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Das “amas” às “mães de leite”: reflexões decoloniais sobre a prática da “amamentação cruzada”

From “wet nurses” to “nursing mothers”: decolonial reflections on the practice of “cross-nursing”

De “nodrizas” a “madres de leche”: reflexiones decoloniales sobre la práctica de la “lactancia cruzada”

Resumo

O artigo versa sobre a prática tecnicamente chamada de “amamentação cruzada”, isto é, quando uma mulher amamenta um bebê que não foi ela quem gerou. A reflexão toma como ponto de partida a experiência de seis mulheres da favela da Rocinha (RJ), que amamentaram ou tiveram seus filhos aleitados por outras. A “amamentação cruzada” é contraindicada pelo Ministério da Saúde desde a década de 1990, devido à possibilidade de transmissão de doenças pelo leite materno, principalmente do vírus HIV. A pesquisa aponta que a normativa, contudo, não chegou a promover a interrupção da prática na favela, onde é comum o compartilhamento dos cuidados das crianças. Nesse cenário, a “amamentação cruzada” pode se configurar como uma, dentre outras atividades, que integram os cuidados. Em diálogo com o referencial teórico decolonial, o artigo propõe, ainda, uma comparação com a experiência das chamadas “amas de leite”, altamente disseminada no Brasil no período escravocrata.

Palavras-chave:
Amamentação; Pensamento decolonial; Mulheres negras; Favela; Maternidade

Abstract

The article deals with the practice technically called “cross-nursing”, that is, when a woman breastfeeds a baby that she did not give birth to. The reflection takes as its starting point the experience of six women from the Rocinha favela (RJ), who breastfed or had their children breastfed by others. “Cross-breastfeeding” has been contraindicated by the Ministry of Health since the 1990s, due to the possibility of disease transmission through breast milk, especially the HIV virus. The research points out that the regulations, however, did not promote the interruption of the practice in the favela, where sharing child care is common. In this scenario, cross-nursing can be configured as one, among other activities, that integrate care. In dialogue with the decolonial theoretical framework, the article also proposes a comparison with the experience of so-called “wet nurses”, highly disseminated in Brazil during the slavery period.

Keywords:
Nursing; Decolonial thinking; Black women; Slum; Motherhood

Resumen

El artículo trata sobre la práctica técnicamente llamada “lactancia cruzada”, es decir, cuando una mujer amamanta a un bebé que no dio a luz. La reflexión toma como punto de partida la experiencia de seis mujeres de la favela Rocinha (RJ), que amamantaron o hicieron amamantar a sus hijos por otras personas. La “lactancia materna cruzada” está contraindicada por el Ministerio de Salud desde los años 1990, debido a la posibilidad de transmisión de enfermedades a través de la leche materna, especialmente el virus VIH. La investigación señala que la normativa, sin embargo, no promovió la interrupción de la práctica en la favela, donde es común compartir el cuidado de los niños. En este escenario, la lactancia materna puede configurarse como una, entre otras actividades que integran el cuidado. En diálogo con el marco teórico decolonial, el artículo también propone una comparación con la experiencia de las llamadas “nodrizas”, muy difundidas en Brasil durante el período de la esclavitud

Palabras clave:
Lactancia materna; Pensamiento decolonial; Mujeres negras; Favela; Maternidad

Introdução

Esse artigo trata de um fenômeno relativamente comum na sociedade brasileira, porém, de algumas décadas para cá, bastante invisibilizado, sendo ele: o ato de uma mulher amamentar um bebê que não foi gerado por ela própria, o que tem sido tecnicamente chamado de “amamentação cruzada”.

Deparei-me com essa prática durante uma pesquisa na favela da Rocinha, Zona Sul do Rio de Janeiro, que iniciei no segundo semestre de 2019 e foi interrompida pela pandemia, tendo sido retomada em agosto de 2023.1 1 Ao longo do artigo, me referirei à retomada da investigação, após a pandemia, como sendo a segunda etapa da pesquisa. Na primeira etapa da pesquisa, entrevistei seis mulheres que tinham amamentado crianças além de seus filhos biológicos e/ou cujos filhos tinham sido amamentados por outras. Foi esse material que, principalmente, serviu de base à elaboração desse artigo.

A “amamentação cruzada” é contraindicada pelo Ministério da Saúde (MS) desde a década de 1990, devido à possibilidade de transmissão de doenças através do leite materno. Com o intuito de analisar como essa normativa reverbera “nas pontas”, dentre as entrevistadas há mulheres de diferentes gerações, isto é, que viveram suas experiências de amamentação antes e depois da contraindicação pelo MS. O objetivo é observar se houve diferença na forma como lidaram com a prática e na percepção acerca dos riscos.

Com a pesquisa, tentei ainda compreender as circunstâncias em que as mulheres recorreram à “amamentação cruzada” e os sentidos que atribuem à prática. Além disso, procurei inferir se o ato de amamentar outras crianças veio a produzir (ou não) relações de parentesco, como sugere o uso das expressões “mãe” e “filho de leite”, que costumam ser empregadas ali para se referir à mulher e ao bebê que, mesmo não sendo seu filho biológico, foi amamentado por ela. A investigação ainda está em andamento e pretende tratar dessas e outras questões, que serão exploradas ao longo do artigo.

Devo dizer que, ao buscar bibliografia sobre o tema, fui remetida à experiência das chamadas “amas de leite”, altamente disseminada no Brasil durante o período escravocrata. A comparação entre esses dois contextos foi inevitável, o que me levou a refletir sobre as aproximações e, principalmente, sobre os distanciamentos entre as “amas de leite” do passado escravocrata e as “mães de leite” com as quais tive contato na Rocinha. Nessa parte da análise, traço um diálogo com o referencial teórico decolonial, em especial com a produção de Aníbal Quijano e de autoras feministas, como María Lugones e Rita Laura Segato.

Minha intenção é, a partir do contexto investigado, identificar como forças supostamente idênticas de dominação (em especial, modernidade-colonialidade e capitalismo) assumem contornos inesperados e resultam em experiências singulares (Fonseca 2006FONSECA, Claudia. 2006. “Classe e a Recusa Etnográfica”. In: C. Fonseca e J. Brittes (orgs.), Etnografias da Participação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.). Isto porque, ainda que determinados “pedaços da realidade possam ser tomados de empréstimo ou até impostos por outros, são amarrados pela lógica de bricolagem localmente e historicamente evoluída do próprio grupo” (Ortner 1995ORTNER, Sherry B. 1995. “Resistance and the Problem of Ethnographic Refusal”. Comparative Studies in Society and History. (37-1):173-193.:176).

Redes de cuidado: um clássico e alguns estudos contemporâneos

Sendo a “amamentação cruzada” uma dentre outras atividades que integram o cuidado, elenco nesta seção algumas pesquisas sobre essa temática.

No clássico “Caminhos da adoção”, Claudia Fonseca (1995FONSECA, Claudia. 1995. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez.) discorre sobre dinâmicas familiares e de cuidado em grupos populares, em especial sobre a “circulação de crianças”, isto é, a prática de crianças transitarem entre as casas de avós, madrinhas, vizinhas e “pais verdadeiros”, passando boa parte de sua infância em casas que não àquelas de seus genitores. A autora desenvolveu sua pesquisa na década de 1990 em uma vila de invasão, em Porto Alegre, onde constatou que mais da metade das mães entrevistadas tinha, em algum momento, dado um de seus filhos para ser criado por outra pessoa. Longe de ser um fenômeno localizado, a circulação de crianças se apresenta como uma prática comum entre famílias de baixa renda, como apontam outros estudos.

A autora reconhece que a privação econômica é um fator-chave, mas não é capaz de explicar tudo, sendo necessário levar em conta outros aspectos: “Mesmo se certas práticas se iniciaram como estratégias de sobrevivência ad hoc, é inconcebível que, depois de dez gerações, não tenham adquirido um significado específico integrado a um modelo cultural” (1995FONSECA, Claudia. 1995. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez.:17). É nessa toada que avalia que a prática de circulação de crianças se converteu em uma estrutura básica da organização de parentesco em grupos de baixa renda.

Na dissertação “Ficar com: parentesco, criança e gênero no cotidiano”, Camila Fernandes (2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.) apresenta os resultados de uma etnografia no Morro do Palácio, em Niterói. Na pesquisa, Fernandes se propõe a fazer uma reflexão sobre o cuidado e busca apontar como o compartilhamento deste entre as pessoas que integram a rede promove convívio, intimidade e relacionalidade, ressignificando a noção de parentesco consanguíneo. De acordo com a autora, o cuidado nas camadas populares, longe de estar disseminado nos espaços institucionais e especializados, muitas vezes conecta “um conjunto de casas, pessoas e objetos através dos quais as relações de parentesco, vizinhança e amizade adquirem sentido” (2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.).

As ambivalências que atravessam as relações de cuidado são fortemente exploradas pela autora, como na menção ao sentimento de “apego” expresso por algumas cuidadoras, o que sugere uma densa carga afetiva, muitas vezes geradora de conflitos na relação com a família da criança. De diferentes maneiras, Fernandes (2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.) descreve como as crianças carregam a ambiguidade de serem, ao mesmo tempo, “um assunto pessoal, já que pertencem sempre a alguém” (2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.:37), e seus cuidados estarem na maior parte do tempo sendo compartilhados, o que as converte, de certa forma, em “bens coletivos”.

No livro “Figuras da causação”, Fernandes (2021FERNANDES, Camila. 2021. Figuras da causação: as novinhas, as mães nervosas e mães que abandonam os filhos. Rio de Janeiro: Telha.) apresenta a pesquisa que desenvolveu durante o doutorado, tendo feito campo nos morros Mineira e São Carlos, no Rio de Janeiro. Se no estudo anterior a autora se debruçou sobre as redes de cuidado de crianças, nessa obra ela versa sobre as mulheres cujas figuras, fortemente estigmatizadas, são associadas ao descuido: as “novinhas”, as “mães nervosas” e as “mães abandonantes”. A ideia de uma “maternidade errada” atravessa essas mulheres, seja pelo excesso (de filhos, de sexualidade, de provocação) ou pela falta (de autocontrole, de regras, de recursos) ante a “ausência ativa” masculina e a precariedade das políticas públicas. A autora procura captar como essas figuras são percebidas e referidas nos discursos do senso comum, expressos tanto nas instituições estatais quanto nas interações do cotidiano. No imaginário local, uma figura gera a outra: a “novinha” tem “filho cedo” e o abandona ou, quando permanece com a criança, a “maltrata”, porque “não sabe ser mãe”.

Em “Nem bom, nem mau: reflexões sobre ‘arranjos de cuidado’ materno em dois contextos de pesquisa”, Natália Fazzioni (2021FAZZIONI, Natalia. 2021. “Nem bom, nem mau: reflexões sobre “arranjos de cuidado” materno em dois contextos de pesquisa”. Synthesis, Rio de Janeiro, v. 14, n.2, p. 18-27. ) apresenta uma análise sobre experiências de maternidade e práticas de cuidado tomando como ponto de partida duas situações observadas em contextos de pesquisa distintos: uma junto a uma unidade de atenção primária em saúde no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, e outra em uma plataforma virtual sobre saúde do bebê e da gestante. Fazzioni procura destacar como normas e moralidades são negociadas e ressignificadas a partir das situações cotidianas, levando em conta “possibilidades, desejos e improvisos”. Durante a pesquisa no Complexo do Alemão, a autora observou, diversas vezes, conflitos entre os profissionais de saúde e as mães, uma vez que estas nem sempre aderiam às prescrições médicas, pois o que era considerado como o melhor para a saúde de seus filhos por parte dos profissionais, nem sempre era o que elas consideravam como possível ou mesmo desejável, considerando seus valores e visão de mundo.

Dando início à pesquisa

Julho de 2019. Interessada em elaborar um projeto de pesquisa sobre maternidade nas camadas populares, entrei em contato com Marcelle2 2 Os nomes das entrevistadas foram substituídos por outros para garantir seu anonimato. , mulher negra e “cria” da Rocinha. Nos conhecemos por intermédio de Davi, que trabalha na universidade onde leciono e era morador da favela.

Fiz algumas visitas à casa de Marcelle e também à de Nirinha e Janaína (respectivamente, sua mãe e a companheira dela, a quem Marcelle chama de “vó”), entre os meses de julho e dezembro daquele ano.3 3 Foram ao todo 12 visitas nessa primeira etapa da pesquisa. Marcelle, Nirinha e Janaína são consideradas importantes referências em suas redes de relações. As três são mães de santo e Marcelle, como será exposto adiante, ainda possui uma trajetória diferenciada naquele contexto, pois possui formação universitária e trabalha como assessora parlamentar. No dia a dia, suas casas eram frequentadas por muitas pessoas, dentre elas, várias crianças. Minha ideia era, a partir desse estudo exploratório, formular algumas questões que pudessem ser desenvolvidas, de modo mais consistente, em uma pesquisa de pós-doutorado.

Nas primeiras vezes em que fui até Marcelle, combinamos o ponto de encontro em um mercadinho, para dali seguirmos por entre os becos até sua casa. Em uma dessas ocasiões, Marcelle mandou, em seu lugar, três meninas para me buscarem. No caminho, aproveitei para puxar assunto: “O que vocês são da Marcelle?”, perguntei despretensiosamente, enquanto elas me guiavam pelos becos. “Somos filhas”, as três me responderam. Fiquei surpresa com a resposta, pois, até onde tinha notícias, Marcelle possuía dois filhos meninos - um deles de 3 anos, que à época amamentava.

Assim que cheguei à casa de Marcelle, fui tirar a dúvida. Com muita naturalidade, ela me respondeu que as três eram “filhas de leite” e que, além delas, tinha ainda outras. Michelle amamentou o primeiro filho até os 4 anos e o segundo ainda mamava e, portanto, tinha “filhos de leite” com idades variadas.

Foi a partir dessa experiência que decidi que iria desenvolver uma pesquisa sobre a prática da “amamentação cruzada”. E justifico a escolha desse termo: apesar de a expressão ser técnica, utilizada no âmbito da saúde e nunca referida pelas mulheres ali, achei que fazia mais sentido incorporá-la, uma vez que o termo “mãe de leite” pode sugerir que o aleitamento envolve, necessariamente, a produção de parentesco. Na prática, pude constatar que o ato de amamentar outros bebês pode ou não envolver experiências de exercício cotidiano da parentalidade - implicando em determinadas obrigações e expectativas - a despeito do uso de termos que fazem alusão a relações de parentesco.

Feita essa ressalva, explico que foi por meio da rede de relações de Marcelle que, na primeira etapa da pesquisa, entrei em contato e entrevistei outras 5 moradoras da Rocinha.4 4 Algumas entrevistas foram complementadas na segunda etapa da pesquisa. Todas elas, além de terem tido os filhos amamentados por outras e/ou aleitado outros bebês que não os gerados por elas, contaram também ter “mães de leite”, o que indica que esta é uma prática que atravessa gerações ali. Passo, a seguir, a uma breve caracterização das entrevistadas:

***

Marcelle, 31 anos, é negra, umbandista, tem 2 filhos biológicos e vive em união estável com o companheiro, que trabalha como segurança em um bairro vizinho à favela. Sua trajetória é bastante incomum naquele contexto. Ela formou-se em Recursos Humanos em uma faculdade particular e trabalha como assessora parlamentar. Sua vida sofreu uma grande reviravolta depois que o tio, irmão de sua mãe, desapareceu após ter sido visto pela última vez em uma abordagem policial. Ela liderou a mobilização, a qual levou os membros da família a fecharem um dos principais túneis da cidade, gerando grande repercussão na mídia. Por conta desse episódio, teve contato com parlamentares e foi convidada a trabalhar como assessora. A despeito do aumento da renda que o novo cargo lhe possibilitou, Marcelle está totalmente imersa na cultura local e compartilha da lógica de obrigações morais que caracteriza a rede de parentesco nas camadas populares (Sarti 2011SARTI, Cynthia. 2011. A Família como Espelho: um Estudo sobre a Moral dos Pobres. São Paulo: Cortez .). É uma referência importante na família e considerada por muitos como uma espécie de conselheira.

Nirinha, 58 anos, é mãe biológica de Marcelle e de Wilson e mãe adotiva de Vicente. Vive há várias décadas em união estável com Janaína. As duas sempre acolheram em casa amigos e parentes que temporariamente precisavam de abrigo. O local (composto por sala, 2 quartos, cozinha e banheiro) costumava ser bastante movimentado e era lá que ficavam algumas crianças durante o dia, aguardando que suas mães as buscassem depois do retorno do trabalho. Na parte debaixo da residência, há um terreiro de Umbanda onde ela é mãe-de-santo e coordena os trabalhos com Janaína. Nirinha é negra e trabalhava como diarista no início da pesquisa. Durante a pandemia sofreu um AVC, que lhe afetou um lado do corpo, dificultando sua mobilidade. Hoje está aposentada.

Janaína, 65 anos, é mãe de 4 filhos, anteriores à sua relação com Nirinha. Teve o primeiro aos 14 anos. Ela se identifica como negra: “Eu amo a minha cor. Sou uma preta com muito prazer!”. Interrompeu os estudos no 2º ano do fundamental, após a morte da mãe, e trabalhou por décadas como babá e doméstica em “casa de família”. Se aposentou depois de um acidente de trabalho, que provocou a ruptura do tendão da mão.

Inara, 31 anos, é umbandista, solteira e estava desempregada na época da entrevista, mas costumava trabalhar como cortadeira em uma confecção. Indagada sobre sua identificação étnico-racial, ela respondeu na ocasião: “costumo falar que sou negra, mas negra eu não sou. Sou parda, amarela, algo do tipo”. Tem ensino médio completo e é mãe de Vanessa, que adotou ao nascer. No passado, morou temporariamente com sua mãe e irmãs na casa de Nirinha e Janaína, depois da interrupção do aluguel social, que a família passou a receber por ter ficado desabrigada em uma forte chuva. É madrinha de um dos filhos de Marcelle, sendo as duas, portanto, comadres.

Silvia, 34 anos, é mãe de José Daniel, e era companheira de Wilson, filho de Nirinha. Ela tem o ensino médio incompleto e costumava trabalhar como vendedora, mas estava desempregada na época. Define-se como “católica misturada” e tem dificuldades em se autodeclarar racialmente.5 5 “Sou amarela cor de peido”, disse em tom de brincadeira. Ao que depois acrescentou: “Não, eu sou negra... mas eu sou amarela. Na minha certidão de nascimento está escrito parda, mas parda é papel”. É bastante comunicativa e bem-humorada. No último ano, separou-se de Wilson e teve um bebê com um novo companheiro.

Angélica, 33 anos, solteira, mãe de 3 filhos biológicos (na época com 11, 9 e 3 anos). Trabalha como auxiliar de serviços gerais. É adepta do candomblé e se declara negra. Sua mãe, já falecida, era muito amiga de Nirinha e, quando criança, Angélica foi “criada junto” com Marcelle. Ela tem muitas irmãs e, na infância e adolescência, Marcelle frequentava diariamente sua casa. A mãe de Angélica foi “mãe de leite” de Marcelle.

Após essa breve caracterização, dou início a essa reflexão sobre a prática da “amamentação cruzada”, compartilhando alguns fragmentos do cotidiano que me foram narrados.

“Filhos de leite”: mesmo termo, diferentes significados

Dezembro de 2007. Marcelle deu à luz ao seu primeiro filho. Poucas semanas depois, Angélica se tornou mãe. Na época, com 19 e 20 anos, respectivamente, as duas, amigas desde a infância, se reuniam na casa de Marcelle para compartilhar os cuidados com os bebês e também a amamentação. Enquanto uma descansava, a outra ficava responsável por trocar fraldas e aleitar as crianças.

Além de seus bebês, Marcelle e Angélica amamentavam regularmente também Vanessa, filha adotiva de Inara, que nascera 21 dias antes de Marcelle dar à luz. Naquele período, Inara e Marcelle moravam na casa de Nirinha e Janaína, as matriarcas da família.

Para completar, Angélica e Marcelle se encarregavam ainda de amamentar uma quarta criança: Maria Elisa, recém-nascida que tinha sido rejeitada pela mãe biológica e que era levada até elas diariamente pela avó, uma amiga de Nirinha que morava na vizinhança.

A mãe de Maria Elisa era muito amiga de Angélica, mas elas romperam relações durante a gestação e até hoje não reestabeleceram contato. Essa situação, contudo, não impediu que Maria Elisa se tornasse “filha de leite” de Angélica, tendo a avó da menina desempenhado um papel fundamental na construção do vínculo. De fato, pelo contato com a “mãe de leite” se dar nos primeiros meses ou anos de vida da criança, essa lembrança não costuma ser guardada por ela, cabendo aos adultos a transmissão dessa memória6 6 Há casos em que o vínculo entre a criança e a mãe de leite é intenso e se mantém de maneira contínua ao longo da vida. Porém, nem sempre isso acontece. Quando não há um contato frequente, a criança e/ou adulto em geral sabe que foi amamentado por outra pessoa por meio de relatos e, algumas vezes, também de registros fotográficos. “Minha mãe sempre deixou claro: ela te amamentou, cuidou de você, na época em que eu trabalhava”, disse Silvia sobre sua “mãe de leite” na infância. Chamo atenção para um caso, narrado por Nirinha, que foge à regra. O vínculo entre ela e o “filho de leite” havia se perdido, pois a criança havia se mudado da favela com sua família, e foi retomado anos depois, quando esse jovem, que apesar do pouco contato, manifestava um grande carinho por ela, soube por meio de uma entidade espiritual que Nirinha havia sido sua “mãe de leite”. .

Essa trama complexa de compartilhamento de cuidados algumas vezes ressignifica a noção de parentesco consanguíneo (Fernandes 2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.). Como é possível notar a partir dos relatos, a “amamentação cruzada” é parte das atividades que integram o cuidado. E tenho impressão de que, quando a prática ocorre de modo regular e envolve mulheres que já possuem vínculo afetivo, pode vir a consolidar laços de amizade, traduzindo-os em termos de família, isto é, de obrigações e expectativas. É como se a amamentação adicionasse mais uma “camada” à relação que, em um primeiro momento, dizia respeito mais aos adultos envolvidos do que propriamente à criança, como nas situações de compadrio. Em casos como esse, a relação entre “mães e filhos de leite” pode implicar na produção de parentesco e envolver outras obrigações de cuidado para além do gesto de amamentar.

Em uma das vezes em que nos encontramos, na segunda etapa da pesquisa, perguntei à Vanessa, hoje adolescente e “filha de leite” de Marcelle, sobre a relação das duas. Ela respondeu que Marcelle é sua mãe e, como exemplo disso, comentou que ela sempre busca presenteá-la com o que também oferta a seus filhos biológicos. Ela citou o fato de, há pouco tempo, Marcelle ter dado um celular de última geração para seu filho mais velho e que, depois disso, havia conversado com Inara, mãe de Vanessa, para que comprassem juntas um aparelho semelhante para ela. Seguindo a mesma toada, numa das vezes em que conversei com Marcelle, ela contou que, numa ocasião em que Inara estava sem trabalho e não tinha condições de pagar a explicadora de Vanessa, Marcelle contribuiu com esses custos. Como é possível notar, a relação entre as duas extrapola a amamentação e envolve outras expectativas e obrigações, inclusive monetárias. De fato, “a intimidade e a atividade econômica complementam-se”, como aponta Viviana Zelizer (2011:13).

Contudo, é importante destacar que, na maioria dos casos observados, a “amamentação cruzada” não produziu esse tipo de vínculo. Alguns fatores parecem conduzir a isso, como o fato de a amamentação ter ocorrido apenas de modo pontual, de a mulher e a criança terem perdido contato (como em situações de mudança de moradia, por exemplo) ou de não haver uma relação mais sólida entre a mãe biológica e aquela que amamentou seu bebê.

Mesmo não se tratando necessariamente de parentesco, Nirinha, hoje idosa, afirma que o ato de amamentar outras crianças propicia a construção de uma relação de “respeito”, que se traduz em autoridade e hierarquia, o que ela enxerga como positivo:

Nirinha: Amamentou, tá certo, chupou seu sangue, mas não quer dizer que é da família. É um filho de leite. E o bonito é que é respeitado e considerado como um filho de leite, tanto da sua parte quanto da parte deles. Muitos que eram pequenos, recém-nascidos, que nem me conheciam nem nada, mas aí a mãe fala: essa respeita que essa é sua mãe de leite, entendeu? Aí é ‘bença’, onde vê é ‘bença’, é ‘tudo bem com a senhora’? Dentro daquele respeito. Isso é muito importante.

Olivia: Então, quando você amamenta uma criança não necessariamente você tem outras obrigações em relação a ela?

Nirinha: Não, mas a gente já considera ter, porque é filho de leite e é bom se considerar ter alguma coisa com aquela pessoa porque é onde fica o respeito, entendeu? Mora o respeito, a educação, você fala uma vez só. Se tiver brigando, já é homem, já brigando, discutindo, você chegou, eles olham pra sua cara, sabe que você não é nada da família, mas você é uma mãe de leite que amamentou eles, nunca teve desavença, sempre chamou a atenção na hora certa. Então é bom eles ter esse laço (...). E a gente também sentir por isso, entendeu? Eu acho que é muito importante.

Além do “respeito”, entre as idosas essa relação garante ainda sua inserção em uma rede de apoio, que pode ser acionada em meio aos desafios da velhice. Na segunda etapa da pesquisa, pude presenciar uma situação que aponta nesse sentido. Tinha encontrado Nirinha e Marcelle no banco e íamos subir juntas para a favela. Para que Nirinha, que teve um AVC e hoje usa muletas, pudesse descer mais perto do beco e não precisasse caminhar muito, Marcelle chamou um mototáxi. Com dificuldade, auxiliamos Nirinha a subir na moto e demonstrei preocupação em como ela faria para descer, já que não estaríamos presentes no momento do desembarque, pois iríamos aguardar a van. Marcelle então me disse que não me preocupasse, pois teriam muitas pessoas para auxiliá-la, mencionando, dentre elas, um “filho de leite” que trabalha num salão em frente ao local onde ela iria desembarcar.

Mesmo não ensejando relações de parentesco, o ato de amamentar pode prover àquela mulher uma rede de proteção e amparo importante em momentos da vida em que a situação se inverte, e pode ser ela quem necessite de cuidados.

Sobre normatizações e possibilidades de agência

O ano era 2013. Angélica e Marcelle, por coincidência, outra vez ficaram grávidas na mesma época e deram à luz bem perto uma da outra. A essa altura, ambas trabalhavam em empregos formais. Marcelle como assessora parlamentar e Angélica como auxiliar de serviços gerais. Porém, o emprego de Angélica lhe concedia quatro meses de licença-maternidade e, o de Marcelle, seis. Ao retornar ao trabalho, Angélica deixou o bebê sob os cuidados da irmã, que até hoje toma conta de crianças. Ela se encarregava de levar diariamente o sobrinho à casa de Marcelle, em frente à sua, para que ela pudesse amamentá-lo.

Contar com a rede de apoio para prover a amamentação é uma prática, naquele contexto, que vem de longa data, tendo sido mencionada também por Nirinha, que contou como ela e outras mães se organizavam quando os filhos eram pequenos: “As mães que trabalhavam davam uma mamada antes de ir trabalhar e a mãe que estava em casa amamentava as outras crianças. Era tipo uma cooperativa de leite materno”.

A experiência dessas mulheres contrasta fortemente com o discurso preconizado hoje nas unidades de saúde e nos programas de referência, que orientam que o bebê seja amamentado exclusivamente pela mãe, devido aos riscos de transmissão de doenças, especialmente do vírus HIV, através do leite. Marina Nucci e Natalia Fazzioni (2021NUCCI, Marina, FAZZIONI, Natalia. 2021. “Amor ou Risco? Refletindo sobre Sentidos, Regulações e Orientações a Respeito do Leite Materno a partir de Casos de ‘Amamentação Cruzada’”.Horizontes Antropológicos. (27-61):291-322.) chamam a atenção para o fato de que a essa orientação se soma outra: a de que o bebê deve se alimentar exclusivamente de leite materno até os seis meses de vida.

Se seguidas, as duas normatizações combinadas praticamente inviabilizam que bebês provenientes de famílias de camadas populares tenham acesso ao leite materno, avaliado pelos órgãos de saúde como o alimento mais eficaz para a prevenção da mortalidade infantil. As fórmulas infantis, consideradas o seu substituto ideal, são caras, sendo consumidas por apenas 23% das crianças que não são alimentadas exclusivamente no peito ( Nucci & Fazzioni 2021NUCCI, Marina, FAZZIONI, Natalia. 2021. “Amor ou Risco? Refletindo sobre Sentidos, Regulações e Orientações a Respeito do Leite Materno a partir de Casos de ‘Amamentação Cruzada’”.Horizontes Antropológicos. (27-61):291-322.). Na prática, diante da ausência de leite materno, esses bebês consomem leite de vaca, mingau e papinhas.

Marcelle e representa uma exceção naquela comunidade. Muitas mulheres ali desempenham trabalhos que se concentram em atividades reprodutivas, funções que, como Silvia Federici (2017FEDERICI, Silvia. 2017. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante.) pontuou, viabilizam o trabalho produtivo, porém são altamente desvalorizadas. Na visão de Rita Segato (2021SEGATO, Rita. 2021. Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios e uma Antropologia por Demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo .), no Brasil há uma “continuidade histórica” dada pela transposição do trabalho não remunerado da escravizada para o trabalho mal remunerado da empregada doméstica. Majoritariamente composto por mulheres pretas e pardas, esse contingente é hoje, na prática, formado pelas herdeiras das antigas amas de leite (Segato 2021SEGATO, Rita. 2021. Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios e uma Antropologia por Demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo .; Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. 2020. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. In: F. Rios e M. Lima (orgs.), Por um Feminismo Afro-latino-americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio de Janeiro: Zahar. p: 75-93.).

Acompanhando esse raciocínio, é possível dizer que as mulheres com as quais tive contato na Rocinha realizam o mesmo ato das amas de leite do período escravocrata: amamentam outras crianças, que não são seus filhos biológicos. Porém, hoje esta prática se dá em termos completamente diferentes. Se no passado a relação entre as amas e as mães biológicas era atravessada por hierarquias (de raça e de classe) e o ato de amamentar o filho alheio consistia em uma imposição, na contemporaneidade a situação é bastante diversa. A prática de amamentar outras crianças, para além daquelas geradas biologicamente, resulta de um ato voluntário (ainda que envolto em obrigações sociais), entre mulheres que se encontram em uma relação de simetria.

E foi essa relação de simetria, ancorada na ideia de ajuda mútua, que possibilitou que o filho de Angélica pudesse seguir sendo amamentado mesmo depois de seu retorno ao trabalho.7 7 O bebê de Angélica não foi amamentado exclusivamente por leite materno até os seis meses, pois nem sempre Marcelle estava em casa, mas teve mais acesso a ele pela possibilidade de “amamentação cruzada”. Nas ocasiões em que Marcelle não estava disponível, a irmã de Angélica oferecia ao bebê cereal em pó, que ela misturava ao leite de vaca - essa era a alternativa que estava colocada. Mas isso só aconteceu porque Angélica não se curvou à segunda prescrição estabelecida, isto é, a de que somente a mãe biológica deve amamentar seu filho. Diante desse fato, pergunto: quem são as mulheres capazes de atender a essas exigências? Quais os modelos de mulher e de mãe que operam como pano de fundo dessas prescrições?

Quando combinadas, essas exigências só conseguem ser cumpridas por um número restrito de mulheres: por aquelas que estão empregadas no setor formal e que possuem seis meses de licença-maternidade ou por aquelas que não trabalham fora e podem se dedicar exclusivamente aos cuidados com o bebê durante os seis primeiros meses, sem precisar se preocupar com o seu sustento e o da criança.

No fundo, o que está colocado é que essas prescrições adotam, como modelos de mulher e de maternidade, aqueles que são fornecidos pelas camadas médias, e que são orientados pela ideologia do individualismo moderno (ou moderno-colonial, como propõem os autores e as autoras decoloniais).

É importante ressaltar que, a despeito das tentativas de normatização, Angélica e outras tantas mulheres naquele contexto negociaram, fizeram ajustes e adotaram estratégias, procurando adequar as prescrições estabelecidas pelos programas de saúde à sua realidade, valores e forma de organização social. Nesse sentido, elas não foram apenas fustigadas pelas opressões de raça, classe e gênero que, de imediato, poderíamos supor que as atingiriam, mas revelaram sua capacidade de agência diante delas.

Com efeito, María Elvira Díaz-Benítez (2019DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. 2019. “Muros e Pontes no Horizonte da Prática Feminista: Uma Reflexão”. In: H. B. de Hollanda (org.), Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. p. 260-283.) destaca a importância de que os marcadores sociais da diferença

“não sejam vistos de modo antecipado e natural, unicamente como marcadores limitantes ou que impedem a agência dos sujeitos, mas como marcadores que, dependendo dos contextos sociais e das relações estabelecidas, podem provavelmente possibilitar a ação, inclusive quando essas ações estejam pautadas a partir de um ponto limitado do poder” (Díaz-Benítez, 2019DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. 2019. “Muros e Pontes no Horizonte da Prática Feminista: Uma Reflexão”. In: H. B. de Hollanda (org.), Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. p. 260-283.:271).

No artigo “Resistance and ethnographic refusal”, Sherry Ortner (1995ORTNER, Sherry B. 1995. “Resistance and the Problem of Ethnographic Refusal”. Comparative Studies in Society and History. (37-1):173-193.) ressalta que os estudos etnográficos, ao enfocarem as práticas e experiências compartilhadas no dia a dia, têm mais chances de conseguirem capturar a política interna dos grupos dominados, sua riqueza cultural, assim como a subjetividade dos atores, isto é, suas intenções, seus desejos, medos e projetos. Dessa forma, afirma a autora, seria possível romper com uma visão monolítica e estática que, a priori, se poderia ter dos sujeitos que integram esses grupos.

Do surgimento das amas à construção do binômio mãe e bebê

Lançando mão de um recurso caro à antropologia, proponho uma digressão histórica para entender como se deu a construção do binômio “mãe e bebê”, preconizado hoje pelas políticas de saúde pública.

Data de 1º maio de 1500 a primeira carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao rei de Portugal. O documento contém o primeiro registro escrito sobre amamentação em nosso território. Dentre outras coisas, na carta, ele relata a cena de uma indígena “com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum”. O espanto com a ausência de panos é evidente. No entanto, segundo João Almeida (1999ALMEIDA, João Aprígio Guerra. 1999. Amamentação: um Híbrido Natureza-Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fundação Oswaldo Cruz.), o próprio ato de amamentar, que era regra entre os tupinambás, também causava estranhamento à época, pois soava inadequado aos ditos “civilizados”.

Elisabeth Badinter (1985BADINTER, Elisabeth. 1985. Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), referindo-se ao contexto francês, ressalta que o hábito de contratar amas de leite data do século XIII, quando foi aberta a primeira agência de amas, em Paris. Estas eram chamadas de “amas mercenárias”, pois recebiam para amamentar os filhos da aristocracia, classe que iniciou essa prática. Mas foi no século XVIII que o fenômeno se generalizou, estendendo-se a todas as camadas da sociedade urbana. Há, inclusive, registros de uma escassez de amas naquele período. De acordo com a autora, vários fatores contribuíram para esse cenário. Dentre eles, o fato de que as mulheres de classes abastadas, sobre as quais não se pode dizer que pesavam quaisquer motivações econômicas, julgavam que amamentar era uma prática considerada pouco digna. Expor os seios era visto como um gesto despudorado, que transmitia uma imagem animalizada de si.

O comportamento adotado por essas mulheres era considerado normal, e praticamente não era abordado pelos cronistas da época. Ao analisar esse contexto, Badinter recusa a proposição, adotada em vários estudos, de que as mães evitavam construir vínculos afetivos com as crianças como uma espécie de defesa diante das altas taxas de mortalidade infantil da época. Para a autora, “é em grande parte porque [as mães] não se interessavam que as crianças morriam em tão grande número” (1985:87), indicando que a ideia de amor materno não tinha um valor social e moral na época.

Em Lisboa, a prática da “amamentação mercenária” também era bastante disseminada, especialmente entre as classes dominantes, que recorriam às chamadas “saloias”, camponesas da periferia, para aleitar seus filhos (Almeida 1999ALMEIDA, João Aprígio Guerra. 1999. Amamentação: um Híbrido Natureza-Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fundação Oswaldo Cruz.).

Diante da disseminação dessa prática na Europa, não demorou para que a figura da ama de leite fosse introduzida também no Brasil. No entanto, quando a prática passou a ser realizada aqui, assim como em outras colônias no continente, ela ganhou outros matizes. As mulheres escravizadas passaram a ser majoritariamente incumbidas dessa tarefa, em meio ao intenso e inigualável processo de exploração que se estabeleceu a partir da ideia de raça, central para a dominação colonial (Quijano 2005QUIJANO, Aníbal. 2005. “Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina”. In: E. Lander (org.), A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO. p. 107-130.). Assim, se na Europa, “amas mercenárias” brancas, provenientes da periferia, recebiam para aleitar o filho alheio, aqui, o lucro auferido com a comercialização do leite materno era destinado aos proprietários das amas escravizadas. Segundo o inglês Thomas Ewbank, em livro publicado originalmente em 1856, esse comércio era tão lucrativo que “alguns senhores de escrav[izados] chegaram a admitir que criar negras para alugar como amas era mais rentável do que plantar café” (Ewbank 1976EWBANK, Thomas. 1976. Vida no Brasil ou Diário de uma Visita à Terra do Cacaueiro e da Palmeira. São Paulo: Edusp. apud Almeida 1999ALMEIDA, João Aprígio Guerra. 1999. Amamentação: um Híbrido Natureza-Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fundação Oswaldo Cruz.:30).

A transformação desse cenário se deu de modo gradual e foi se desenhando ao longo do século XIX, quando vários autores, principalmente médicos, passaram a tratar a presença da ama de leite negra e escravizada como danosa à família branca. Pouco a pouco, a ama foi sendo percebida como alguém que poderia corromper, moral e fisicamente, a sociedade patriarcal.

Sonia Giacomini (1988GIACOMINI, Sonia. 1988. “Ser Escrava no Brasil”. Estudos Afro-asiáticos, (15):145-169.) observa que, com a consolidação do higienismo, a identidade da mulher branca passou a aparecer cada vez mais ligada à maternidade e se efetivou não apenas biologicamente, mas socialmente, por meio do cumprimento de uma série de deveres que definem o que é ser mãe. Dentre tais deveres estariam: amamentar os filhos, responsabilizar-se pelos seus cuidados e socializá-los - instituindo aí, a relação diádica entre mãe e filho até hoje preconizada pelas políticas de saúde pública.

Compartilhamento de cuidados: entre o desvio e o “idealismo romântico”

Durante as idas a campo pude constatar, em sintonia com o que apontam pesquisas realizadas no universo das camadas populares (Fonseca 2005FONSECA, Claudia. 2005. “Concepções de Família e Práticas de Intervenção: uma Contribuição Antropológica”. Saúde e Sociedade, 14 (2):50-59. ; Sarti 2011SARTI, Cynthia. 2011. A Família como Espelho: um Estudo sobre a Moral dos Pobres. São Paulo: Cortez .; Fernandes 2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.; dentre outras), mas também entre quilombolas (Boschemeier 2014BOSCHEMEIER, Ana Gretel Echazú. 2014. Elos de Leite, Elos de Sangue: Notas Etnográficas na Comunidade Quilombola de Boa Vista dos Negros 2008-2010. Natal: EDUFRN.) e em zonas rurais (Fleischer 2011FLEISCHER, Soraya Resende. 2011. Parteiras, Buchudas e Aperreios: Uma Etnografia do Atendimento Obstétrico Não Oficial em Melgaço, Pará. Belém: Paka-Tatu, Edunisc. ), a importância das redes de cuidado.

Patricia Hill Collins (2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: Conhecimento, Consciência e a Política do Empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial. ) menciona que a prática de cuidado comunitário das crianças é também bastante disseminada em comunidades africanas e afro-americanas, conferindo um papel central às “mães de criação”. Por outro lado, ela observa que nas situações de ascensão social, as mulheres negras estadunidenses tendem a abandonar essa prática e a adotar os valores e o estilo de vida das famílias brancas de classe média, o que sugere que a classe social tem um peso importante na forma como o cuidado é exercido.

Para Collins, a prática de compartilhamento de cuidados “coloca[m] em xeque um pressuposto fundamental do sistema capitalista: o de que as crianças são ‘propriedade privada’ e podem ser tratadas como tal” (Collins 2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: Conhecimento, Consciência e a Política do Empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial. :305).

Na Rocinha, além de “mães de leite” e de “criação”, foi possível notar a presença frequente também de avós, tias, madrinhas e vizinhas atuando no compartilhamento de cuidados das crianças.

Como sugere o trabalho de Claudia Fonseca (2002FONSECA, Claudia. 2002. “Mãe é Uma Só?: Reflexões em Torno de Alguns Casos Brasileiros”. Psicologia USP, 13 (2):1-12.), dinâmicas de cuidado “alternativas” gozam de popularidade e até de legitimidade em determinados setores da nossa sociedade. Apesar disso, há uma tendência, por parte de alguns, a vê-las como problemáticas por desviarem do que seria considerado a norma. Esse olhar provém de uma perspectiva eurocêntrica, em que há uma desvalorização de saberes, normas e pautas de existência que são próprios das sociedades que se encontram do outro lado da fronteira construída entre o Norte e o Sul, a partir do processo colonial (Segato 2022SEGATO, Rita. 2021. Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios e uma Antropologia por Demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo .:66). Como indica Rita Segato, vigora um “ideário hegemônico e eurocêntrico do ‘moderno’ como paradigma, da ‘modernização’ como um valor” (:66). Esse ideário se expressa no senso comum mediante certas noções, como a de “evolução” e “desenvolvimento” e resultam, diz a autora, baseando-se em Aníbal Quijano, da hierarquia fundacional Norte-Sul.

Segundo Júlio Roberto Pinto e Walter Mignolo (2015PINTO, Júlio Roberto de Souza & MIGNOLO, Walter. 2015. “A Modernidade é de Fato Universal? Reemergência, Desocidentalização e Opção Decolonial”. Civitas, 15 (3):381-402.), a colonialidade é, na prática, constitutiva da modernidade. Para os autores, é preciso sempre se referir a tal fenômeno a partir dessa relação, o que os leva a utilizar a expressão “modernidade-colonialidade”, de forma hifenizada. De acordo com eles, a modernidade-colonialidade é sinônimo de ocidentalização, o que “designa o conjunto de projetos globais - sempre em mutação e adaptação - que visa à disseminação dos valores da civilização ocidental em escala planetária” (:384-383).

E, se para alguns, as dinâmicas de cuidado que predominam nas camadas populares - como a “circulação de crianças” - são vistas como desviantes, por não estarem alinhadas ao ideário moderno-colonial eurocêntrico, não é incomum que pesquisadores que se debruçam sobre o tema resvalem em um certo “idealismo romântico”, como assinala Fonseca (2006FONSECA, Claudia. 2006. “Classe e a Recusa Etnográfica”. In: C. Fonseca e J. Brittes (orgs.), Etnografias da Participação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.). Segundo a autora, isso os impede de enxergar os conflitos, hierarquias ou formas de dominação inerentes às dinâmicas dos grupos.

Enquanto pesquisadora e mãe que se vê diariamente diante dos desafios da maternidade,8 8 Tenho duas filhas, atualmente com 8 e 12 anos. Vivenciei a experiência da amamentação pela primeira vez durante o doutorado - ocasião em que me debrucei sobre a temática do parto humanizado (Hirsch, 2019). Naquela época, seguindo os protocolos de amamentação vigentes, me vi em meio a uma experiência que julgava prazerosa, mas, ao mesmo tempo, muito solitária e desafiadora. não posso esconder uma certa admiração pela prática de coletivização dos cuidados, mesmo entendendo que esta resulta tanto de um valor cultural quanto de adaptações funcionais criadas para lidar com as adversidades colocadas pelo entrecruzamento entre gênero, raça e classe. Por outro lado, reconheço os tensionamentos que os cuidados compartilhados podem gerar.

Mais de uma vez, Marcelle e Silvia, nora de Nirinha, se queixaram da ingerência que consideravam excessiva por parte da avó sobre os netos, indicando que o compartilhamento dos cuidados não exclui a expectativa das mães biológicas de que existam certos limites de atuação entre as diferentes pessoas que integram a rede - como também observou Fernandes (2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.) em seu estudo.

Para contextualizar um pouco mais, explico que as três, na primeira etapa da pesquisa, moravam no mesmo terreno. Elas, junto com Janaína, compartilhavam os cuidados dos dois filhos biológicos de Marcelle, do único filho biológico de Silvia e também de outras crianças, dentre elas Vanessa, filha de Inara.

Marcelle e Silvia contavam que não era incomum que Nirinha, ao escutar uma das mães brigando com seus netos, fosse até a outra casa e interferisse no conflito, intercedendo a favor das crianças. Isso gerava muitas queixas por parte das duas, que se sentiam desautorizadas pela matriarca. No que se refere à “amamentação cruzada”, elas diziam que, diante dos riscos9 9 No contexto desse comentário, as duas referiam-se aos riscos alardeados pelo discurso médico, isto é, à possibilidade de transmissão de doenças por meio da amamentação. Em outras situações, contudo, a transmissão de outros componentes indesejáveis também foi aventada, ainda que em tom jocoso. Inara, por exemplo, costumava dizer que Marcelle tinha transmitido “preguiça” à Vanessa através da amamentação. associados à prática, consideravam importante que esta fosse realizada por pessoas de sua rede de confiança - o que não era um requisito para as mulheres da geração anterior. Mas, segundo elas, em várias situações, Nirinha, quando estava com os netos ainda bebês sob seus cuidados, pedia a mulheres que elas mal conheciam que os amamentassem, o que causava um grande incômodo quando tomavam conhecimento do que havia ocorrido.

As duas, no entanto, se viam diante de um conflito: não ficavam satisfeitas com esse tipo de atitude, mas tinham dificuldades em confrontar a mãe/sogra, que se encontra em uma posição superior na hierarquia familiar e de quem dependiam no cotidiano para dividir os cuidados com as crianças, liberando-as para outros compromissos e atividades, inclusive de lazer. Como observa Camila Fernandes, o “desconforto é marcadamente um dos traços extremamente relevantes nas relações de cuidado. Marcante não por sua visibilidade, mas por tudo aquilo que seu conteúdo silencia” (2011FERNANDES, Camila. 2011.Ficar com: Parentesco, Criança e Gênero no Cotidiano. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense.:47), uma vez que a manifestação do incômodo pode implicar em uma ruptura na relação e no cuidado oferecido.

Leite materno: corpo, parentesco e risco

Ainda que o leite materno tenha sido, em alguns momentos, complementado por outros alimentos (leite de vaca, papinha e mingau, por exemplo),10 10 Agradeço às sugestões das pareceristas, que me levaram a explorar de modo mais cuidadoso os substitutos ao leite materno, que não haviam sido mencionados espontaneamente nas primeiras entrevistas. ele é percebido como “essencial”, “fundamental” e “obrigatório” pelas entrevistadas. Ressalta-se que essa perspectiva é compartilhada inclusive pelas mulheres das gerações anteriores.

“A criança quando nasce ela depende do leite materno, é fundamental na vida da criança”. (Inara)

“O peito é muito essencial para a criança, muito essencial. Eu digo assim, não tem essa criança que não mama. Não, tem que mamar, sim. É obrigatório a criança mamar leite materno”. (Janaína)

“Acho muito importante [o leite materno], muito. A criança que mama... eu tenho essa briga aqui em casa, sabe? Quer mamar? Deixa mamar! Ah, mas tem não sei quantos anos. Deixa mamar! Tem leite? A criança tá mamando? Então deixa mamar. Porque a gente passa perrengue com uma criança... (...) e se a criança ficar doente? Nada passar naquela criança? Nossa salvação para salvar aquela criança é o leite materno”. (Nirinha)

Quando fazemos uma breve digressão, notamos que a percepção acerca do leite materno nem sempre foi essa. De fato, entre as décadas de 1940 e 1970, houve um forte incentivo ao desmame nos primeiros meses de vida, impulsionado pela indústria e com apoio dos pediatras, como atestam os compêndios médicos da época.

Sobre esse aspecto, recorro à Emily Martin (2006MARTIN, Emily. 2006. A mulher no Corpo. Rio de Janeiro: Garamond.), quem afirma que “ainda que tenhamos a tendência a pensar na ciência como uma cultura exterior porque ela busca a verdade sobre a natureza (...) ela é, de fato, um sistema hegemônico” (2006:62), que não está desconectado da ordem estabelecida, nem dos interesses de classe que permeiam a sociedade.

Foi nessa marcha que o leite em pó industrializado passou a ser indicado a todas as mulheres como profilaxia à desnutrição infantil (Almeida 1999ALMEIDA, João Aprígio Guerra. 1999. Amamentação: um Híbrido Natureza-Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fundação Oswaldo Cruz.). Segundo Almeida, no final da década de 1970, o desmame no primeiro mês de vida atingia 54% dos lactentes em São Paulo e 80% em Recife, por exemplo. Combinado a isso, o país apresentava altas taxas de mortalidade infantil e de desnutrição crônica. Esse cenário levou o Ministério da Saúde, com apoio da ONU e do Unicef, a promover uma mudança de rumos, adotando o incentivo à amamentação como principal estratégia de combate à morbimortalidade infantil. Assim, em 1981, foi instituído o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM).

Almeida (1999ALMEIDA, João Aprígio Guerra. 1999. Amamentação: um Híbrido Natureza-Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fundação Oswaldo Cruz.) explica que o programa contribuiu para impulsionar, a partir da década de 1980, um movimento de valorização da amamentação na sociedade brasileira, por meio da realização de campanhas nos meios de comunicação de massa, em que se divulgava a superioridade do leite materno. Essas campanhas existem até hoje e nelas o leite materno é comparado a uma verdadeira vacina, sendo apresentado como um alimento completo.

Tendo em vista essa contextualização e levando em conta os comentários feitos pelas mulheres durante a pesquisa, acredito que, a percepção de que o leite materno é essencial, deriva tanto das campanhas estabelecidas pelos programas oficiais de incentivo à amamentação, quanto dos significados particulares a ele atribuídos naquele contexto. Os depoimentos expressam que o leite materno contém uma força, é fonte de axé, de energia, de afeto e de vínculo.

O alto valor atribuído ao leite materno faz com que aquelas que o produzem em grande quantidade se percebam como detentoras de um dom e se vejam impelidas a compartilhá-lo, não privando o acesso de outras crianças a esse bem tão valioso. Essa obrigação parece se relacionar, ainda, ao imperativo moral que preside, de se dividir o que se tem, em especial a comida, um bem fundamental que, não raras vezes, está sob ameaça (Sarti 2011SARTI, Cynthia. 2011. A Família como Espelho: um Estudo sobre a Moral dos Pobres. São Paulo: Cortez .). Não por acaso, Angélica, ao referir-se à prática de amamentar outras crianças, afirmou que “um prato de comida não se nega a ninguém”.

É possível que essa seja a lógica que explique o fato de a interrupção da amamentação por parte do filho biológico nem sempre significar a interrupção do ato de amamentar. Essa foi a experiência da mãe de Angélica e também de Nirinha, que seguiram amamentando mesmo depois de seus filhos já terem “largado o peito”. Nas situações em que não havia um bebê por perto para amamentar, Nirinha conta a estratégia que adotava para continuar estimulando a produção de leite: “Amamentei muitos adultos,11 11 Marcelle também fez menção a uma experiência que vivenciou quando era adolescente, para ajudar uma prima que estava com as mamas cheias durante uma viagem: “[Ela] Estava com neném pequeno e o neném não tava mamando e ela tava já começando a ficar com febre... eu sentei com 15 anos e mamei no peito dela”, ao que acrescentou: “E não era tipo chupar o peito e cuspir o leite. Era mamar e engolir. (...) Se tem anticorpos e você pode receber, por que eu não vou receber? E ainda vou ajudar minha prima. Peito para mim... é isso”. para que o meu leite não secasse, para eu sempre ter para servir, entendeu?”, revelou ela, apontando para a importância da generosidade de que se reveste, em sua concepção, esse ato. Uma das crianças que Nirinha amamentou foi o filho de uma prima. Ela teve complicações após o parto e não pôde aleitar o recém-nascido. Nirinha passou então a ir ao hospital, de manhã e à tarde, com esse propósito.

Inspirando-se no Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss (2003MAUSS, Mauss. 2003. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify.), Cynthia Sarti enfatiza o predomínio nas camadas populares de um padrão de relações que se caracteriza por um dar, receber e retribuir contínuos. E a “amamentação cruzada”, ao que tudo indica, também se insere nessa lógica, simbolizando a importância da solidariedade e da generosidade enquanto valores centrais, que se manifestam em várias esferas da vida.

A experiência dessas mulheres aponta para uma resistência à individualização, que ganha materialidade na ideia de corpo moderno, separado do próprio sujeito, da comunidade e do cosmos (Le Breton 2011LE BRETON, David. 2011. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis: Editora Vozes.). Um corpo que, ao fim e ao cabo, “só deve alguma coisa a si mesmo” (Guijarro 2015GUIJARRO, Esther Massó. 2015. Conjeturas (¿y Refutaciones?) sobre Amamantamiento: Teta Decolonial.Dilemata, (18):185-223.). Segundo Ester Guijarro, o corpo lactante no mundo contemporâneo está fora da norma. Trata-se de um corpo transbordante, incontido, permeável ao outro, interdependente, que rompe com os limites e fronteiras esperados.

Na amamentação, nesse híbrido natureza-cultura, como sugere Almeida (1999ALMEIDA, João Aprígio Guerra. 1999. Amamentação: um Híbrido Natureza-Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fundação Oswaldo Cruz.), há duas partes que se complementam e se precisam (Guijarro 2015GUIJARRO, Esther Massó. 2015. Conjeturas (¿y Refutaciones?) sobre Amamantamiento: Teta Decolonial.Dilemata, (18):185-223.): o bebê, que anseia e busca o peito, e a mulher, cujos seios fartos dependem do bebê, sob o risco de sofrer as consequências provocadas por um leite que ficou retido mais tempo do que deveria. Não se pode demorar muito, a interdependência - que, obviamente, não se limita aos aspectos fisiológicos - é imperativa. Mas o que ficou nítido é que, entre minhas interlocutoras na Rocinha, essa interdependência entre corpos não está atrelada à relação diádica entre mãe e filho. Ela pode ser suprida por outros. E mais: quando a amamentação acontece de modo regular, se somando a outras obrigações e formas de compartilhamento de cuidado, pode eventualmente engendrar relações de parentesco, como é o caso de Marcelle e Vanessa.

Em alguns países muçulmanos, basta a ingestão de uma gota de leite materno para emparentar (Soler 2019SOLER, Elena. 2019. Procreación, Sustancia Compartida y Parientes de Leche en el Sur de Europa. Revista de Antropología Iberoamericana. 14 (3):441-462.). Aqui, o compartilhamento de substâncias não é suficiente para a produção do parentesco. É preciso contato, troca, relação, cuidados, obrigações e afeto. Janet Carsten (2000CARSTEN, Janet. 2000. Cultures of Relatedness: New Approaches to the Study of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press.) sugere acertadamente o uso do termo “relacionalidade”, de modo a buscar ampliar e incorporar formas variadas de “se emparentar”, sem que esse processo seja assumido como previamente dado.

Angélica considera apenas as crianças que aleitou regularmente como seus “filhos de leite”, mas perdeu as contas de quantas amamentou de maneira pontual. Seja porque essas crianças estavam com fome, saudades da mãe ou mesmo por uma necessidade dela própria, como nas ocasiões em que, por exemplo, chegava com as mamas cheias depois de um dia de trabalho e encontrava o filho dormindo ou saciado. A irmã de Angélica tem uma casa de tomar de conta (Fernandes 2021FERNANDES, Camila. 2021. Figuras da causação: as novinhas, as mães nervosas e mães que abandonam os filhos. Rio de Janeiro: Telha.) e, além do sobrinho, cuida de outras crianças. Eram a elas que Angélica recorria nessas ocasiões, indicando que a “amamentação cruzada” pode ser realizada não apenas a partir de uma demanda da criança, mas também da mulher lactante.

Como a palavra interdependência sugere, a tônica é, de fato, a troca, a reciprocidade, pois ambos são afetados por essa experiência, que envolve uma ampla gama de emoções, sensações e sentidos. E é justamente essa reciprocidade que é perdida nas situações em que o leite materno chega ao bebê através dos bancos de leite. Valentina Brena (2020BRENA, Valentina. 2020. “Vivencias Corpóreas: Análisis Etnográfico del Parentesco de Leche en la Comunidad Afrouruguaya”. In: E. P. Vargas et al. (orgs.), Corpus Plurais: Gênero, Reprodução e Comensalidades. Salvador: Edufba. p. 77-98.) destaca os processos mecânicos e tecnológicos a que é submetido o leite materno nos bancos de leite. Este é analisado, misturado, esterilizado, envasado e entregue de forma anônima, o que garante pureza, assepsia, higiene e qualidade. Por outro lado, o processo de homogeneização do leite, enquanto matéria, também “neutraliza e distancia as diversas subjetividades, afetos e corporalidade entre quem o produz e quem o recebe, obstruindo toda possibilidade de entrelaçar histórias de vida lactantes” (Brena 2020BRENA, Valentina. 2020. “Vivencias Corpóreas: Análisis Etnográfico del Parentesco de Leche en la Comunidad Afrouruguaya”. In: E. P. Vargas et al. (orgs.), Corpus Plurais: Gênero, Reprodução e Comensalidades. Salvador: Edufba. p. 77-98.:86, tradução nossa). O relato de Marcelle expressa esse incômodo:

“Mesmo não sendo meu filho, você tem aquele toque, aquele olhar, aquela respiraçãozinha, sabe? Tem uma troca. É toda uma energia que corre ali, que não é só tirar o leite numa maquininha, botar na geladeira, esperar uma outra pessoa vir pegar”.

Pelo que pude compreender, a diferença entre os bancos de leite e a “amamentação cruzada” se assenta, portanto, na diferença estabelecida entre a doação, que é um ato unilateral, e a troca, que implica em afetação mútua. Gostaria de destacar que a maioria das mulheres com as quais tive contato é adepta de religiões de matrizes africanas e, para elas, a amamentação envolve, dentre outras coisas, troca de axé. De fato, uma das principais formas de transmissão dessa força vital, sagrada, é pelos fluidos corporais. Quando leva o seio até a boca, o bebê compartilha sua saliva, que é absorvida pela pele da mulher, e esta, por sua vez, compartilha com ele o leite que seu corpo produz, o que significa que há uma troca e circulação de axé.

Assim, por diferentes motivos, a “amamentação cruzada” é considerada uma experiência enriquecedora para ambas as partes, ainda que envolta em maiores riscos. Sobre essa questão, ressalto que, ao serem questionadas, todas as mulheres disseram estar a par da contraindicação da prática e dos riscos alardeados pela medicina, mesmo as entrevistadas mais idosas. Essas, no entanto, se mostraram mais refratárias à contraindicação, inclusive, muitas vezes estimulando a “amamentação cruzada” entre filhas e noras, ou recorrendo a outras lactantes quando estavam com os netos sob seus cuidados.

Entre as entrevistadas mais jovens houve divergências. Enquanto Marcelle e Silvia mencionaram a importância de que a amamentação fosse compartilhada com mulheres com as quais mantinham relações de confiança - critério que, de toda forma, se encontra à margem dos métodos científicos racionais12 12 Segundo Nucci e Fazzioni (2021), argumentos dessa ordem, como instinto e sentimento de confiança, também costumam ser utilizados em redes informais de compartilhamento de leite materno que se organizam através da internet e são cada vez mais comuns em países como os EUA. -, Angélica avalia que “se você faz uma coisa por amor (...) nada pode acontecer”. Seu posicionamento era semelhante ao de Nirinha, que pertence à outra geração. Ambas demonstraram pouca preocupação com os riscos , priorizando “uma concepção fatalista, para a qual o acaso virtualmente não existe e na qual os eventos estão largamente predeterminados” (Rodrigues 2006RODRIGUES, José Carlos. 2006. Comunicação e significado: escritos indisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad Editora.:150).13 13 Essa constatação também foi feita por Rodrigues (2006) no estudo que desenvolveu com os funcionários de uma empresa do ramo siderúrgico. Seu objetivo era tentar compreender o insucesso dos programas voltados para a redução de acidentes de trabalho. Diferentemente de Angélica, na época em que Nirinha teve seus filhos, a “amamentação cruzada” ainda não havia sido contraindicada, de todo modo, é possível notar em seu relato uma postura de desconfiança em relação aos riscos médicos associados à prática, assim como outros riscos ventilados pela medicina, como sugere o trecho abaixo:

Nirinha: Antes, você tinha um filho, eu dava mamá [ao] seu filho, você dava mamá pro meu filho, sem problema nenhum. Porque mudam as coisas do tempo, esse negócio de medicina, sei lá, coisa do tempo mesmo. Aí você não pode dar mamá pro meu filho porque você teve hepatite; você não pode dar mamá pro meu filho porque você teve uma pneumonia, mas no tempo atrás, se você tivesse hepatite, se você tivesse pneumonia, não acontecia, porque a coisa só acontecia se tivesse que acontecer, entendeu? Além disso... a coisa não acontecia. Tipo, tive uma sobrinha, que é minha sobrinha e minha afilhada, ela teve lepra. Que é aquela coisa horrível. O médico queria isolar ela, longe das crianças. Ela é sobrinha da Janaína mesmo. O médico queria isolar, o pai queria internar, porque não tinha como ela ficar tanto... antigamente... lepra pega, né? É transmitido. Aí a Nádia [mãe biológica] falou: ‘eu não quero que interne a minha filha e coisa e tal, mas eu não tenho como tratar, então que deixe que ela morra comigo’. Aí eu falei para ela assim: ‘eu tomo conta dela’. ‘Ah, mas ela mama e na [hora da] mamada dela?’ ‘Eu dou mamá para ela’. (...) Eu amamentava ela nesse peito e a Marcelle nesse [aponta para cada um]. Só tinha um berço. Botava ela pra cima e a Marcelle pra baixo. E o Mariozinho também, que era da mesma idade. Eu amamentava os 3, botava os 3 no berço, dormia. Graças a Deus, nunca teve... a doença dela não passou, entendeu? Nem o Mariozinho nem a Marcelle pegou. Tratamos dela com pita. Pita é uma erva que tem nas praças, uma planta espinhosa, que é venenosa. Eu cuidei dela. Curamos ela com essa erva. É uma meleca que sai que nem a babosa. Então, abria, raspava, batia e passava todo no corpo dela em cada banho.

Olivia: E quem te orientou a usar pita? Nirinha: Os orixás.

Ao não se satisfazer com as orientações recebidas no sistema oficial de saúde, cujo tratamento previa o isolamento da criança - algo praticamente inconcebível naquele contexto -, a mãe optou por trazer a filha para casa, já sem esperanças de cura. Diante desse cenário, Nirinha então assumiu os cuidados da afilhada e buscou alívio em outros espaços, como no terreiro de candomblé, apontando para a existência de outras “paisagens terapêuticas” (Böschemeier 2014BOSCHEMEIER, Ana Gretel Echazú. 2014. Elos de Leite, Elos de Sangue: Notas Etnográficas na Comunidade Quilombola de Boa Vista dos Negros 2008-2010. Natal: EDUFRN.). Além de amamentar a criança, prática que, mais tarde, seria contraindicada pela medicina, Nirinha a deixou em contato com sua filha biológica e com um “filho de leite”, que também ficava sob seus cuidados, desafiando o que havia sido prescrito.

Além dessa, são várias as situações em que Nirinha narra ter enfrentado os problemas de saúde cotidianos lançando mão de outros saberes: desde o uso de uma gota de querosene para inalação com soro no tratamento de bronquite, xaropes caseiros feitos à base de ervas e mel para tratamento de tosse, pimenta para conseguir fazer uma criança expelir uma guimba de cigarro que havia enfiado no nariz, até o uso de leite materno e chá de aroeira, de modo intensivo, para um bebê que havia sido desacreditado pelos médicos.

O recurso a outras práticas terapêuticas aparece também nos relatos de Janaína e Marcelle, no que se refere aos cuidados em saúde. No caso de Marcelle, no entanto, pude observar que, em certas situações, ela deixava transparecer alguma dúvida em relação à sua eficácia - a maioria recomendada por sua mãe - ainda que não se opusesse à realização desses cuidados alternativos em seu filho, por exemplo. Apesar disso, ela reconhecia que “isso sempre deu certo na nossa vida (...) foi o que trouxe a gente até aqui, sabe?”, afirmou em uma de nossas conversas. Marcelle é de uma geração mais nova, que foi muito mais exposta à influência da biomedicalização, além de ter frequentado outros espaços, como a universidade, e às vezes parece viver um certo conflito entre essas diferentes “paisagens terapêuticas”.

No estudo que desenvolveu na comunidade quilombola Boa Vista dos Negros, no Rio Grande do Norte, Böschemeier (2014BOSCHEMEIER, Ana Gretel Echazú. 2014. Elos de Leite, Elos de Sangue: Notas Etnográficas na Comunidade Quilombola de Boa Vista dos Negros 2008-2010. Natal: EDUFRN.) observou que as mulheres mais jovens e também aquelas melhor posicionadas em termos de capital social - “entendida como categoria que expressa um acesso diferencial aos espaços sociais considerados legítimos” (:115) - costumavam aderir com maior afinco às prescrições médicas, especialmente no que se refere à amamentação. Como consequência disso, a autora observou que as relações que costumavam ser estabelecidas através da amamentação - engendrando “mães” e “filhos de peito”, expressão usada naquele contexto - foram perdendo espaço entre as gerações mais novas, apontando para o efeito desagregador da política de saúde, com repercussões na rede de cuidados locais.

Antes de passar à próxima seção, gostaria apenas de mencionar que o posicionamento do Ministério da Saúde, que adota postura contrária ao “aleitamento cruzado”, não representa um consenso nem mesmo na área da saúde. No documento Estratégia Global para Alimentação de Lactentes e Crianças Pequenas, a OMS admite que a escolha da melhor alternativa ao leite materno fornecido pela mãe biológica depende de circunstâncias individuais, e elenca como possibilidades a realização da amamentação por outra lactante saudável, leite ordenhado por outra lactante, leite obtido em bancos de leite e substitutos ao leite humano.

Os dados apontados no artigo “Fatores associados ao aleitamento cruzado em duas cidades do Sudeste do Brasil” (Von Seehausen et al 2017VON SEEHAUSEN, Mariana Pujól et al. 2017. “Fatores Associados ao Aleitamento Cruzado em Duas Cidades do Sudeste do Brasil”. Cadernos de Saúde Pública. 33(4):1-10.) publicado no periódico Cadernos de Saúde Pública, contribuem para fortalecer esse posicionamento. Conforme os autores, a prevalência de HIV em gestantes no Brasil hoje é baixa (0,4%), assim como a proporção de mães não testadas para o HIV na gestação e no momento do parto (inferior a 1%).

Em sua dissertação de mestrado, Mariana Von Seehausen (2016VON SEEHAUSEN, Mariana Pujól. 2016. Aleitamento Cruzado: Prevalência e Fatores Associados. Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense.) constatou que o aleitamento cruzado teve “prevalência relevante” em diferentes lugares no estado do Rio de Janeiro, o que significa que “o posicionamento atual frente ao tema não está se refletindo nas escolhas de parte significativa das mães” (:75). Há, portanto, um distanciamento entre o posicionamento adotado pelas autoridades de saúde e as práticas vivenciadas no cotidiano pelas mulheres.

Das amas às “mães de leite”

No livro “Antropologia do Corpo e Modernidade”, David Le Breton (2011LE BRETON, David. 2011. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis: Editora Vozes.) analisa como se deu o movimento epistemológico e ontológico que conduziu à invenção do corpo. O autor associa esse processo ao avanço do individualismo, que, de um modo dualista, pouco a pouco permitiu discernir o sujeito de seu corpo. Este passou a ser algo que se tem e não que se é. Coube a Descartes completar essa transição: o sujeito foi purificado de toda a referência à natureza e ao corpo que ele encarna. A máxima cartesiana (“Penso, logo existo”) elevou o pensamento ao mesmo tempo em que desvalorizou o corpo.

Para avançar nessa discussão, é preciso situar, como aponta Anibal Quijano (2005QUIJANO, Aníbal. 2005. “Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina”. In: E. Lander (org.), A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO. p. 107-130.), que a ideia de raça, em seu sentido moderno, inexistia antes da América. Sua invenção serviu de base à construção de identidades sociais (como indígenas, negros e mestiços) e também à redefinição de outras (como espanhol, português ou europeu), que passaram a ganhar uma conotação racial. Em meio à dominação imposta pelas relações coloniais, essas identidades foram associadas a hierarquias, lugares e papéis, delineando as fronteiras sociais correspondentes à divisão do trabalho. Esse cenário favoreceu o controle da sociedade e da produção, que tiveram origem no padrão moderno da colonialidade.

A cisão entre corpo e mente/razão, quando aplicada à ideia de raça, fundamentou divisões operadas a partir desse registro. Segundo Quijano (2005QUIJANO, Aníbal. 2005. “Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina”. In: E. Lander (org.), A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO. p. 107-130.), certas raças foram classificadas como inferiores por supostamente não serem “racionais”, por estarem mais próximas da natureza. Essa objetificação do corpo como natureza é caudatária de uma racionalidade eurocêntrica moderna, que contribuiu para instituir algumas raças como domináveis e exploráveis, viabilizando a economia da sociedade colonial - esta tendo servido de modelo para a economia-mundo capitalista.

Nessa mesma direção, Júlio Roberto Pinto e Walter Mignolo (2015PINTO, Júlio Roberto de Souza & MIGNOLO, Walter. 2015. “A Modernidade é de Fato Universal? Reemergência, Desocidentalização e Opção Decolonial”. Civitas, 15 (3):381-402.) apontam que

“a desumanização de habitantes não europeus do globo foi necessária para justificar o controle de tais ‘seres humanos inferiores’. Racismo como o conhecemos hoje foi estabelecido àquela época. Racismo não é biológico, mas sim epistêmico; é a classificação e a hierarquização de umas pessoas por outras que controlam a produção do conhecimento, que estão em posição de atribuir credibilidade a tal classificação e hierarquização e que estabelecem a si mesmas como o padrão: ‘os humanos’ - todos os demais são apenas diferentes graus de quase ou semi-humanos” (:383).

Com efeito, a raça é, na avaliação de Quijano, central para a conceituação da colonialidade do poder. E é a partir dela, ou melhor, de sua ausência, que o autor dirige sua crítica ao materialismo histórico. Para Quijano, a teoria marxista impõe sobre a realidade latino-americana uma noção de classe social sem, contudo, mencionar a raça. Na sua avaliação, isso resulta do caráter eurocêntrico dessa teoria e contribuiu, durante muito tempo, para a invisibilidade da raça nas análises sociológicas (Segato 2022SEGATO, Rita. 2021. Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios e uma Antropologia por Demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo .:67).

A principal contribuição das autoras feministas decoloniais foi ampliar essas reflexões, dando destaque às dimensões de gênero e sexualidade. A argentina Maria Lugones (2014LUGONES, María. 2014. “Rumo a um Feminismo Descolonial”. Estudos Feministas, (22-3):935-952.), articulando o conceito de interseccionalidade ao de colonialidade do poder, proposto por Quijano, destaca que a diferenciação racial imposta pela colonialidade, ao negar humanidade, negou também gênero às colonizadas.

Lugones toma como ponto de partida a discussão sobre modernidade, também cara aos teóricos do pensamento decolonial. Segundo a autora, a modernidade organiza o mundo em categorias homogêneas, separáveis e baseadas em dicotomias hierárquicas, que não dão conta dos entrecruzamentos entre raça, classe, gênero e sexualidade.

“Se mulher e negro são termos para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis, então sua intersecção mostra-nos a ausência das mulheres negras”, afirma Lugones (2014LUGONES, María. 2014. “Rumo a um Feminismo Descolonial”. Estudos Feministas, (22-3):935-952.:935). Isso se explica uma vez que cada categoria homogênea se constitui em referência ao membro superior da dicotomia. Nesse sentido, “mulheres” refere-se a “mulheres brancas”, assim como “negros” a “homens negros”. Desse modo, os sujeitos que se inserem na intersecção entre raça, classe e gênero, por exemplo, não se encaixam no modelo, tratando-se de “seres impossíveis”.

E é por essa impossibilidade de “ser” que, historicamente, coube nas colônias às mulheres negras a condição de amas de leite ou, em outras palavras, a condição, em tese, de corpo que serve apenas de fonte de alimento para a criança branca - como pobremente sugere o termo em inglês breastfeed para se referir à amamentação (Guijarro 2015GUIJARRO, Esther Massó. 2015. Conjeturas (¿y Refutaciones?) sobre Amamantamiento: Teta Decolonial.Dilemata, (18):185-223.).

No século XIX, os anúncios de aluguel de amas, que ocupavam boa parte dos classificados, divulgavam a possibilidade de que estas fossem alugadas sem a “cria”, mesmo logo após o parto (Magalhães e Giacomini 1983MAGALHÃES, Elisabeth, GIACOMINI, Sonia Maria. 1983. “A Escrava Ama-de-leite: Anjo ou Demônio?”. In: C. Barroso e A. O. COSTA (orgs.), Mulher, Mulheres. São Paulo: Editora Cortez; FCC/DPE. p. 73-88.). A saída de cena das crianças negras fortalecia o comércio do leite da mulher escravizada, ampliando a fonte de renda dos senhores patriarcais.

Como afirmam Elizabeth Magalhães e Sonia Giacomini: “Por paradoxal que pareça, é a sua fisiologia feminina - a capacidade de lactação - que se contrapunha à realização de sua potencialidade materna” (1983MAGALHÃES, Elisabeth, GIACOMINI, Sonia Maria. 1983. “A Escrava Ama-de-leite: Anjo ou Demônio?”. In: C. Barroso e A. O. COSTA (orgs.), Mulher, Mulheres. São Paulo: Editora Cortez; FCC/DPE. p. 73-88.:81-82). As autoras argumentam que à mulher escravizada era negada a maternidade e, portanto, a própria condição de mulher, tendo em vista que a ideologia dominante à época do higienismo atribuía à maternidade o papel de função social básica da mulher.

Lélia Gonzalez (2020GONZALEZ, Lélia. 2020. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. In: F. Rios e M. Lima (orgs.), Por um Feminismo Afro-latino-americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio de Janeiro: Zahar. p: 75-93.) propõe uma outra leitura. Segundo ela, os negros não aceitaram passivamente o “processo desumanizador” ao qual foram submetidos. Ao destacar a importância da maternidade nas diferentes culturas negro-africanas, Gonzalez afirma que as escravizadas lutaram para manter a dignidade da função materna, a qual, ao fim e ao cabo, exerceram com as crianças brancas. A elas ensinaram o pretuguês e seus valores culturais, fazendo com que estes até hoje permeiem a cultura brasileira. Gonzalez (2020) conclui dizendo que essas mulheres se tornaram as verdadeiras mães, assumindo o lugar da mãe biológica branca, que acabou convertendo-se na “outra”.

Ainda que diversas, as análises têm algo em comum: reconhecem que, no passado, muitas vezes a capacidade de lactação representou para as mulheres racializadas a impossibilidade de maternarem as crianças negras. Faço questão de ressaltar esse aspecto, pois há aqui uma grande diferença em relação ao contexto atual, uma vez que é justamente a capacidade de lactação que abre a possibilidade de que as interlocutoras da pesquisa, eventualmente, tornem-se mães de outras crianças, em geral, negras. Isto é, se antes as amas de leite eram com frequência obrigadas a abrir mão de seus filhos biológicos, o que observo na contemporaneidade é que, por meio da “amamentação cruzada” a maternidade pode, em alguns casos, se expandir, se ampliar, não implicando em subtração, mas em adição.

“Somos da família das vacas leiteiras”, me disse certa vez Nirinha com orgulho. Seu comentário vai à contramão da ideia que prevalecia entre as aristocratas brancas europeias, que consideravam a amamentação indesejável por supostamente animalizar a mulher, o que qualificavam como negativo. Essa visão é caudatária da cisão estabelecida pelo pensamento moderno-colonial, que parte da premissa de que a natureza é uma instância separada e inferior à cultura. Nessa lógica, o humano é adotado como referência e os seres não humanos vistos como instrumentos ou objetos para os projetos humanos (Süssekind 2018SÜSSEKIND, Felipe. 2018. “Natureza e Cultura: Sentidos da Diversidade”. Interseções. (20-1): 236-254.).

No entanto, a despeito de o Ocidente ter gestado suas próprias formas de compreensão e articulação com o que se convencionou chamar de natureza, e de ter tentado impor sua perspectiva ao resto do mundo, ainda assim outras formas possíveis resistem no mundo contemporâneo (Toledo & Barrera-Bassols 2009TOLEDO, Victor Manuel Manzur & BARRERA-BASSOLS, Narciso. 2009. “A Etnoecologia: uma Ciência Pós-normal que Estuda as Sabedorias Tradicionais”. Desenvolvimento e Meio Ambiente, (20):31-45.). Uma dessas é, sem dúvida, aquela impulsionada pelas religiões de matrizes africanas - das quais são adeptas 5 das 6 mulheres entrevistadas. Como ressalta Lélia Gonzalez (2020GONZALEZ, Lélia. 2020. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. In: F. Rios e M. Lima (orgs.), Por um Feminismo Afro-latino-americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio de Janeiro: Zahar. p: 75-93.), os terreiros são verdadeiros centros de resistência cultural. Não por acaso, Nirinha é da umbanda, religião em que predomina uma forte conexão com seres não humanos e com elementos ditos “naturais”.

Considerações finais

Ao longo desse artigo, procurei destacar como a forma de ser e estar no mundo dessas mulheres, negras e moradoras de favela, subverte muitas das normas estabelecidas no e pelo ideário moderno-colonial.

Nelson Maldonado-Torres (2008MALDONADO-TORRES, Nelson. 2008. “A Topologia do Ser e a Geopolítica do Conhecimento. Modernidade, Império e Colonialidade”.Revista Crítica de Ciências Sociais, (80):71-114.) afirma que o “ser colonizado” poderia ser referido também como o “condenado”, em alusão ao título de um dos principais livros de Frantz Fanon, “Os condenados da terra”. Com o termo, Fanon referia-se àqueles que viviam “nas terras ermas do império” ou, traduzindo para os dias atuais, nas periferias ou margens dos países, ou, das megacidades.

Apesar de o termo “condenado” sugerir, a meu ver, pouca capacidade de ação, Grada Kilomba argumenta que a margem não deve ser vista apenas como “um espaço da perda e da privação, mas sim como um espaço de resistência e possibilidade” (2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó.:68). Um espaço em que “podemos imaginar perguntas que não poderiam ter sido imaginadas antes, podemos fazer perguntas que talvez não fossem feitas antes” (Mirza 1997MIRZA, Heidi Safia. 1997. Black British Feminism. London: Routledge.:4 apud Kilomba 2019:68) e que, de modo criativo, ampliam os repertórios de possibilidades, desafiando os modelos hegemônicos fornecidos pela colonialidade.

Compartilhando dessa perspectiva, levanto a hipótese de que o contexto investigado representa uma espécie de “lócus fraturado”, como menciona Maria Lugones (2014LUGONES, María. 2019. “Colonialidade e Gênero”. In: H. B. de Hollanda (org.), Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo . P. 52-83.). A autora usa essa expressão para se referir a determinados contextos em que seria possível manter modos criativos de reflexão, comportamento e relacionamento. Segundo ela, essas possibilidades se apoiariam na afirmação da vida em detrimento do lucro, no privilegiamento das relações, na superação das divisões dicotômicas e na comunalidade. Afinal, como diz Lugones, “não se resiste sozinha à colonialidade de gênero” (2014LUGONES, María. 2014. “Rumo a um Feminismo Descolonial”. Estudos Feministas, (22-3):935-952.:949).

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Notas

  • 1
    Ao longo do artigo, me referirei à retomada da investigação, após a pandemia, como sendo a segunda etapa da pesquisa.
  • 2
    Os nomes das entrevistadas foram substituídos por outros para garantir seu anonimato.
  • 3
    Foram ao todo 12 visitas nessa primeira etapa da pesquisa.
  • 4
    Algumas entrevistas foram complementadas na segunda etapa da pesquisa.
  • 5
    “Sou amarela cor de peido”, disse em tom de brincadeira. Ao que depois acrescentou: “Não, eu sou negra... mas eu sou amarela. Na minha certidão de nascimento está escrito parda, mas parda é papel”.
  • 6
    Há casos em que o vínculo entre a criança e a mãe de leite é intenso e se mantém de maneira contínua ao longo da vida. Porém, nem sempre isso acontece. Quando não há um contato frequente, a criança e/ou adulto em geral sabe que foi amamentado por outra pessoa por meio de relatos e, algumas vezes, também de registros fotográficos. “Minha mãe sempre deixou claro: ela te amamentou, cuidou de você, na época em que eu trabalhava”, disse Silvia sobre sua “mãe de leite” na infância. Chamo atenção para um caso, narrado por Nirinha, que foge à regra. O vínculo entre ela e o “filho de leite” havia se perdido, pois a criança havia se mudado da favela com sua família, e foi retomado anos depois, quando esse jovem, que apesar do pouco contato, manifestava um grande carinho por ela, soube por meio de uma entidade espiritual que Nirinha havia sido sua “mãe de leite”.
  • 7
    O bebê de Angélica não foi amamentado exclusivamente por leite materno até os seis meses, pois nem sempre Marcelle estava em casa, mas teve mais acesso a ele pela possibilidade de “amamentação cruzada”. Nas ocasiões em que Marcelle não estava disponível, a irmã de Angélica oferecia ao bebê cereal em pó, que ela misturava ao leite de vaca - essa era a alternativa que estava colocada.
  • 8
    Tenho duas filhas, atualmente com 8 e 12 anos. Vivenciei a experiência da amamentação pela primeira vez durante o doutorado - ocasião em que me debrucei sobre a temática do parto humanizado (Hirsch, 2019HIRSCH, Olivia Nogueira. 2019. Parto Natural, Parto Humanizado: Perspectivas de Mulheres de Camadas Populares e Médias. Rio de Janeiro: Fiocruz. ). Naquela época, seguindo os protocolos de amamentação vigentes, me vi em meio a uma experiência que julgava prazerosa, mas, ao mesmo tempo, muito solitária e desafiadora.
  • 9
    No contexto desse comentário, as duas referiam-se aos riscos alardeados pelo discurso médico, isto é, à possibilidade de transmissão de doenças por meio da amamentação. Em outras situações, contudo, a transmissão de outros componentes indesejáveis também foi aventada, ainda que em tom jocoso. Inara, por exemplo, costumava dizer que Marcelle tinha transmitido “preguiça” à Vanessa através da amamentação.
  • 10
    Agradeço às sugestões das pareceristas, que me levaram a explorar de modo mais cuidadoso os substitutos ao leite materno, que não haviam sido mencionados espontaneamente nas primeiras entrevistas.
  • 11
    Marcelle também fez menção a uma experiência que vivenciou quando era adolescente, para ajudar uma prima que estava com as mamas cheias durante uma viagem: “[Ela] Estava com neném pequeno e o neném não tava mamando e ela tava já começando a ficar com febre... eu sentei com 15 anos e mamei no peito dela”, ao que acrescentou: “E não era tipo chupar o peito e cuspir o leite. Era mamar e engolir. (...) Se tem anticorpos e você pode receber, por que eu não vou receber? E ainda vou ajudar minha prima. Peito para mim... é isso”.
  • 12
    Segundo Nucci e Fazzioni (2021NUCCI, Marina, FAZZIONI, Natalia. 2021. “Amor ou Risco? Refletindo sobre Sentidos, Regulações e Orientações a Respeito do Leite Materno a partir de Casos de ‘Amamentação Cruzada’”.Horizontes Antropológicos. (27-61):291-322.), argumentos dessa ordem, como instinto e sentimento de confiança, também costumam ser utilizados em redes informais de compartilhamento de leite materno que se organizam através da internet e são cada vez mais comuns em países como os EUA.
  • 13
    Essa constatação também foi feita por Rodrigues (2006RODRIGUES, José Carlos. 2006. Comunicação e significado: escritos indisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad Editora.) no estudo que desenvolveu com os funcionários de uma empresa do ramo siderúrgico. Seu objetivo era tentar compreender o insucesso dos programas voltados para a redução de acidentes de trabalho.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2023
  • Aceito
    10 Abr 2024
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