Ela. Descontrolada. Temperamental. Impulsiva. Contrariada. Difícil de controlar. Assim começa o primeiro capítulo da sensível etnografia de Fleischer sobre os problemas de pressão na Guariroba. A autora cuidadosamente descreve a lida de idosos e idosas com hipertensão arterial sensível (HAS), carinhosamente chamada por Ela, com E maiúsculo. O tratamento da doença com a flexão de gênero no feminino, feminização da patologia, demonstra significados de gênero que a sociedade brasileira atribui à mulher e à doença. Não somente no caso da HAS, quando falamos em doenças, geralmente utilizamos a flexão de gênero feminina.
Ao utilizar o termo problemas de pressão no plural, a autora engloba as mais diversas definições que suas interlocutoras, em grande parte mulheres, desenvolveram para explicar a doença que tinham, ou o estado em que se encontravam:"pressão normal", "pressão silenciosa", "pressão descontrolada" e "pressão emocional" são alguns dos termos empregados pelas mulheres da Guariroba que, apesar de terem sido diagnosticadas com hipertensão, não se consideravam pessoas doentes. Com elas aprendemos sobre as percepções locais de saúde e doença. Fora do centro de saúde, outros sentidos são propostos para as doenças crônicas de longa duração. A doença pode vir e ir embora, mas deixar consequências que marquem a pessoa para o resto da vida; ou ela pode vir e nunca mais ir embora, mas não se mostrar com grandes sequelas. Énesse segundo sentido que Ela era compreendida.
Além das definições de suas interlocutoras para Ela, o trabalho de Fleischer mostra a relação das profissionais de saúde nessas elaborações. Mais do que a relação médico-paciente, bastante discutida nas ciências sociais e na saúde coletiva, a autora nos apresenta "o mundo social dos problemas de pressão" (:27). As profissionais dos centros de saúde, em grande parte, mantinham o foco de atenção nasaúde nos problemas fisiológicos, nos manuais e nas políticas de saúde, desconsiderando questões sociais exteriores ao corpo, impondo a necessidade de manter Ela controlada e atribuindo o insucesso e a não adesão correta ao tratamento à paciente. Um dos argumentos da autora é que essa imponente "biomedicalização" como forma de tratar os problemas de pressão faz com que pouca atenção seja dada ao sofrimento de quem realmente se sente mal. No Brasil, a maior parte das pessoas que são diagnosticadas com HAS é negra e pobre, dependentes dos serviços públicos de saúde e dos remédios das farmácias populares. Uma das teses da autora remete ao fato de que, ao continuar tratando a patologia com soluções paliativas, individuais e apenas fisiológicas, o sistema de saúde não apenas negligencia, mas também banaliza a vida e provoca sofrimento às pacientes.
Trabalhos como o de Fleischer são importantíssimos para se compreender a dificuldade de adesão das pacientes aos tratamentos.Conhecer e desvendar as categorias locais de elaboração de uma doença é peça fundamental nesse processo. Ao aproximar-se do cotidiano das famílias, moradias, condições psicológicas e financeiras, do diagnóstico e do tratamento recomendado pela profissional de saúde, é possível entender as ausências e as falhas nos tratamentos. A partir de estudos como esses, tratamentos que sejam acessíveis às realidades dessas pessoas podem ser pensados, além da reelaboração das campanhas de conscientização para que sejam capazes derealmente surtir efeito.
A Guariroba é um bairro de Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal, e local onde esta etnografia foi gestada. A autora conheceu a Guariroba por meio de um concurso para professor/a substituto da Universidade de Brasília, que estava em expansão,criando um novo Campus nesse bairro. Fleischer fez a seleção como professora de Antropologia do Departamento de Saúde Coletiva, que se instalava no novo braço da universidade em Ceilândia. Ao ser aprovada, desbravar o novo Campus e conhecer a Guariroba tornaram-se desafios. A nova estrutura da UnB ficava no limite com o metrô que, apesar da distância da casa da autora e das suspeitas imaginadas pela comunidade recém-chegada ao bairro, era a melhor forma de se locomover até o local.
Descendo uma estação antes ou depois para caminhar um pouco, a autora foi aos poucosconhecendo os espaços e as pessoas que ali habitavam. A demanda por um projeto de pesquisa surgiu das próprias estudantes que estavam empolgadas com a novidade do Campus. Assim, Fleischer pensou em desenhar algo que lhe permitisse conhecer a Guariroba. Ao se aproximar das pessoas e de suas casas, elapercebeu que ali, naquele espaço,os problemas de pressão eram levados muito a sério:"dizer que está com a pressão alta era um argumento respeitadíssimo" (:25). E descobrir o tipo de pressão de suas interlocutoras tornou-se uma questão, pois istosupõe inventar uma forma de lidar com Ela.
Os especialistas neste tipo de problema são considerados, pela autora, não sóas pessoas que vivenciam os problemas de pressão cotidianamente, "observando e sentindo o próprio corpo", mas tambémas pessoas que estudavam e/ou trabalhavam "para ajudar a controlar essa pressão" (:25). Nesse sentido, conhecimento, experiência e verdade são compreendidos segundoconceitos muito mais amplos e diversos do que somente o conjunto de informações produzidas nos espaços institucionais dos serviços de saúde. Segundo a autora, foi levando a sério o que as pessoas tinham a dizer nas casas, nas ruas e nos centros de saúde da Guariroba que a produção do livro foi possível. A etnografia, compreendida por Fleischer como muito mais do que um método, estando mais próxima de um marco epistemológico da Antropologia, ajudou nas reflexões dos "dilemas diários da convivência com Ela" (:32).
O livro publicado pela EdUFSCar em 2018 tem261 páginas divididas emsete capítulos, além de um prefácio escrito pela professora da Universidade de Fortaleza, Marilyn Nations. A capa traza foto das mãos de uma senhora negra, idosa, sobre uma saia estampada com rosas vermelhas e uma camiseta rosa escura. Imaginamos que a foto seja de uma das moradoras da Guariroba e que convive com Ela. Ao abrimos acapa, nos deparamos com a música de Freddy Mercury e David Bowie, "UnderPressure",e no verso da capa há a estampa de pequenas panelas de pressão. Ao avançar na leitura do livro, com a música ressoando namente, vemos como os trechos selecionados desta música fazem sentido no cotidiano das pessoas que convivem com HAS na Gariroba.
Descontrolada é uma etnografia endereçada à Guariroba e às pessoas que ali moram, trabalham e convivem com Ela. No livro há uma dedicatória muito especial às especialistas nos problemas de pressão. Há um esforço importante da autora para que seu conteúdo chegue às profissionais de saúde, para que elas compreendam o contexto, as realidades e os desafios impostos pelos receituários às pacientes portadoras de HAS.
O capítulo 1 tem o mesmo título do metrô,"Destino Ceilândia", e nos leva para Ceilândia e para aGuariroba. Este capítulo direciona aocontexto em que a etnografia foi produzida e às estratégias de pesquisa utilizadas pela autora: desde as maneiras empregadas para "puxar papo" com alguém até a escrita e a produção de cadernos de campo pela autora e suas estudantes. No capítulo 2, a autora busca contextualizar a hipertensão na vida cotidiana das pessoas que sofrem com Ela, seja como portadoras de hipertensão ou como cuidadoras de alguém que convive com Ela. Fleischer descreve com atenção e riqueza dedetalhes como é ser uma mulher, negra, idosa, nordestina, imigrante e adoecida. A etnografia de Fleischer também nos revela muito sobre o envelhecimento, ao tratar de fatos como aposentadoria, viuvez, menopausa, morte de filho e, também, da doença.
O capítulo3é dedicado às elaborações locais das interlocutoras da pesquisa sobre adoecimento e saúde. Neste capítulo, a autora enfatiza a importância de se considerarem as compreensões culturais e populares na hora de formular o conhecimento clínico sobre a patologia.Os capítulos 4e 5desenham os serviços de saúde e suas estratégias de cuidado. O postinho e o grupo da pressão são aqui os espaços em que as reflexões sobre o atendimento crescem. As narrativas que emergem nos mostram mais um estigma associado a essas mulheres idosas e hipertensas, o de "descontrolada". O grupo da pressão é dividido entre as controladas e as descontroladas. As pacientes deste segundo grupo recebem ainda mais adjetivos: "rebelde", "relaxada", entre outros. São vítimas de broncas e do que a autora denominou de "lógica do controle" pela equipe de saúde: a culpa de estar descontrolada é atribuída à paciente que não segue corretamente as prescrições da equipe.
O livro perpassa a história da pesquisa na Guariroba, as elaborações locais sobre a doença, o postinho de saúde e, no capítulo 6, descreve as alternativas que as interlocutoras inventaram para lidar com Ela. Aqui, autora destaca as estratégias de cura desenvolvidas pelo grupo da pressão, que perpassam os remédios, a comida, as medicações, às vezes diárias, para o controle da bicha e a velhice nos grupos de ginástica, clube das avós, igreja e forró. O capítulo 7- "anotações finais" - se passa em um forró na associação de idosos da Guariroba, onde a autora é convidada a dançar e quando encerra suas reflexões sobre Ela na Guariroba.
Descontrolada é fruto de oito anos de pesquisa na Ceilândia, mais especificamente na Guariroba. A etnografia apresenta com uma riqueza poética os desafios de pessoas idosas ao conviverem com hipertensão arterial sensível. É um livro com grandes questões e soluções epistemológicas, que nos convida e nos incentiva a refletir sobre antropologia e saúde. A leitura é recomendada às antropólogas que se aventuram pelo campo da saúde, mas também àquelas que buscam a inspiração de boas pesquisas para fazer antropologia. E, claro, às profissionais de saúde que procuram compreender os desafios que o trabalho com adoecimento e pessoas idosas lhes impõem.
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Jan 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019