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Quem Precisa de Big Data?: sobre dados e informação na agricultura de precisão

Who needs Big Data?: data and information in precision agriculture

¿Quién necessita Big Data?: sobre datos e información en la agricultura de precisión?

Resumo

O artigo parte da investigação sobre o desempenho da Agricultura de Precisão (AP) em uma feira agropecuária. Acompanhando a equipe de uma concessionária de máquinas agrícolas em seu estande e, posteriormente, em sua “central de inteligência”, exploramos o descompasso entre a expectativa de uma lavoura eletrônica automatizada e inteligente via Big Data e a realização da integração de tecnologias da informação na gestão e automação da lavoura. Com amparo na visão dessa equipe, nas experiências relatadas por profissionais na feira e em depoimentos públicos on-line, descrevemos como tem se estabelecido essa relação de informação, na qual a geração, a circulação e o processamento massivo de dados promovem a otimização e a expansão do agronegócio. Com interesse especial pela maneira como são narradas e interpretadas as tecnologias que tornam a AP possível, debatemos o encantamento, a confiança e a necessidade que elas implicam.

Palavras-chave:
Agricultura de Precisão; Dados; Informação; GPS; Produtividade

Abstract

This paper is based on the investigation of the performance of Precision Agriculture (PA) in an agro-business fair. Accompanying the team of a farm machinery concessionaire in their stand and, later, in their “control room”, we explore the gap between the expectation of an automated and intelligent electronic farming via Big Data, and the realization of the integration of information technologies in the management and automation of farming. Based on the vision of this team, experiences reported by professionals at the fair, and public online testimonials, we describe how an information relation has been established, in which the generation, circulation and massive processing of data promotes the optimization and expansion of agribusiness. With special interest in the ways technologies of PA are narrated and interpreted, we discuss the enchantment, trust, and need they imply.

Keywords:
Precision Agriculture; Data; Information; GPS; Productivity

Resumen

El artículo parte de la investigación sobre el funcionamiento de la Agricultura de Precisión (AP) en una feria agrícola. Acompañando al equipo de un concesionario de maquinaria agrícola en su estand y, posteriormente, en su “centro de inteligencia”, exploramos la brecha entre la expectativa de una agricultura electrónica automatizada e inteligente vía Big Data y la realización de la integración de las tecnologías de la información en la gestión y automatización de la agricultura. A partir de la visión de este equipo, de las experiencias relatadas por los profesionales en la feria y en testimonios públicos online, describimos cómo se ha establecido la relación de la información en la cual la generación, circulación y procesamiento masivo de datos promueven la optimización y expansión del agronegocio. Con especial interés en la forma en que se narran e interpretan las tecnologías que hacen posible la AP, debatimos el encanto, la confianza y la necesidad que implican.

Palabras clave:
Agricultura de Precisión; Datos; Información; GPS; Productividad

O substantivo feminino “precisão” guarda certa ambiguidade em português. Por um lado, remete à “necessidade”, à falta de algo necessário ou útil, envolvendo certa urgência ou imediatez, como na expressão: “tem precisão de mantimentos”. Por outro lado, remete à “exatidão”, a um absoluto rigor na determinação de uma medida (peso, valor etc.) na escolha de palavras ou na execução de algo, a um funcionamento perfeito, sem falhas, como na expressão: “chutou com precisão e fez o gol” (Houaiss & Villar 2009HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro de Salles. 2009. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.:1538). Referindo-se a este segundo sentido, Norton Wise (1995WISE, M. Norton. 1995. The values of precision. Princeton: Princeton University Press.:92) afirma que apenas na segunda metade do século XVIII a “retórica da precisão” ganhou “poder para levar a confiança a virtualmente qualquer domínio ao qual ela foi aplicada”. No contexto da agricultura, a palavra “precisão” costuma ser usada neste segundo sentido, sugerindo um emprego mais racional e eficaz de recursos, insumos e mão de obra, geralmente baseado em conhecimentos científicos e com intensa aplicação de tecnologia e automação. É isto que transparece, por exemplo, na definição de Agricultura de Precisão (AP) elaborada pela International Society of Precision Agriculture (ISPA):

Agricultura de Precisão é uma estratégia de gestão que reúne, processa e analisa dados temporais, individuais e espaciais e os combina com outras informações para apoiar as decisões de gestão de acordo com a variabilidade estimada para melhorar a eficiência no uso de recursos, produtividade, qualidade, rentabilidade e sustentabilidade da produção agropecuária.

Trata-se, portanto, sobretudo de uma “estratégia de gestão” baseada em “dados” e “informações” sobre a “variabilidade estimada” e com vistas à maior “eficiência” e “produtividade”.1 1 A quantificação dos atributos dos solos expressa o seu potencial para ser transformado em renda em um momento futuro, mobilizando a terra como um ativo financeiro, de forma análoga à que Vanessa Parreira Perin descreve em artigo publicado neste volume. E como buscamos aqui apresentar, é de fato isto que encontramos atualmente nos discursos e nas práticas ligados à AP: um grande esforço coletivo para trazer à existência um mercado, e um mundo, no qual a produção agropecuária se apresenta como uma atividade tecnicamente mediada por bancos de dados, satélites, telas, computadores, telemetria e maquinário agrícola autônomo. Uma atividade controlada, previsível, mecanizável e quantificável - em uma palavra: "precisa".

“Tá vendo o GPS aí?”

Andando pela tenda da Unapel e da Justi Tratores (concessionárias brasileiras da New Holland, fabricante global de maquinário agrícola) na feira AgroBrasília 2022, em meio a tratores, colheitadeiras, pulverizadores, semeadoras e outras máquinas agrícolas de última geração, nos chama a atenção um estande elevado sobre um tablado de madeira, encabeçado pela afirmação, em letras laranjas garrafais sobre um fundo branco: “É NATURAL SER DIGITAL”. Logo abaixo, já na parte interior do estande, acima de um painel de seis monitores que parecem ser de 32 polegadas (organizados em duas linhas sobrepostas de três monitores cada, à altura do olhar de uma pessoa que estivesse em pé no estande), ainda em letras garrafais, mas desta vez em preto e azul, lemos: “CENTRAL DE INTELIGÊNCIA”. Abaixo dos monitores, sobre a parede branca e no mesmo tom alaranjado da primeira frase, vemos pintada uma espécie de colmeia de células hexagonais com ícones que associam agricultura (plantações e tratores), gráficos (pizza, barras e setas) e tecnologias digitais (monitor de computador, smartphone e sinal de wifi) (ver Figura 1).

Figura 1-
Estande da “central de inteligência”, na tenda da Unapel e da Justi Tratores, na feira AgroBrasília 2022. Fonte: Evandro Smarieri, 2022

Como uma espécie de isca para atrair visitantes ao estande, ao nível do chão gramado à sua frente, do lado esquerdo da rampa que dá acesso a ele, sobre uma pequena bancada onde se destacam as letras “PLM” (sigla para “Precision Land Management”), quatro pequenos monitores com telas entre 4 e 7 polegadas exibem imagens animadas vetorizadas de tratores percorrendo linhas (rotas prescritas) em superfícies planas quadriculadas. Na frente da bancada, logo abaixo da sigla “PLM” e do assertivo nome “New Holland Intelligence”, lemos: “Gera mais resultados do que você pensa, custa menos do que você imagina”.

Hipnotizados pela tecnoestética (Simondon 1998SIMONDON, Gilbert. 1998 [1982]. "Sobre a tecno-estética: Carta a Jacques Derrida". (Trad.: Stella Senra). In: Hermetes Reis de Araújo (org.), Tecnociência e cultura: ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade. pp. 253-66. ) do estande, como que capturados pelo encanto de sua tecnologia (Gell 1992GELL, Alfred. 1992. “The technology of enchantment and the enchantment of technology”. In: Jeremy Coote & Anthony Shelton (eds.), Anthropology, Art and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press. pp. 40-63.), nos tornamos presas fáceis para a abordagem de Roger,2 2 Todos os nomes de nossos interlocutores diretos foram alterados para preservar suas identidades. um dos vendedores da empresa, que nos acorda do transe com a pergunta aparentemente despretensiosa, mas surpreendentemente capaz de nos enredar em sua retórica: “Tá vendo o GPS aí?”. Impossível não responder afirmativamente e, ao fazê-lo, assumir a perspectiva interacional da presa. E já que caímos na armadilha, por que não pelo menos aproveitar para, como “Pedro o vermelho” (Kafka 1994KAFKA, Franz. 1994 [1917]. “Um relatório para uma academia”. In: ___, Um médico rural: pequenas narrativas. (Trad.: Modesto Carone). São Paulo: Brasiliense. pp. 57-67. ), tentar sair dela pela porta da frente, redefinindo a situação (Egloff 2015EGLOFF, Rainer. 2015. “Definition of the situation: history of the concept”. In: James D. Wright (ed.), International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. Vol. 6. Amsterdam: Elsevier. pp.19-23.) ao responder com a pergunta: “Sim, e como eles funcionam?”.

Diante de nossa pergunta, Roger, que além de vendedor é engenheiro agrônomo, nos ensina que aquelas pequenas telas são terminais de diferentes sistemas de georreferenciamento que, uma vez instaladas na cabine de algum veículo agrícola, servem para guiar o seu trajeto pelo terreno com diferentes graus de precisão e autonomia. Os sistemas mais simples e baratos, por exemplo, além de não oferecerem automação (e, portanto, ainda dependerem da condução de operadores humanos que se orientam a partir das informações disponíveis na tela), usam sinal de GPS3 3 Global Positioning System (GPS) é um sistema de navegação global por satélite (GNSS) do governo estadunidense, composto atualmente por mais de 30 satélites em órbita. Outros GNSS bastante usados por sistemas de geolocalização na agropecuária brasileira são: GLONASS (Globalnaya Navigatsionnaya Sputnikovaya Sistema), sistema russo com quase 30 satélites em órbita; Galileu, sistema europeu com 30 satélites em órbita; e Compass/Beidou, sistema chinês com mais de 30 satélites em órbita. aberto e gratuito, e apresentam “25, 30 cm de erro”. Apesar de isso não ser um problema nos sistemas de GPS civis convencionais (que aliás costumam ter margem de erro de 10 metros), quando esses 25 cm são acumulados ao longo de uma grande propriedade rural, isso “representa uma diferença gigante”, segundo Roger. Já os sistemas mais complexos e caros, além de oferecerem automação parcial ou total (liberando assim o operador humano para tarefas mais ligadas à supervisão do sistema do que à condução do veículo em si), usam sistemas específicos (e muitas vezes vinculados ao pagamento de anuidades) para corrigir e recalibrar o sinal de GPS, reduzindo o erro para “3 cm”.

No centro do estande, a fanerotécnica do painel de monitores rouba a cena, cada um deles exibindo diferentes “renderizações” (Myers 2014MYERS, Natasha. 2014. “Rendering machinic life”. In: Catelijne Coopman et al. (eds.), Representation in scientific practice revisited. Cambridge and London: MIT Press. pp. 153-175.) das “variáveis de interesse” da AP: mapas e imagens de satélite de fazendas e plantações nas quais um mesmo terreno aparece em diferentes versões, dividido em áreas com distintas cores identificadas em legendas coloridas, textuais e numéricas; gráficos diversos na forma de linhas (com picos e vales) e barras coloridas, sempre acompanhados de suas respectivas legendas, descrições e valores numéricos; e diversos ícones que trazem descrições textuais e valores numéricos ou caixas de texto.

Percebendo nosso interesse (nem um pouco dissimulado, é verdade) pela “central de inteligência”, Roger explica que ela funciona por telemetria, em tempo real (ou quase, a depender da conectividade no campo). Sistemas de sensores embarcados nos veículos coletam e transmitem todo tipo de dados para a central, onde são monitorados e processados por sistemas inteligentes e pessoal especializado, e cruzados com muitos outros tipos de dados (meteorológicos, topográficos, físico-químicos, financeiros, séries históricas etc.), para assim informar, e potencialmente influenciar, as ações no campo em tempo real. Para facilitar nossa compreensão, Roger usou como exemplo um mapa que estava em uma das telas naquele momento: “aquelas cores, aquilo é um mapa de colheita, que foi gerado numa colheitadeira como aquela ali”, disse ele apontando para uma grande máquina estacionada a poucos metros de nós - que, dessa forma, colhe não apenas os frutos da lavoura, mas todo tipo de dados relativos a ela. “Onde está verde”, Roger explica, “a produção tá alta”, e onde está “vermelho”, a produção está “baixa”. Ele também nos alertou que, enquanto os sistemas de georreferenciamento embarcados que ele nos mostrava antes agem “aqui fora” - i.e., o trajeto a ser seguido pela máquina é definido localmente, com base em definições estabelecidas na própria fazenda, ou dados inseridos pelo próprio operador do veículo -, a “central de inteligência” é “um passo além”, e nos convida: “vamos lá ver?”.

“A máquina é muito fofoqueira”

Além de nos conduzir tablado acima por aquela “central de inteligência” meramente ilustrativa para fins de demonstração na feira, Roger também nos convidou para visitar uma verdadeira central da concessionária, instalada na cidade de Cristalina, Goiás. Evidentemente aceitamos o convite, e alguns dias depois estávamos na “loja conceito” da Unapel, inaugurada em 2021 no quilômetro 100 da rodovia BR-050.

Nossa primeira impressão ao chegarmos foi a de um ambiente vazio. A “central de inteligência de serviços” ocupa um lugar de destaque, e podia ser vista logo da entrada através de uma janela que se abre para o saguão, uma espécie de vitrine pela qual era quase impossível enxergar, entre reflexos de várias camadas de vidro, algumas pessoas trabalhando (ver Figura 2). Túlio, o gerente da loja, trabalhava em uma mesa estrategicamente localizada à frente da central, onde podia acompanhar toda a movimentação em seu interior, e especialmente um grande monitor (que parecia ter mais de 50 polegadas) fixado na parede. Nesse grande monitor, ele pode supervisionar as chamadas de clientes e os alertas automáticos das máquinas, sempre atendidos pela funcionária Lis (cuja mesa, aliás, acumulava mais outras quatro telas).

Figura 2-
“Central de inteligência de serviços”, localizada na concessionária Unapel da New Holland em Cristalina (GO). Fonte: Evandro Smarieri, 2022

Ainda na AgroBrasília, quando Roger mencionou a “central de inteligência” da Unapel em Cristalina, nos chamou a atenção o fato de ele tê-la descrito como “uma sala” na qual a Lis “fica com o computador ligado só vendo as máquinas que estão trabalhando”. Segundo Túlio, “a maioria dos funcionários que foram pensados para essa sala aqui [a “central de inteligência”] seria só para olhar a parte de código de alerta”, mas como “eu não tenho muita máquina, então eu não consigo pagar um profissional exclusivo pra isso, aí eu aumentei o número de funções que a Lis tem”. “Ela foi pegando o jeito aos poucos”, ele continua, “e eu fui colocando mais funções para ela”, de forma que hoje “nós somos o único concessionário que tem alguém com todos os atributos da Lis”. Como uma espécie de inversão brasileira da “inteligência artificial artificial” Alexa da Amazon (cf. Crawford & Joler 2020CRAWFORD, Kate & JOLER, Vladan. 2020. “Anatomia de um sistema de inteligência artificial: o Amazon Echo como mapa anatômico de trabalho humano, dados e recursos planetários”. (Trads.: Pedro P. Ferreira; Cristiana de Oliveira Gonzalez). ComCiência, 20 de setembro de 2018. Disponível em: https://www.comciencia.br/anatomia-de-um-sistema-de-inteligencia-artificial/ . Acesso em 09/10/2023
https://www.comciencia.br/anatomia-de-um...
), Lis parece assumir aqui o papel do humano sem o qual a “inteligência” da central não se realiza.

Uma das principais funcionalidades oferecidas pela “central de inteligência” da Unapel a seus clientes é o controle de frota, i.e., a possibilidade de o produtor rural obter, a qualquer momento e em qualquer lugar, informações de todo tipo, em tempo real, sobre a sua frota de máquinas. No estande na AgroBrasília, apontando para um dos monitores de 32 polegadas, Roger explica que: se o ícone que representa o trator estiver azul, sabemos que a máquina está em movimento; e se o ícone estiver vermelho, é porque está desligada. “O cliente pode”, Roger dá mais um exemplo, “falar que quer que a velocidade máxima do trator seja 10 km/h”, então “a gente cria um trigger” que avisa, na tela da central, quando ele ultrapassar esse limite. Segundo Roger, “tudo é registrado” e transmitido para a central, onde Lis precisa então responder de maneira apropriada a cada situação.

A própria Lis nos explicaria, em Cristalina, que “no dia a dia a gente faz esse monitoramento dos dados das máquinas”, e que o sistema não apenas emite alertas de diferentes níveis de gravidade (“baixo, médio e alto”), como também recomenda possíveis ações de adequação. “Quando a gente tem um alerta de gravidade alta”, ela conta, “nós entramos em contato com o cliente e falamos para ele o que está acontecendo, qual é o alerta, em qual máquina e o que é recomendado fazer”. De acordo com ela, um dos alertas mais comuns emitidos pelo sistema é “operador fora do assento” (alerta considerado de “nível médio”, em relação ao qual geralmente não é necessário tomar nenhuma providência): “porque às vezes ele levanta do banco lá, e a máquina na hora já envia o alerta para a gente aqui. [...] Vamos dizer assim, a máquina é muito fofoqueira.”4 4 Sobre essa mesma dimensão coercitiva do sistema, a produtora rural Roseli Giachini contou no painel “Os desafios da fazenda com a turma do Agro de Negócios” (realizado na AgroBrasília em 21/05/2022) o caso do operador de trator que, incomodado com o alarme acionado pelo sistema de “controle de frota” (“uma parafernália que você põe dentro do trator”) toda vez que ele realizava alguma “intervenção errada”, simplesmente “desligava o apito”, resultando em mais de “30% de sobreposição” - i.e., de trabalho e recursos desperdiçados. Por isso, segundo Giachini, é preciso “trabalhar as pessoas que vão usar a tecnologia”, se não “infelizmente eu vou ter alguns desafios maiores do que se eu tivesse sem a inovação”.

“Eu preciso usar porque eu paguei”

A certa altura de nossa conversa na AgroBrasília, quando falávamos sobre as “zonas de gerenciamento” exibidas em uma das telas centrais do estande da “central de inteligência”, perguntamos a Roger se a Unapel realiza algum tipo de análise de solo. “Análise em si não”, ele respondeu, mas “a gente tem um produto que faz o monitoramento elétrico do solo”, chamado SoilXplorer. Percebendo nosso interesse em saber mais sobre este produto, Roger pergunta se conhecemos “a parte de CTC do solo”, e diante de uma resposta hesitante, afirma: “CTC é capacidade de troca catiônica. Na verdade, é assim: o cálcio, o magnésio, o fósforo, os nutrientes da planta, quanto maior for a concentração [deles no solo], maior o CTC”. Em outras palavras, de acordo com o engenheiro, quanto maior for a CTC, “melhor é pra planta”.

Diferentemente dos parâmetros de produtividade que podem ser influenciados por mudanças nos regimes de irrigação, adubação e aplicação de agrotóxicos, as medidas de condutividade elétrica aparente do solo (CEa) indicam propriedades mais permanentes do terreno (i.e., sua CTC). Roger exemplifica: “normalmente, o solo argiloso tem CTC maior, e o arenoso tem CTC menor”, então essas medidas permitem a identificação de zonas distintas com essas características dentro da lavoura. São zonas que não se prestam tanto ao manejo, pois dificilmente sofrerão grandes modificações, e assim podem (ou antes devem) ser objeto de outras estratégias:

Às vezes, se for uma área muito grande de solo arenoso você entra com uma cultura diferente daquela que você tava pensando [inicialmente em cultivar], mais adaptada a menos água. E se você joga um produto pra promover mais enraizamento, então aí vai um pouco mais de produto, porque ali tem menos água e você tem que fazer um enraizamento maior, o que vai ajudar também na contenção do solo, porque diminui a velocidade em que a água infiltra [no solo]. (Roger)

Assim, se a CTC é definida por meio da medição da CEa do solo, esta por sua vez é medida por meio da análise da corrente elétrica induzida no solo - no caso do exemplo de Roger, pelo SoilXplorer, que se destaca por coletar dados de CEa numa taxa de cinco pulsos eletromagnéticos por segundo, em quatro profundidades diferentes (graças à disposição das bobinas receptoras em seu interior). Nas palavras do engenheiro, a máquina “tem um pulso [eletromagnético] muito rápido” que “dá muitas informações”: “Informações demais por segundo”; “é muito, muito, muito dado”. É tanto dado por segundo que, nas condições atuais de conectividade rural brasileiras, o sensor simplesmente não é capaz de transmiti-los por telemetria em tempo real. Assim, apesar de toda a conectividade prometida no serviço e nos produtos oferecidos no estante de Roger, ele acredita que apenas com a implementação de redes 5G no campo é que se tornará possível algo nessa escala: “É o Big Data que o pessoal tá chamando”.

A certa altura de um webinar intitulado “Big Data no Agro: o que você precisa saber!”, o diretor de desenvolvimento da “empresa de agricultura digital” InCeres, Márcio Duarte, defendeu: “o Big Data é bruto”. Com isso, ele quis dizer que “não faz sentido filtrar o Big Data”:

A regra é: colete tudo; colete o máximo possível; coloque a quantidade de sensores que puder e vá acumulando e jogando esses dados em uma base de dados. [...] E o mais importante de tudo é que o Big Data depende da capacidade de agregar. [...] Por isso eu falo: o dado em seu computador, gravado em seu HD, esse cara não está alimentando nenhum Big Data e existe muita informação que pode estar se perdendo aí.5 5 “Big Data no Agro: o que você precisa saber!” Webinar InCeres #18, transmitido no dia 29/11/2018, disponível no canal da InCeres no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Sp1gdSVJFko

Logo depois dessas palavras, num momento quase descontraído de sua fala, depois de dizer que é “meio maluco da cabeça”, Márcio comentou:

Eu fico andando na rua, fico olhando pras coisas e fico percebendo fontes de dados que estão se perdendo: "olha quanta informação a gente não tem... olha quanta coisa interessante eu poderia fazer se eu estivesse capturando aquela informação ali."

Como um pesquisador certa vez disse para Tone Walford (2021WALFORD, Tone (Antonia). 2021. “Data - ova - gene - data”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 27:127-41.:19): “existem sempre dados demais, mas também nunca dados o suficiente”. “Os dados”, vale reiterar, “estão em toda parte, mas ao mesmo tempo estranhamente ausentes” (Walford 2021WALFORD, Tone (Antonia). 2021. “Data - ova - gene - data”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 27:127-41.:127). No caso da AP, vimos que, apesar de existirem dados demais em toda parte, muito mais do que é possível transmitir e processar em tempo real (ou justamente por isso), não existem dados o suficiente para a sua plena concretização. Mesmo os dados "brutos", apesar de jorrarem dos sensores muito mais vezes por segundo do que nossa cobertura de sinal é capaz de transferir, permanecem inacessíveis se não houver “uma enorme quantidade de intervenções, manipulações e trabalho duro” (Walford 2017WALFORD, Tone (Antonia). 2017. “Raw data: making relations matter”. Social Analysis, 61 (2):65-80.:68). Ou seja, para que os dados que jorram do maquinário agrícola consigam ser mais plenamente aproveitados na lavoura, não apenas os sensores precisam estar calibrados, o maquinário precisa estar bem regulado, as condições climáticas precisam estar favoráveis, os recursos (combustível, água, eletricidade, fertilizantes e outros insumos) precisam estar disponíveis, operadores precisam ser qualificados, os novos registros precisam ser adequadamente arquivados etc., mas também uma ampla rede de conectividade rural precisa estar instalada e em pleno funcionamento

De fato, quando conversamos com Túlio sobre as mudanças que ele associa à futura disseminação da tecnologia 5G no campo, ele resumiu tudo na expressão “agilidade de comunicação”: “A gente pode entrar em contato com cliente, o cliente entrar em contato com a gente, a gente comunicar com máquina.” Segundo o gerente da Unapel, sua frota de tratores opera com tecnologia quadriband para permitir a telemetria (“se uma não pega, a outra está funcionando”), mas “tem regiões que mesmo assim não pega, porque não tem infraestrutura”. Ele lamenta que a “grande maioria” das iniciativas de implementação da tecnologia 5G está acontecendo apenas em “grandes centros”: “Você sai daqui e vai pra São Paulo, lá tem 5G pra todo lado. Mas sai de São Paulo...”. Como exceção a esta regra, ele cita o caso da “Fazenda Conectada” da fabricante de maquinário agrícola estadunidense Case IH:

É uma fazenda modelo. Aquilo é um modelo de negócios. É uma antena 5G da TIM que tá lá. [...] [A] comunicação por fibra ótica vai até Água Boa-MT, [...] até a entrada da cidade. Da cidade pra frente é via rádio. (Túlio)

Na opinião de Túlio, a “Fazenda Conectada” da Case IH foi uma “excelente ideia”, pois “levaram uma comunicação para onde não existe comunicação”, “são nichos de mercado onde não tem atuação”: “Eu conheço a região lá e eu sei que lá não tem nem sinal de fumaça. Internet é só via satélite. Eles levaram para o lugar mais remoto.”

No caso do serviço oferecido por Roger, trata-se de promover o uso de produtos e serviços de telemetria, mais especificamente do banco de dados da “My MPL Connect”. Embutindo sensores e automação no maquinário agrícola, reunindo os mais variados tipos de dados e informações sobre a lavoura6 6 Uma amostra da quantidade e da diversidade de dados e informações que a “central de inteligência” da Unapel pode capturar, transmitir e processar pode ser encontrada no folheto publicitário NHAGS132 de especificações técnicas da New Holland para o seu serviço “My PLM Connect” (Precision Land Management), disponível em: https://catalogs.cnhindustrial.com/nhag/lar/Documents/NHAG_SPEC_MyPLMConnect.pdf. O serviço de “monitoramento da frota”, por exemplo, oferece informações sobre: visualização de toda frota cadastrada; recebimento de alertas; personalização de notificações; status da operação; relatórios; localização da máquina; acesso remoto; e horas do motor. Mais especificamente nas máquinas monitoradas, o serviço oferece informações sobre: deslizamento (%); horas de transmissão; pressão do freio a ar (bar); temperaturas do óleo da transmissão e do óleo hidráulico (oC); pressão do óleo da transmissão (bar); e velocidade efetiva (Km/h). Em relação aos motores dessas máquinas, o serviço oferece informações sobre: carga (%); pressões do turbo e do óleo (bar); rotação (rpm); temperaturas do arrefecedor, do coletor de admissão e do óleo (oC); tempo de funcionamento (h); e tensão da bateria (V). Em relação ao combustível/DEF (Diesel Exhaust Fluid; também conhecido como Agente Redutor Líquido de Óxido de Nitrogênio Atomotivo, ou ARLA), o sistema oferece informações sobre: combustível usado (campo e estrada) (L); médias de combustível/distância (Km/L) e de combustível/área (L/ha); taxa e nível DEF (L/h e %); nível de combustível (%); taxa de combustível do motor (L/h); e temperatura do tanque de DEF (oC). Em relação à colheita, o serviço oferece informações sobre: média de fluxo seco (ton/h); peso seco (ton); médias de produtividade molhado e seco (ton/ha); média de umidade (%); abertura do côncavo (mm); peneiras inferior e superior (mm); média de perda da peneira (g); posição do alimentador; velocidades do elevador, do rotor/tambor e do ventilador (m/s); e largura de trabalho. E em relação à pulverização, o serviço oferece informações sobre: taxas alvo e aplicada (L/ha); volume do tanque (L); média de taxa de trabalho (L/ha); e pressão da barra de pulverização (KPa). Mas isso não é tudo. O folheto ainda especifica o serviço de “gerenciamento dos dados agronômicos”, que oferece informações sobre: dados agronômicos de plantio, pulverização e colheita; relatórios gerenciais e operacionais; planejamento da safra; controle financeiro, custos, estoque; calendário; criação de zonas de manejo; taxas fixas e variáveis; criação e exportação de limites, pontos, linhas; inserção de monitoramento de pragas, doenças e insetos; previsão do tempo e dados de clima; file transfer (automático/manual); criação da cerca virtual; toque de recolher; rastreamento do veículo (24h). E, por fim, em relação a “dados”, o serviço oferece: integração com outras plataformas do mercado para centralização; compartilhamento de informações; conexão com outras empresas e serviços de agricultura digital. em um banco de dados acessível a diferentes grupos de pessoas (ver Figura 3) e promovendo a construção de infraestrutura de telecomunicações, os fabricantes de maquinário agrícola vão naturalizando um tipo de vida eletrônica na qual toda ação deixa um rastro digital passível de processamento.7 7 Neste caso, os dados podem circular como "commodities", de acordo com a distinção entre "commodity" e "open data", proposta por Tone Walford neste volume. Se já é assim nos setores terciários e secundário da economia, por que não o seria também no primário? Não é "natural ser digital"? A comodidade e a produtividade possibilitadas por este tipo de mediação técnica computacional, em especial quando já vem embarcada no maquinário, fazem com que o seu uso deixe, cada vez mais, de ser um gasto adicional para se tornar um recurso à disposição.

Figura 3-
Representação do portal de telemetria da New Holland na forma da nuvem “My PLM Connect”, rede de transferência de dados entre o “cliente”, sua equipe (“gerente da fazenda” e “consultor da fazenda”), a “central de inteligência” (o “concessionário”) e “terceiros” (o “agrônomo”). Fonte: https://agriculture.newholland.com/lar/pt-br/plm/produtos/gestao-da-fazenda/gerencie-sua-fazenda-com-o-myplmconnect.

Antes, quando o piloto automático não vinha embarcado, era um sacrifício para você vender. Hoje os clientes já estão procurando porque vem de fábrica. Quando entrou de fábrica eles começaram a gostar, porque começaram a ver os benefícios. Hoje, se não tem, eles pedem. (Túlio)

Para Roger, “como agora vem tudo embarcado, é mais fácil porque já tá na máquina e o mapa sobe sozinho”. Agora que as tecnologias digitais estão cada vez mais presentes no maquinário agrícola, é o cliente que “vem atrás de você e diz ‘eu preciso usar, porque eu já paguei’”. “Hoje em dia”, Roger avalia, “os clientes estão mais tecnificados [em especial “quem mexe com cana e hortifruti”], eles aceitam mais a tecnologia”, querem “utilizar a tecnologia [...] para produzir mais”. Cativados pelas telas de todos os tamanhos com gráficos, mapas, animações e dados,8 8 Mais um bom exemplo desse encantamento da AP pode ser encontrado no folheto publicitário “From data to action”, da Intel (2015), que dedicou uma seção apenas para celebrar a forma como “a agricultura, a mais antiga indústria humana, está se tornando o campo de provas privilegiado para sensores, drones, e analíticas de Big Data”, sendo “uma das primeiras indústrias a ser totalmente transformada por dados.” (Intel 2015:15). “Na fazenda de hoje”, a publicação julga, “o fazendeiro é um 'especialista em dados' ['connoisseur of data']” (Intel 2015:17), e produtores rurais “estão realizando os tipos de objetivos que especialistas esperam ainda realizar em quase todas as outras indústrias.” (Intel 2015:15). De fato, ali um fazendeiro norte-americano de Utah chamado Stein é citado comemorando o fato de poder “basicamente virtualizar a lavoura inteira” (Intel 2015:15). Segundo o texto, “analíticas avançadas são necessárias para colocar a 'precisão' na agricultura de precisão” e “descobrir quais variáveis são mais diretamente responsáveis pelo aumento da produtividade da fazenda” (Intel 2015:17) vamos aos poucos nos deixando levar por um “potencial de distração” parecido com aquele que Katherine Kenny et al. (2021KENNY, Katherine et al. 2021. “A sociology of precision-in-practice: the affective and temporal complexities of everyday clinical care”. Sociology of Health & Illness, 43:2178-95.:2191) encontraram na medicina de precisão, e que os fizeram perguntar: “se os efeitos coletivos do encantamento e da aceleração atraem a nossa atenção para a inovação na precisão, então de quais outros processos eles potencialmente nos desviam?”.

“Tirar o produtor da zona de conforto”

Como bem disse, Alistair Fraser (2019FRASER, Alistair. 2019. “Land grab/data grab: precision agriculture and its new horizons”. The Journal of Peasant Studies, 46 (5):893-912.:893): “Produtores de alimentos agora vendem comida e, cada vez mais, dados.” De fato, a transformação da lavoura em um banco de dados propõe, de certa forma, a possibilidade de cultivar e explorar a “produtividade por metro [literalmente] quadrado” não apenas de alimentos, mas também de dados. Como numa fazenda pixelada à la Minecraft, com diferentes cores e tons para diferentes níveis de produtividade, mais do que apenas uma representação de um cultivo, o pixel se torna, ele próprio, um cultivo. “O pixel”, nas palavras de Graham Harwood (2008HARWOOD, Graham. 2008. “Pixel”. In: Matthew Fuller (ed.), Software studies - a lexicon. Cambridge: The MIT Press. pp. 213-7.:214-5), “se tornou tanto um espelho quanto uma lente, refletindo e dando forma a suas próprias realidades”, pois se, por um lado, “aprendemos a dar forma aos nossos pixels para que reflitam cada vez melhor o mundo”, por outro lado, “passamos os últimos 50 anos [i.e., desde os anos 1960] reordenando o mundo para que se aproxime cada vez mais desses pontos fosforescentes”.

Nas palavras de Roger, “no primeiro ano [...] [de assinatura do serviço] você vai ter um dado só”, mas se você “for colhendo[, produtos e dados, por] um, dois, três anos”, você constituirá um banco de dados útil e confiável sobre sua lavoura, capaz de contribuir no seu planejamento e execução: “se você fizer vários anos e sempre o mesmo lugar tiver sempre menos [produtividade] aí você tem certeza que pode ser alguma coisa mais física, ligada ao solo”.

Mapas de produtividade (ver Figura 4) permitem (ou talvez fosse melhor admitir, exigem) intervenções pontuais e eficazes (o termo nativo é “assertivas”), mas sobretudo “tecnicamente mediadas” (Ferreira 2010FERREIRA, Pedro P. 2010. “Por uma definição dos processos tecnicamente mediados de associação”. Revista Brasileira de Ciência, Tecnologia e Sociedade, 1 (2):58-75.), por parte do produtor rural:

Tem uns clientes que fazem assim: onde a produtividade é maior, ele joga mais semente pra otimizar a área. [...] Alguns fazem o contrário, principalmente no caso de ser cascalho, porque no cascalho geralmente nasce menos, então ele joga um pouquinho a mais de sementes para compensar a perda. [...] E temos também [...] tratores novos, que você pode jogar o mapa de prescrição pra gente no site e aí vai direto pro trator. Sem [você] ter que ir lá [até o trator]. (Roger)

Figura 4-
Exemplos de mapas de produtividade de café, laranja e milho. Fonte: Molin (2013MOLIN, José P. 2013. “Agricultura de precisão”. In: Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Agricultura de Precisão - Boletim Técnico. Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo. Brasília: Mapa/ACS. pp. 5-26.:6 Figura 1)

Devido às falhas de cobertura do sinal na fazenda, a transmissão dos dados “não é [em] tempo real de fato”, e o sistema embarcado na colheitadeira “vai mandando” os dados de acordo com uma “taxa de atualização”: “pegou sinal, ele manda”. Isto já é, de qualquer forma, um avanço notável em comparação com a realidade de poucos anos atrás, quando “você ia lá, pegava o pen-drive, copiava, trazia e colocava no computador”. Esse tipo de operação manual causava todo tipo de problema, como Roger depois conseguiu deixar mais claro para nós na “central de inteligência” em Cristalina, a partir do caso da cana-de-açúcar.

Segundo Roger, no caso da cana, “precisam fazer o controle total” e “normalmente tem uma control room [nome usado às vezes para se referir à “central de inteligência”] dentro da usina”: “Vamos supor, tem mil, mil e quinhentas pessoas [trabalhando na colheita da cana]. Não tem como você padronizar mil pessoas. O melhor jeito de padronizar é a tecnologia”.9 9 O uso da tecnologia como forma de padronização do trabalho humano, por exemplo, na colheita de cana-de-açúcar, é um elemento central da monocultura. Atualmente, os sistemas de tecnologia da informação aplicados à agricultura podem ser compreendidos como operadores do "padrão inovação/aniquilação", como exposto por Magda do Santos Ribeiro e Manuel R. S. Luz neste volume. Laymert Garcia dos Santos (2011GARCIA DOS SANTOS, Laymert. 2011. Do humanismo ao pós-humano (entrevista com Diego Viana). Valor Econômico, 17/06/2011.) costuma dizer, citando Richard Buckminster-Fuller, que é “mais fácil transformar o entorno das pessoas e, com isso, mudar as pessoas, do que tentar diretamente mudar a cabeça delas. Se o entorno muda, muda a relação das pessoas com o entorno, então elas mudam.” Até pouco tempo atrás, nos disse Roger, as máquinas agrícolas não vinham com sistemas embarcados, então, apesar de o sistema já existir, “você tinha que convencer o cliente que aquilo era rentável”: “Já teve caso de a gente conversar com o cliente e ele dizer que 'isso tudo não serve pra nada', 'no meu dia a dia isso aqui não adianta nada'”.

No caso da soja, por exemplo, Roger conta que os produtores normalmente só usam mapas de produtividade quando eles já vêm embarcados no maquinário: “Se ele não vier embarcado, eles não gastam dinheiro pra colocar”. Ele nos explica que o custo pra “colocar o chip na máquina” (i.e., para colocar telemetria num trator convencional) é proibitivo (R$ 21.500 por máquina): “fica caro, se ele tiver cinco [máquinas], vai dar 100 mil só com custo de telemetria”. “A precisão”, já disse Wise (1995WISE, M. Norton. 1995. The values of precision. Princeton: Princeton University Press.:225), “é cara”. Segundo Roger, mesmo quando a colhedeira já vem com mapas embarcados (dispensando assim o produtor do pagamento de valores adicionais pela sua instalação), “tem gente que não usa, porque você tem que fazer o processo de ir lá [na máquina], colocar o pendrive e puxar [os dados].” “Então é um gargalo”, conclui Roger, “porque ou o operador não sabe fazer, ou não sabe calibrar o sistema, (que precisa estar calibrado) e tem que ter alguém pra subir o mapa”.

A mesma expressão foi usada pelo técnico veterinário e produtor rural Rubens Donato num painel10 10 O painel “Os desafios da fazenda com a turma do Agro de Negócios” (AgroBrasília, 21/052022; disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hsOfm_b6Stc) teve mediação de Marcella Triacca e Ricardo Araújo, e contou com a participação de Ana Paula Silva; Felipe Moura; Márcia Carneiro; Roseli Giachini; e Rubens Donato. realizado na própria AgroBrasília alguns dias antes - “o nosso gargalo são as pessoas” -, e no mesmo fôlego emendou: “Mas todo mundo vai concordar comigo que a solução também são as pessoas”,11 11 As pessoas, na figura do operador de máquinas, aparecem nos relatos de Roger e Rubens como um "gargalo" para a implantação de sistemas eletrônicos inovadores na agricultura. De maneira semelhante à retratada por Walford (neste volume) em sua pesquisa de campo - onde os equipamentos meteorológicos estavam em negociação permanente com a floresta amazônica através de uma custosa manutenção e calibragem -, na implantação dos equipamentos de precisão na agricultura há a necessidade de uma constante negociação entre os proprietários e os operadores de maquinário para que os aparelhos funcionem como se espera, o que se dá através da implantação de interfaces intuitivas, do trabalho especializado de manutenção destes aparelhos, do rastreamento das ações do operador e do treinamento das pessoas. pois “o nível tecnológico do seu negócio e o nível do entendimento, do conhecimento, do saber das pessoas, [...] têm que andar juntos” e “se você não investir nas pessoas, é melhor você não entrar na inovação”. Investir nas pessoas parece aqui significar “localizar”, como na ergonomia de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997. “7.000 A.C. - Aparelho de captura”. (Trad.: Janice Caiafa). In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Editora 34. pp.111-77.:158, nota 50), “o seu lugar”. Isto também transpareceu quando, no mesmo painel, o engenheiro-agrônomo e agroempreendedor Felipe Moura - que a certa altura disse: “o teu maior ativo não é a terra, são as pessoas” - contou ter comprado um “baita trator” (“tinha seis telas”) para “um negócio de produção de feno pré-secado”, e escolhido “o cara [...] mais cagão da fazenda” (“ele era pedreiro”) para operar o trator, pois “o medo dele era quebrar, então ele tinha muito cuidado”. Esse virou o “melhor operador da fazenda”, até que “um dia, [...] fazendo o feno, esse cara parou o trator, saiu e botou a mão na cabeça”, fazendo Felipe pensar no pior e perguntar “o que que aconteceu?”, recebendo como resposta: “Felipe, mas é tão confortável aqui dentro que me deu um sono...”

Ainda durante o mesmo painel na AgroBrasília, Rubens e Felipe deram exemplos muito emblemáticos desse produtor rural que Roger, Túlio e muitos outros empresários e inovadores se esforçam para cativar e vender produtos e serviços de AP. Rubens, por exemplo, falou “[da]quele produtor que está acostumado a usar a cadernetinha dele no curral, e guardar ali no telhado do curral para não pegar chuva, e com a caneta Bic anotar o número da vaca, e falar se ela está prenha ou não”. Ele também mencionou o produtor que, em lugar de usar o GPS numa “aplicação de barra”, prefere “descer do trator e contar as ruas, porque assim ele tem garantia de que ele não vai deixar faixa na aplicação”. Segundo Rubens, “ele não vai encarar um software ou encarar uma tecnologia nova se a gente não for com muito cuidado, e entrar na porteira dessa fazenda com muita cautela”. Em outras palavras, para tirar esse produtor da “zona de conforto”, é preciso “mostrar para o produtor que uma aplicação faz diferença para ele, como vai fazer diferença, e o resultado disso”, algo que, segundo Rubens, exige “muita responsabilidade” de pessoas que, muitas vezes, “não sujam a botina de terra”: “traz[em] a solução para a gente, mas não sabe[m] qual é a verdadeira dor que a gente está tendo lá”.

Felipe, por sua vez, contou a estória do pecuarista que “tinha todos os dados da fazenda numa prancheta de papelão” que ele “deixa[va] debaixo do banco da camionete”, concluindo: “Se ele usa a informação do papelão, está certo; se ele não usa a informação de uma pesagem com um chip eletrônico, não adiantou nada.” Ele também contou uma de suas primeiras experiências como recém-formado na Esalq/USP, quando tentou convencer um produtor de leite a adotar suas soluções, apenas para escutar dele “eu não quero, porque não preciso, porque [com] o que eu ganho com a minha mulher a gente leva a vida que a gente quer”: “Pensei: 'puta, esse velho está certo'”. A necessidade da precisão, nota-se, nem sempre é auto evidente para os produtores rurais que Roger, nosso interlocutor, busca transformar em clientes. Quem, afinal, precisa da AP?

“É essa variação que faz o erro”

Tirando os operadores das máquinas do circuito físico de transmissão dos dados, das máquinas no campo para as centrais de processamento, a telemetria permite também a prescrição de ações e intervenções diretamente da central para as próprias máquinas na fazenda. Porém, para que isto funcione, além de alguma cobertura da área da fazenda por um sinal de Internet, é importante que as máquinas tenham sua localização geográfica precisamente determinada. Sem isso, o sistema ainda dependerá fundamentalmente de correções realizadas localmente pelos operadores humanos. O problema, nas palavras de Roger, é que como “cada satélite [em órbita] foi enviado em uma época [diferente], às vezes a tecnologia do satélite é mais antiga e com o tempo [...] o relógio dele pode ter alguma variação”: “E é essa variação que faz o erro”. Por isso, sem uma correção eficaz do sinal aberto de GPS, não é possível uma telemetria realmente automática, problema particularmente sensível no cultivo da cana, em que repetidas colheitas podem ser realizadas a partir das mesmas soqueiras, se estas não forem destruídas pelo maquinário.

É porque, no caso da cana, um plantio dura cinco ou seis anos, às vezes até mais, sem ele [o produtor rural] precisar plantar de novo. Ele colhe, depois rebrota, colhe de novo, rebrota e colhe de novo. Então, ele não pode passar em cima [da soqueira da cana] com a máquina. Ele não pode errar, porque, se errar, ele passa em cima e mata a planta, compacta o solo e aí não cresce. Então, você precisa da precisão nas máquinas para elas sempre passarem no mesmo lugar. (Roger)

Como já nos ensinou Roger na feira em Brasília, se o erro de 10 metros dos aparelhos de GPS comuns não chega a comprometer nossa locomoção na cidade, um erro de 25 cm acumulado por algumas centenas de metros pode comprometer seriamente a automação de uma colheitadeira, motivo pelo qual os sistemas de georreferenciamento rurais precisam incorporar procedimentos para a correção dos sinais de satélite. “O que vai fazer a precisão”, precisou a certa altura Roger, “é a correção desse sinal”. E o procedimento mais comum para essa correção é a instalação de antenas fixas no solo, capazes de estabelecer relações estáveis e corretas entre a sua localização e os sinais dos satélites em órbita, detectando assim seus respectivos desvios e permitindo a correção do sinal recebido pelo maquinário agrícola em movimento. Foi exatamente este o sistema que Roger nos apresentou na AgroBrasília, sem, no entanto, naquele primeiro momento nomear: o Centerpoint RTX (Real-Time eXtended) da Trimble.

Apesar de a correção dos sinais de satélite pelo RTX chegar à já pequena margem de erro de “3 cm”, ele é baseado em antenas (chamadas de “bases”) instaladas e administradas centralmente pela empresa (segundo Roger, existem “umas três bases” dessas em território brasileiro, e “quanto mais longe da base, maior o erro”), e por isso é vendido como assinatura de serviço por meio do pagamento de anuidades. Existe, porém, um sistema de correção de sinais de GPS ainda mais preciso do que o RTX, e cujo modelo de negócios não é baseado no pagamento de anuidades. Trata-se do sistema RTK (Real-Time Kinematic), baseado em antenas que devem ser adquiridas pelo próprio produtor rural e instaladas em sua propriedade, e no qual a correção dos dados de satélite chega a uma margem de erro ainda menor, de “2,5 cm” (ver Figura 5). Assim, como Roger habilmente exemplificou, além de permitir ao produtor rural alcançar uma maior precisão nos trajetos percorridos por suas máquinas, o RTK é mais econômico para o produtor: “quando você joga [o RTX] em trinta máquinas, [...] em cinco anos vai dar R$ 1,2 milhão só em sinal”, valor superior ao custo de instalação do sistema RTK nas mesmas máquinas, de forma que “em cinco anos ele se paga tranquilo”.

Figura 5-
Graus de precisão alcançados pela correção do sinal de GPS (imagem fora de escala): desde o sinal aberto captado por dispositivos de navegação convencionais com margem de erro de 10 metros, até o sistema RTK com margem de erro de 2,5 centímetros. Fonte: material publicitário da New Holland - Agriculture sobre o serviço PLM (Precision Land Management). Disponível em: https://assets.cnhindustrial.com/nhag/lar/pt-br/assets/PLM/Telas-PLM/NHAG_FOLHETO_COMPLETO.pdf)

É interessante notar que sistemas como esses, apesar de envolverem monitores capazes de exibir informações para um operador humano, só o fazem por ainda dependerem da supervisão e da intervenção humana. Nas palavras de Richard Wright (2008WRIGHT, Richard. 2008. “Data visualization”. In: Matthew Fuller (ed.), Software studies: a lexicon. Cambridge: The MIT Press . pp. 78-87.:79), “visualizações são criadas para pessoas, e não para máquinas - elas supõem que nem todos os processos computacionais podem ser totalmente automatizados e dispensar a intervenção humana”, pois, “em algum momento do processo, um ser humano vai precisar avaliar ou monitorar o progresso dos cálculos e tomar decisões sobre o que deve ser feito”. “Máquinas”, nota Trevor Paglen (2014PAGLEN, Trevor. 2014. “Operational images”. e-flux, 59:1-3.:1, 3), “não precisam de divertidas setas amarelas animadas e caixas verdes [...] para calcular trajetórias ou reconhecer corpos e objetos em movimento”, “[e]ssas marcas são guias para humanos”.

De acordo com Alexander Galloway (2012GALLOWAY, Alexander. 2012. The interface effect. Cambridge: Polity.:82), “[d]ados não precisam ter nenhuma forma visual”, pois “existem antes de tudo como número, e como número o modo de existência primário dos dados não é visual”. Eles estariam mais próximos daquilo que Paglen (2014PAGLEN, Trevor. 2014. “Operational images”. e-flux, 59:1-3.:1) chamou, à luz da obra de Harun Farocki, de “imagens operacionais”, i.e.: “imagens feitas por máquinas para outras máquinas”. Tais imagens, “em lugar de simplesmente representarem coisas no mundo, [...] estavam [no final do século XX] começando a 'fazer' coisas no mundo”, e atualmente “são arrebatadoramente invisíveis, ao mesmo tempo em que são ubíquas e estão esculpindo a realidade física de maneiras cada vez mais dramáticas.” (Paglen 2014PAGLEN, Trevor. 2014. “Operational images”. e-flux, 59:1-3.:3) Da perspectiva da central de inteligência da Unapel, ou do sistema PLM Connect da New Holland, o campo e a lavoura são dados numéricos, renderizáveis em diferentes formatos e escalas, e que permitem a ação à distância na fazenda, mediada por gráficos, tabelas e mapas pixelados. Nesse cenário, a imagem no monitor na cabine do trator se revela uma solução provisória na tendência ao controle centralizado e total por sistemas que, em realidade, não agem sobre terra, água, ar e seres vivos, mas sim sobre eletricidade, padronizada na forma de dados numéricos. Como bem constatou Bruno Latour (2000LATOUR, Bruno. 2000 [1987]. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. (Trad.: Ivone C. Benedetti). São Paulo: Editora da UNESP. :398-9): “não é de admirar que quem controla a geometria e a matemática seja capaz de intervir em quase todos os lugares”.

Agricultura eletrônica

Começamos nosso passeio pelo universo da AP na tenda da Unapel e da Justi Tratores na feira AgroBrasília, onde aprendemos com Roger que, com a AP, o produtor agrícola colhe não apenas os frutos da lavoura, mas também todo tipo de dados relativos a ela. Depois, na “central de inteligência” da empresa em Cristalina (GO), Túlio e Lis nos mostraram, com algum bom humor, como a telemetria instalada no maquinário agrícola permite o acompanhamento e o registro de todas as atividades tecnicamente mediadas por ele. Aprofundando ainda mais esse processo, enquanto nos apresentava produtos e serviços voltados à análise, à automação e ao gerenciamento remoto da lavoura, Roger nos mostrou como os recursos já embarcados no maquinário têm levado a uma crescente adoção de instrumentos de AP, apontando, porém, dois importantes gargalos: a falta de conectividade rural e de mão de obra qualificada.

Chegando agora ao final de nosso trajeto, cumpre constatar que se, por um lado, em sua forma ideal (como apresentada por seus defensores), a AP desempenha uma polarização hierarquizante da lavoura entre: centros - com telas, computadores, ar-condicionado e trabalhadores qualificados (geralmente nos grandes centros urbanos de cidades do Norte global) - e periferias - com maquinário autônomo ou teleguiado e poucas pessoas trabalhando -, por outro lado, essa polarização acaba não se concretizando na prática por limitações da infraestrutura humana e não humana necessária para que isso ocorra (os “gargalos”). Para que o centro conseguisse agir de forma eficaz na periferia seria necessário que dados numéricos conseguissem transitar entre eles, informando o centro sobre o estado da periferia, e estendendo eficazmente a ação desse centro até sua periferia. Em outras palavras, para que Lis, sob a supervisão de Tulio na central de inteligência em Cristalina (GO), conseguisse orientar o produtor rural em tempo real na operação de seu maquinário na fazenda visando à maximização da produção, seria necessário que dados numéricos gerados pelo maquinário (sobre variáveis do ambiente e de seu próprio funcionamento) viajassem, na velocidade da luz (na forma de eletricidade em cabos de cobre, radiação eletromagnética na atmosfera e luz em fibras óticas), até as centrais de processamento de dados da New Holland e fossem ali registrados, processados e devolvidos às centrais de inteligência locais (como a da concessionária em Cristalina) e ao maquinário na fazenda.

Essa "agricultura eletrônica" vem inserindo as práticas agropecuárias em um regime de funcionamento típico de nossa contemporaneidade, presente em cada vez mais aspectos de nossa vida (do lazer ao trabalho, da produção ao consumo, do campo à cidade); um regime de funcionamento que Antoinette Rouvroy e Thomas Berns (2013ROUVROY, Antoinette & BERNS, Thomas. 2013. “Gouvernementalité algorithmique et perspectives d'émancipation: le disparate comme condition d'individuation par la relation?”. Réseaux, 177:163-96.) chamaram de “governamentalidade algorítmica”, que José van Dijck (2014DIJCK, José v. 2014. “Datafication, dataism and dataveillance: Big Data between scientific paradigm and ideology”. Surveillance & Society, 12 (2):197-208.:203) chamou de “dataficação como paradigma dominante”, e que Donna Haraway (1991HARAWAY, Donna. 1991 [1985]. “A cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century”. In: ___, Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. New York: Routledge. Pp. 149-81.:164) chamou de “a tradução do mundo em um problema de codificação, a busca por uma linguagem comum na qual toda resistência ao controle instrumental desaparece e toda heterogeneidade pode ser submetida à desmontagem, remontagem, investimento e troca”. Um regime de funcionamento que parece poder ser bem descrito pelo conceito latouriano de "centro de cálculo" (cf. Latour 2000LATOUR, Bruno. 2000 [1987]. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. (Trad.: Ivone C. Benedetti). São Paulo: Editora da UNESP. , 2004LATOUR, Bruno. 2004. “Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções”. In: André Parente (org.), Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. (Trad.: Marcela Mortara). Porto Alegre: Sulina. pp. 39-63.): ponto privilegiado a partir do qual é possível agir à distância por meio da circulação de inscrições. Latour chamou essas inscrições, que circulam entre o centro e sua periferia, de "móveis imutáveis", para explicitar sua dupla capacidade de se deslocarem sem se transformarem. Fazendo isto, essas inscrições oferecem, a cada centro, tanto uma representação fiel de sua periferia quanto um meio de ação eficaz sobre ela. No caso da AP, poderíamos chamar de inscrições os dados numéricos que precisam circular, dos sensores no maquinário agrícola na fazenda, até os data-centers da New-Holland (passando por centrais de inteligência locais), e de volta. O produtor rural que monitora e controla seu maquinário e sua lavoura eletronicamente (que tem a fazenda "na palma da mão") está - se não de fato, pelo menos como expectativa - concretizando uma ação-rede, agindo em uma periferia a partir de um centro, por construir neste uma imagem operacional daquela. E mesmo que na maior parte dos casos concretos essa ação-rede não corresponda ao ideal, é possível dizer que a retórica da precisão na AP vem gradualmente tornando mais pensável e enunciável esse cultivo paralelo de alimentos e de dados.

Agradecimentos:

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) pelo apoio financeiro à pesquisa que serviu de base para este artigo.

Referências

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Notas

  • 1
    A quantificação dos atributos dos solos expressa o seu potencial para ser transformado em renda em um momento futuro, mobilizando a terra como um ativo financeiro, de forma análoga à que Vanessa Parreira Perin descreve em artigo publicado neste volume.
  • 2
    Todos os nomes de nossos interlocutores diretos foram alterados para preservar suas identidades.
  • 3
    Global Positioning System (GPS) é um sistema de navegação global por satélite (GNSS) do governo estadunidense, composto atualmente por mais de 30 satélites em órbita. Outros GNSS bastante usados por sistemas de geolocalização na agropecuária brasileira são: GLONASS (Globalnaya Navigatsionnaya Sputnikovaya Sistema), sistema russo com quase 30 satélites em órbita; Galileu, sistema europeu com 30 satélites em órbita; e Compass/Beidou, sistema chinês com mais de 30 satélites em órbita.
  • 4
    Sobre essa mesma dimensão coercitiva do sistema, a produtora rural Roseli Giachini contou no painel “Os desafios da fazenda com a turma do Agro de Negócios” (realizado na AgroBrasília em 21/05/2022) o caso do operador de trator que, incomodado com o alarme acionado pelo sistema de “controle de frota” (“uma parafernália que você põe dentro do trator”) toda vez que ele realizava alguma “intervenção errada”, simplesmente “desligava o apito”, resultando em mais de “30% de sobreposição” - i.e., de trabalho e recursos desperdiçados. Por isso, segundo Giachini, é preciso “trabalhar as pessoas que vão usar a tecnologia”, se não “infelizmente eu vou ter alguns desafios maiores do que se eu tivesse sem a inovação”.
  • 5
    “Big Data no Agro: o que você precisa saber!” Webinar InCeres #18, transmitido no dia 29/11/2018, disponível no canal da InCeres no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Sp1gdSVJFko
  • 6
    Uma amostra da quantidade e da diversidade de dados e informações que a “central de inteligência” da Unapel pode capturar, transmitir e processar pode ser encontrada no folheto publicitário NHAGS132 de especificações técnicas da New Holland para o seu serviço “My PLM Connect” (Precision Land Management), disponível em: https://catalogs.cnhindustrial.com/nhag/lar/Documents/NHAG_SPEC_MyPLMConnect.pdf. O serviço de “monitoramento da frota”, por exemplo, oferece informações sobre: visualização de toda frota cadastrada; recebimento de alertas; personalização de notificações; status da operação; relatórios; localização da máquina; acesso remoto; e horas do motor. Mais especificamente nas máquinas monitoradas, o serviço oferece informações sobre: deslizamento (%); horas de transmissão; pressão do freio a ar (bar); temperaturas do óleo da transmissão e do óleo hidráulico (oC); pressão do óleo da transmissão (bar); e velocidade efetiva (Km/h). Em relação aos motores dessas máquinas, o serviço oferece informações sobre: carga (%); pressões do turbo e do óleo (bar); rotação (rpm); temperaturas do arrefecedor, do coletor de admissão e do óleo (oC); tempo de funcionamento (h); e tensão da bateria (V). Em relação ao combustível/DEF (Diesel Exhaust Fluid; também conhecido como Agente Redutor Líquido de Óxido de Nitrogênio Atomotivo, ou ARLA), o sistema oferece informações sobre: combustível usado (campo e estrada) (L); médias de combustível/distância (Km/L) e de combustível/área (L/ha); taxa e nível DEF (L/h e %); nível de combustível (%); taxa de combustível do motor (L/h); e temperatura do tanque de DEF (oC). Em relação à colheita, o serviço oferece informações sobre: média de fluxo seco (ton/h); peso seco (ton); médias de produtividade molhado e seco (ton/ha); média de umidade (%); abertura do côncavo (mm); peneiras inferior e superior (mm); média de perda da peneira (g); posição do alimentador; velocidades do elevador, do rotor/tambor e do ventilador (m/s); e largura de trabalho. E em relação à pulverização, o serviço oferece informações sobre: taxas alvo e aplicada (L/ha); volume do tanque (L); média de taxa de trabalho (L/ha); e pressão da barra de pulverização (KPa). Mas isso não é tudo. O folheto ainda especifica o serviço de “gerenciamento dos dados agronômicos”, que oferece informações sobre: dados agronômicos de plantio, pulverização e colheita; relatórios gerenciais e operacionais; planejamento da safra; controle financeiro, custos, estoque; calendário; criação de zonas de manejo; taxas fixas e variáveis; criação e exportação de limites, pontos, linhas; inserção de monitoramento de pragas, doenças e insetos; previsão do tempo e dados de clima; file transfer (automático/manual); criação da cerca virtual; toque de recolher; rastreamento do veículo (24h). E, por fim, em relação a “dados”, o serviço oferece: integração com outras plataformas do mercado para centralização; compartilhamento de informações; conexão com outras empresas e serviços de agricultura digital.
  • 7
    Neste caso, os dados podem circular como "commodities", de acordo com a distinção entre "commodity" e "open data", proposta por Tone Walford neste volume.
  • 8
    Mais um bom exemplo desse encantamento da AP pode ser encontrado no folheto publicitário “From data to action”, da Intel (2015INTEL. 2015. From data to action: the Intel guide to analytics. ITC Report. Intel Corporation.), que dedicou uma seção apenas para celebrar a forma como “a agricultura, a mais antiga indústria humana, está se tornando o campo de provas privilegiado para sensores, drones, e analíticas de Big Data”, sendo “uma das primeiras indústrias a ser totalmente transformada por dados.” (Intel 2015INTEL. 2015. From data to action: the Intel guide to analytics. ITC Report. Intel Corporation.:15). “Na fazenda de hoje”, a publicação julga, “o fazendeiro é um 'especialista em dados' ['connoisseur of data']” (Intel 2015INTEL. 2015. From data to action: the Intel guide to analytics. ITC Report. Intel Corporation.:17), e produtores rurais “estão realizando os tipos de objetivos que especialistas esperam ainda realizar em quase todas as outras indústrias.” (Intel 2015INTEL. 2015. From data to action: the Intel guide to analytics. ITC Report. Intel Corporation.:15). De fato, ali um fazendeiro norte-americano de Utah chamado Stein é citado comemorando o fato de poder “basicamente virtualizar a lavoura inteira” (Intel 2015INTEL. 2015. From data to action: the Intel guide to analytics. ITC Report. Intel Corporation.:15). Segundo o texto, “analíticas avançadas são necessárias para colocar a 'precisão' na agricultura de precisão” e “descobrir quais variáveis são mais diretamente responsáveis pelo aumento da produtividade da fazenda” (Intel 2015INTEL. 2015. From data to action: the Intel guide to analytics. ITC Report. Intel Corporation.:17)
  • 9
    O uso da tecnologia como forma de padronização do trabalho humano, por exemplo, na colheita de cana-de-açúcar, é um elemento central da monocultura. Atualmente, os sistemas de tecnologia da informação aplicados à agricultura podem ser compreendidos como operadores do "padrão inovação/aniquilação", como exposto por Magda do Santos Ribeiro e Manuel R. S. Luz neste volume.
  • 10
    O painel “Os desafios da fazenda com a turma do Agro de Negócios” (AgroBrasília, 21/052022; disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hsOfm_b6Stc) teve mediação de Marcella Triacca e Ricardo Araújo, e contou com a participação de Ana Paula Silva; Felipe Moura; Márcia Carneiro; Roseli Giachini; e Rubens Donato.
  • 11
    As pessoas, na figura do operador de máquinas, aparecem nos relatos de Roger e Rubens como um "gargalo" para a implantação de sistemas eletrônicos inovadores na agricultura. De maneira semelhante à retratada por Walford (neste volume) em sua pesquisa de campo - onde os equipamentos meteorológicos estavam em negociação permanente com a floresta amazônica através de uma custosa manutenção e calibragem -, na implantação dos equipamentos de precisão na agricultura há a necessidade de uma constante negociação entre os proprietários e os operadores de maquinário para que os aparelhos funcionem como se espera, o que se dá através da implantação de interfaces intuitivas, do trabalho especializado de manutenção destes aparelhos, do rastreamento das ações do operador e do treinamento das pessoas.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2023
  • Aceito
    03 Jun 2024
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