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FERME, Mariane C. 2018. Out of War. Violence, trauma, and the political imagination in Sierra Leone. Oakland, California: University of California Press. 318 pp.

FERME, Mariane C.. 2018. Out of War. Violence, trauma, and the political imagination in Sierra Leone . Oakland, California: University of California Press. 318 pp.

O livro de Mariane C. FermeFERME, Mariane C. 2018. Out of War. Violence, trauma, and the political imagination in Sierra Leone. Oakland, California: University of California Press. 318 pp. é produto de várias décadas de pesquisa etnográfica antes, durante e depois da guerra civil (1991-2002) em Serra Leoa e em outros locais onde os sucessos sociopolíticos do país reverberaram na diáspora de uma boa parte de seus habitantes. Gostaria de começar salientando este aspecto, pois se trata de um investimento profundo e delicado que, em razão dessas caraterísticas, cumpre com sua promessa de oferecer uma perspectiva de longa duração para entender as consequências da guerra. Evidentemente se trata de uma análise atenta às caraterísticas específicas da guerra civil em Serra Leoa, mas que também desenha caminhos interpretativos para outras realidades em que conflitos que se estendem no tempo desafiam a nossa capacidade de compreensão.

A dimensão temporal é um dos eixos do livro e uma das suas mais interessantes contribuições. Não se trata apenas de que a autora tenha se engajado numa pesquisa longa e complexa sobre Serra Leoa e de que tenha conseguido realizar seu trabalho em vários níveis, locais e épocas diferentes - o que já é, por si só, uma caraterística notável. Mas se trata sobretudo do desenho de uma trilha conceitual, por meio da descrição etnográfica, das consequências da guerra e suas marcas no que a autora chama de consciência coletiva e institucional, assim como da atenção aguçada à forma com que esses efeitos se manifestam muito depois do final decretado de um conflito.

Ainda na seara do tempo, como outra das múltiplas dimensões exploradas, a autora analisa a mudança na nossa percepção dos eventos enquanto antropólogas; quer dizer, a autora argumenta que a digestão e a compreensão dos eventos violentos, e os meses ou anos que se passam entre a experiência traumática vivida e o registro produzido, ou revisitado, configuram um tempo com profundas implicações metodológicas na descrição do que acontece na guerra, de suas dinâmicas e significados e de como entendemos as feridas que ela produz. No primeiro capítulo, por exemplo, e se valendo da figura do palimpsesto, Ferme analisa a transformação descritiva em dois livros de autoria de um oficial colonial britânico (Alldridge) e indaga sobre as diferenças no que foi registrado, apagado e percebido na revisita que o autor faz do seu relato original. No impulso desse movimento, ela também explora seu próprio registro de um evento violento durante os primeiros dias de pesquisa de campo em Serra Leoa e a forma com que inconscientemente essa experiência, esquecida por um bom tempo, demarcaria as trilhas do seu trabalho. A reflexão proposta desde o começo do livro nos localiza, dessa maneira, no debate-chave para a antropologia sobre a relação entre visão e voz e entre trauma, memória e testemunho.

De outra parte, a perspectiva de longa duração também faz referência ao modo com que as formas de infligir dor e as relações políticas durante o período colonial aparecem como fantasmas durante a guerra de 1991 a 2002. Desse modo, o livro une o desejo de compreensão de eventos violentos e de suas consequências no cotidiano das pessoas à necessidade de direcionar o olhar para o passado pré-colonial e colonial e para suas persistências no tempo presente. Se o argumento frisa a importância das etapas anteriores à guerra para a compreensão dos seus formatos e desdobramentos, ele não faz diferente com os acontecimentos posteriores ao seu final declarado. Assim, outra das contribuições que faz de Out of war uma leitura obrigatória é a abordagem dos efeitos persistentes e prolongados da guerra na qual o movimento do trauma é desenhado por linhas geracionais. Passado, presente e futuro se unem na análise de Ferme no trauma que reproduz o sintoma traumático original em seu retorno marcado por uma repetição que, inspirada em Freud, a autora chama de compulsória.

O diálogo de Ferme com Veena Das, registrado na bibliografia, fica evidente nos argumentos, acima citados, sobre a relação entre trauma e testemunho. Mas lendo as proposições sobre o trauma nunca terminado, da guerra como final em aberto, encontrei também um vínculo profícuo com o trabalho de Grace Cho. Em Hauting the Korean diaspora também é sugerida uma leitura transgeracional do trauma em que os silêncios e os fantasmas da guerra se manifestam para a geração que nasceu depois, e o fazem no quintal de casa, no cotidiano das relações. A memória da guerra, dessa forma, é elaborada e digerida pelos sujeitos na dimensão do doméstico e não necessariamente nos espaços público-políticos supostamente destinados à elaboração social da guerra como são os tribunais, as comissões da verdade ou os palanques diplomáticos. Sem desconhecer, claro, o papel dessas dinâmicas público-políticas na vida social das comunidades e na produção subjetiva, por exemplo, das vítimas.

A longa duração, então, não se refere somente ao passado pré-colonial e colonial, mas também às experiências das gerações que cresceram no “depois da guerra” e cujo contato e convívio com suas famílias, vizinhos, parentes e múltiplos atores de agências humanitárias, comissões de paz e projetos econômicos neoliberais também são decorrentes do conflito. Como descrito no sexto capítulo, os efeitos da guerra não dizem respeito somente às vidas que foram perdidas, ou aos corpos que foram feridos, mas também às alterações no conhecimento, nas técnicas (agrícolas e de caça, por exemplo), assim como nas formas de interpretar o sentido de seu próprio lugar dos jovens serra-leonenses. Aquelas crianças que foram desarraigadas, que partiram para o exilio ou que cresceram em campos de refugiados, afirma a autora, foram arrancadas não somente de uma área geográfica, senão de uma forma de conhecer, de uma episteme.

Uma boa parte da obra está dedicada, então, ao período pós-guerra civil em que a empresa legal e humanitária também é objeto do escrutínio etnográfico. Coerente com a proposta de construção de uma outra cronologia possível da guerra, a autora não somente analisa o papel social da intervenção humanitária ou os projetos de reconstrução nos moldes neoliberais, mas também as estratégias de sobrevivência de populações para as quais os limites entre guerra e paz são sempre difusos. Além da persistência da miséria e da exploração em tempos de paz, outras manifestações dos sofrimentos e da ansiedade coletiva produzidos no passado fazem ainda mais difícil afirmar a distinção entre esses períodos.

Sobre a organização da obra, ela está dividida em uma introdução, oito capítulos e uma conclusão. Os capítulos um e dois são seguidos, cada um, de um cronotopo que permite aprender na concretude do cotidiano o engenho da imaginação política. Trata-se de figuras somo o Sobel (soldado que é ao mesmo tempo rebelde) ou a Rebel Cross (distorção do nome da Red Cross que indica as suspeitas sobre sua atuação) ou ainda o Corpo Mutilado como vítima quantificável que faz parte do aparato de captura estatística do Estado e da empresa humanitária, apagando a possibilidade de enxergar outras marcas menos evidentes da violência e outras formas de sofrimento e de morte que são terrivelmente parecidas a como elas acontecem nos “tempos de paz”. Essas figuras conectam o espaço e o tempo e condensam indissoluvelmente imagens particulares da totalidade da guerra. O espaço aberto na escrita etnográfica para uma forma mais abrangente de entender o amplo espectro do trauma é, sem dúvida, uma das razões pelas quais o livro é uma contribuição para pensar também outros conflitos e outras guerras, inclusive cujo final foi decretado.

No primeiro capítulo, como já foi mencionado, o foco é a temporalidade. A autora utiliza o termo Belatedness (tardio/atrasado) que dá nome ao capítulo e o explica como uma estrutura premonitória de retraso ou adiamento. No cronotopo que sucede ao capítulo (Prefiguring Shifting Alliances - The Sobel), a autora estuda o papel do rumor na guerra, prestando atenção ao que acontece não só quando ele aparece, mas também aos efeitos da sua desaparição. O evento que existe só no rumor, argumenta Ferme, pode ser revisitado como um movimento antecipatório. Além disso, o capítulo leva a sério a distância temporal na compreensão dos eventos, particularmente aqueles com potencial traumático, salientando como testemunho (visão) e escrita estão articulados com a violência e o trauma.

No segundo capítulo, Wartime rumors. Red Cross as Rebel Cross and other figures of the collective imagination, a autora analisa as contradições produzidas entre a “cultura do secreto” própria do mandato diplomático da Cruz Vermelha e sua ubiquidade no território de Serra Leoa. As práticas dessa organização e seu suposto ocultamento por trás da máscara pública são a porta de entrada para uma delicada análise das figuras da imaginação política. No capítulo também é investigado o papel de atores estatais e da mídia na produção de rumores, de onde a autora parte para falar sobre as dinâmicas da memória coletiva da guerra.

O terceiro capítulo, intitulado Hunters, Warrios and Their Thecnologies, aborda a metamorfose de figuras históricas de caçadores e guerreiros tradicionais durante a guerra civil (1991-2002) que foram se reorganizando até se transformarem em milícias de guerra. A reedição dessas figuras não os transforma, no relato da autora, em transmissores ou preservadores do passado, mas em inovadores orientados para o exterior e para o futuro e interessados em armas de fogo, munições, luzes para a caça noturna etc. O capítulo também se devota ao escrutínio da articulação dessas milícias com projetos e atores políticos concretos, assim como à análise das dimensões territoriais de sua presença.

O quarto capítulo (Sitting on the Land) foca nos esforços implementados para reformar as chefias no contexto de projetos para a redefinição do espaço político nacional em nome do objetivo da descentralização, assim como para imaginar novas formas de governança no período pós-guerra. A autora propõe uma perspectiva histórica das vicissitudes das chefias, mas também se vale da sua própria relação de longa duração com alguns chefes para indagar ambivalências no tratamento a eles dispensado. O capítulo é basilar para quem se interessa pela organização sociopolítica contemporânea, pelas configurações coloniais e sua captura pelo Estado, assim como pela modificação de todos estes aspectos com a introdução de novos mecanismos de acesso às terras e aos recursos marcados pela liberalização econômica e pela presença de inversores estrangeiros.

Refugees and Diasporic Publics é o quinto capítulo que explora a transformação dos migrantes de Serra Leoa em refugiados durante a guerra civil e o peso na vida política nacional pós-guerra das pessoas na diáspora. De forma sugestiva, os refugiados são encarados como agentes de territorialização, o que permite à autora reformular o vínculo tradicionalmente proposto entre política e territorialidade. O conceito de soberania se expande para além dos limites geográficos e o Estado amplia sua forma de criar vínculos jurídico-políticos e imaginação nacional por meio de processos de governo que atingem as populações em outros territórios e que permitem a produção de uma comunidade cosmopolita serra-leonense.

O sexto e sétimo capítulos discorrem sobre duas figuras arquetípicas que embasaram boa parte da ação e da intervenção das instituições humanitárias. Sob o título de Child Soldiers and the Contested Imaginary of Community after War, o sexto capítulo discute a forma com que as agências humanitárias produziram discursos sobre as famílias ou as comunidades locais como configurações harmoniosas e ideais para a reintegração e a reestruturação dos vínculos quebrados durante a guerra e, como decorrência, para a unidade nacional. A análise foca no contexto de justiça transicional marcado pela presença do Tribunal Especial para Serra Leoa (SCSL) e nas discrepâncias entre sua própria concepção de direitos e o entendimento dos interlocutores de pesquisa sobre esse novo arsenal discursivo.

O capítulo sete, Forced Marriage and Sexual Enslavement, continua com a discussão das temporalidades que são produzidas nessas pedagogias da fala e da justiça próprias dos tribunais, mas também traz valiosas contribuições para indagar conceitual e legalmente a prática do matrimônio forçado. Além de problemas e tensões entre as ideias de consenso individual e consenso coletivo, a autora aponta para uma forma de congelamento jurídico de experiências que são muito mais complexas do que o poder descritivo das categorias que tentam apreendê-las e puni-las. Em ambos os casos, discutidos nos capítulos seis e sete, as histórias traumáticas das vítimas, apesar da intervenção de tribunais e agências humanitárias, continuam abertas.

Finalmente, o oitavo capítulo aborda os traços materiais dos enredos chinês-serra-leoneses e a sua inscrição visual na paisagem, bem como as práticas terapêuticas e de consumo resultantes da interação entre esses grupos. A autora enfatiza tanto as continuidades históricas, quanto as transformações qualitativas nas interações da China com Serra Leoa, explorando a forma com que essas trocas têm formatado os imaginários coletivos de ambos os grupos.

Há em cada capítulo estratégias metodológicas e abordagens diferenciadas que também fazem da leitura do livro uma caminhada proveitosa. Aliás, o livro encerra com uma reflexão metodológica do que significa fazer etnografia através do tempo e em diferentes níveis analíticos. Estamos diante de uma etnografia feita em muitos tempos, muitos ritmos e muitos locais diferentes que incluem, por exemplo, longas conversas em diversos locais físicos da geografia serra-leonense, mas também discussões de grupos virtuais na diáspora, ao mesmo tempo em que de suas folhas emerge o trabalho de análise fotográfico ou ainda historiográfico. Se o convite temático não tiver sido o suficiente, a delicadeza e a criatividade metodológicas serão, com certeza, um ganho para quem ler a obra.

Referência

  • FERME, Mariane C. 2018. Out of War. Violence, trauma, and the political imagination in Sierra Leone Oakland, California: University of California Press. 318 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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