RESENHAS
Lorena Isabel Córdoba
CONICET, Argentina
Valenzuela Bismarck, Pilar & Valera Rojas, Agustina. 2005. Koshi Shinanya Ainbo. El testimonio de una mujer shipibo. Lima: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales. 247 pp.
Este texto dialógico de Pilar Valenzuela Bismarck e Agustina Valera Rojas é, desde o princípio, uma obra escrita a quatro mãos. Valenzuela Bismarck traz seu sólido conhecimento acadêmico, sustentado pelas perspectivas complementares da lingüística e da antropologia. Valera Rojas, por sua vez, oferece ao leitor uma rica história de vida que não se limita a enumerar circunstâncias pessoais e incidentes biográficos, mas consegue refletir vividamente a história social shipibo. Tradicionalmente conhecidos pela literatura etnológica como Shipibo-conibo, as 35 mil pessoas que compõem o grupo de origem Pano encontram-se hoje distribuídas em numerosas comunidades ribeirinhas da Amazônia peruana.
Na busca por transcender o recorte necessariamente imposto por uma disciplina especializada como a lingüística, Valenzuela Bismarck começou, em 1988, com a gravação de uma série de narrativas livres em língua shipibo feitas por Agustina Valera Rojas Ranin Ama, em seu idioma. Em seguida, complementou mais sistematicamente tal informação com uma série de entrevistas e diálogos. Desde o início, o objetivo foi documentar uma visão privilegiada e única do mundo shipibo a partir da perspectiva concreta de uma moradora de San Francisco de Yarinacocha. A história de Ranin Ama, nesse sentido, é altamente instrutiva, pois se trata de destacada ceramista e ex-dirigente particularmente interessada na preservação da história do grupo. O livro condensa este testemunho de um modo acessível para os Shipibo e também para o público em geral, já que o texto se encontra integralmente transcrito em shipibo e em espanhol. Em conseqüência, o livro também constitui uma contribuição para todos aqueles que se interessam pelas sociedades amazônicas em geral e a Pano em particular.
Embora a discussão da história de vida tenha atraído interesses nas últimas décadas, é raro encontrar um material da qualidade como este aqui exposto. Os critérios que regem a tradução bilíngüe não só evidenciam uma competência lingüística, mas também percepção antropológica e sensibilidade humana. Uma das histórias centrais do livro, por exemplo, conta a festa do Ani heati, o ritual de excisão do clitóris. Valera Rojas narra a iniciação de suas irmãs mais velhas compondo uma trama de referências cruzadas ao trabalho comunitário dos homens e das mulheres, às danças, à comida, à caça e às tarefas rituais das especialistas femininas, fatores que, articulados, possibilitam a leitura desapaixonada e coerente de um tema polêmico.
Se ao longo das narrativas fica claro o papel que as mulheres ocupam na sociedade shipibo, também se torna evidente que ele não está rigidamente codificado em normas ideais e regras abstratas, mas é posto em ação, por exemplo, no contexto da práxis da aliança matrimonial: o "dever ser" feminino apresenta-se, assim, dramaticamente exposto no relato de um casamento arranjado pelos pais durante a adolescência. O mesmo pode ser dito em relação às narrativas sobre a gravidez, o parto, os cuidados com o recém-nascido e os tabus de couvade que, em muitos casos, ainda são vigentes entre os Shipibo, e aos capítulos dedicados aos ritos funerários. Estes contêm dados novos sobre o influxo das diferenças de gênero nas prescrições rituais, as quais devem ser acatadas pelos parentes do morto. Essa grande massa de informação permite também observar, talvez de maneira mais indireta, o ideal shipibo do caçador masculino, generoso e ativo; ao mesmo tempo, documenta algumas de suas mudanças nos tempos atuais, em função da inserção cada vez maior das comunidades na economia regional.
O livro revela ainda a importância simbólica que a cerâmica e o tecido têm na cultura feminina dos Shipibo. Se para o homem a ênfase moral maior está associada à capacidade de trabalho de subsistência, nas mulheres valoriza-se socialmente sua aptidão para a cerâmica e o tecido. Qualquer pessoa que tenha podido apreciar alguma vez o refinamento estético da cerâmica shipibo compreenderá que não se pode ignorar a significação cosmológica e simbólica de seu elaborado desenho geométrico. De fato, o significado desses desenhos não está ligado somente às formas geométricas ou zoomórficas, mas assume uma dimensão ontológica: "Os desenhos somos nós mesmos, nosso próprio rio, todos os nossos enfeites" (:64).
Além das informações que descrevem as relações cotidianas entre os gêneros, o livro contém uma boa quantidade de detalhes etnográficos de grande importância para a comparação etnológica; os termos de parentesco, a matança ritual de animais domésticos, as lutas rituais entre mulheres, as transformações idiomáticas e os cânones nativos de beleza são alguns dos temas abordados. Uma das partes mais interessantes da obra talvez seja aquela dedicada à percepção shipibo das relações interétnicas e, em particular, a visão sobre os Shetebo e os Conibo, com quem os Shipibo estiveram associados historicamente através de relações de aliança e troca.
Longe das construções ingênuas de certo indigenismo, o relato de Ranin Ama incorpora uma seqüência diacrônica, na qual a descrição da cosmologia tradicional está associada às opiniões sobre a religião missionária, o futebol feminino, a escola e a educação. A percepção do mundo exterior, da mesma forma, inclui tanto os demais grupos indígenas da região, como também uma interpretação algo nostálgica da influência ubíqua da sociedade ocidental. É neste contexto sempre negociado, sincrético e repleto de tensões que devem ser compreendidas as menções ambivalentes ao influxo da evangelização. Também emergem reflexões interessantes, do ponto de vista comparativo, sobre os processos de ressignificação do imaginário incaico: relatos míticos que narram a origem dos Shipibo relacionando-a com o "niño Inca" ou "el Inca y a la Mujer Inca" etc.
Ao longo de todo o volume, de forma mais ou menos implícita, percebe-se a ambigüidade valorativa geralmente presente na concepção amazônica da alteridade. Se, por um lado, os Shipibo reconhecem a importância da escola como forma de acesso a um nível de educação que lhes permite um trabalho remunerado e outros benefícios, por outro, percebem a escolarização como um veículo poderoso do progressivo abandono de seus costumes. Dessa forma, a recorrência das questões do sincretismo e da mestiçagem no discurso de Ranin Ama revela que se trata de um tema premente. Com esta obra, as autoras não somente expuseram esses dilemas, mas começaram a explorar possibilidades concretas que contribuem para o cumprimento da meta compartilhada: a reprodução ativa da cultura shipibo. Este livro é apenas um pequeno passo na direção de um objetivo maior; no entanto, a qualidade do conteúdo e a tradução minuciosa dos textos, a fluidez dialógica na argumentação e, sobretudo, o sentimento que surge em cada uma de suas páginas permitem, sem dúvida, abrigar uma grande esperança.
Tradução de Maria José Alfaro Freire
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Jul 2007 -
Data do Fascículo
Abr 2007