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Coletando dados, produzindo ativos: sobre as similaridades criadas pela cooperação sul-sul brasileira em Moçambique e seus efeitos

Collecting data, producing assets: on the similarities created by Brazilian south-south cooperation in Mozambique and its effects

Recolectar datos, producir activos: sobre las similitudes creadas por la cooperación sur-sur brasileña en Mozambique y sus efectos

Resumo

Em meados da primeira década dos anos 2000 houve um reconhecimento da cooperação sul-sul (CSS) pela comunidade de doadores e agências multilaterais, destacando a relevância estratégica das experiências de desenvolvimento dos chamados países emergentes - compreendidas como mais adequadas às nações de um heterogêneo sul global do que os planos traçados pelos doadores tradicionais do norte. A busca por horizontalidade nas parcerias, portanto, tornou-se um instrumento para promover uma nova arquitetura da ajuda internacional. Neste artigo procuro explorar a noção de similaridade, fortemente mobilizada pelas iniciativas de CSS brasileiras com países da África, entendendo-a como uma ferramenta para traçar comparações entre territórios singulares. Para tanto, considero as analogias produzidas no âmbito do “Projeto Embrapa-Moçambique”, também conhecido como “Projeto Paralelos”, que se apoiou nas similaridades edafoclimáticas entre as Savanas moçambicanas e o Cerrado brasileiro, para conduzir um mapeamento por satélite das potencialidades dos recursos naturais deste país africano. O principal produto deste levantamento foi a plataforma WebGIS, uma base de dados biofísicos e socioeconômicos georreferenciados, que visa conferir subsídios tanto para melhorar a gestão destas informações quanto para promover o desenvolvimento sustentável da agricultura moçambicana. Meu objetivo é descrever como diferentes conceituações sobre a terra - planeta, território, solo, mercadoria, recurso natural - proliferam a partir do estabelecimento deste conjunto de dados. Particularmente, analiso como estes permitem transformar a terra em um ativo, sob o olhar de alguns dos possíveis usuários do WebGIS: agentes do mercado financeiro global, que buscam ambientes seguros para seus negócios nada horizontais, mas ainda assim agenciados por políticas de promoção do desenvolvimento.

Palavras-chave:
Dados; Agricultura; Terra; Cooperação internacional; Moçambique

Abstract

In the mid-2000s, South-South cooperation (SSC) was recognized by the donor community and multilateral agencies, highlighting the strategic relevance of the development experiences of the so-called emerging countries - understood as more suited to the nations of a heterogeneous global south than the plans drawn up by traditional donors from the north. The search for horizontality in partnerships, therefore, became an instrument to promote a new architecture of international aid. In this article I intend to explore the notion of similarity, strongly mobilized by Brazilian SSC initiatives with African countries, understanding it as a tool to draw comparisons between singular territories. To this end, I consider the analogies produced within the scope of the “Projeto Embrapa-Moçambique”, also known as “Projeto Paralelos”, which was based on the edaphoclimatic similarities between the Mozambican Savannas and the Brazilian Cerrado to conduct a satellite mapping of the potentialities of natural resources of this African country. The main product of this survey was the WebGIS platform, a georeferenced biophysical and socioeconomic database, which aims to provide subsidies both to improve the management of this information and to promote the sustainable development of Mozambican agriculture. My aim is to describe how different conceptualizations of the land - planet, territory, soil, commodity, natural resource - proliferate from the establishment of this data set. Particularly, I analyze how these allow transforming the land into an asset, under the eyes of some of the possible users of WebGIS: agents of the global financial market, who seek safe environments for their far from horizontal businesses, but still managed by policies to promote development.

Keywords:
Data; Agriculture; Land; International cooperation; Mozambique

Resumen

A mediados de la primera década de los 2000, hubo un reconocimiento de la Cooperación Sur-Sur (CSS) por parte de la comunidad de donantes y organismos multilaterales, destacando la relevancia estratégica de las experiencias de desarrollo de los llamados países emergentes - entendidos como más adecuado a las naciones de un heterogéneo sur global que los planes elaborados por los donantes tradicionales do norte. La búsqueda de la horizontalidad en las alianzas, por lo tanto, se convirtió en un instrumento para promover una nueva arquitectura de la ayuda internacional. En este artículo trato de explorar la noción de similitud, fuertemente movilizada por las iniciativas de CSS de Brasil con países africanos, entendiéndola como una herramienta para establecer comparaciones entre territorios singulares. Para ello, considero las analogías producidas en el ámbito del “Proyecto Embrapa-Mozambique”, también conocido como “Proyecto Paralelo”, que se basó en las similitudes edafoclimáticas entre las Sabanas de Mozambique y el Cerrado brasileño para realizar un mapeo satelital del potencial de los recursos naturales de este país africano. El principal producto de esta encuesta fue la plataforma WebGIS, una base de datos biofísica y socioeconómica georreferenciada, que tiene como objetivo proporcionar subsidios tanto para mejorar la gestión de esta información como para promover el desarrollo sostenible de la agricultura mozambiqueña. Mi objetivo es describir cómo las diferentes conceptualizaciones de la tierra (planeta, territorio, suelo, mercancía, recurso natural) proliferan a partir del establecimiento de este conjunto de datos. En particular, analizo cómo estos permiten transformar la tierra en un activo, bajo la mirada de algunos de los posibles usuarios de WebGIS: agentes del mercado financiero global, que buscan entornos seguros para sus negocios poco horizontales, pero aún manejados por políticas para promover el desarrollo.

Palabras clave:
Datos; Agricultura; Tierra; Cooperación internacional; Mozambique

A possibilidade de estabelecer comparações entre diferentes territórios com fins de domínio político ou desenvolvimento de relações comerciais é um empreendimento antigo dos Estados Nacionais, conectado à sua própria formação. Como argumenta Anderson (1991ANDERSON, Benedict. 1991. Imagined communities. Reflections on the origin and spread of nationalism. (Revised Edition). London: Verso Editions.), o estilo de pensamento do Estado colonial em relação aos seus domínios, por exemplo, se apoiava na construção de grades classificatória totalizantes, que poderiam ser aplicadas com flexibilidade quase ilimitada a qualquer coisa sob seu controle real ou apenas remoto (povos, regiões, línguas, religiões, objetos etc.). Tal grade de inteligibilidade criava itens que poderiam ser classificados em uma serialização, segundo o pressuposto de que o mundo era feito de plurais reprodutíveis e de que o particular era provisório. Em um mesmo sentido, Cohn (1996COHN, Bernard. 1996. Colonialism and its forms of knowledge: the British in India. Princeton: Princeton Unviersity Press.) argumenta que os Estados coloniais invadiram e conquistaram não apenas territórios, mas também espaços epistemológicos. Se os fatos nesse território epistêmico não correspondiam exatamente àqueles dos colonizadores, eles poderiam explorá-los estabelecendo correspondências.

Assim, o objetivo utópico, imanente e continuamente frustrado dos Estados modernos, destaca Scott (1998SCOTT, James. 1998. Seeing like a State: how certain schemes to improve the human condition have failed. London: Yale University Press. ), seria o de resumir a realidade social caótica, desordenada e constantemente mutável a algo semelhante à grade administrativa de suas observações padronizadoras. Para tanto, foram estabelecidas determinadas modalidades de investigação. Um corpo de informações e procedimentos classificatórios e de ordenação, transformados em relatórios, estatísticas, Histórias, informativos diários, códigos legais, enciclopédias, surveys, censos, mapas (Anderson 1991ANDERSON, Benedict. 1991. Imagined communities. Reflections on the origin and spread of nationalism. (Revised Edition). London: Verso Editions.; Cohn 1996COHN, Bernard. 1996. Colonialism and its forms of knowledge: the British in India. Princeton: Princeton Unviersity Press.; Stoler 2009STOLER, Ann. 2009. Along the archival grain. Princeton: Princeton University Press.). Outras modalidades de investigação iriam se constituir enquanto saberes científicos: historiografia, museologia, arqueologia, cartografia, economia, medicina social e a própria antropologia. “Este estilo de criação imaginária não nasceu do nada. Foi resultante das tecnologias de navegação, astronomia, horologia, topografia, fotografia e impressão gráfica, para nem mencionar a tremenda força propulsora do capitalismo” (Anderson 1991ANDERSON, Benedict. 1991. Imagined communities. Reflections on the origin and spread of nationalism. (Revised Edition). London: Verso Editions.:254).

Contemporaneamente, observamos o desenvolvimento de uma série de novas ciências e tecnologias que permitem a coleta e a sistematização de uma enorme quantidade de dados sobre determinados territórios, em uma escala sem precedentes conhecida como Big Data. Para os fins deste trabalho, destaco as ferramentas de sensoriamento remoto e geoprocessamento por satélite, cujas imagens e mapas digitais possibilitam traçar comparações entre regiões muito distantes, sem mesmo a necessidade de um contato físico entre os cientistas e estes locais. Como aponta Monteiro (2015MONTEIRO, Marko. 2015. “Construindo imagens e territórios: pensando a visualidade e a materialidade do sensoriamento remoto”. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, 22 (2):577-591.), tais ferramentas de visualização de territórios criam mais do que formas de “enxergá-los”, mas imagens-relações que ajudam a construir estes locais de forma particular. Os dados georreferenciados, portanto, configuram redes de relações que “ajudam a conformar o real de formas específicas, a partir da sua participação em complexas infraestruturas científicas, tecnológicas e políticas voltadas para o monitoramento de territórios e recursos naturais” (:578). Vale destacar que Big Data é menos sobre um grande volume de dados do que sobre sua capacidade de buscar, agregar e cruzar referências de grandes conjuntos de dados que formatam a realidade que mensuram (boyd & Crawford 2012BOYD, danah & CRAWFORD, Kate. 2012. “Critical Questions for Big Data: provocations for a cultural, technological, and scholarly phenomenon”. Information, Communication et Society, 15 (5):662-679. ).

Com base nestas reflexões iniciais, analiso neste artigo um empreendimento comparativo que buscou colocar em relação duas regiões muito distantes no globo, fomentando conexões entre seus territórios de modo a que determinadas relações políticas e econômicas pudessem ser estabelecidas. Trata-se do Projeto Embrapa-Moçambique, que por meio da estabilização de conjuntos de dados georreferenciados produziu relações de semelhança entre as regiões do Cerrado brasileiro e a Savana Tropical moçambicana. Deste modo, pretendo apontar como se construiu uma abordagem ancorada nas possíveis similaridades1 1 Ao longo deste trabalho utilizo o itálico para diferenciar os termos, as expressões e as enunciações aos quais são atribuídos significados particulares por meus interlocutores de pesquisa ou no campo da cooperação internacional, particularmente nos documentos produzidos pelos técnicos do projeto analisado. entre regiões localizadas em um mesmo paralelo geográfico do globo, como forma de recomendar que o conhecimento elaborado para o desenvolvimento da agricultura científica praticada no Cerrado brasileiro (cf. Frederico 2013FREDERICO, Samuel. 2013. “Agricultura científica globalizada e fronteira agrícola moderna no Brasil”. Confins [on-line], 17.) fosse aplicado na Savana Tropical moçambicana.

Na primeira seção do texto, descrevo como se deu o reconhecimento da cooperação sul-sul pela comunidade de doadores e agências multilaterais, destacando a relevância estratégica das experiências de desenvolvimento dos chamados países emergentes - compreendidas como mais adequadas às nações de um heterogêneo sul global do que os planos traçados pelos doadores tradicionais do norte. Neste contexto, a busca por horizontalidade nas parcerias tornou-se um instrumento para promover uma nova arquitetura da ajuda internacional. Exploro ainda a noção de similaridade fortemente mobilizada pelas iniciativas de cooperação sul-sul brasileiras com países da África, entendendo-a como uma ferramenta para traçar comparações entre territórios singulares.2 2 Destaco que esta modalidade de cooperação internacional não é vista aqui como um aparato estável da indústria do desenvolvimento. Neste sentido, sigo a inflexão stratherniana proposta por Cesarino (2014) para marcar o caráter situado, parcial e emergente das redes de relações colocadas em operação pelas práticas de cooperação em que o Brasil se enreda - inclusive com os países do norte global.

A partir da análise de relatórios produzidos por técnicos e cientistas da Embrapa e de materiais de pesquisa de campo realizada em Moçambique entre os anos de 2017 e 2018,3 3 Trata-se do trabalho de campo realizado para minha pesquisa de doutorado, a qual consistiu em uma etnografia da implementação do programa de cooperação internacional ProSAVANA. Estive em Moçambique durante oito meses, ao longo dos quais tanto acompanhei o trabalho de organizações camponesas e da sociedade civil moçambicana quanto realizei entrevistas com membros do corpo técnico do ProSAVANA, do governo moçambicano, diplomatas brasileiros, acadêmicos, dentre outros atores enredados na implementação desta iniciativa de cooperação internacional. Este trabalho de campo contou com o financiamento da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research. na segunda seção deste artigo abordo as analogias produzidas no âmbito do Projeto Embrapa-Moçambique, também conhecido como Projeto Paralelos. Tal empreendimento apoiou-se nas similaridades edafoclimáticas entre as Savanas moçambicanas e o Cerrado brasileiro para conduzir um mapeamento por satélite das chamadas potencialidades dos recursos naturais deste país africano. O principal produto deste empreendimento foi a plataforma WebGIS Moçambique, uma base on-line de dados biofísicos e socioeconômicos georreferenciados, que visa conferir subsídios tanto para melhorar a gestão destas informações quanto para promover o desenvolvimento sustentável da agricultura moçambicana.

Por fim, ainda com base em meu trabalho de campo em Moçambique e na principal publicação do Projeto Paralelos, na última parte do texto busco descrever como diferentes conceituações sobre a terra - planeta, território, solo, mercadoria, recurso natural - proliferam a partir do estabelecimento deste conjunto de dados. Particularmente, analiso como estes permitem transformar a terra em um ativo investível (Li 2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.), sob o olhar de alguns dos possíveis usuários do WebGIS: agentes do mercado financeiro global, que buscam ambientes seguros para seus negócios nada horizontais, mas ainda assim agenciados por políticas de promoção do desenvolvimento. Conforme argumenta Walford (2021WALFORD, Tone. 2021. “Data - ova - gene - data”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 27:127-41.) e como buscarei apresentar no que se refere aos efeitos gerados pelo Projeto Embrapa-Moçambique, uma das propriedades dos dados que os tornam valorosos é sua capacidade de transformarem-se em outra coisa. Ou, como colocariam os cooperantes brasileiros e moçambicanos, as potencialidades que conjuntos de dados podem elicitar sobre determinado território.

A cooperação sul-sul e suas analogias de similaridade

Durante as duas gestões presidenciais de Lula da Silva (2003-2011), o desenvolvimento agrário, o combate à fome e a cooperação com o continente africano foram elencados como prioridades de sua política internacional. Assim, o governo brasileiro promoveu uma série de programas de cooperação técnica4 4 Segundo Valente (2010), a primeira definição formalmente reconhecida de cooperação técnica foi estabelecida na Assembleia Geral da ONU de 1948, como a “transferência não comercial de técnicas e conhecimentos através da execução de projetos em conjunto, envolvendo peritos, treinamento de pessoal, material bibliográfico, equipamentos, estudos e pesquisas entre atores de nível desigual de desenvolvimento (prestador e receptor)” (:63). No caso brasileiro, consiste na transferência e na adaptação de expertises, habilidades, tecnologias, por meio de capacitações, treinamentos, consultorias, troca de experiências, formação de quadros profissionais e, ocasionalmente, pela doação de equipamentos (Cabral & Shankland 2013). voltados ao combate da pobreza e à inclusão social, majoritariamente nas áreas da agricultura, segurança alimentar, educação e saúde em África. Concomitantemente, a crescente presença econômica e política brasileira no continente permitiu a expansão de empresas nacionais voltadas ao agronegócio, à mineração e à construção civil, a partir de uma outra perspectiva de intervenção sobre a agricultura e a infraestrutura logística africana (cf. Garcia e KatoGARCIA, Ana & KATO, Karina. 2016. “Políticas públicas e interesses privados: uma análise a partir do Corredor de Nacala em Moçambique”. Cadernos CRH, v. 29 n.76.). Por estas duas vias, portanto, o Brasil e determinados países da África puderam fomentar plataformas de interesses comuns e lançar conjuntamente seus produtos agrícolas no mercado internacional. Um reflexo desta estratégia, que aliou programas de cooperação técnica e investimentos privados de grandes empresas, foi a eleição do embaixador brasileiro Roberto Azevedo para a direção geral da Organização Mundial do Comércio em 2013, garantida pelo apoio e os votos de nações africanas (Saraiva 2010SARAIVA, José Flávio Sombra. 2010. “The New Africa and Brazil in the Lula era: the rebirth of Brazilian Atlantic Policy”. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, 53:169-182.). Em Moçambique, as trocas comerciais com o Brasil nesse período chegaram aos 146 milhões de dólares, indicando um crescimento de mais de 72% (Macauhub 2012MACAUHUB. 2013. Moçambique e Japão assinam acordo para promoção de Investimentos. Portal Macauhub.). Este foi também o momento da entrada de grandes empresas brasileiras neste país africano, como a Vale, que obteve a concessão para explorar o carvão mineral da mina de Moatize, e da chegada de empreiteiras como a Odebrecht, OAS, Andrade Gutierres e Camargo Corrêa, que através de linhas de crédito do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) encabeçariam grandes obras de infraestrutura (Chichava 2017CHICHAVA, Sérgio. 2017. Moçambique e a crise político-econômica brasileira. In: Luís de Brito et al. Desafios para Moçambique - Cadernos IESE, Maputo.; Rossi 2015ROSSI, Amanda. 2015. Moçambique, o Brasil é aqui. Rio de Janeiro: Record.).5 5 Um dos “atrativos” de Moçambique estaria em seu crescimento econômico acima da média dos países subsaarianos nesse período (com taxas de aumento do PIB chegando ao índice de 7% ao ano), na estabilidade política após anos de guerra civil e na superação de metas de desenvolvimento estabelecidas por organismos internacionais (Nogueira & Ollinaho 2013). No entanto, este cenário era um efeito, principalmente, da combinação de altos níveis de ajuda internacional com investimentos estrangeiros diretos, direcionados exclusivamente para certos enclaves produtivos - como a mineração e a exploração de gás natural. Nesse modelo capitaneado pelos chamados “megaprojetos”, a produção é em grande medida exportada e a maior parte dos rendimentos se mantém nas mãos de elites nacionais e internacionais (Cungara 2012). Assim, o setor agrícola, que muitas vezes é destacado pelo governo moçambicano como base da economia do país, por décadas tem recebido baixos investimentos públicos e mesmo privados, desconsiderando que a maior parte da população vive em zonas rurais e encontra na agricultura seu modo de subsistência (Mosca 2012).

A primeira década dos anos 2000 foi também o período de consolidação da modalidade de acordos internacionais conhecidos como cooperação sul-sul. Embora no escopo deste artigo não seja possível tratar de uma genealogia desta noção,6 6 Para tanto ver os trabalhos de Cesarino (2014), Leite (2012) e Pino (2014). ressalto como marco a promulgação do Plano de Buenos Aires em 1978, dada a importância deste acordo para a trajetória brasileira em meio a tais articulações. Este documento, resultado de cinco anos de debates em torno do tema da cooperação técnica na UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), tinha como principal recomendação que os países em desenvolvimento partilhassem informações sobre suas capacidades técnicas e experiências locais, estabelecendo ligações tanto institucionais quanto operacionais para a transferência de recursos. O Plano de Buenos Aires estimulava, ainda, que fossem identificadas oportunidades de cooperação com foco nas necessidades específicas dos países subdesenvolvidos (Leite 2012LEITE, Iara Costa. 2012. “Cooperação Sul-Sul: Conceito, História e Marcos Interpretativos”. Observador On-line, 7 (3):1-40.). Conforme destaca Pino (2014PINO, Bruno Ayllón. 2014. Evolução histórica da cooperação sul-sul (css). In: André de Mello Souza (org.), Repensando a cooperação internacional para o desenvolvimento. Brasília: Ipea. pp. 57-8.), este acordo foi a tentativa mais exaustiva de fixar parâmetros para esta nova modalidade de cooperação técnica, sem deixar de reconhecer e reafirmar a autonomia das nações do chamado terceiro mundo. Neste sentido, o documento apresentava o conceito de cooperação horizontal, baseado no intercâmbio de experiências entre os países, que será o elemento definidor das propostas de cooperação brasileiras pelo menos até meados de 2016.

Contudo, ao longo da década de 80 a concorrência cada vez maior por investimentos estrangeiros diretos por parte dos países do terceiro mundo levou à interrupção de mobilizações coletivas baseadas em uma “solidariedade dos povos do sul”, fruto dos movimentos de descolonização afro-asiática (Leite 2003LEITE, Iara Costa. 2012. “Cooperação Sul-Sul: Conceito, História e Marcos Interpretativos”. Observador On-line, 7 (3):1-40.). Ao final dos anos 1990, a cooperação técnica transformou-se cada vez mais em um instrumento de acomodação das políticas neoliberais de reestruturação econômica definidas no âmbito do Banco Mundial e pelo FMI (Fundo Monetário Internacional). Na virada do milênio, porém, as propostas de cooperação internacional capitaneadas por países em desenvolvimento voltam a ganhar força como iniciativas mais adequadas às nações de um heterogêneo sul global, se comparadas aos planos traçados pelos doadores tradicionais do norte. Ademais, mesmo no âmbito de organizações multilaterais, passam a ser reconhecidos os efeitos negativos dos planos de ajuste estrutural propostos pelas instituições de Bretton Woods.

Como aponta Leite (2011LEITE, Iara Costa. 2012. “Cooperação Sul-Sul: Conceito, História e Marcos Interpretativos”. Observador On-line, 7 (3):1-40.), em 2003 a Unidade Especial para a Cooperação Técnica entre os Países em Desenvolvimento das Nações Unidas foi substituída pela Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul, criada para apoiar programas que permitissem alcançar os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (vinte e três anos após a Declaração de Buenos Aires). Afirmava-se, assim, a contribuição dos agora denominados países emergentes para a reformulação de instituições financeiras e de ajuda internacional, dadas as suas experiências e tecnologias acumuladas ao longo de uma trajetória de desenvolvimento “periférica”, que melhor se adequaria aos países do sul global (Mawdsley 2012MAWDSLEY, Emma. 2012. From recipients to donors. Emerging powers and the changing development landscape. Londres: Zed Books.; Cesarino 2014CESARINO, Letícia. 2014. “Antropologia multissituada e a questão da escala: reflexões com base no estudo da cooperação sul-sul brasileira”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 20 (41):19-50.). Se, por um lado, a cooperação sul-sul não apresenta padrões homogêneos de atuação ou mesmo definições partilhadas, sendo a heterogeneidade uma de suas marcas, alguns preceitos têm sido orientadores importantes para tais acordos. Destacam-se a referida horizontalidade entre países parceiros ou cooperantes (não mais uma relação assimétrica entre um doador e o beneficiário da ajuda internacional), a não imposição de condicionalidades políticas, o fato de serem empreendimentos movidos pela demanda do país que recebe a iniciativa em seu território e a não vinculação destes projetos a interesses comerciais. Inspirados em valores diplomáticos como a solidariedade entre os países, a cooperação sul-sul deveria ainda ter uma abordagem estrutural mais duradoura (Nogueira & Ollinaho 2013NOGUEIRA, I. & OLLINAHO, O. 2013. “From rhetoric to practice in south-south Development cooperation: a case study of Brazilian interventions in the Nacala Corridor Development Program”. Institute of Socioeconomics, University of Geneva. Working Paper.).

Os projetos de cooperação sul-sul promovidos pelo Brasil podem ser apreendidos através do prisma destas reconfigurações da cooperação internacional para o desenvolvimento. Assim, vão se pautar não no financiamento direto de programas, mas na transferência de conhecimentos adquiridos com as “experiências de sucesso” aplicadas em seu próprio contexto nacional. Apesar de apresentar um portfólio de projetos ainda pouco expressivo se comparado a outros doadores emergentes como a China e a Índia, o Brasil possui uma relevante expertise em áreas estratégicas da indústria do desenvolvimento, como saúde, agricultura e proteção social, com projetos promovidos por reconhecidas instituições públicas de pesquisa, como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Além disso, o país implementou um dos maiores programas de transferência de renda condicionada, o Bolsa Família, que também se tornou referência para outros países do sul global (Cabral & Shankland 2013CABRAL, Lidia & SHANKLAND, Alex. 2013. Narratives of Brazil-Africa Cooperation for Agricultural Development: New Paradigms?”. China and Brazil in Africa Agriculture (CBAA) Project, Working Paper 51.).

No que se refere aos acordos traçados com países africanos, discursos em torno de similaridades compartilhadas com este continente são uma das marcas da cooperação brasileira. Como descrevo em outros trabalhos (Perin 2020PERIN, Vanessa P. 2020b. “The Speed of the Political is Not That of the Scientific: On the Time of Development in an Agricultural Technology Transfer Program”. VIBRANT, Virtual Braz. Anthr, 17: 1-26. , 2020bPERIN, Vanessa P. 2020b. “The Speed of the Political is Not That of the Scientific: On the Time of Development in an Agricultural Technology Transfer Program”. VIBRANT, Virtual Braz. Anthr, 17: 1-26. ), uma das aproximações com Moçambique muito elencada por técnicos, diplomatas e políticos brasileiros foi o legado partilhado da colonização portuguesa, que teria permitido, entre outros elementos, uma língua nacional comum. O uso do português pelos cooperantes, por exemplo, aparece como uma vantagem comparativa em relação aos doadores do norte. Neste sentido, destaca-se a mobilização por parte destes atores da gramática culturalista do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, buscando legitimar a ideia de que na África lusófona poderiam ser gestados “futuros Brasis” (Wolford & Nehring 2016WOLFORD, Wendy & NEHRING, Ryan. 2016. “Constructing parallels: Brazilian expertise and the commodification of land, labour and money in Mozambique”. Canadian Journal of Development Studies.; Cesarino 2017CESARINO, Letícia. 2017. “Anthropology and the South-South Encounter: on ‘culture’ in Brazil-Africa relations”. American Anthropologist, 119 (2):333-358.).

Muito conectada a esta similaridade, também um outro legado do encontro colonial passou a ser acionado: a escravidão. Conforme expresso em uma gama de discursos do ex-presidente Lula da Silva e de seus ministros, a cooperação sul-sul com África seria uma forma de reverter uma dívida histórica deixada pelo tráfico de africanos para o Brasil. Apresentada de forma positivada, as “raízes comuns na África indígena” (Wolford & Nehring 2016WOLFORD, Wendy & NEHRING, Ryan. 2016. “Constructing parallels: Brazilian expertise and the commodification of land, labour and money in Mozambique”. Canadian Journal of Development Studies.:213) evidenciariam um laço não apenas a partir da matriz cultural africana desenvolvida em solo brasileiro, mas de sangue. Segundo o governo brasileiro naquele momento, isto implicava um dever moral de cooperação. Estes são elementos sintetizados por Lula da Silva durante seu discurso no jantar oferecido em 2003 pelo então presidente de Moçambique, Joaquim Chissano:

O Brasil tem uma dívida histórica e, consequentemente, precisa contribuir de forma decisiva para o pagamento dessa dívida. [...] Nós sabemos que a sociedade brasileira foi construída com o trabalho, com o esforço, com o suor e com o sangue de uma grande parcela de africanos, que eram cidadãos e cidadãs livres na África e se tornaram escravos, para prestar serviços no meu país e em outros países. A forma mais correta de retribuirmos o sacrifício que os africanos tiveram é estabelecer a mais perfeita política de harmonia com a África. [...] Viemos aqui para dizer ao presidente Chissano que nós, brasileiros, e o governo brasileiro queremos dedicar parte do nosso tempo, parte do nosso conhecimento tecnológico; queremos dedicar o nosso conhecimento industrial, o nosso conhecimento agrícola, para que possamos contribuir com o desenvolvimento desta parte do planeta Terra (Da Silva 2003DA SILVA, Luiz Inácio. 2013. Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no jantar oferecido pelo Presidente de Moçambique, Joaquim Chissano. Palácio da Ponte Vermelha Maputo, Moçambique.:2).

Neste artigo, porém, buscarei apresentar um dos pontos de analogia mais destacados nos programas de cooperação sul-sul estabelecidos entre Brasil e Moçambique: as similaridades edafoclimáticas entre as regiões de Savana Tropical existentes em ambos os países. Estando as regiões de Cerrado no mesmo paralelo geográfico que as Savanas Tropicais moçambicanas, semelhanças em relação ao tipo de solo, clima, regime de chuvas e vegetação, também foram apresentadas como vantagens comparativas da cooperação brasileira diante de outros doadores emergentes, ou mesmo em relação a parceiros históricos deste país africano no antigo bloco socialista. Uma analogia seletiva, que a partir de um mecanismo metonímico toma partes pelo todo homogeneizado (Cesarino 2014CESARINO, Letícia. 2014. “Antropologia multissituada e a questão da escala: reflexões com base no estudo da cooperação sul-sul brasileira”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 20 (41):19-50., 2017CESARINO, Letícia. 2017. “Anthropology and the South-South Encounter: on ‘culture’ in Brazil-Africa relations”. American Anthropologist, 119 (2):333-358.), alocando, portanto, a um segundo plano os muitos fatores que diferenciavam tais regiões, como a densidade populacional e relações socioculturais singulares de comunidades locais com seus territórios.

Orientados por uma lógica cartesiana que “alinha espaços como equivalentes através de similaridades latitudinais, enquanto torna abstratas ecologias e paisagens através de categorias como trópicos, savanas e corredores” (Wolford & Nehring 2016WOLFORD, Wendy & NEHRING, Ryan. 2016. “Constructing parallels: Brazilian expertise and the commodification of land, labour and money in Mozambique”. Canadian Journal of Development Studies.:212, tradução minha), os técnicos brasileiros traçaram uma série de comparações entre estas zonas tropicais localizadas na faixa dos paralelos geográficos 13°S e 17°S. O Projeto Embrapa-Moçambique é exemplar neste sentido: uma iniciativa de cooperação sul-sul que buscou mapear o território do Corredor de Nacala no norte moçambicano para gerar uma base de dados biofísicos e socioeconômicos georreferenciados através de sistemas de informação por satélite. Em diálogo com tendências político-econômicas expressas em documentos produzidos nesse período por órgãos como o Banco Mundial,7 7 Enquadram-se nesta perspectiva os relatórios Ponte sobre o Atlântico. Brasil e África Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento (Banco Mundial & IPEA 2011) e Awakening Africa’s Sleeping Giant: prospects for commercial agriculture in the Guinea Savannah zone and beyond (Morris & Larson 2009). o projeto foi uma importante ferramenta para dar materialidade às analogias construídas em torno da noção de similaridade. Enfatizava, assim, não só uma equivalência cultural e latitudinal, mas também uma proximidade territorial pré-histórica entre os dois continentes, que permitiria tratar de características ecológicas semelhantes, como um clima tropical e uma paisagem geológica compartilhados. Desse modo, afirmavam que as “experiências de sucesso” da agricultura científica e tropical brasileira, desenvolvidas no Cerrado desde meados da década de 60, poderiam ser facilmente transferidas para o contexto da África subsaariana:

Embora 60% da população da África dependam da agricultura, o setor caracteriza-se por baixa produtividade, infraestrutura deficiente e falta de mão de obra qualificada. Portanto, algumas práticas inovadoras associadas à segurança alimentar e agricultura familiar do Brasil estão sendo adotadas por outros países com agricultura tropical. O fato de que uma grande parte da África subsaariana apresenta condições geológicas e climáticas semelhantes ao Brasil faz do país o colaborador ideal para o desenvolvimento de projetos conjuntos de pesquisa. Observando o sucesso brasileiro nessa área, muitos países da África subsaariana solicitaram o apoio do Brasil para avançar o desenvolvimento agrícola (Banco Mundial & IPEA 2011BANCO MUNDIAL & IPEA. 2010. Ponte sobre o Atlântico. Brasil e África Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento. Washington e Brasília.).

Na escala da produção de informações por satélite, promulgada em iniciativas como o Projeto Embrapa-Moçambique, “tempo e espaço nos dois lados do Atlântico Sul eram colapsados num distante passado geológico comum, quando o oeste africano e a costa brasileira encontravam-se unidos” (Cesarino 2014CESARINO, Letícia. 2014. “Antropologia multissituada e a questão da escala: reflexões com base no estudo da cooperação sul-sul brasileira”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 20 (41):19-50.:40).8 8 Outros programas de cooperação sul-sul entre Brasil e Moçambique também têm como premissa este imaginário de similaridades ecológicas, geológicas e culturais, como o ProSAVANA e as versões africanas do Programa Mais Alimentos, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Como será apresentado nas próximas seções, a produção deste conjunto de dados e artefatos pautados na ideia de que haveria uma mononatureza partilhada entre Cerrado e Savana (Camana & Almeida 2018CAMANA, Ângela & ALMEIDA, Jalcione. 2018. Desenvolvimento e mononatureza: o caso do ProSAVANA em Moçambique. In: Marta Inez Marques et al.(orgs), Perspectivas de Natureza: Geografia, formas de natureza e política. São Paulo: Annablume. pp. 191-208.) operou como um dos motores da cooperação sul-sul e da transferência de tecnologias desenvolvidas pelo Brasil.

Projeto Embrapa-Moçambique: dos dados brutos ao WebGIS Moçambique

A principal premissa para a estruturação do projeto Embrapa-Moçambique, portanto, foram os “paralelismos de situações geográficas e de perspectivas de desenvolvimento” (Batistella & Bolfe 2010BATISTELLA, M. & BOLFE, E. L. 2010. Paralelos: corredor de Nacala. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite.:9) entre Brasil e Moçambique (Figura 1). Mais especificamente, as “similaridades edafoclimáticas existentes entre as savanas moçambicanas e o cerrado brasileiro” (Fontolan et al. 2014FONTONLAN, Mariana; BOLFE, Édson; OSHIRO, Osvaldo; TÔSTO, Sérgio & VICTORIA, Daniel. 2014. Plataforma de Inovação Agrária de Moçambique - Informações Geoespaciais para a Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Agrícola. In: Anais do 8º Congresso Interinstitucional de Iniciação Científica - CIIC, Campinas-SP.:1). Iniciada em 2010, sob o nome oficial de “Projeto de Cooperação Técnica de Apoio à Plataforma de Inovação Agrária de Moçambique”, esta iniciativa foi coordenada pela Secretaria de Relações Internacionais (SRI) da Embrapa, em parceria com o Instituto de Investigação Agrária de Moçambique (IIAM) e a United States Agency for International Development (USAID).9 9 Apesar de apresentadas como acordos de cooperação sul-sul, muitas das iniciativas em que o Brasil se envolveu são empreendimentos de cooperação trilateral. Neste caso, os programas ou projetos são estabelecidos entre um doador tradicional ou uma agência multilateral, um doador emergente “pivô” e um terceiro país do sul beneficiário. Espera-se que o doador tradicional possa oferecer recursos financeiros, tecnologias e conhecimentos advindos de um aparato institucional mais consolidado; o país pivô fica responsável por transferir tecnologias e expertises mais apropriadas e a um custo mais baixo, pois seriam resultado de experiências de desenvolvimento situadas em contextos semelhantes aos do país beneficiário, ao mesmo tempo em que ambos se beneficiam com a capacitação institucional promovida pelo cooperante do norte (McEwan & Mawdsley 2012). O projeto apoiava-se, portanto, na relacionalidade possibilitada pela analogia entre regiões situadas em uma mesma latitude, na experiência da Embrapa com o chamado “milagre” do desenvolvimento agrícola do Cerrado e na relevância socioeconômica do setor agropecuário em Moçambique.

Figura 1:
Paralelos 13º e 17º sul

O objetivo central do projeto Embrapa-Moçambique foi estabelecer ações para a “construção de um ambiente técnico e institucional qualificado capaz de permitir um melhor aproveitamento dos recursos naturais para a produção agrícola e pecuária e, em consequência, atender às necessidades do povo moçambicano em incremento de renda e em segurança alimentar e nutricional” (Bolfe et al. 2011 a BOLFE, Edson; BATISTELLA, Mateus.; CUSTÓDIO, Davi.; JALANE, Orlando I. & PUGLIERO, Vanessa S. 2011a. WebGis Moçambique: organização das bases de dados espaciais para a plataforma GeoServer. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite .:3996). Para tanto, as atividades do projeto buscaram criar legibilidade10 10 Formas de padronizar, categorizar e escalonar uma população ou um território, não por um processo de redução de sua complexidade, mas através de técnicas para fixar sua diversidade e produzir, enfim, um mapa “visível” ao aparato de governo estatal (Scott 1998) e statelike institutions (Sharma & Gupta 2006) como as agências de cooperação internacional. sobre o ambiente biofísico e socioeconômico encontrados na região Norte do país africano conhecida como Corredor de Nacala. Como descreve a principal publicação sobre os resultados deste empreendimento, foram realizadas variadas ações no sentido de obter diferentes conjuntos de dados sobre este território: criação de sistemas de gestão territorial, levantamentos de solos, mapeamento de uso e cobertura das terras, zoneamentos agroecológicos, avaliações de impacto ambiental, monitoramento de processos produtivos e da degradação das terras, dentre outros (Batistella & Bolfe 2010BATISTELLA, M. & BOLFE, E. L. 2010. Paralelos: corredor de Nacala. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite.).

Uma etapa fundamental, entretanto, foi a integração de todos estes conjuntos de informações em uma base de dados padronizada, que pudesse subsidiar futuras pesquisas relacionadas ao desenvolvimento agrícola e aproveitamento de recursos naturais (solos, vegetação, relevo, clima e hidrografia) da região. Segundo os técnicos da Embrapa envolvidos nesse processo, a importância desta base de dados consolidada se devia ao fato de que diversos mapeamentos já haviam sido feitos no país por diferentes instituições nacionais e estrangeiras, porém, utilizando escalas e sistemas de coordenadas diversos.11 11 Durante o trabalho de campo que realizei no Corredor de Nacala, a ausência de uma estrutura para o levantamento de informações sobre solos e a escassez de dados sobre a topografia da região (encontrados apenas em mapas com grandes escalas) foram elementos apontados por pesquisadores do IIAM para justificar as dificuldades encontradas para a condução de pesquisas na área de desenvolvimento agrícola no país, inclusive para as iniciativas de cooperação com o Brasil. Neste sentido, parte das atividades de operacionalização do projeto foi realizada em cooperação com a Embrapa Monitoramento por Satélite. Esta agência foi responsável por uma ação de pesquisa em particular, cuja finalidade era “levantar informações geoespaciais e gerar um banco de dados geográficos (WebGIS) para a gestão dos recursos naturais e para o desenvolvimento agrícola de Moçambique” (Bolfe et al. 2011 b BOLFE, E. L. et al. 2011b. Base de dados geográficos do “Corredor de Nacala”, Moçambique. In: Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Curitiba . Anais... São José dos Campos: INPE.:7). Esta ação fez parte das atividades do Componente II do projeto Embrapa-Moçambique, denominado “Fortalecimento de Capacidades Estratégicas Transversais: Gestão de Recursos Naturais para a Agricultura”.

Segundo relatórios de pesquisadores da Embrapa referentes a estas ações, no processo de levantamento de informações para fins de planejamento territorial é imprescindível obter distintos planos de dados sobre o meio físico e biológico. Assim sendo, para a estruturação desta base de dados padronizada, os cientistas brasileiros partiram de mapeamentos preexistentes sobre a região do Corredor de Nacala, com destaque para aqueles construídos pelo Centro Nacional de Cartografia e Teledetecção (Cenacarta), pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inam) e pelo Instituto de Investigação Agronômica de Moçambique (IIAM). Vemos, assim, como os dados brutos [raw data] já são em si mesmos o resultado de uma grande quantidade de intervenções, manipulações e trabalho por parte dos cientistas e técnicos (Walford 2017WALFORD, Tone. 2017. “Raw data: making relations matter”. Social Analysis, 61 (2):65-80.). Não tanto prontos para serem coletados “no mundo”, mas feitos e tornados significativos em relação a outros dados e usos específicos (Goldstein & Nost 2022GOLDSTEIN, Jenny & NOST, Eric. 2022. “Introduction: Infrastructuring Environmental Data”. In: Jenny GOLDSTEIN & Eric Nost (eds.), The Nature of Data: Infrastructures, Environments, Politics. Lincoln: University of Nebraska Press.).

Posteriormente, tais conjuntos de informações (ainda exportados como dados brutos) foram sistematizados por meio de técnicas de geoprocessamento em um ambiente SIG (Sistema de Informações Geográficas): um conjunto de programas, equipamentos, metodologias, dados e usuários, integrados de forma a tornar possível a coleta, o armazenamento, o processamento e a análise de dados georreferenciados, bem como a produção de informação derivada de sua aplicação (Teixeira 1995 citado em Santos 2018SANTOS, Alex da Silva. 2018. Introdução ao Ambiente SIG QGIS. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE , Rio de Janeiro. ). O que possibilitou, por sua vez, também criar aplicações para relacionar, inferir e transformar dados para fins de planejamento territorial e gestão integrada do espaço rural do Corredor de Nacala. A operacionalização do “Projeto Paralelos”, como também foi chamado este conjunto de ações específicas desenvolvidas pela Embrapa, foi promovida por meio de uma plataforma de informações geoespaciais - o WebGIS Moçambique - que reúne diferentes planos de informações incorporados a diferentes mapas:

Mapa altimétrico: engloba todas as áreas de Moçambique, gerado a partir do processamento das informações obtidas pelo Shutter Radar Topography Misson com grid de 90 x 90 m [...]. Gerando informações gerais sobre regiões de planície, com altitude variando de 0 a 200 m; planaltos com altitudes entre 200 e 1000 m e montanhas, acima de 1000 m de altitude.

Mapa pluviométrico: informações compiladas da carta de precipitação produzida pelo Instituto Nacional de Meteorologia [...]. Identificando regime pluviométrico acima de 650 mm (atingem até 1000 mm) por ano, concentrado no centro leste da região, e faixas de concentração pluviométrica que variam entre 902 a 2130 mm por ano, situados no centro-oeste.

Mapa de solos: Informações compiladas da carta de solos produzida pelo Instituto de Investigação Agronômica de Moçambique [...].

Mapa de uso e cobertura da terra: compilado do trabalho feito pela Japan International Cooperation Agency [...] que contempla o país todo gerando mapa de uso e cobertura. O mapa identifica a predominância de formações naturais (florestas de baixa altitude, formações herbáceas e matagal), algumas ações pontuais de obras antrópicas (plantações e cultivos de sequeiro) (Bolfe et al. 2011a BOLFE, Edson; BATISTELLA, Mateus.; CUSTÓDIO, Davi.; JALANE, Orlando I. & PUGLIERO, Vanessa S. 2011a. WebGis Moçambique: organização das bases de dados espaciais para a plataforma GeoServer. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite .:3998).

Desse modo, após o preparo dos planos de informações geoespaciais, a segunda etapa metodológica seguida para organizar e publicar as bases de dados sobre o Corredor de Nacala foi a definição da arquitetura de uso do WebGiS Moçambique. É através desta arquitetura que os usuários da plataforma passam a ter acesso aos dados dos planos informacionais. Como descreve Munhoz neste dossiê, essa forma de “comunicação digitalmente mediada entre indivíduos geograficamente distantes”, produzida pela interface de acesso aos sistemas de informação, formata o que poderá ser visto e o que será eclipsado. No caso do WebGIS, a opção foi pela utilização de um servidor de dados geoespaciais denominado GeoServer, um software livre, que permite o compartilhamento e a publicação de dados na internet através de um sistema aberto, além de sua operacionalização através de diferentes sistemas de geoprocessamento. Portanto, os planos de informações podem ser acessados por meio de plataformas como o Google Earth, ArcMap, Erdas, ENVI, GvSIG, Quantum GIS, uDig, dentre outras.12 12 O WebGis pode ser acessado pelo link http://mapas.cnpm.embrapa.br/mocambique/mapa.html

A arquitetura do WebGis, afirmam os especialistas da Embrapa Monitoramento por Satélite (Batistella & Bolfe 2010BATISTELLA, M. & BOLFE, E. L. 2010. Paralelos: corredor de Nacala. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite.; Bolfe et al. 2011aBOLFE, Edson; BATISTELLA, Mateus.; CUSTÓDIO, Davi.; JALANE, Orlando I. & PUGLIERO, Vanessa S. 2011a. WebGis Moçambique: organização das bases de dados espaciais para a plataforma GeoServer. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite .; Bolfe et al. 2011bBOLFE, E. L. et al. 2011b. Base de dados geográficos do “Corredor de Nacala”, Moçambique. In: Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Curitiba . Anais... São José dos Campos: INPE.: 9; Ribeiro et al. 2013RIBEIRO, Fernando; BOLFE, Edson; RONQUIM, Carlos; CUSTÓDIO, Davi & SILVA, GUSTAVO. 2012. Informações Geoespaciais para a Gestão dos Recursos Naturais do “Corredor de Maputo” - Moçambique. In: Anais do 6º Congresso Interinstitucional de Iniciação Científica - CIIC, Jaguariúna-SP.; Fontolan et al. 2014FONTONLAN, Mariana; BOLFE, Édson; OSHIRO, Osvaldo; TÔSTO, Sérgio & VICTORIA, Daniel. 2014. Plataforma de Inovação Agrária de Moçambique - Informações Geoespaciais para a Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Agrícola. In: Anais do 8º Congresso Interinstitucional de Iniciação Científica - CIIC, Campinas-SP.), permitiu criar uma ferramenta “amiga e interativa” com o usuário, que visa facilitar o acesso aos dados tanto pelas instituições envolvidas no projeto Embrapa-Moçambique quanto pela sociedade mais ampla. Assim, um amplo conjunto de dados foi organizado em 14 grupos de informações geoespaciais, elaborados a partir de informações regionais multiescalares e interinstitucionais: limites políticos; transportes; hidrografia; bacias hidrográficas; parques e reservas; altimetria; classes de declividade; estações meteorológicas; precipitação; capacidade de drenagem dos solos; classificação dos solos; uso e cobertura das terras; zonas agroecológicas e aptidão agrícola.

Para além da base de dados cartográficos e do desenvolvimento de um sistema de gestão de recursos naturais (o próprio WebGIS), o Projeto Paralelos ainda previa contribuir com ações como: desenvolvimento de modelo institucional; organização e reaparelhamento em infraestrutura, equipamentos e recursos humanos da Unidade de Geoprocessamento para a agricultura no IIAM em Maputo; desenvolvimento e implementação de programas de treinamento e capacitação de recursos humanos em tecnologia de geoprocessamento no Brasil e em Moçambique. Em conjunto, tais ações visavam suprir uma ausência de informações e melhorar a gestão dos recursos naturais para fomentar o desenvolvimento sustentável da agricultura no país africano. Como declarou o chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Monitoramento por Satélite, conhecendo seu território e recursos, Moçambique poderia planejar melhor seu futuro.13 13 Conferir https://agenciasn.com.br/arquivos/2627 As “infraestruturas de dados”, portanto, não somente informam a gestão de um território, como são elas próprias alvo de intervenções e regulamentação. São tanto infraestruturas para a produção de conhecimento quanto para a tomada de decisões políticas (Goldstein & Nost 2022GOLDSTEIN, Jenny & NOST, Eric. 2022. “Introduction: Infrastructuring Environmental Data”. In: Jenny GOLDSTEIN & Eric Nost (eds.), The Nature of Data: Infrastructures, Environments, Politics. Lincoln: University of Nebraska Press.).

Figura 2:
Plano de informações geoespaciais obtido através do WebGIS Moçambique

Na figura acima (Figura 2) podemos observar as informações geoespaciais obtidas no WebGIS Moçambique quando se selecionam as entradas aptidão agrícola e soja. A partir da imagem gerada pelos dados armazenados é possível notar que as regiões mais propícias para este tipo de cultivo estão justamente no Corredor de Nacala, com áreas de potencial descrito como apto até muito apto. Como foi destacado, esta região encontra-se no mesmo paralelo geográfico das áreas de Cerrado no Brasil, onde o cultivo em larga escala de monoculturas de soja tem sido um dos carros-chefes do agronegócio no país. Assim, um dos potenciais apresentados pelo WebGIS, aproveitado em outras iniciativas de cooperação entre Brasil e Moçambique, foi permitir visualizar e embasar com dados georreferenciados propostas que descreviam tal território como uma nova fronteira agrícola para o agronegócio. Como ressalta Tsing (2005TSING, Anna. 2005. Friction: an ethnography of global connection. Princeton: Princeton University Press .), as fronteiras do capitalismo e seus recursos não são simplesmente “descobertos”. Também não são um lugar ou mesmo um processo, mas antes um projeto material-imaginativo capaz de moldar tanto lugares quanto processos - assim como os dados. Tendo em vista a materialidade sobre os discursos de similaridade criada pela plataforma WebGIS, na próxima seção apresento alguns desdobramentos da comparação estabelecida entre Cerrado e Savana, tendo como foco diferentes conceituações em torno da terra, seus usos e potencialidades.

Da terra e suas múltiplas expressões

A primeira década dos anos 2000 não foi apenas o momento de reconhecimento e consolidação da cooperação sul-sul como modalidade de ajuda internacional. Nesse período ocorreu ainda o fenômeno que ficou conhecido como “corrida global por terras”, quando a convergência de “crises” em escala planetária - alimentar, energética, financeira, ambiental - resultou no maior interesse de grandes investidores e corporações pela produção agrícola ou pela simples especulação com a aquisição de terras baratas e fracamente regulamentadas em países do sul global (Wolford et al. 2013WOLFORD, Wendy; BORRAS, Saturnino; HALL, Ruth; SCOONES, Ian & WHITE, Ben. 2013. Governing Global Land Deals: the role of the State in the Rush for Land. United Kingdom: Wiley Blackwell.; Li 2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.). Tal movimento foi seguido de denúncias feitas por organizações civis sobre um possível global land grabbing (algo como uma apropriação ou grilagem transnacional de terras),14 14 Associado a formas de controle da terra, mais do que à sua propriedade, land grabbing pode ser entendido como um processo de aquisição de terras em larga escala - seja por compra ou, mais comumente, arrendamentos em longo prazo - por empresas domésticas ou internacionais, governos ou indivíduos, que têm como um dos seus efeitos o tratamento da terra como um ativo financeiro, negociado no mercado internacional de commodities (Borras & Franco 2012; Wolford et al. 2013). apresentando números alarmantes que corroboravam a imagem de uma corrida por terras agricultáveis.15 15 Segundo relatório da Oxfam (2011), 227 milhões de hectares de terra teriam sido vendidos ou arrendados entre 2001 e 2011, principalmente para investidores estrangeiros. Simultaneamente, relatórios do Banco Mundial apresentavam estimavas que indicavam que o número de aquisições de terras por investidores estrangeiros teria sido de 56,6 milhões de hectares em todo o mundo, entre os anos de 2008 e 2009, sendo 40 milhões apenas na África (Deninger et al. 2011DEININGER, Klaus et al. 2011. Rising global interest in farmland: can it yield sustainable and equitable benefits? Washington, DC: World Bank.).

Contudo, algumas problemáticas muito destacadas nesse primeiro momento logo passaram a ser mais bem avaliadas, nuançadas e mesmo criticadas, conforme se aprofundavam os estudos sobre este fenômeno. Após um período inicial em que se buscou entender a dimensão e os principais condicionantes dos casos de land grabbing, uma série de trabalhos acadêmicos apontou que era preciso maior rigor metodológico no tratamento dos dados coletados (Borras & Franco 2012BORRAS, Saturnino & FRANCO, Jennifer. 2012. “Global Land Grabbing and Trajectories of Agrarian Change: A Preliminary Analysis”. Journal of Agrarian Change, 12 (1):34-59.; Edelman et al. 2013EDELMAN, Marc; OYA, Carlos & BORRAS, Saturnino. 2013. “Global Land Grabs: historical processes, theoretical and methodological implications and current trajectories”. Third World Quarterly, 34 (9).; Scoones et al. 2013SCOONES, Ian; CABRAL, Lidia & TUGENDHAT, Henry. 2013. “New Development Encounters: China and Brazil in African Agriculture”. IDS Bulletin, 44 (4):1-19.). Esse segundo momento de reflexão sobre o fenômeno destacava a participação cada vez mais consolidada de grandes grupos financeiros e corporações transnacionais, que até então não havia recebido tanto destaque nos relatórios de organismos internacionais, ONGs e da mídia (Clapp 2014CLAPP, Jennifer. 2014. “Financialization, distance and global food politics”. The Journal of Peasant Studies, 41:1-18.). Neste contexto de grandes mudanças na economia global, a financeirização16 16 De acordo com Bear et al. (2015), “financeirização refere-se ao aumento da ligação, tradução e interações entre um modo financeiro de apreensão do mundo e outros domínios sociais” (n/p, tradução minha). Envolve, ainda, as transformações contemporâneas no desenvolvimento capitalista que têm alterado o centro de gravidade das atividades econômicas da produção dita “real” (primária, industrial e de serviços) para o segmento das finanças (Mawdsley 2018). Em relação à agricultura, Clapp e Martin (2017) descrevem estas transformações como um movimento das “finanças para a agricultura” no sentido de uma “agricultura para as finanças”, pois “[enquanto] os agricultores e a agricultura moldaram a regulação financeira no passado, há indicações de que as finanças estão agora a moldar a agricultura e os mercados de produtos agrícolas” (:2, tradução minha). da produção de commodities agrícolas implicou novas possibilidade de formação de lucro no setor agropecuário, estimulando a especulação financeira também nos “negócios com terra” (Sassen 2013SASSEN, Saskia. 2013. “A Land Grabs Today: feeding the disassembling of national territory”. Globalizations, 10 (1):25-46.). Como aponta Fairbairn (2020FAIRBAIRN, Madeleine. 2020. Fields of gold: financing the global land rush. Ithaca, NY: Cornell University Press.), nesse período, a terra agrícola passa a ser encarada por investidores como uma espécie de “ouro com rendimento”, cuja reserva de valor estaria não só atrelada a sua propriedade, mas também à possibilidade de capitalização através da venda das commodities agrícolas produzidas.

Li (2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.) lembra, porém, que a terra é “um objeto estranho”, cuja capacidade de ser uma mercadoria ou um recurso não é algo intrínseco, natural ou um dado. A terra é antes um agregado provisório de elementos heterogêneos, como substâncias materiais, tecnologias, discursos e práticas. Do mesmo modo, as práticas agrícolas estão vinculadas a uma diversidade de ciclos ecológicos e fatores climáticos marcados por imprevisibilidades e inconstâncias, que tornam mais complexo o processo de transformar a agricultura em um investimento financeiro rentável (Sippel 2023SIPPEL, Sarah. 2023. “Tackling land’s ‘stubborn materiality’: the interplay of imaginaries, data and digital technologies within farmland assetization”. Agriculture and Human Values, 40:849-863. ; Fairbairn 2020FAIRBAIRN, Madeleine. 2020. Fields of gold: financing the global land rush. Ithaca, NY: Cornell University Press.). Estes elementos precisam ser agregados em certa composição estável, por exemplo, através de ferramentas digitais da agricultura de precisão (cf. Smarieri e Ferreira neste dossiê), que permitam manejar o caráter “indisciplinado” da terra e da agricultura (Duncan et al. 2022DUNCAN, E.; ROTZ, S.; MAGNAN, A. & BRONSON, K. 2022. “Disciplining land through data: The role of agricultural technologies in farmland assetization”. Sociologia Ruralis, 1-19.).

Em sua polissemia, a terra pode ser fonte de alimento, local de trabalho, de moradia, de comunidade, um espaço de reverência, uma mercadoria alienável, uma propriedade, um objeto de tributação, dentre muitas outras expressões (Li 2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.). Assim, carrega uma composição de usos e significados que não são estáveis e, frequentemente, estão sob disputa por diferentes atores, em diferentes contextos. Para muitos, são T/terras não “enquadráveis apenas em mapas e imagens, porque compostas por humanos, não humanos, trajetórias e caminhos terrenos, aquáticos e celestes, territorializações móveis e diferentes temporalidades” (Iubel & Soares-Pinto 2017IUBEL, Aline & SOARES-PINTO, Nicole. 2017. “Apresentação Dossiê Antropologias das T/terras: As T/terras e suas potências etnográficas”. R@U, 9 (1):7-13.:12). Conforme a descrição de uma de minhas interlocutoras em um movimento de mulheres em Moçambique, a terra para tais mulheres era mais do que um espaço de produção, era um local de identidade, de pertencimento, de tradição, de relação com os antepassados, de prática da medicina tradicional. Já uma liderança de um movimento camponês na região do Corredor de Nacala, em uma de nossas conversas equiparou a terra das machambas (como são denominadas as áreas de cultivo em Moçambique) a um doador e a enxada com que praticavam sua agricultura a um parceiro, ressignificando o vocabulário trazido pelos cooperantes estrangeiros.

Como aponta este camponês, dispositivos de inscrição são fundamentais para compor as características da terra como um recurso: a enxada, o machado, a pá, o arado, o título de propriedade, mapas, gráficos, imagens de satélite, sepulturas ancestrais, árvores frutíferas fazem mais do que simplesmente registrar, pois contribuem para estabilizar determinados entendimentos e relações sobre a terra - assim como fazem os Big Data. Neste sentido, Li (2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.) descreve como grandes dados estatísticos e outras formas gráficas foram mobilizados por instituições multilaterais para localizar em determinados países terras categorizadas como de uma alta produtividade subaproveitada [yield gap]. Atraíam, assim, a atenção de investidores internacionais, não necessariamente relacionados ao ramo da agricultura, para que passassem a adquirir ou a alocar capitais em propriedades agrícolas muito distantes de suas próprias nações. Um dos casos destacados é justamente o da cooperação brasileira, muito pautada nas soluções tecnológicas e nas analogias de similaridade entre Cerrado e Savana:

A tecnologia e o capital são a combinação mágica que explica por que a terra está prestes a tornar-se subitamente muito mais valiosa do que era ontem ou há alguns anos. A economia de escala é uma noção crucial aqui, a ideia de que tecnologias eficientes e produtivas só podem ser aplicadas em grande escala. [...] Neste sentido, The Economist (2010) publicou um artigo intitulado “O milagre do Cerrado” no Brasil, onde a agricultura mecanizada baseada em novas variedades de soja e políticas que favorecem empresas eficientes em detrimento de “fazendas de hobby ineficientes” produziu rendimentos fantásticos e forneceu um modelo pronto para ser exportado para África (Li 2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.:596-597, tradução minha).

Neste contexto, o Projeto Embrapa-Moçambique e dispositivos como o WebGIS permitiram apresentar as terras do Corredor de Nacala como um local com potencialidades no uso dos recursos naturais, que poderiam ser atrativas para tais investidores. Lançada em 2010, a publicação Paralelos: Corredor de Nacala17 17 Estudo organizado por Mateus Bastistella e Édson Bolfe, respectivamente, um ecólogo e um engenheiro florestal, especialistas em agricultura digital da Embrapa Monitoramento por Satélite, que coordenaram o Projeto Paralelos. A equipe multidisciplinar que produziu este material também contou com pesquisadores da Embrapa Solos, Embrapa Cerrados, da Secretaria de Relações Internacionais e do IIAM, de áreas tecnocientíficas como agronomia, desenvolvimento rural, engenharia ambiental, pedologia, geociências, tecnologia da informação e gestão do conhecimento. (Batistella & Bolfe 2010BATISTELLA, M. & BOLFE, E. L. 2010. Paralelos: corredor de Nacala. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite.) foi um dos principais artefatos produzidos a partir dos levantamentos e da sistematização dos dados coletados pelo projeto Embrapa-Moçambique. Ao longo deste material, portanto, são apresentados diversos tipos de mapas elaborados através dos planos de informações gerados no WebGIS, juntamente com as análises realizadas pela equipe de especialistas brasileiros e moçambicanos que atuou no projeto. O que também se destaca são as muitas concepções de terra relacionadas aos referidos 14 grupos de informações geoespaciais sobre o Corredor de Nacala.

A concepção com que primeiro nos deparamos, até mesmo pelas características estruturantes das atividades do projeto Embrapa-Moçambique, é a de terra enquanto globo ou planeta (Terra). Neste caso, somos prontamente apresentados aos referidos paralelismos de latitude, os “elos da cooperação” (:9). A terra nesta escala planetária foi ainda articulada a uma série de discursos que também se enredavam ao estímulo dado aos “negócios com terra” [land deals] por parte de instituições multilaterais como o referido Banco Mundial e a Food and Agriculture Organization (FAO), na tentativa de melhor regular a corrida por novas áreas agricultáveis:18 18 Esta abordagem, baseada principalmente na propiciação de códigos voluntários de responsabilidade empresarial e boa governança, pode ser encontrada em relatórios como o Rising global interest in farmland: can it yield sustainable and equitable benefits?” (RGIF) (Deninger et al. 2011). Para uma crítica a estas proposições, conferir De Schutter (2011) e Li (2011). um cenário malthusiano de crescimento da população mundial, acompanhado do aumento na demanda por alimentos e, consequentemente, de riscos para a garantia da segurança alimentar global e para a sustentabilidade ambiental. Neste aspecto, um dos potenciais apresentados pelo projeto seria o de equilibrar produção e conservação por meio de uma melhor gestão do uso dos recursos do Corredor de Nacala. A terra é mobilizada então como meio ambiente, mas, principalmente, como recurso natural, que poderá ser mais bem aproveitado com a transferências de tecnologias modernas desenvolvidas pelo Brasil, tanto no que se refere à coleta e à sistematização de dados georreferenciados quanto em relação ao aumento da produção agropecuária.

O Projeto Embrapa-Moçambique tem grande valor para o aprendizado necessário à construção da plataforma de projetos de cooperação entre Brasil e países africanos. A experiência brasileira no Cerrado apresenta-se como importante diferencial para o desenvolvimento da agricultura, agora enriquecida com a necessidade de minimização dos impactos ambientais decorrentes do desenvolvimento agrícola. Aos países da África e ao Brasil reserva-se um horizonte amplo e de grande potencial para sustentabilidade global (:11).

Reduzindo a escala, mas ainda mantendo uma concepção técnica sobre o uso da terra, outra mobilização fundamental é a da noção de solo. O solo é onde se pratica a ciência agrícola. Portanto, os chamados dados brutos ou já agregados nos planos de informação geoespaciais do WebGIS Moçambique estão diretamente imbricados, operando como subsídios a essa prática científica e como meio para seus resultados. O solo é ainda um elemento fundamental para a concepção de similaridade entre Cerrado e Savana Tropical, na medida em que nas áreas de planície e planalto do Corredor de Nacala foram identificados solos “[...] ácidos, quimicamente pobres, com baixa capacidade de retenção de água e nutrientes [...] com características que guardam similaridades aos do semiárido brasileiro” (:37). Desse modo, ao longo da maior parte da publicação são apresentadas em maiores detalhes as potencialidades dos conjuntos de dados sobre o Corredor de Nacala, incluídos os tipos de solo e de uso da terra.

De modo geral, estes dados são alinhavados com informações sobre a quantidade de áreas agricultáveis, o grau de aproveitamento gerado pela agricultura praticada atualmente nestas áreas e seu potencial produtivo. Neste ponto, a concepção solo cruza-se com a diversidade de usos da terra realizada pela população agricultora que habita a região - a terra aparece então como um território, ou uma paisagem. São as já citadas machambas camponesas e os usos socioculturais da terra a elas conectados, que muitas vezes são apontados em documentos da cooperação brasileira como formas de cultivo agrícola tecnicamente menos produtivos ou rentáveis. Apesar da padronização e da sistematização realizadas pelos conjuntos de dados coletados, vale destacar que a publicação vai ressaltar a “complexidade na expressão do uso da terra e vegetação” (:43) pela população local. Assim sendo, não deixam de apresentar um colorido mapa dos diversos usos da terra:

Figura 3:
Mapa dos modos de uso e cobertura da terra no norte de Moçambique

Uma expressão das potencialidades da terra, muito conectada ao debate sobre land grabbing apresentado acima, é a possiblidade desta se constituir como mercadoria ou estar ligada a um determinado regime de propriedade. No entanto, estas não são concepções enfatizadas no relatório em análise, em função de particularidades da Lei de Terras moçambicana. Dada a sua complexidade, não será possível detalhar todos as nuances desta legislação neste trabalho, mas é preciso ressaltar que a propriedade das terras em Moçambique é estatal. No entanto, estas podem ser utilizadas por atores privados singulares ou coletivos, nacionais ou estrangeiros, mediante um imposto anual de aproximadamente seis dólares por hectare, durante cinquenta anos renováveis por igual período. Para tanto, é preciso solicitar um DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra), mediante a submissão de uma proposta de investimento ao governo moçambicano19 19 As comunidades camponesas que se espalham por todo o país com suas machambas, entretanto, possuem o direito de uso tradicional de suas terras. A solicitação da documentação de DUAT é facultativa, e deve vir acompanhada de procedimentos de consulta pública e da delimitação das terras comunitárias (Mandamule 2017). (cf. Serra 2013SERRA, Carlos Manuel. 2013. Transmissibilidade dos direitos de uso e aproveitamento da terra em Moçambique. In: SERRA, Carlos Manuel; CARRILHO, João (Coords). Dinâmicas de Ocupação e do Uso da Terra em Moçambique. Maputo: Escolar Editora .).

Portanto, não existe oficialmente um “mercado de terras” no país (embora se fale em “mercado de DUATS” não oficial).20 20 Estes procedimentos são marcados por muitos pontos cegos, que permitem perceber que, embora a venda da terra seja ilegal em Moçambique, existe um mercado bastante ativo por outros canais, sendo de conhecimento geral que no país “a terra não se vende, mas se compra” (Fairbairn 2013:341). Para demonstrar como as terras têm sido negociadas no país, durante uma entrevista que realizei com um representante da Ordem dos Advogados de Moçambique, o entrevistado realizou um experimento. Perguntou em voz alta para um dos funcionários presentes no escritório em que conversávamos qual seria o preço de um terreno num dos bairros mais periféricos da capital Maputo, ao que foi prontamente respondido com valores detalhados por mais de uma pessoa. Segundo o jurista, era de conhecimento comum e cotidiano que os lotes de terra tinham valores estabelecidos por este mercado informal, o que também poderia se notar pelos muitos folhetos anunciando a venda de DUATs espalhados pela cidade. Por outro lado, sendo possível que atores privados submetam uma proposta de investimento ao governo do país, a terra pode ser mobilizada como um ativo financeiro: um elemento cujo valor está em seu potencial para ser transformado em fluxo de rendimentos para um momento futuro (Sippel 2023SIPPEL, Sarah. 2023. “Tackling land’s ‘stubborn materiality’: the interplay of imaginaries, data and digital technologies within farmland assetization”. Agriculture and Human Values, 40:849-863. ; Birch & Muniesa 2020BIRCH, Kean & MUNIESA, Fabian. 2020. Introduction: assetization and technoscientific capitalism. In: Kean Birch & Fabian Muniesa, Assetization: turning things into assets in technoscientific capitalism. Massachusetts: The MIT Press), sem que seja necessário realizar a venda da propriedade. Desse modo, a terra enquanto um ativo é algo que pode ser apreendido na publicação analisada, na medida em que o Corredor de Nacala (e os dados obtidos sobre os muitos elementos que compõem sua paisagem) é descrito como podendo vir a se tornar um polo de desenvolvimento não somente para Moçambique, mas para a África austral. A agricultura e a exploração de recursos naturais são destacadas como grandes motores desse processo e, novamente, são as similaridades entre Cerrado e Savana que vão pautar a proposta de transformação da região africana:

Dos 35 milhões de hectares de terras agricultáveis existentes, Moçambique utiliza atualmente um quarto desse território com agricultura. Grande parte da área disponível se encontra na região Norte, onde se localiza o Corredor de Nacala, região com o maior potencial para o desenvolvimento agrícola de toda a África Austral. Portanto, Moçambique enfrenta hoje o desafio de transformar aquela região em um polo de desenvolvimento agropecuário para atender à demanda crescente por alimentos da sua população e também gerar divisas com a exportação desses produtos. No início dos anos 70, o Brasil tinha um desafio similar ao moçambicano e, para enfrentá-lo, passou a investir maciçamente em pesquisa e desenvolvimento do bioma cerrado, tanto para adequá-lo à produção agrícola como para preservá-lo através do desenvolvimento sustentado dessas áreas. Hoje o Cerrado produz um volume expressivo de produtos agrícolas, fato possível porque a pesquisa solucionou limitações do solo, desenvolveu sistemas de produção e novas cultivares, dando ao produtor brasileiro a possibilidade de ser competitivo no mercado mundial de grãos (:46).

Aproveitando a expertise agrícola brasileira e os dados dos planos informacionais produzidos a partir das prospecções sobre o território do norte de Moçambique, a plublicação apresenta, enfim, as “aptidões agrícolas” das regiões que poderão receber a transferência de tecnologias por meio da cooperação sul-sul. Neste sentido, o documento destaca que o Corredor de Nacala apresenta cerca de 35 milhões de hectares de fronteira agrícola, que podem ser exploradas para garantir a expansão da produção agroalimentar, “uma vez resolvidos os problemas fundiários” (:61). Desta forma, a finalidade do Projeto Embrapa-Moçambique é reapresentada como voltada para fortalecer a capacidade do sistema de inovação tecnológica em áreas estratégicas do desenvolvimento agrícola do país africano, aumentando sua competitividade, tanto em matéria de segurança alimentar quanto na geração de excedentes exportáveis para um mercado globalizado.

O planejamento territorial realizado pelo projeto Embrapa-Moçambique ainda se desdobraria em outros programas de transferência de tecnologia, como o programa estruturante ProSAVANA,21 21 O programa ProSAVANA foi uma proposta de cooperação internacional triangular, firmada entre os governos do Japão, Brasil e Moçambique, com o objetivo de transferir tecnologias agrícolas brasileiras para a região do Corredor de Nacala. A principal referência para sua elaboração foram as experiências adquiridas com o PRODECER (Programa de Cooperação Brasileira e Japonesa para o Desenvolvimento Agrícola do Cerrado), iniciativa nipo-brasileira responsável pela institucionalização de um modelo de produção agrícola altamente tecnificado e mecanizado no Cerrado brasileiro, visando à produção de commodities para exportação. Sobre o ProSAVANA e seu processo controverso de implementação, conferir os trabalhos de Camana (2020), Santarelli (2016), e Perin (2020b). que tinha como um de seus objetivos a “implementação de melhorias na exploração das terras com aptidão agrícola” (:75) do Corredor de Nacala. Uma das atividades promovidas por este programa, por exemplo, foi a divisão desta região em zonas de aptidão agrícola, tendo como referência dados obtidos pelo Projeto Paralelos. Uma proposta de reorganização da agricultura praticada neste território, em conformidade com o objetivo de aumentar a produtividade daquelas terras que foram classificadas como “subutilizadas”, “vazias”, ou mesmo “disponíveis” para novos empreendimentos agrícolas:

Figura 4:
Divisão dos distritos do Corredor de Nacala por zona de produção agrícola

Entre 2010 e 2012, o ProSAVANA passou a ser acompanhado de perto por empresários e políticos brasileiros através de seminários e missões (Figuras 5 e 6). Um destes eventos foi realizado em 2011 na cidade de São Paulo, o Seminário Internacional sobre o Agronegócio em Moçambique: Cooperação Nipo-brasileira e Oportunidades de Investimentos, sendo sucedido no ano seguinte por um seminário em Tóquio, organizado pela JICA, a agência de cooperação japonesa, para divulgar uma missão conjunta dos setores público e privado dos três países, que propunha investir no setor agrícola do Corredor de Nacala. Ainda em 2012, ocorreram visitas de delegações de empresários do agronegócio brasileiro a Moçambique. A principal delas foi a Missão Conjunta para a Promoção do Investimento Agrícola no Corredor de Nacala, composta por uma delegação de aproximadamente vinte pessoas, entre membros do governo e representantes do setor privado do Brasil e Japão (Funada-Classen 2019FUNADA-CLASSEN, Sayaka. 2019. “Ascenção e Queda do ProSavana: da cooperação triangular à cooperação bilateral de contra-resistência”. Observador Rural nº 82. Documento de Trabalho. Maputo: OMR.). Liderada pelo representante da Divisão África da JICA naquele momento, Eiji Inui, e pelo parlamentar brasileiro da bancada ruralista, Luiz Nishimori, a visita foi amplamente noticiada pela mídia dos dois países.22 22 A entrevista concedida por Nishimori à TV Câmara pode ser acompanhada em https://www.youtube.com/watch?v=5DIllQBgjK0

Figura 5:
Senadora ruralista Kátia Abreu e Mateus Batistella, da Embrapa Monitoramento por Satélite, observando os paralelos latitudinais entre Brasil e Moçambique

Figura 6:
Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura, durante seminário em São Paulo que apresentou a proposta de cooperação entre Brasil e Japão para promover as oportunidades de investimento do agronegócio em Moçambique

Conforme analisa Kato (2019KATO, Karina. 2018. “Traçando a saída para o desenvolvimento: o caso do Corredor de Nacala em Moçambique”. Estudos Sociedade e Agricultura, 27 (2):229-254.), estas iniciativas direcionadas para o Corredor de Nacala têm produzido e fortalecido narrativas sobre vocações de determinados territórios - como a vocação das Savanas Tropicais para o cultivo de commodities - que se embasam em dinâmicas exógenas orientadas por investimentos estrangeiros. Ao mesmo tempo, o Estado moçambicano e a cooperação internacional promovem narrativas sobre um vazio produtivo e populacional, que reforçam a noção de que a agricultura local precisa ser melhorada, desenvolvida, transformada em uma agricultura comercial. “As concessões de terra vão convertendo o território em terra commodity voltada e conectada com as dinâmicas do mercado global e desconectando a terra das dinâmicas territoriais” (Kato 2019KATO, Karina. 2018. “Traçando a saída para o desenvolvimento: o caso do Corredor de Nacala em Moçambique”. Estudos Sociedade e Agricultura, 27 (2):229-254.:238).

Transformar a terra em commodity e, mais ainda, em um ativo financeiro disponível para possíveis investidores, implica atuar técnica e politicamente sobre as muitas heterogeneidades encontradas no nível da terra como território. Criar legibilidade em meio à diversidade que emerge da agricultura e da própria terra para que se tornem ativos investíveis (Li 2014LI, Tania M. 2014. “What is land? Assembling a resource for global investment”. Transactions of the Institute of British Geographers, 39 (4):589-602.) requer trabalho, portanto. Como aponta Sippel (2023SIPPEL, Sarah. 2023. “Tackling land’s ‘stubborn materiality’: the interplay of imaginaries, data and digital technologies within farmland assetization”. Agriculture and Human Values, 40:849-863. ), parte deste esforço consiste em criar imaginários adequados para os investidores, tais como as premissas de acurácia, objetividade e controle presentes nos discursos sobre Big Data e tecnologias digitais “inteligentes” para a agricultura. A sistematização de um grande número de dados sobre o Corredor de Nacala, por meio da iniciativa de cooperação sul-sul promovida no âmbito do projeto Embrapa-Moçambique, foi um elemento fundamental para conjurar tal imaginário da “terra investível” sobre a região.

Considerações finais

Ao longo deste trabalho procurei descrever como o conjunto de dados coletados pelo Projeto Embrapa-Moçambique sobre o Corredor de Nacala permitiu que as terras desta região fossem integradas a um circuito internacional de investimentos sobre áreas agricultáveis. Para além de suas propostas de transferência de tecnologia em agricultura tropical, os dados produzidos e disponibilizados no âmbito do Projeto Paralelos tiveram efeitos para além da cooperação sul-sul, como fomentar a transformação da terra em um ativo investível. Analisados a partir de seu potencial em se tornar outra coisa, portanto, os dados sobre o Corredor de Nacala foram não apenas um fim, mas, simultaneamente, um meio (Walford 2021WALFORD, Tone. 2021. “Data - ova - gene - data”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 27:127-41.): com a finalidade de fazer ver as potencialidades de um território quanto à produção agropecuária, também foram um veículo para filtrar, organizar, categorizar e hierarquizar modos de uso da terra com base em um possível estoque de rendimentos futuros.

Em 2012, uma nova missão de técnicos da Embrapa visitou Moçambique para atualizar e complementar os dados geoespaciais recolhidos pelo Projeto Paralelos. Com esta nova incursão, entretanto, foi conduzido um levantamento de informações sobre o Corredor de Maputo, ao sul do país (Ribeiro et al. 2012RIBEIRO, Fernando; BOLFE, Edson; RONQUIM, Carlos; CUSTÓDIO, Davi & SILVA, GUSTAVO. 2012. Informações Geoespaciais para a Gestão dos Recursos Naturais do “Corredor de Maputo” - Moçambique. In: Anais do 6º Congresso Interinstitucional de Iniciação Científica - CIIC, Jaguariúna-SP.), região que já não se encontra entre os paralelos que englobam o Cerrado e a Savana Moçambicana, não compartilhando, portanto, das mesmas características edafoclimáticas que fomentaram a transferências de tecnologias em agricultura tropical desenvolvidas pelo Brasil. Como descreveu um dos cientistas moçambicanos do IIAM, com quem estive em contato durante meu trabalho de campo na cidade de Nampula, desde os primeiros acordos de cooperação entre Brasil e Moçambique, a proposta que se apresentava era que tais empreendimentos se realizassem na região Sul do país. Nesta região estão situadas as poderosas elites políticas nacionais que, como me foi narrado por vários interlocutores, já “parcelaram” todas as terras entre si. Contudo, tendo se doutorado em agronomia em Minas Gerais e conhecendo com profundidade o Cerrado, este cientista moçambicano conta que pressionou os demais cooperantes para que o projeto fosse levado para o Corredor de Nacala, onde as similaridades de solo, clima e vegetação eram mais factíveis.

Este relato e a forma como se configurou a nova missão do projeto Embrapa-Moçambique mostram como desde um primeiro momento as iniciativas de cooperação sul-sul entre Brasil e Moçambique já se articulavam a ações que visavam integrar territórios deste país a um circuito de investimentos privados (locais e internacionais), que seriam os responsáveis por promover o desenvolvimento da agricultura comercial no país africano. Segundo Santarelli (2016SANTARELLI, Mariana. 2016. Do Cerrado Brasileiro à Savana Moçambicana: controvérsias da cooperação brasileira na promoção de uma nova revolução verde na África. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.), antes mesmo da concepção do ProSAVANA e outras iniciativas de cooperação sul-sul, já havia uma rede de interesses do agronegócio e do capital financeiro global mapeando o Corredor de Nacala, na qual o ex-ministro da Agricultura brasileiro e diretor da FGV-Agro, Roberto Rodrigues, tinha um papel central. Como parte desta rede, a mineradora Vale estaria replicando no Corredor de Nacala sua forma de operação através de corredores logísticos de exportação e do investimento em infraestruturas, como as iniciativas realizado na Serra dos Carajás-PA (Shankland & Gonçalves 2016SHANKLAND, Alex. & GONÇALVES, Euclides. 2016. “Imagining Agricultural Development in South - South Cooperation: the contestation and transformation of ProSAVANA”. World Development, 18:35-46.; Kato 2019KATO, Karina. 2018. “Traçando a saída para o desenvolvimento: o caso do Corredor de Nacala em Moçambique”. Estudos Sociedade e Agricultura, 27 (2):229-254.). São empreendimentos, portanto, que demonstram o que Tsing (2005TSING, Anna. 2005. Friction: an ethnography of global connection. Princeton: Princeton University Press .) denominou uma “economia das aparências” característica da busca por capitais financeiros, em que as expectativas de lucros extraordinários devem ser performatizadas antes mesmo que as mercadorias sejam produzidas.

Este é um requisito do empreendedorismo orientado para o investimento e assume destaque nos momentos históricos em que o capital procura a criatividade em vez da reprodução estável. Nos empreendimentos especulativos, o lucro deve ser imaginado antes de poder ser extraído; a possibilidade de performance econômica deve ser conjurada como um espírito para atrair uma audiência de potenciais investidores. Quanto mais espetacular for a conjuração, tanto mais possível será um frenesi de investimentos (Tsing 2005TSING, Anna. 2005. Friction: an ethnography of global connection. Princeton: Princeton University Press .:57, tradução minha).

No entanto, apesar das potencialidades de investimentos agenciadas pelos dados disponibilizados no WebGis Moçambique ou sistematizados no zoneamento de classes de aptidão agrícola do Corredor de Nacala, uma série de conjunturas contribuiu para que os “negócios com terra” não se consolidassem na dimensão prospectada por políticos brasileiros e moçambicanos, ou por atores relacionados ao agronegócio. Fatores como o aumento da oferta de produtos agrícolas e a desaceleração da economia global levaram ao fim de um superciclo da alta nos preços das commodities, tornando menos atrativo os investimentos no setor agropecuário. Soma-se a isto uma transformação nos direcionamentos da própria política externa brasileira com o fim das gestões petistas, quando as parcerias com o continente africano deixam de ser uma prioridade para os novos governos. Cortes no orçamento da Agência Brasileira de Cooperação e mudanças na política de atuação internacional da Embrapa também se somaram a este cenário de desmobilização da cooperação sul-sul no Brasil, quando muitas iniciativas com países africanos ficaram pelo caminho.

No caso do ProSAVANA, particularmente, uma grande rede de contestação formada por movimentos sociais e organizações da sociedade civil dos três países envolvidos no acordo de cooperação foi fundamental para paralisar, transformar e, por fim, levar ao encerramento do programa (cf. Perin 2023PERIN, Vanessa P. 2023. “Plantation designs in northern Mozambique: development, struggles and (re)compositions facing the ProSAVANA program”. Tapuya: Latin American Science, Technology and Society, 6:1-21., 2020aPERIN, Vanessa P. 2020a. Compondo paralelos, corredores e lutas: uma etnografia das articulações tecnopolíticas em um programa de desenvolvimento agrícola no norte de Moçambique. Tese de Doutorado em Antropologia Cultural, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Como me informaram membros moçambicanos dessa rede de luta coletiva, conhecer a situação das terras que foram alvo da modernização agrícola no Cerrado foi um dos elementos catalizadores da contestação ao programa.

[...] as imagens que nós conseguimos capturar do Brasil foram bastante contraditórias àquilo que é a realidade moçambicana. São vastas áreas de terras contínuas, que no contexto moçambicano, ao longo do Corredor de Nacala, incluindo as províncias vizinhas afetadas, não tem. Então começamos a levantar questões, uma série de perguntas. Como é que aquilo era possível aqui? E depois, segundo indicações que nós tínhamos, fomos recuperando algumas declarações dos governantes moçambicanos que iam para o Brasil e diziam que “nós temos muita terra desocupada”, “muita terra que não está a ser utilizada”. Estes discursos não refletem a realidade do povo moçambicano. [...]. Então começamos a fazer esta luta (Membro da Organização Rural de Ajuda Mútua de Nampula, Moçambique).

Uma das expressões desta luta foi a formação do que os manifestantes denominaram um movimento de “cooperação sul-sul dos povos”, construído a partir da reativação de um histórico de inter-relação de movimentos sociais de Brasil e Moçambique. Uma das pautas deste movimento era a busca por maior transparência no fluxo de informações sobre as atividades da cooperação governamental, vista pelos manifestantes como hierárquica, não participativa, “secretista” e distante da população camponesa. A contestação ao paralelismo entre Savana e Cerrado promovido pela cooperação sul-sul, portanto, mostra como a extração de dados de um território está sempre embrenhada em camadas de história e com espacialidades específicas (cf. Walford neste dossiê). Como ressalta Cesarino (2014CESARINO, Letícia. 2014. “Antropologia multissituada e a questão da escala: reflexões com base no estudo da cooperação sul-sul brasileira”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 20 (41):19-50.), algo como um sul global só pode ser uma composição emergente e provisória, estabelecida em relação a um norte igualmente construído. As similaridades entre países categorizados em um mesmo paralelo geográfico não são um dado em si mesmo. Antes, conformam um agenciamento de relações que se atualizam em conjunturas situadas e que, como no caso apresentado, podem escapar às potencialidades conjuradas pelos dados.

Agradecimentos:

Agradeço às demais organizadoras do dossiê Big Data: Modos de Fazer Comparar e Governar, Sara Munhoz e Magda Ribeiro, pela parceria e diálogo que temos construído em relação a esta temática de pesquisa tão desafiadora. Também sou grata aos pareceristas anônimos pelos valiosos comentários e sugestões.

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  • WOLFORD, Wendy; BORRAS, Saturnino; HALL, Ruth; SCOONES, Ian & WHITE, Ben. 2013. Governing Global Land Deals: the role of the State in the Rush for Land United Kingdom: Wiley Blackwell.

Notas

  • 1
    Ao longo deste trabalho utilizo o itálico para diferenciar os termos, as expressões e as enunciações aos quais são atribuídos significados particulares por meus interlocutores de pesquisa ou no campo da cooperação internacional, particularmente nos documentos produzidos pelos técnicos do projeto analisado.
  • 2
    Destaco que esta modalidade de cooperação internacional não é vista aqui como um aparato estável da indústria do desenvolvimento. Neste sentido, sigo a inflexão stratherniana proposta por Cesarino (2014CESARINO, Letícia. 2014. “Antropologia multissituada e a questão da escala: reflexões com base no estudo da cooperação sul-sul brasileira”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 20 (41):19-50.) para marcar o caráter situado, parcial e emergente das redes de relações colocadas em operação pelas práticas de cooperação em que o Brasil se enreda - inclusive com os países do norte global.
  • 3
    Trata-se do trabalho de campo realizado para minha pesquisa de doutorado, a qual consistiu em uma etnografia da implementação do programa de cooperação internacional ProSAVANA. Estive em Moçambique durante oito meses, ao longo dos quais tanto acompanhei o trabalho de organizações camponesas e da sociedade civil moçambicana quanto realizei entrevistas com membros do corpo técnico do ProSAVANA, do governo moçambicano, diplomatas brasileiros, acadêmicos, dentre outros atores enredados na implementação desta iniciativa de cooperação internacional. Este trabalho de campo contou com o financiamento da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research.
  • 4
    Segundo Valente (2010VALENTE, Renata. 2010. A GTZ no Brasil: uma etnografia da cooperação internacional para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers.), a primeira definição formalmente reconhecida de cooperação técnica foi estabelecida na Assembleia Geral da ONU de 1948, como a “transferência não comercial de técnicas e conhecimentos através da execução de projetos em conjunto, envolvendo peritos, treinamento de pessoal, material bibliográfico, equipamentos, estudos e pesquisas entre atores de nível desigual de desenvolvimento (prestador e receptor)” (:63). No caso brasileiro, consiste na transferência e na adaptação de expertises, habilidades, tecnologias, por meio de capacitações, treinamentos, consultorias, troca de experiências, formação de quadros profissionais e, ocasionalmente, pela doação de equipamentos (Cabral & Shankland 2013CABRAL, Lidia & SHANKLAND, Alex. 2013. Narratives of Brazil-Africa Cooperation for Agricultural Development: New Paradigms?”. China and Brazil in Africa Agriculture (CBAA) Project, Working Paper 51.).
  • 5
    Um dos “atrativos” de Moçambique estaria em seu crescimento econômico acima da média dos países subsaarianos nesse período (com taxas de aumento do PIB chegando ao índice de 7% ao ano), na estabilidade política após anos de guerra civil e na superação de metas de desenvolvimento estabelecidas por organismos internacionais (Nogueira & Ollinaho 2013NOGUEIRA, I. & OLLINAHO, O. 2013. “From rhetoric to practice in south-south Development cooperation: a case study of Brazilian interventions in the Nacala Corridor Development Program”. Institute of Socioeconomics, University of Geneva. Working Paper.). No entanto, este cenário era um efeito, principalmente, da combinação de altos níveis de ajuda internacional com investimentos estrangeiros diretos, direcionados exclusivamente para certos enclaves produtivos - como a mineração e a exploração de gás natural. Nesse modelo capitaneado pelos chamados “megaprojetos”, a produção é em grande medida exportada e a maior parte dos rendimentos se mantém nas mãos de elites nacionais e internacionais (Cungara 2012CUNGARA, Benedito. 2012. “An exposition of development failures in Mozambique”. Review of African Political Economy, 39 (131):161-170.). Assim, o setor agrícola, que muitas vezes é destacado pelo governo moçambicano como base da economia do país, por décadas tem recebido baixos investimentos públicos e mesmo privados, desconsiderando que a maior parte da população vive em zonas rurais e encontra na agricultura seu modo de subsistência (Mosca 2012MOSCA, João. 2012. “Por que é que a produção alimentar não é prioritária?”. Observador Rural, Documento de Trabalho 1, Maputo.).
  • 6
    Para tanto ver os trabalhos de Cesarino (2014CESARINO, Letícia. 2014. “Antropologia multissituada e a questão da escala: reflexões com base no estudo da cooperação sul-sul brasileira”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 20 (41):19-50.), Leite (2012LEITE, Iara Costa. 2012. “Cooperação Sul-Sul: Conceito, História e Marcos Interpretativos”. Observador On-line, 7 (3):1-40.) e Pino (2014PINO, Bruno Ayllón. 2014. Evolução histórica da cooperação sul-sul (css). In: André de Mello Souza (org.), Repensando a cooperação internacional para o desenvolvimento. Brasília: Ipea. pp. 57-8.).
  • 7
    Enquadram-se nesta perspectiva os relatórios Ponte sobre o Atlântico. Brasil e África Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento (Banco Mundial & IPEA 2011BANCO MUNDIAL & IPEA. 2010. Ponte sobre o Atlântico. Brasil e África Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento. Washington e Brasília.) e Awakening Africa’s Sleeping Giant: prospects for commercial agriculture in the Guinea Savannah zone and beyond (Morris & Larson 2009MORRIS, Michael, LARSON Gunnar . 2009.Awakening Africa’s Sleeping Giant: Prospects for Commercial Agriculture in the Guinea Savannah Zone and Beyond. Agricultural and Rural Development Notes, Non. 48. Washington, D.C.: Word Bank.).
  • 8
    Outros programas de cooperação sul-sul entre Brasil e Moçambique também têm como premissa este imaginário de similaridades ecológicas, geológicas e culturais, como o ProSAVANA e as versões africanas do Programa Mais Alimentos, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
  • 9
    Apesar de apresentadas como acordos de cooperação sul-sul, muitas das iniciativas em que o Brasil se envolveu são empreendimentos de cooperação trilateral. Neste caso, os programas ou projetos são estabelecidos entre um doador tradicional ou uma agência multilateral, um doador emergente “pivô” e um terceiro país do sul beneficiário. Espera-se que o doador tradicional possa oferecer recursos financeiros, tecnologias e conhecimentos advindos de um aparato institucional mais consolidado; o país pivô fica responsável por transferir tecnologias e expertises mais apropriadas e a um custo mais baixo, pois seriam resultado de experiências de desenvolvimento situadas em contextos semelhantes aos do país beneficiário, ao mesmo tempo em que ambos se beneficiam com a capacitação institucional promovida pelo cooperante do norte (McEwan & Mawdsley 2012McEWAN, Cheryl & MAWDSLEY, Emma. 2012. “Trilateral Development Cooperation: Power and Politics in Emerging Aid Relationships”. Revista Development and Change , 43:1185-1209.).
  • 10
    Formas de padronizar, categorizar e escalonar uma população ou um território, não por um processo de redução de sua complexidade, mas através de técnicas para fixar sua diversidade e produzir, enfim, um mapa “visível” ao aparato de governo estatal (Scott 1998SCOTT, James. 1998. Seeing like a State: how certain schemes to improve the human condition have failed. London: Yale University Press. ) e statelike institutions (Sharma & Gupta 2006SHARMA, Aradhana & GUPTA, Akhil. 2006. The Anthropology of State: a reader. Oxford: Blackwell Publishing.) como as agências de cooperação internacional.
  • 11
    Durante o trabalho de campo que realizei no Corredor de Nacala, a ausência de uma estrutura para o levantamento de informações sobre solos e a escassez de dados sobre a topografia da região (encontrados apenas em mapas com grandes escalas) foram elementos apontados por pesquisadores do IIAM para justificar as dificuldades encontradas para a condução de pesquisas na área de desenvolvimento agrícola no país, inclusive para as iniciativas de cooperação com o Brasil.
  • 12
    O WebGis pode ser acessado pelo link http://mapas.cnpm.embrapa.br/mocambique/mapa.html
  • 13
    Conferir https://agenciasn.com.br/arquivos/2627
  • 14
    Associado a formas de controle da terra, mais do que à sua propriedade, land grabbing pode ser entendido como um processo de aquisição de terras em larga escala - seja por compra ou, mais comumente, arrendamentos em longo prazo - por empresas domésticas ou internacionais, governos ou indivíduos, que têm como um dos seus efeitos o tratamento da terra como um ativo financeiro, negociado no mercado internacional de commodities (Borras & Franco 2012BORRAS, Saturnino & FRANCO, Jennifer. 2012. “Global Land Grabbing and Trajectories of Agrarian Change: A Preliminary Analysis”. Journal of Agrarian Change, 12 (1):34-59.; Wolford et al. 2013WOLFORD, Wendy; BORRAS, Saturnino; HALL, Ruth; SCOONES, Ian & WHITE, Ben. 2013. Governing Global Land Deals: the role of the State in the Rush for Land. United Kingdom: Wiley Blackwell.).
  • 15
    Segundo relatório da Oxfam (2011OXFAM. 2011. “Land and power: the growing scandal surrounding the new wave of investments in land”. Oxfam Briefing Paper 151.), 227 milhões de hectares de terra teriam sido vendidos ou arrendados entre 2001 e 2011, principalmente para investidores estrangeiros.
  • 16
    De acordo com Bear et al. (2015BEAR, L.; HO, K.; TSING, A. & YANAGISAKO, S. 2015. “Gens: A Feminist Manifesto for the Study of Capitalism”. Cultural Anthropology: https:// culanth.org/fieldsights/652-gens-a-feminist-manifesto-for-the-study-of-capitalism
    https:// culanth.org/fieldsights/652-gen...
    ), “financeirização refere-se ao aumento da ligação, tradução e interações entre um modo financeiro de apreensão do mundo e outros domínios sociais” (n/p, tradução minha). Envolve, ainda, as transformações contemporâneas no desenvolvimento capitalista que têm alterado o centro de gravidade das atividades econômicas da produção dita “real” (primária, industrial e de serviços) para o segmento das finanças (Mawdsley 2018MAWDSLEY, Emma. 2018. “Development geography II: Financialization”. Progress in Human Geography, 42 (2):264-274). Em relação à agricultura, Clapp e Martin (2017CLAPP, Jennifer & MARTIN, Sarah. 2017. Agriculture and Finance. In: P. Thompson & D. Kaplan (eds.), Encyclopaedia of Food and Agricultural Ethics. Dordrech: Springer. pp. 86-94.) descrevem estas transformações como um movimento das “finanças para a agricultura” no sentido de uma “agricultura para as finanças”, pois “[enquanto] os agricultores e a agricultura moldaram a regulação financeira no passado, há indicações de que as finanças estão agora a moldar a agricultura e os mercados de produtos agrícolas” (:2, tradução minha).
  • 17
    Estudo organizado por Mateus Bastistella e Édson Bolfe, respectivamente, um ecólogo e um engenheiro florestal, especialistas em agricultura digital da Embrapa Monitoramento por Satélite, que coordenaram o Projeto Paralelos. A equipe multidisciplinar que produziu este material também contou com pesquisadores da Embrapa Solos, Embrapa Cerrados, da Secretaria de Relações Internacionais e do IIAM, de áreas tecnocientíficas como agronomia, desenvolvimento rural, engenharia ambiental, pedologia, geociências, tecnologia da informação e gestão do conhecimento.
  • 18
    Esta abordagem, baseada principalmente na propiciação de códigos voluntários de responsabilidade empresarial e boa governança, pode ser encontrada em relatórios como o Rising global interest in farmland: can it yield sustainable and equitable benefits?” (RGIF) (Deninger et al. 2011DEININGER, Klaus et al. 2011. Rising global interest in farmland: can it yield sustainable and equitable benefits? Washington, DC: World Bank.). Para uma crítica a estas proposições, conferir De Schutter (2011DE SCHUTTER, Olivier. 2011. “How not to think of land-grabbing: three critiques of large-scale investments in farmland”. Journal of Peasant Studies, 38 (2):249-279.) e Li (2011LI, Tania M. 2011. “Centering labor in the land grab debate”. The Journal of Peasant Studies , 38 (2).).
  • 19
    As comunidades camponesas que se espalham por todo o país com suas machambas, entretanto, possuem o direito de uso tradicional de suas terras. A solicitação da documentação de DUAT é facultativa, e deve vir acompanhada de procedimentos de consulta pública e da delimitação das terras comunitárias (Mandamule 2017MANDAMULE, Uacitissa. 2017. Terra, poder e desenvolvimento em Moçambique. Maputo: Escolar Editora. ).
  • 20
    Estes procedimentos são marcados por muitos pontos cegos, que permitem perceber que, embora a venda da terra seja ilegal em Moçambique, existe um mercado bastante ativo por outros canais, sendo de conhecimento geral que no país “a terra não se vende, mas se compra” (Fairbairn 2013FAIRBAIRN, Madeleine. 2013. “Indirect dispossession: domestic power imbalances and foreign access to land in Mozambique”. Development and Change, 44 (2):335-356.:341). Para demonstrar como as terras têm sido negociadas no país, durante uma entrevista que realizei com um representante da Ordem dos Advogados de Moçambique, o entrevistado realizou um experimento. Perguntou em voz alta para um dos funcionários presentes no escritório em que conversávamos qual seria o preço de um terreno num dos bairros mais periféricos da capital Maputo, ao que foi prontamente respondido com valores detalhados por mais de uma pessoa. Segundo o jurista, era de conhecimento comum e cotidiano que os lotes de terra tinham valores estabelecidos por este mercado informal, o que também poderia se notar pelos muitos folhetos anunciando a venda de DUATs espalhados pela cidade.
  • 21
    O programa ProSAVANA foi uma proposta de cooperação internacional triangular, firmada entre os governos do Japão, Brasil e Moçambique, com o objetivo de transferir tecnologias agrícolas brasileiras para a região do Corredor de Nacala. A principal referência para sua elaboração foram as experiências adquiridas com o PRODECER (Programa de Cooperação Brasileira e Japonesa para o Desenvolvimento Agrícola do Cerrado), iniciativa nipo-brasileira responsável pela institucionalização de um modelo de produção agrícola altamente tecnificado e mecanizado no Cerrado brasileiro, visando à produção de commodities para exportação. Sobre o ProSAVANA e seu processo controverso de implementação, conferir os trabalhos de Camana (2020CAMANA, Ângela. 2020. “Moçambique é um Mato Grosso no meio da África”: o desenvolvimento e suas fricções em torno ao acontecimento ProSavana. Tese de Doutorado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), Santarelli (2016SANTARELLI, Mariana. 2016. Do Cerrado Brasileiro à Savana Moçambicana: controvérsias da cooperação brasileira na promoção de uma nova revolução verde na África. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.), e Perin (2020bPERIN, Vanessa P. 2020b. “The Speed of the Political is Not That of the Scientific: On the Time of Development in an Agricultural Technology Transfer Program”. VIBRANT, Virtual Braz. Anthr, 17: 1-26. ).
  • 22
    A entrevista concedida por Nishimori à TV Câmara pode ser acompanhada em https://www.youtube.com/watch?v=5DIllQBgjK0

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2023
  • Aceito
    03 Jun 2024
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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