Acessibilidade / Reportar erro

PASSAMANI, Guilherme R. 2018. Batalha de confete: envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal-MS. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 252 pp.

PASSAMANI, Guilherme R.. 2018. Batalha de confete: envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal-MS . Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 252pp.

Interior do Pantanal. Carnaval. Marinheiros. Jovens-velhos, velhos, velhos-velhos: o antropólogo Guilherme R. Passamani, em Batalha de confete: Envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal - MS, obra fruto de sua tese defendida na Unicamp, nos convida a pensar vivências da sexualidade, formas de experienciar o gênero e o envelhecer fora dos centros urbanos.

Passamani parte de um trabalho etnográfico nas cidades de Corumbá e Ladário - uma conurbação a 400 km da capital do estado -, no Mato Grosso do Sul, tendo realizado sua pesquisa a partir de conversas e vivências em campo com pessoas de “conduta homossexual” de 52 a 82 anos.

O livro conta com apresentação e prefácio de duas antropólogas, Regina Facchini e Guita Grin Debert, respectivamente, que, imediatamente, chamam a atenção para questões importantes, como a não compulsoriedade de migrar para os grandes centros para a vivência de sexualidades não normativas - como também mostra o trabalho de Ferreira (2008FERREIRA, Paulo Rogers. 2008. Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas. São Paulo: Editora Hucitec.) - e o uso, muito bem colocado, do termo “condutas homossexuais”, para dar conta de uma abrangência de sujeitos que borram, frequentemente, as fronteiras do gênero, complexificando noções sobre sexualidades e identidades.

A obra é dividida em introdução, cinco capítulos e considerações finais. O primeiro capítulo - Os caminhos que levam ao Pantanal - conta das suas tentativas iniciais de inserção no campo e sobre como o carnaval, de forma inesperada, tornou-se uma estratégia de aproximação do autor. No segundo capítulo, Batalha de confete e outros trânsitos, traz os conceitos de cronos e de kairós, para pensar, respectivamente, o tempo cronológico e a temporalidade específica - de certa forma, até mágica - do carnaval. O terceiro capítulo aborda mais diretamente os regimes de visibilidade, lançando mão de conceitos como closet, wardrobe e cristaleira, visando dizer que nem sempre uma saída do armário se faz necessária, mas as condutas homossexuais podem ser entendidas como transparentes desde muito cedo para determinados sujeitos. O quarto capítulo, Velhos são eles, aborda a perspectiva de alguns interlocutores sobre seus processos de envelhecimento e o próprio conceito de “velhice”, ao qual subjazem perspectivas morais específicas. O último capítulo, Do tempo de antigamente à bagunça, fala sobre os parceiros sexuais dos interlocutores de Passamani. Tais parceiros tendiam a ser o que os interlocutores consideram “homens de verdade”, em contraposição a um presente em que a dicotomia “homens de verdade” e “bichas” não se traduz em uma prática sexual em conformidade ao que esperavam, mas “bichas” passam a ter, por vezes, “bichas” como companheiros. Nas considerações finais, o autor retoma com maestria as questões abordadas e nos convida a uma reflexividade em torno da temática e da pesquisa.

Agora, destrinchando: já na introdução, Passamani nos convida a pensar sobre os regimes de visibilidade das condutas homossexuais. Eles dizem respeito a uma espécie de gramática a que os sujeitos vão acessar, de forma a aparecerem ou não visíveis de determinada maneira quanto à identidade de gênero e orientação sexual. O conceito de mapas corporais e signos de segurança (Mason 2001MASON, Gail. 2001. “Body maps: Envisaging homophobia, violence and safety”.Social & Legal Studies, v. 10, n. 1:23-44.) - body maps - aparece por haver uma espécie de gestão de riscos, controle de “jeitos”, em suma, negociações entendidas como necessárias para circular em determinados espaços, o que implica manejar o imanejável do próprio corpo.

Nesse quadro, vale resgatar os conceitos de wardrobe (aqui, Passamani poderia ter utilizado, acredito, o correspondente em português): guarda-roupas, em oposição ao armário (closet), no sentido de que a experiência de alguns interlocutores era de que “[...] não havia nada guardado no ‘armário’, mas à mostra no ‘guarda-roupa’, desde sempre” (:110), como é o caso de Soninha, entendida, amiúde, publicamente como “sapatão”, sendo as suas roupas um dos signos que apontavam para esse entendimento. Uma outra interlocutora que Passamani chama de Antenor-Simone-Antenor, referindo-se ao passado mais distante, passado menos distante e presente de suas identificações identitárias quanto ao nome, borra as fronteiras de gênero, uma vez que não se identifica como travesti nem como mulher trans, ao mesmo tempo em que fez mudanças corporais para ficar mais próxima do que entende como feminino, e prefere ser tratada com pronomes também femininos. Neste caso, Passamani acha que a noção de cristaleira pode se aplicar melhor que a de armário, como algo que se pode ver dentro: mesmo que não se usem os seus cristais diariamente, sabe-se que estão lá.

Outro ponto é que muitos interlocutores do autor conseguem o respeito social por meio do trabalho considerado digno. O carnaval aparece como uma forma de acesso ao mundo do trabalho para muitas dessas pessoas, em algum momento de suas vidas. A festividade - cuja ligação ao Rio de Janeiro, devido à influência de pessoas vindas do estado, é explícita - ganhou muita força na região. Assim, passaria, concomitantemente, a haver mais aceitação das condutas homossexuais na localidade, e o carnaval passou a aceitar mais tais pessoas como trabalhadores que, desse modo, ganharam valorização.

Um tempo que faz a dimensão ordinária se esvair é descrito por Moacir Palmeira (2002PALMEIRA, Moacir. 2002. “Política e tempo: nota exploratória”. In: Mariza Peirano (org.), O dito e o feito. Ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Núcleo de Antropologia da Política. pp. 171-177.), em seu campo, como o “tempo da política”, em que o cotidiano ganha uma conotação extraordinária. Passamani brilhantemente encara o carnaval como um tempo deste tipo, e para isso retoma o conceito grego de kairós. Contudo, esse kairós carnavalesco não era apenas um tempo em que coisas fora do ordinário aconteciam, como pessoas com conduta homossexual terem mais liberdade para circular durante o dia, e não só à noite (Passamani faz a ressalva de que isto não significa que a LGBTfobia fique suspensa no carnaval), mas um tempo caloroso da memória, a que os mais velhos poderiam recorrer, em idades mais avançadas, para concluir que teriam, sim, aproveitado muito a vida. Essa sensação de aproveitamento da vida aparece junto com uma resignação pelo fato de, na velhice, se tornarem mais “caseiros” e terem muito menos aventuras - quiçá, nenhuma.

Então, a velhice, somada a doenças, aparece para alguns interlocutores como uma fase de mais calmaria, relacionada por vezes a uma volta ao armário, por conta do novo cotidiano com familiares, falta de visibilidade para a sexualidade não heterossexual e as práticas sexuais se tornando, muitas vezes, inexistentes. Neste cenário, Passamani notou com frequência um pânico pela possibilidade de perda da independência.

Não obstante, existe um modelo de “velhice bem-sucedida”, bem representada por um interlocutor, Rubens, posto que mobiliza características e atitudes que remetem a um ideal de “juventude média”, como tônus físico e atividades sexuais num ritmo considerado bom/elevado. Entretanto, problematiza-se a ideia de “velhice bem-sucedida”, pois é necessariamente excludente, visto que, por variados motivos, como o de saúde, grande parte da população idosa não conseguiria atingi-la. É de se notar, inclusive, os privilégios de classe envolvidos nessa possibilidade, não coincidentemente, eu diria, esse interlocutor representativo do conceito também é o mais bem-sucedido financeiramente.

Passamani traz a imagem de “queijo gorgonzola” e de “queijo minas frescal” para pensar a velhice em contraposição à juventude, numa metáfora de que o sabor único do primeiro pode não ser facilmente deduzido pela sua aparência, sendo considerado menos belo que o “minas frescal”. Em contrapartida, o "gorgonzola" traria uma maior complexidade de sabores.

Importa mencionar a problematização de Passamani quanto à prostituição: não só em idades mais avançadas, mas durante toda a vida dos interlocutores, a ajuda (financeira) aos “homens de verdade” foi uma constante. Aqui, a interlocução com dois outros trabalhos pode ser muito proveitosa. Em A negociação da intimidade, Zelizer (2011ZELIZER, Viviana A. 2011. A negociação da intimidade. Coleção Sociologia. Trad. Daniela Barbosa Henriques. Petrópolis, RJ: Vozes.) discute a tentativa, na sociedade moderna, de se separar afeto de transações materiais. O medo de que as relações não sejam “genuínas”, no âmbito sentimental, mas interessadas economicamente é um dos maiores receios que a autora encontrou em seu campo, em que analisa uma miríade de litígios, acordos e decisões judiciais acerca de herança, casamento e afins. No caso de Passamani, haveria um receio constante de certas relações serem definidas como prostituição, o que não exclui a presença frequente de gratificações financeiras, presentes, ou um mais modesto “dar casa e comida”. O outro trabalho cuja interlocução seria produtiva é o livro Travesti, de Don Kulick (1998KULICK, Don. 1998. Travesti: Sex, gender, and culture among Brazilian transgendered prostitutes. Chicago: University of Chicago Press.), em que o autor escreve que, via de regra, a relação das travestis com seus namorados baseava-se nas travestis sustentando-os, enquanto eles, em troca, retornavam-lhes sendo “homens de verdade”.

Corumbá e Ladário tinham a peculiaridade de serem cidades que recebiam muitas pessoas de fora, muitos deles marinheiros, que se tornaram, principalmente durante a juventude dos interlocutores, o ideal de parceiros sexuais, sendo definidos, em geral, como “homens de verdade” e, lembrando muito o descrito por Peter Fry, citado por Passamani, esses marinheiros, por ocuparem os papéis de ativos sexuais na relação, não tinham seus status de “machos” e heterossexuais revogados. O desejo pela diferença, também inscrito no que Perlongher (2008PERLONGHER, Nestor. 2008. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.) chama de “tensores libidinais”, aparece com grande recorrência na narrativa dos interlocutores. Na velhice, um dos tensores libidinais é frequentemente relacionar-se com homens mais jovens, oferecendo-lhes, muitas vezes, como já aventado, alguns incentivos da ordem financeira. Chama a atenção a falta de relacionamentos afetivos estáveis, muitos preferindo acessar diretamente o que entendem como prostituição.

Uma ansiedade comum dos interlocutores de Passamani é com a sensação de que a oferta de “homens de verdade” diminuiu, uma vez que as mulheres estariam se tornado parceiras sexuais mais fáceis de conquistar, então algo que consideram estranho passou a acontecer com mais frequência: bichas se relacionarem com bichas.

Assim, Passamani nos convida a mergulhar na vida de seus interlocutores junto com ele, levando-nos a uma visita ao Pantanal por meio de um olhar sensível acerca de sexualidade e envelhecimento. O autor, sem dúvida, avança nas áreas de pesquisa que interseccionam as duas esferas mencionadas, mas, além disso, gera insights para pensar diversos aspectos desses campos onde quer que seja.

Referências

  • FERREIRA, Paulo Rogers. 2008. Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas São Paulo: Editora Hucitec.
  • KULICK, Don. 1998. Travesti: Sex, gender, and culture among Brazilian transgendered prostitutes Chicago: University of Chicago Press.
  • MASON, Gail. 2001. “Body maps: Envisaging homophobia, violence and safety”.Social & Legal Studies, v. 10, n. 1:23-44.
  • PALMEIRA, Moacir. 2002. “Política e tempo: nota exploratória”. In: Mariza Peirano (org.), O dito e o feito Ensaio de antropologia dos rituais Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Núcleo de Antropologia da Política. pp. 171-177.
  • PERLONGHER, Nestor. 2008. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo 2ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
  • ZELIZER, Viviana A. 2011. A negociação da intimidade Coleção Sociologia. Trad. Daniela Barbosa Henriques. Petrópolis, RJ: Vozes.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2023
  • Aceito
    24 Jun 2024
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com