dos territórios, segundo a dinâmica de seus usos, costumes, tradições, transcursos e relações interétnicas. Por este motivo, suas altura e forma e seus tamanho e lugar de implantação variam de uma localidade para outra. São erguidos desta maneira para que a parte mais elevada permaneça acima do nível máximo das enchentes conhecidas e registradas na memória das pessoas. Em suas bordas normalmente há grande quantidade de palmeiras do tipo acuri, chamadas na língua guató de midjí, dentre outras espécies vegetais, cujas raízes em forma de cabeleira protegem os lugares contra a ação de águas fluviais, lacustres e pluviais. Além disso, são locais protegidos contra a ação de seres sobrenaturais, como o Minhocão, espécie de minhoca ou serpente gigantesca, de coloração escura e dorso que lembra o casco de uma grande canoa, que costuma aparecer em noites de lua cheia e às vezes ataca os pescadores. Está presente nas cosmologias regionais e se refere a um ser que habita as águas do Pantanal, como os rebojos e as curvas dos rios, cuja movimentação provoca o assoreamento dos barrancos fluviais, mas não chega a atingir e destruir os aterros.

Na cosmologia dos Guató, tudo o que existe no Pantanal (animais, baías ou lagoas, morros, rios etc.) tem um “dono”, isto é, pertence a um ser espiritual ou divino, algo que é recorrente entre povos originários da América do Sul, como registrado em narrativas apresentadas no longa-metragem 500 Almas, dirigido por Pizzini (2004). Significa dizer que a construção dos montículos não atende apenas a razões de natureza prática, associadas ao pulso de inundação das águas, mas também está em consonância com um universo simbólico pouco conhecido. Somam-se a isso as vivências e as trajetórias particulares de cada povo, comunidade e grupo doméstico, inseridas em uma história maior, mais profunda em termos temporais.

Visto de maneira holística, os aterros são, portanto, os vestígios arqueológicos mais antigos conhecidos no tempo presente no que diz respeito ao Pantanal e encapsulam conhecimentos tradicionais, cosmologias e histórias humanas e ambientais imbricadas a partir de distintas perspectivas. São o resultado da prática de acumular terra e outros materiais para a construção de locais destinados a assentamentos humanos, áreas de manejo agroflorestal e outras finalidades. Por isso, os marabohó também são usados pelos Guató como lugares para o sepultamento ou a moradia dos mortos, delimitação de territórios e plataformas destinadas ao cultivo e ao manejo de plantas as mais diversas, utilizadas para diferentes finalidades (Schmidt 1942, 1951; Eremites de Oliveira 1996, 2002).

Os aterros da Terra Indígena Baía dos Guató

A Terra Indígena Baía dos Guató tem uma extensão de aproximadamente 19.164 hectares e é parte de um grande território tradicionalmente ocupado. Durante os trabalhos de campo, de 22 de agosto a 1 de setembro de 2017, a população local girava em torno de 60 a 70 pessoas, distribuídas em umas 25 famílias, todas falantes da língua portuguesa e muitas delas empenhadas no processo de revitalização do idioma nativo (ver Franchetto & Godoy 2017). Na comunidade há a indicação de crescimento demográfico devido ao fato de várias pessoas, residentes em outras localidades e com vínculos de parentesco com famílias ali estabelecidas, poderem se transferir para a área. Verificou-se que a comunidade estava distribuída em três aldeias, assim denominadas pelos indígenas, que correspondem a unidades políticas de ocupação do espaço: Acuri (antiga Coqueiro), às margens do corixo Bebe; Aterradinho, às margens do rio Cuiabá; e São Benedito, às margens do rio Perigara. Todas as aldeias estão distribuídas conforme a configuração hidrográfica regional e juntas formam uma comunidade étnica, cujos membros têm vínculos de parentesco entre si por consanguinidade, afinidade e outras formas de aliança política, como o compadrio espiritual. Nas comunidades Guató existentes no Pantanal, a identidade étnica está ligada à autoidentificação das pessoas e, principalmente, ao reconhecimento da “ascendência bilateral, ou seja, de ambos os lados, isto é, do lado paterno ou do lado materno, ou apenas de um deles” (Eremites de Oliveira 2018:122).

Foram mantidas profícuas interlocuções com várias pessoas residentes nas três aldeias, onde foi feito o registro e o estudo de elementos do sistema de assentamentos, inclusive relativo à dinâmica construtiva de dois aterros ou marabohó: Aterradinho do Bananal e Aterro da Sandra. De um modo geral, o nome dado aos aterros acompanha o do morador mais conhecido ou mesmo de algo ou algum evento que marca a localidade. No caso do Aterradinho do Bananal, o nome é associado à quantidade de bananeiras (Musa spp.) ali plantadas e conhecidas desde a primeira metade do século XVIII, quando os bandeirantes paulistas intensificaram a exploração de ouro na região de Cuiabá. Em outras localidades, os marabohó recebem diversas denominações: Aterro do Amâncio, Aterro do João Quirino, Aterro do Capitão Fernandes, Aterro do Socorro e até mesmo Aterradinho do Bananal (às margens do rio Paraguai e homônimo ao existente na TI Baía dos Guató), dentre outros.

Nos dois aterros aqui apontados, foram observadas e analisadas estruturas negativas adjacentes, áreas de atividade, uso do solo e estruturas arquitetônicas, bem como registrados elementos da memória social a respeito dos assentamentos e de seus moradores. Diversos locais observados in loco foram identificados, medidos, descritos e analisados com auxílio de trena, bússola, GPS de navegação, fotografias digitais, cadernos de campo e fotografias aéreas obtidas por drone. Também foram feitas fotografias e a gravação de dezenas de entrevistas, todas autorizadas pelos interlocutores para fins de divulgação.

Dada a natureza dos trabalhos de campo, não voltada à realização de escavações arqueológicas, nesse momento não foi possível obter datações radiocarbônicas para o Aterradinho do Bananal e outros sítios ali identificados. Contudo, pesquisas arqueológicas realizadas em áreas mais próximas permitem situar a terra indígena no horizonte cronológico regional. Os trabalhos de Migliacio (2000) e Eremites de Oliveira (2002), por exemplo, sugerem que as ocupações mais recuadas desses sítios podem estar entre 3.000 e 1.000 AP, ao passo que as mais recentes remontam às primeiras décadas do século XVIII, quando foram produzidas fontes escritas sobre a presença guató ao longo dos rios Cuiabá, Perigara e São Lourenço, até o tempo presente (Eremites de Oliveira 2018).

Figura 1:
Terra Indígena Baía dos Guató no contexto da Arqueologia do Pantanal

Aterradinho do Bananal

O Aterradinho do Bananal é a maior estrutura monticular conhecida em toda a TI Baía dos Guató. É ocupado pela família de Carlos Henrique Alves Arruda, conhecido como Carlinhos. Trata-se de um aterro muito antigo, com uns 5 m de altura no ponto mais elevado e uma área aproximada de 192 m de comprimento x 180 m de largura, o que equivale a uma extensão de 3,456 hectares, incluindo suas bordas erodidas. Está localizado à margem direita do rio Cuiabá, no ponto de seu encontro com um corixo que conecta o curso d’água maior com a chamada Baía do Aterradinho. O formato do sítio arqueológico lembra o de uma ferradura e sua parte mais elevada está voltada para o próprio rio Cuiabá, ao passo que os pontos mais baixos estão em outras extremidades. Hoje em dia, o principal acesso ao montículo se dá via navegação fluvial, seja em tempos de cheia, seja no período de seca. Além das expressivas dimensões e apelo monumental, o sítio se destaca pela diversidade vegetal, porque se apresenta como uma “ilha de floresta”, termo recorrente na arqueologia e na ecologia histórica, em grande parte circundada por vegetação rasteira, típica de savana. Por este motivo, em outras partes do Pantanal, como verificado em Corumbá, Ladário e Miranda, Mato Grosso do Sul, aterros indígenas também são chamados de capões-de-mato (do guarani ka’a pu’ã = mato redondo), quando circulares e semicirculares, e cordilheiras, quando alongados.

Figura 2:
Croqui da área do Aterradinho do Bananal

Figura 3:
Porto do Aterradinho do Bananal

Na interpretação de Guilherme Pedroso da Silva, morador da Aldeia Acuri, a Baía do Aterradinho foi construída pelos antepassados imemoriais dos atuais Guató. Ele explica que os indígenas retiraram sedimentos daquele lugar para a construção da estrutura monticular e, por este motivo, a depressão que ali se formou corresponde à estrutura negativa do marabohó. Do rebaixamento do terreno surgiu uma baía, cuja área atual é de aproximadamente 1.000 m de comprimento por 170 m de largura, localizada a uns 500 m do ponto central do assentamento. O próprio corixo que conecta o rio à lagoa também é apontado por membros da comunidade como uma construção inicialmente artificial que, com o tempo, foi mais bem esculpido pelas águas do rio Cuiabá.

Por este motivo, a Baía do Aterradinho revela-se como um grande criadouro de espécies animais e vegetais, uma típica lagoa onde os Guató costumam capturar iscas - sobretudo caramujos, caranguejos e peixes pequenos, como tuvira (Gymnotus carapo) - para a pesca de espécies como cachara (Pseudoplatystoma fasciatum), pacu (Piaractus mesopotamicus), surubi (Pseudoplatystoma corruscans) e outras. Na mesma área, costumam buscar palmas de acuri (Scheelea phalerata) para a construção da cobertura das casas e outras finalidades. A cerca de 160 m de distância dali, sentido sudeste, os interlocutores indicaram um “buraco” de onde foi extraída uma quantidade de sedimentos para a construção do aterro. Este lugar, um “negativo topográfico”, tem um diâmetro de aproximadamente 15 m e periodicamente está em meio à área inundada do entorno do aterro. De acordo com Carlinhos, antigamente a depressão compunha uma pequena lagoa intermitente, mas hoje em dia está coberta por vegetação.

Figura 4:
Fotografia área do Aterradinho do Bananal

Em vários pontos do aterro é possível identificar conchas de moluscos aquáticos, especialmente caramujos do gênero Pomacea, chamados no idioma nativo de mahá. Conforme interpretam vários interlocutores, as valvas foram depositadas como elementos de construção do montículo, dispostas uma com o bulbo para cima e outra, para baixo, e assim sucessivamente, além de conchas fragmentadas. Desta maneira, há camadas estratigráficas compostas por conchas, as quais são intercaladas por camadas de sedimentos. A disposição planejada das conchas é uma técnica que garante permeabilidade dos sedimentos componentes da estrutura monticular, permitindo a percolação de matéria orgânica desde o topo até a base. Em decorrência disso, os sedimentos ficam com aspecto “aerado”, beneficiados pela não compactação, de tal forma que ganham nutritividade e organicidade. O uso de conchas também ocorre para sustentar o sedimento do aterro, ao que se somam as raízes de árvores e palmeiras acuri. Com o tempo, o solo dos aterros vai de “verde” a “maduro”, em analogia à fruta em processo de amadurecimento: a terra passa a ter coloração mais escura e a ser mais fértil por conta da combinação de sedimentos ricos em matéria orgânica, valvas de moluscos com carbonato de cálcio, restos de alimentação humana, ação de invertebrados da macrofauna do solo e outros fatores que carecem de estudos mais apurados, como a constituição de lixeiras, uso controlado do fogo para pequenas queimadas etc.

Durante conversa mantida com dois membros da comunidade, João Marques da Silva, conhecido como Vangi (“Vandji”), e Guilherme Pedroso da Silva, o segundo assim explicou a situação do Aterradinho do Bananal:

O aterradinho tinha muito acuri ali. Acabou de uns tempo pra cá, mas tinha acuri, tinha aquele bananal ali, mato ao redor pra não deixar que foi que plantaram aquele manduvizera [Sterculia apetala], pra não deixar ele revirar e acaba porque a água, vai chovendo, [...] então aquelas planta ao redor ali é pra segurar, e raiz segura o aterro. Você vê quanto de caramujo tem ali? Aquilo ali foi colocado que é pro aterro não desabar [...]

Lá no aterro da Baía dos Pito, lá no campo do SESC [RPPN do Serviço Social do Comércio, em Barão de Melgaço], é a mesma coisa. É uma fila de terra e uma de caramujo, pra não desabar o aterro. Então, esse aí foi um serviço dos Guató antigo, né, aí que teve Guató que eu nem conheci.

Este tipo de explicação remete a uma lógica que ratifica a intencionalidade das ações dos indígenas na transformação e no uso das paisagens pantaneiras. Segundo ainda disse o referido interlocutor, as bananeiras estiveram presentes ali desde muito tempo e serviam como alimento a viajantes que navegavam pelo rio Cuiabá. Há uns anos, uma vara de porcos-do-mato ou queixadas (Tayassu pecari) comeu grande parte das bananeiras, mas no aterro ainda existem algumas, além de outras espécies vegetais que foram plantadas e/ou manejadas: abacate (Persea americana), acaiá ou caiá (Spondias lútea), acerola (Malpighia emarginata), acuri (Scheelea phalerata), bocaiúva (Acrocomia balansae), cabaça de cuia (Lagenaria vulgaris), cabacinha (Luffa operculata?), carandá (Copernicia Alba), chico-magro (Guazuma ulmifolia), figueira (Ficus sp.), flamboiã ou trambolhão cor-de-rosa (Delonix regia?), goiaba (Psidium guayava), graviola (Annona sp.), jacote ou siriguela (Spondias purpurea), laranja (Citrus sinensis), limão (Citrus limon), manduvi (Sterculia apetala), manga (Mangifera indica), mexerica (Citrus nobilis), piúva-branca (Tabebuia roseo-alba), sarã (Sapium haematospermum), taquara (Gramineae), tarumã (Vitex cymosa) e uveira (Alchornea discolor). Nas palavras de Guilherme, o Aterradinho do Bananal “[...] era ponto de descanso, aí tinha essa fruta pra comer [...] uma banana, uma manga, uma laranja pra chupar”. Portanto, parte da “ilha de floresta” está associada à ideia de pomar.

Figuras 5-8:
Conchas de caramujos e sedimentos aerados do Aterradinho do Bananal

Nos fundos da casa principal, situada na parte mais alta do sítio arqueológico, há um espaço usado como área de plantio, demarcado com cerca de arame, onde a mandioca (Manihot esculenta) é o principal produto da roça. Nas proximidades também há uma horta para plantio de temperos, como coentro (Coriandrum sativum), salsa (Petroselinum crispum) e cebolinha (Allium schoenoprasum), dentre outras espécies, mas que à época era pouco usada. As atividades de plantio, que envolvem o roçado e a movimentação de terra por meio do uso de ferramentas manuais, como a enxada, deixam buracos e certo desnível no terreno, responsável pela movimentação de materiais arqueológicos nos sentidos horizontal e vertical. Nestes pontos é comum encontrar podas de árvores e pequenas lixeiras, sem formar aglomerados densos, geralmente com a ocorrência de material arqueológico, como fragmentos de cerâmica antiga e restos de alimentação humana.

Figura 9-12:
Espaços usados como área de plantio no Aterradinho do Bananal

No Aterradinho do Bananal foram identificados pelo menos quatro tipos de áreas de atividade. No setor nordeste há um conjunto de palmeiras, principalmente bocaiúva, posicionadas de modo a formar uma área circular, onde eventualmente são encontradas partes anatômicas de corpos de crianças e, por isso, é conhecida como “Cemitério de Anjos”. No mesmo setor, em área de declive do aterro e mais próxima do rio Cuiabá, há um local com ocorrência de maior quantidade de material humano, o que sugere ter sido um ponto de sepultamentos primários e talvez secundários, sem que tivesse sido possível precisar a posição dos enterramentos. Ainda hoje, os Guató informam que podem enterrar seus parentes no Aterradinho do Bananal e em outros locais. Sobre o assunto, Guilherme fala o seguinte:

[...] então já existia esse aterro aí [...] esse aterro há muitos anos [...] e tenho certeza pra você que tem muitos pretendentes nossos enterrados ali [...] muitos parentes nossos enterrados ali. Tio meu, pode ter prima, primo, enterrado ali, índio guató. Tenho bem certeza pra vocês [...]. Enterrado. Então, ali tem muita gente enterrada ali, como tá meu filho enterrado ali, minha mãe enterrada ali no São Francisco, meu pai na Barreirinha.

Carlinhos também indicou um local próximo ao “Cemitério de Anjos”, onde no passado colocou uma cruz de madeira para sinalizar o ponto destinado ao sepultamento de seu filho, um menino que acidentalmente perdeu a vida ao se afogar nas águas do rio Cuiabá, cerca de seis anos antes dos trabalhos de campo. Como o corpo da criança não foi encontrado, o lugar segue como referência espacial de relevância simbólica para o enterramento daquele “anjo”. Segundo ele mesmo explica, uma das funções do Aterradinho do Bananal

[...] era ter um lugar seco, até mesmo pra fazer os seus sepultamentos, morar. Aí é um lugar pra você fazer o seu ritual, de um sepultamento, de um próximo que morre, de um parente que morria e não tinha..., porque você pode ver que tudo alaga, é período da cheia, aí eles [os antigos Guató] tiveram a ideia de construir esse aterro pra esse fim também [...].

Figura 13:
“Cemitério de Anjos” demarcado por palmeiras em posição circular

No mesmo local foi identificada uma antiga estrutura de combustão para a queima de vasilhas de cerâmica, assim interpretada pelos interlocutores, localizada próxima do referido cemitério. A área de atividade não teria sido produzida e utilizada pelas atuais gerações; estaria associada aos antigos “parentes” moradores do aterro. A estrutura tem aproximadamente 1 m de diâmetro, composta por sedimentos compactados em formato semicircular, com pequenas concavidades, cinzas de fogueira, grânulos de carvão e fragmentos de cerâmica no entorno. Sendo para esta finalidade, funcionaria como um forno para cocção e estaria associada à queima predominantemente redutora de material cerâmico.

Figuras 14-15:
Estrutura de combustão de cerâmica em formato semicircular

Ao longo do terreno do sítio arqueológico ainda foram identificados “buracos” de poucos centímetros de diâmetro e de 2 a 4 m de profundidade, utilizados como locais de deposição de lixo. Uma das estruturas foi construída no centro do aterrado. No setor nordeste há o maior acúmulo de lixo, especialmente nos fundos da edificação central. Trata-se de uma estrutura periférica em meio a um taquaral (Bambusa sp.), onde eventualmente o lixo é queimado de maneira controlada para evitar incêndios.

Figuras 16-17:
Lixeiras no Aterradinho do Bananal

Na área também foi registrada a presença de fragmentos de materiais antigos e recentes, como telhas, tijolos e vasilhame cerâmico, amontoados de maneira misturada no entorno de raízes das árvores e em pontos de passagem das pessoas. Os aglomerados foram feitos para o asseio do lugar e facilitação da circulação dos moradores, uma vez que, segundo explicaram, a limpeza periódica dos terrenos é importante para evitar a proliferação de animais peçonhentos e outros, e porque costumam andar descalços em volta das casas.

Figuras 18-19:
Acúmulo de fragmentos de antigas vasilhas cerâmicas e materiais construtivos em áreas de circulação das pessoas no Aterradinho do Bananal

Na superfície do aterro há muito material fragmentado de antigas vasilhas de cerâmica, cujos tipos e formas de decoração lembram as conhecidas etnograficamente dos Guató e as arqueologicamente estudadas para a Tradição Pantanal (Eremites de Oliveira, 1996, 2002, 2018). Muito do material está disposto em áreas de declive do montículo, misturado com fragmentos de telhas e tijolos na estabilização do terreno e de modo a facilitar a circulação dos moradores em pontos escorregadios, como, por exemplo, a área do porto atual. Além de fragmentos cerâmicos, eventualmente se encontram no porto alguns degraus escavados no próprio terreno. Por vezes os degraus construídos nos barrancos de rios, lagoas e corixos podem ser estabilizados com tábuas, troncos de árvores e outros materiais, remetendo a técnicas construtivas bastante antigas. Em alguns assentamentos na TI Baía dos Guató é comum, inclusive, a colocação de escadas de madeira para acessar o cume dos assentamentos.

Figuras 20-21:
Bordas do Aterradinho do Bananal

As áreas imediatas ao entorno e defronte à residência central são os principais lugares de permanência das pessoas durante o dia. Nesses espaços são feitas algumas refeições e ali as pessoas promovem sociabilidade, conversam sobre a pescaria do dia e tratam de outros assuntos. Também são pontos onde os cães ficam à sombra e as crianças brincam. Por conta disso, são locais com mobiliário para nele se sentar (bancos, cadeiras etc.) e material para o trabalho na pesca (caniços, remos etc.) e roça (enxadas, foices etc.), e outros. São os pontos mais limpos dos terrenos, com poucas gramíneas.

No caso dos cães, vale lembrar que sua presença é importante, dentre outras coisas, para a proteção dos assentamentos contra a presença de grandes felinos, como a onça-pintada (Panthera onca). Costumam se alimentar de restos da alimentação humana, como ossos de aves, mamíferos, répteis e peixes, triturando-os durante a ingestão e também enterrando ossos maiores em vários pontos, como observado em outras áreas por Eremites de Oliveira (2012).

Figuras 22-23:
Áreas de sociabilidade no Aterradinho do Bananal

As estruturas arquitetônicas, especialmente as de alvenaria, foram construídas em diferentes momentos de ocupação, incluindo tempos pretéritos, como a segunda metade do século XX, quando o Aterradinho do Bananal esteve sob domínio de terceiros não indígenas. A residência foi erguida com técnicas e materiais tidos como “modernos”, construída sobre uma antiga residência, erigida com técnicas indicadas como mais tradicionais. Os únicos materiais que evidenciam a antiga estrutura de habitação são partes de esteios periféricos de aroeira (Myracrodruon urundeuva), preservados defronte à estrutura atual, referentes a uma casa do tipo palafita, com piso elevado, cujo tamanho e forma não foram percebidos com exatidão.

Figura 24:
Residência de alvenaria de uso familiar, com a indicação de esteio periférico da antiga casa do tipo palafita

No entorno da residência principal há outras estruturas anexas, utilizadas no dia a dia pela família de Carlinhos, tais como galinheiro, chiqueiro, horta, porto, caixa d’água e geradores de luz. No local funciona um posto de saúde, mas à época não era muito usado para esta finalidade por falta de materiais, embora prestasse algum atendimento aos Guató. O mesmo lugar chegou a ser aproveitado para escola, que deixou de funcionar como estabelecimento de ensino por falta de docentes e apoio governamental. Nos fundos da residência há uma cozinha externa, utilizada para o preparo de alimentos em momentos de reunião. A cozinha teria sido construída em função de um evento de mulheres, que ocorreu anos atrás na Aldeia Aterradinho; tem estruturas de madeira, piso de terra batida e um fogão de alvenaria. O piso tem um buraco raso no centro para acomodar o fogo de chão, onde, quando não em uso, os cães ficam deitados.

Figura 25:
Interior da cozinha de madeira do Aterradinho do Bananal

Outra estrutura a ser mencionada é a base de uns 30 cm de altura da “área de convivência”, assim utilizada atualmente, construção semelhante à da casa de alvenaria, erguida com sedimentos do próprio aterro sobre o qual foi colocada uma camada de concreto para o piso. A construção teria sido construída para abrigar reuniões de mulheres para um curso de saúde pública, promovido com apoio do governo do estado.

Figura 26:
Área de convivência no Aterradinho do Bananal

Por último, interessa salientar que foram percebidos outros fatores que interferem no processo de transformação do Aterradinho do Bananal. Ocorre que, em épocas de cheia, o nível das águas do rio Cuiabá alcança parte da área do assentamento, transformando-a numa espécie de ilha. Em função da enchente e, sobretudo, da movimentação de embarcações motorizadas pelo rio Cuiabá, que provocam pequenas ondas ou marolas, verifica-se a existência de aglomerados de materiais que são atingidos pelas águas. Este é o caso da área de atividade, onde são encontradas partes anatômicas de antigos corpos humanos, evidenciadas por processo de assoreamento. Há duas linhas de erosão bastante claras: uma na porção noroeste do aterro, já consideravelmente rebaixada, próxima do nível da água e coberta com vegetação; outra, bem evidente no topo do declive, em que as raízes das mangueiras são expostas, de onde aflora material arqueológico. Inquiridos sobre o assunto, os interlocutores salientam que a situação também está associada a tempos em que o lugar estava sob o domínio de não índios, mas que o marabohó segue firme e ali nem mesmo o Minhocão chega a causar grandes prejuízos.

Figuras 27-28:
Pontos erodidos do Aterradinho do Bananal

Aterro da Sandra

O Aterro da Sandra recebe o nome de Sandra da Silva, matriarca de uma parentela. À época da perícia, ela ali residia com uma filha e um filho e, do que se tem conhecimento, trata-se do primeiro montículo pantaneiro cuja denominação recebe o nome de uma mulher.

Este é um aterrado recente e sua construção teve início nos anos 2000. Está próximo do Aterradinho do Bananal, onde reside outra parte da parentela. Tem aproximadamente 100 m de comprimento por 65 m de largura, e não mais do que 1,5 m de altura na parte elevada. Sua disposição espacial atesta que os estabelecimentos próximos uns dos outros costumam ser de parentes. Desta maneira, os Guató constituem dinâmicas redes de relações sociais que se refletem diretamente no sistema de assentamentos e que estão relacionadas com sua forma de organização social. No tempo presente, dessas redes “fazem parte pessoas e, idealmente, famílias nucleares (pais e filhos), famílias extensas (pais, filhos e outros parentes próximos, como avós e netos) e parentelas (grupos de várias famílias nucleares e extensas, normalmente constituídos por mais de duas gerações)” (Eremites de Oliveira 2018:120).

Figura 29:
Croqui da área do Aterro da Sandra

Figura 30:
Fotografia da área do Aterro da Sandra com números correspondentes à figura anterior

Figuras 31-32:
Aterro da Sandra e Aterradinho do Bananal

O aterrado foi construído coletivamente por meio de um “multirão”, pois quando se trata de trabalhar para esta finalidade, “todos ajudam”, explica a interlocutora. A construção de grande parte do assentamento foi realizada com o trabalho braçal de membros da comunidade, principalmente na retirada e no transporte de sedimentos de uma área situada atrás da residência, no setor sudeste, até o local escolhido para erguer o montículo. Para esta finalidade, foram utilizados alguns artefatos conhecidos regionalmente. Usaram o bangué, espécie de padiola feita de couro de gado ou cervídeo. A pele é furada nas laterais e pelos furos são presas duas varas resistentes, colocadas de modo a formar um tipo de maca com quatro hastes nas extremidades. Cada haste pode ser segurada por uma pessoa para transportar o barro até o local desejado. Também empregaram o baquité, cesto de couro em que o barro é colocado dentro e amarrado na borda para ser arrastado com uma corda até o ponto de deposição. Recorreram ainda a baldes para esta atividade. Após a deposição do barro, manejaram uma socadeira ou socadora de dois paus e um socador de madeira preso nas extremidades para “acamar” o barro “até a altura que acha que está bom”, assim explicado por Sandra. Esta tarefa envolve o trabalho de jogar água e socar o barro para que fique compactado.

Em outras localidades, como na Barra do São Lourenço, em Corumbá, os Guató usaram, em fins dos anos 1980 e parte da década de 1990, um carrinho de mão feito de madeira, apelidado de rendi, porque rendia muito no transporte de sedimentos, para a construção do Aterro do Roberto e sua família. A couraça ou “barrigada” de jacaré (Caimam yacare), na forma de gamela ou cocho, também pode servir para carregar sedimentos para a construção ou reparo dos aterros.

Sandra da Silva ainda explica que no presente há dois tipos de aterros feitos na região: um para morar e outro para plantar. Ambos são construídos de maneira semelhante, mas com diferentes sedimentos. No aterro para morar, utiliza-se um barro mais duro, argiloso e avermelhado, retirado de partes profundas do solo que há no campo e acomodado ou socado para maior consolidação. Serve para construir o que se conhece como “chão batido”. No aterro para plantar, por outro lado, o barro tem uma coloração mais escura, típico de sedimentos com maior concentração de matéria orgânica, “raspado mais por cima” do terreno, o que é “mais custoso”, informa. No último caso, trata-se de sedimentos retirados de áreas inundáveis, onde as águas das enchentes depositam anualmente grande quantidade de matéria orgânica.

Ambos os tipos de sedimento podem ser usados no mesmo aterro, geralmente em pontos distintos. O aterro de plantar é uma terra diferente, assim esclarecido pela interlocutora: “[...] às vezes vai quatro, cinco anos pra você formar um aterro para você plantar. E, enquanto isso, você tem que ir segurando as suas mudas, as suas plantinhas ao redor de casa, regando ele [o aterrado], senão você não vai ter nada. Porque o barro, o barro, ele racha”. A explicação está ligada ao processo de amadurecimento do solo dos montículos. As duas formas podem ter sido recorrentes na construção de antigos aterros no Pantanal, onde a estratigrafia indica a existência de camadas compactadas ou concrecionadas na base dos sítios arqueológicos, o que sugere corresponder ao “chão batido” (Eremites de Oliveira 1996, 2002; Schmitz et al. 1998; Migliacio 2000; Peixoto 2003).

Foi possível identificar in loco as áreas de empréstimo de onde foram retirados sedimentos para a construção do Aterro da Sandra. São depressões de formato arredondado e de 4 a 5 m de diâmetro por 1 m de profundidade. Os buracos ficam nos fundos da casa e à época eram usados como área de fossa cloacal e deposição de lixo. Além disso, é bastante evidente no terreno a existência de um ponto de retirada da terra para a construção do aterrado com o uso de maquinário. Trata-se de uma área de formato quadrangular com mais ou menos 1 m de profundidade, situada à sudoeste da residência familiar.

Figura 33:
Sandra manejando o socador para “acamar” o barro no aterro

Figuras 34-35:
Área de retirada de sedimentos para a construção do Aterro da Sandra

A exemplo de outras pessoas da comunidade, Sandra mantém um espaço destinado à horta familiar, situada nos fundos de sua casa, onde planta banana, mandioca, temperos e algumas espécies ornamentais e medicinais. No entorno do aterro, no entanto, há linhas de plantio de palmeiras acuri, mangueiras e outras árvores manejadas. O montículo, portanto, se tornou um lugar de grande diversidade de espécies florísticas, um espaço que funciona como atrativo para espécies animais que se beneficiam desta amplitude de recursos, como verificado no Aterradinho do Bananal e em outros locais periciados.

Em frente da residência familiar fica um piso cimentado e, do lado direto, uma estrutura com telhado correspondente ao espaço de socialização. Na periferia do aterro também há um galinheiro e uma estrutura que abriga o gerador de luz. Foi possível ainda identificar uma área destinada ao lixo cotidiano, um buraco de uns 2 m de diâmetro e 1 m de profundidade. O entorno da casa é a área mais limpa, porque é lugar de maior circulação das pessoas e onde ficam os cachorros e algumas plantas. Os processos naturais de transformação das características físicas do espaço são semelhantes aos verificados no marabohó descrito anteriormente. Isto ocorre porque as chuvas e as enchentes são os principais motivos da erosão das bordas do Aterro da Sandra, como no limite do assentamento com o rio Cuiabá, local do porto, onde o terreno é mais escorregadio.

Figuras 36-37:
Entorno da residência do Aterro da Sandra

Discussão e conclusão

No Pantanal, os aterros indígenas e seu entorno registram uma história de longa duração e são o resultado de múltiplos processos de transformação das paisagens e dos momentos de (re)ocupação e (re)modelamento dos assentamentos humanos. Também são importantes marcadores das terras usualmente ocupadas por populações canoeiras, cujo modo de vida tradicional tem na água um elemento total. Estas populações estão organizadas em uma dinâmica rede de relações sociais, e são portadoras de cosmologias ainda pouco conhecidas. Seu conhecimento torna-se relevante, portanto, não apenas para o entendimento do processo de ocupação humana da porção central da América do Sul, onde está a bacia do Alto Paraguai, mas também para a compreensão de estruturas monticulares que existem em outras partes do subcontinente.

Neste sentido, a experiência da pesquisa etnoarqueológica, pautada pela observação direta e a construção de uma relação colaborativa com a comunidade da TI Baía dos Guató, mostrou-se bastante profícua. A análise apresentada sobre o Aterradinho do Bananal e o Aterro da Sandra sugere que seria pouco provável a existência de mounds com uma única e exclusiva função ou uso naquela parte da planície de inundação. Significa dizer que os montículos são multifuncionais e possuem uma estrutura holística, permanentemente modificada para atender a demandas que ocorrem no âmbito da territorialização das comunidades e dos grupos domésticos.

Quanto aos processos construtivos, nota-se que os aterros são erguidos para diferentes propósitos, envolvendo distintas técnicas. Um aterro é o resultado de acúmulo e rearranjo horizontal e vertical de sedimentos num tempo largo e profundo. A dinâmica do acúmulo de novos sedimentos ou de rearranjo interno se dá tanto por atividades cotidianas, como o costume de varrer e manter limpo os locais por onde as pessoas circulam descalças, quanto por ações eventuais, como no caso da construção do piso da área de convivência no Aterradinho do Bananal. Da mesma forma, por conta dessas atividades, buracos são deixados no terreno e posteriormente utilizados como área para deposição de lixo, cercamento de animais e abertura de açude. Plantas são manejadas com frequência para demarcar espaços, como observado no “Cemitério de Anjos”, onde é evidente o constante rearranjo de sedimentos para a correção do porto. Neste sentido, não há necessariamente um padrão temporal para o depósito de sedimentos, tampouco uma função específica que determine a dinâmica. A história dos aterros, portanto, é um transcurso de constante transformação e remodelamento; envolve um sistemático reuso e movimentação de sedimentos e artefatos.

A composição estratigráfica dos montículos será distinta no plano vertical e no horizontal, e isso depende dos tipos de sedimentos utilizados para sua construção, acumulados em épocas diferentes para variados usos. Não foram informados pelos interlocutores, tampouco identificados em campo ou constatados na bibliografia arrolada, aterros exclusivos para uso funerário entre os Guató. Pelo contrário, parece não haver exclusividade funcional dos mounds, que são usados para várias finalidades ao longo do tempo. Como visto no Aterradinho do Bananal, a construção dos aterros envolve ações sistêmicas de transformações topográficas não apenas no montículo em si, mas também nas áreas adjacentes. Significa dizer que os marabohó são projetados e coletivamente construídos. Reverberam um impacto em termos de engenharia e terra-transformação a centenas de metros ou até a alguns quilômetros de distância dos pontos elevados, como ocorre em outros contextos arqueológicos da América do Sul, da Amazônia ao Pampa.

Em relação ao assunto, J. Rondon (1972) corrobora em seus escritos a lógica construtiva para muitos canais conhecidos como corixos na planície de inundação. Baseando-se em suas vivências no município de Poconé, limítrofe ao de Barão de Melgaço, onde está localizada a TI Baía dos Guató, e provavelmente tendo conhecimento dos estudos de Schmidt (1942), assim diz a respeito dos corixos e dos recursos existentes no entorno de aterros:

Tudo nos leva a acreditar que os corixos existentes no Pantanal, principalmente no município de Poconé, são escavações dos brasilíndios guatós, que alcançamos como reservatórios-de-água e viveiros-de-peixe, resultaram de iniciativas visando ter ali perto do aterro não só os peixes, como também água e pássaros - patos, marrecos, tabuiaiás, jaburus, frangos-d’água, colhereiros, socós, baguaris e muitos outros, como ainda aparecem assim os peixes, principalmente traíras, nos corixos que ainda existem (Rondon 1972:19).

O barro para plantar é raspado das camadas de deposição mais superficiais dos campos, algo em torno de até uns 50 cm, corroborando as interpretações de Villagran e Gianotti (2013) e Milheira, Atorre e Borges (2019) para os montículos do Uruguai e sul do Brasil, que teriam sido construídos com sedimentos superficiais, ricos em matéria orgânica. O tempo de “amadurecimento” dos sedimentos, ao longo de quatro a cinco anos ou mais, para então iniciar o plantio evidencia a técnica de conformação de terra preta, de alta produtividade, como verificado em sítios localizados na região Amazônica (Moraes & Neves 2012; Arroyo-Kalin 2017). Por outro lado, a zona de empréstimo no entorno do Aterradinho do Bananal, pontual e relativamente distante do aterro, sugere que tipos específicos de sedimentos eram utilizados para a construção dos aterros. Esta é uma interpretação também percebida no estudo do sítio Los Tres Cerros 1, Argentina, em que Castiñeira et al. (2017) identificaram que a procedência da terra para a construção dos montículos segue princípios de características mineralógicas e da facilidade de acesso. No mesmo trabalho, os autores apontam que tais características mineralógicas seriam transformadas com o uso de fogo, buscando-se um tipo de sedimento mais agregado e de melhor sustentação do terreno. Da mesma forma, a presença do fogo foi identificada nos aterros do Pantanal. O fogo é um elemento constante, utilizado para higienização do espaço e, possivelmente, preparação do sedimento para a construção e o preparo das áreas de plantio. Estas questões remetem à necessidade da realização de análises geoquímicas nas camadas culturais dos marabohó, cuja interpretação do registro arqueológico estático também depende do conhecimento da dinâmica histórica e sociocultural dos Guató.

Schmidt (1951) havia percebido a relação entre a construção dos montículos e o enriquecimento antrópico do solo para o plantio. Assim o fez a partir de observações realizadas durante os trabalhos de campo que empreendeu em 1901, 1910 e 1928 entre os Guató, estabelecidos em outras localidades, mas não na TI Baía dos Guató. Em suas palavras:

Uno de los métodos más primitivos para crear artificialmente un suelo fértil consiste en la aplicación de tierra fértil sobre el suelo destinado para el cultivo, que es de por sí estéril y, por eso, no cubierto de vegetación tupida. Para esta clase de agricultura he elegido el nombre de “cultivo con mounds” (montículos), pues por la aplicación repetida de tierra fértil se producen pequeños montículos artificiales que son llamados en América del Norte, por lo general, “mounds”. En la región pantanosa de la desembocadura del Río S. Lourenço en el Alto Paraguay y especialmente en los sítios ao lado del pequeño río Caracará que es un brazo del Rio S. Lourenço inferior, tuve oportunidad de encontrar y examinar tales montículos que se llaman ahí “aterrados” y que hasta hoy día son empleados por los indios Guató para plantaciones y especialmente para el cultivo de la palma acurí. […] En lo que respecta a estos aterrados se trata de lugares en pántanos, por su naturaleza ya elevados que han sido cubiertos de medio metro de mantillo humífero extraido de partes bojas y pantanosas. Como el desgaste de la tierra por la plantación exige la aplicación repetida de siempre nuevas capas de mantillo, estos aterrados bastante extensos no han sido levantados sino poco a poco y eso aclara mejor la distribución de la tierra por varias capas. Aun hoy los Guató viven durante la época de la obtención deI jugo de las palmas de acurí, plantadas en los aterrados y aun hoy ellos entierran ahí a sus muertos, lo que explica de por sí el aparecer de esqueletos humanos y de resíduos de objetos de cultura en estos aterrados […] (Schmidt 1951:246).

A composição estratigráfica com conchas para aeração do solo do Aterradinho do Bananal é uma clara tentativa de manejo de sedimentos para o enriquecimento do terreno. A aeração também foi uma técnica identificada por Bracco, Cabrera e Lopez Mazz (2000) para o sítio Puntas de San Luis, Uruguai, em que sedimentos de formigueiros teriam sido usados na base dos sítios para sustentação dos montículos, dadas as características de dureza e concreção. No entanto, sugere-se que para aquela região também se pense nos formigueiros e nos cupinzeiros como sedimentos aerados que permitem a permeabilidade da água nos níveis basais dos aterros.

Os marabohó, sobretudo os mais antigos, como o Aterradinho do Bananal, são proeminentes na paisagem e contrastam com as áreas alagadas e os campos de savana. Apresentam-se como importantes marcadores do território tradicional e, dadas sua elevação e diversidade de plantas e outros recursos, são lugares especialmente protegidos para a vida, o estabelecimento de famílias e o bem viver em comunidade. São a materialidade de um modo de vida dinâmico, particular e antiquíssimo que acompanha o ritmo das águas e a história dos contatos interétnicos no Pantanal. Atraem a presença de diversos animais, como pássaros que diariamente sobrevoam os assentamentos e produzem sinfonias que agradam os moradores, e estão protegidos não apenas contra a ação das águas, mas também de seres sobrenaturais, como o Minhocão. São uma massa verde de várias espécies vegetais, incluindo plantas domesticadas, semidomesticadas e manejadas para diversos usos (alimentares, medicinais, tecnológicos etc.), ou seja, são “ilhas de florestas” antropogênicas, como discutido por Erickson (2009) para a Amazônia boliviana. Toda esta biodiversidade resulta da transformação dos aterros e de suas adjacências em lugares para onde confluem trajetórias individuais e coletivas, áreas situadas dentro de um território muito bem conhecido, protegido e humanizado. Não são meros marcadores de adaptação ecológica, como se o comportamento humano fosse determinado unilateralmente pelo meio ambiente, mas revelam a materialidade da transformação dos ecossistemas locais para atender a formas singulares de viver como povo originário e canoeiro.

Os montículos pantaneiros são, pois, lugares significativos para a moradia individual e coletiva. Por isso, cada grupo doméstico costumava ter o seu aterrado, montículo que geralmente leva o nome da liderança ou até mesmo o nome da localidade ou de um evento que marca a história regional. Embora muitos guató vivam em aterros particulares, guardam grande senso de coletividade, observado pelas visitas frequentes entre membros da comunidade e em ocasiões de festividade e reunião política, marcados pela solidariedade. Isto tudo e muito mais lhes dão feição de grupo étnico diferenciado em relação à sociedade nacional envolvente e até mesmo em relação a outros povos indígenas. Por isso, qualquer oportunidade para descer ao porto para receber os parentes e os amigos é algo valorizado para a atualização de informações e, até mesmo, para presentear alguém com alimentos, equipamentos, prestação de ajuda etc.

Consequentemente, a noção local de aldeia não tem a ver com a ideia de aldeamento oficial ou espaço de confinamento, tampouco de lugar exclusivo onde as pessoas constroem suas residências e produzem a maior quantidade do registro arqueológico. É um espaço dinâmico que flui de acordo com os rearranjos sociais. Pode haver a totalidade ou parte da comunidade estabelecida numa determinada área, percebida como território tradicional. Não é, portanto, um aglomerado de pessoas em um terreno específico, onde residiriam sob o mesmo teto de uma casa comunal. Envolve a amplitude de uma rede de relações sociais com profunda conectividade com as águas pantaneiras, por onde os argonautas se locomovem com suas embarcações. Por isso, os Guató percebem os montículos como herança cultural e dão continuidade à tradição milenar de construir e ocupar os famosos marabohó.

Agradecimentos

Os autores agradecem à comunidade da TI Baía dos Guató pela colaboração imprescindível durante os trabalhos de campo. Agradecem ainda a Bruna Alves e Jefferson Foster pela transcrição das entrevistas, e a Gustavo Politis e Gustavo P. Wagner e aos pareceristas da Mana pela leitura atenta e críticas à versão original do texto, cuja escrita contou com o suporte do CNPq, através de Bolsa Produtividade em Pesquisa, aos pesquisadores.

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Filmes cinematográficos

  • 500 Almas. Direção: Joel Pizzini. Brasil: Riofilme, 2004. 109 min.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2020
  • Aceito
    15 Set 2020
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