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Elaborando a violência na Amazônia: “consideração” versus “direitos”

Elaborating violence in the Amazon: “consideration” versus “rights”

Elaborando la violencia en la Amazonia: “consideración” versus “derechos”

Resumo

A partir da comparação dos discursos respectivamente de um homem e de um casal, todos pequenos agricultores da região de Altamira, Estado do Pará, o artigo enfoca as formas de apreensão da violência em situações de conflitos fundiários. A primeira parte apresenta os elementos que estas três pessoas associam à violência: tentativas de intimidações e homicídio, tiroteios e incêndios criminosos, sentimento de medo e vivência sob constantes ameaças. A segunda parte destaca os contrastes entre os discursos - tanto pela escolha das palavras-chave utilizadas quanto pelas formas como cada pessoa imagina poder se proteger: por um lado, o “respeito” e a “consideração” nas relações interpessoais, sendo vista a deflagração da violência no entorno imediato como uma consequência direta da violação dessa convenção moral fundamental; por outro, a proteção dos “direitos coletivos” por meio da justiça, o exercício do poder devendo aqui obedecer a leis e regras normativas, em princípio alheias a qualquer “favor”. Para concluir, procuro mostrar que estas diferenças não devem ser vistas como oposições irredutíveis, mas antes como polos em tensão cuja analise sempre deve levar em conta os contextos e os interlocutores.

Palavras-chave:
Amazônia; Conflitos fundiários; “consideração”; “direitos”; Registros discursivos

Abstract

Based on the comparison of the speeches of a man and a couple respectively, all small farmers in the region of Altamira, State of Pará, the article focuses on the ways of apprehending violence in situations of land conflicts. The first part presents the elements that these three people associate with violence: attempted intimidation and homicide, shootings and arson, feelings of fear and experience under constant threats. The second part highlights the contrasts between the discourses, both due to the choice of keywords used and the ways in which each person imagines being able to protect themselves: on the one hand, “respect” and “consideration” in interpersonal relationships, seen as the outbreak of violence in the immediate surroundings as a direct consequence of violating this fundamental moral convention; on the other, the protection of “collective rights” through justice, the exercise of power must here obey normative laws and rules, in principle unrelated to any “favor”. To conclude, I seek to show that these differences should not be seen as irreducible oppositions, but rather as poles in tension whose analysis must always take into account the contexts and interlocutors.

Keywords:
Amazon; Land conflicts; “consideration”; “rights”; discursive registers

Resumen

A partir de la comparación de los discursos de un hombre y de una pareja respectivamente, todos pequeños agricultores de la región de Altamira, Estado de Pará, el artículo se centra en las formas de aprehender la violencia en situaciones de conflictos de tierras. La primera parte presenta los elementos que estas tres personas asocian con la violencia: intento de intimidación y homicidio, tiroteos e incendios provocados, sentimientos de miedo y experiencia bajo constantes amenazas. La segunda parte destaca los contrastes entre los discursos, tanto por la elección de las palabras clave utilizadas como por las formas en que cada persona imagina poder protegerse: por un lado, “respeto” y “consideración” en las relaciones interpersonales, vistos como el estallido de violencia en el entorno inmediato como consecuencia directa de la violación de esta convención moral fundamental; por el otro, la protección de los “derechos colectivos” a través de la justicia, el ejercicio del poder debe aquí obedecer a leyes y reglas normativas, en principio ajenas a cualquier “favor”. Para concluir, busco mostrar que estas diferencias no deben verse como oposiciones irreductibles, sino más bien como polos en tensión cuyo análisis debe tener siempre en cuenta los contextos y los interlocutores.

Palabras clave:
Amazonía; Conflictos territoriales; “consideración”; “derechos”; Registros discursivos

Ao abordar a temática da violência, tendemos a apreendê-la com base em definições jurídicas que visam qualificar, de acordo com o seu nível de gravidade, agressões a pessoas, corpos e bens: insulta, ameaça, furto, tentativa de homicídio, latrocínio, assassinato etc.1 1 Agradeço aos meus colegas do laboratório de pesquisa MondesAméricains (EHESS) pela generosidade na leitura de uma primeira versão do artigo e pelas suas sugestões muito úteis para melhorá-lo. Gostaria de agradecer também aos dois pareceristas cujas observações e críticas me ajudaram a pensar melhor em termos de tensão, e não simples oposição, a comparação entre os dois casos expostos. Por fim, agradeço a Roberto Araújo por me permitir usar a entrevista de Bernardo que ele gravou. A enumeração chama atenção para a dificuldade de se chegar a uma definição genérica do fenômeno, que, ao mesmo tempo, evite a sua banalização e ocultação. No caso da França, o fato foi debatido após a publicação dos resultados de uma pesquisa sobre violência contra mulheres, que Michel Naepels resume nos seguintes termos: “uma das questões teóricas [...] tratava das condições de legitimidade científica de um índice geral de violência, ou seja, da questão da continuidade entre os diferentes registros de experiências e fatos reunidos sob este conceito” (2006NAEPELS, Michel. 2008. “Quatre questions sur la violence”. L’Homme [En ligne], 177-178 : 487-496. Disponível em: http://journals.openedition.org/lhomme/21787
http://journals.openedition.org/lhomme/2...
:488).

No caso do Brasil, antropólogas enfatizam que o registro do direito não é o único utilizado para se falar em violência. Em sua etnografia de pequenos agricultores no Paraná, Dibe Ayoub (2021AYOUB, Dibe. 2021. “Terra e desaforo: violência no campo, brigas e éticas de luta nos faxinais do paraná”. MANA 27(1): 1-29.) alerta que este último termo é menos frequente nas falas do que a palavra “sofrimento”. Por sua vez, na sua resenha do livro de Veena Das (2020DAS, Veena. 2020 [2006]. Vidas e palavras: A violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp. [2006]), Adriana Vianna destaca a “percepção da violência como categoria fundamentalmente instável e não transparente”. Anteriormente, a autora já tinha apontado que “aparatos institucionais variados, mobilizações políticas, estratégias de coletivização, dramas morais e sofrimentos pessoais igualmente entrelaçam-se às gramáticas dos ‘direitos’” (Vianna, 2013VIANNA, Adriana. 2013. O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers.:11). Para entender a complexidade deste objeto, é, portanto, preciso considerar várias dimensões: entre outras, os ajustes entre a linguagem cotidiana e a linguagem jurídica, as traduções para ser compreendido e as alianças políticas para ser ouvido, a construção de um coletivo a partir de experiências diversas.

Abordarei o tema me inspirando da abordagem pragmática da sociologia desenvolvida por Luc Boltanski e Laurent Thévenot (1991BOLTANSKI, Luc & THÉVENOT, Laurent. 1991. De la justification : les économies de la grandeur, Paris: Gallimard.), cujos objetivos são lembrados num artigo coletivo:

Em vez de tentar explicar as ações observáveis mobilizando a caixa negra das “relações de poder”, esta sociologia está interessada nas próprias ações observáveis à medida que produzem relações de poder. Abre-se então a caixa negra: as estruturas de poder já não são consideradas como causas, mas sim como resultados daquilo que se observa; e em vez de pretender esgotar a descrição e explicação do comportamento invocando uma palavra totêmica (“poder”, “dominação”, etc.), o pesquisador começa a estudar os efeitos do poder e os arranjos que os tornam possíveis. (Barthe & al 2013BARTHE Yannick, DE BLIC Damien, HEURTIN Jean-Philippeet al. 2023. “Sociologie pragmatique: mode d'emploi”,Politix, 3(103): 175-204.:200)2 2 No original: Plutôt que d’essayer de rendre compte des actions observables en mobilisant la boîte noire des « relations de pouvoir », cette sociologie s’intéresse aux actions observables elles-mêmes en tant qu’elles produisent des relations de pouvoir. La boîte noire se trouve alors ouverte : les structures de pouvoir ne sont plus considérées comme les causes, mais bien comme les résultantes, de ce qui est observé; et plutôt que de prétendre épuiser la description et l’explication des comportements par l’invocation d’un mot totem («pouvoir », «domination», etc.), le chercheur se met à étudier les effets de pouvoir et les agencements qui les rendent possibles.

Em outros termos, em vez de uma análise clássica abordando a violência como imposição de um arbitrário que se observa quase de maneira idêntica nas mais diversas situações, e em vez de considerar que todas elas são determinadas por estruturas de poder e que os interesses comuns sempre predeterminam a ação, os autores sugerem buscar uma postura de “radicalidade sociológica” (Barthe & al 2013BARTHE Yannick, DE BLIC Damien, HEURTIN Jean-Philippeet al. 2023. “Sociologie pragmatique: mode d'emploi”,Politix, 3(103): 175-204.:200) e um “nível de descrição [onde] os papéis de dominantes e dominados possam ser vistos e analisados como "realizações (accomplissements) práticas” (:195).

A implicação lógica desta perspectiva é de evitar presumir que, por elas se confrontarem a episódios semelhantes de pressões e ameaças que desestabilizam seu cotidiano e criam um clima de medo, as populações vulneráveis pensam e avaliam da mesma forma a violência que os afeta. De modo diferente, trata-se de pensá-las como atores e intérpretes que, para tornar uma situação inteligível, lançam mão de diversos registros, às vezes compatíveis, às vezes friccionais, de acordo com os interesses que vão identificando.

A perspectiva é, na verdade, próxima daquela, inspiradora, de Lygia Sigaud. Pois, ao constatar “a coexistência de comportamentos distintos em face da violação das normas jurídicas” (Sigaud 1996SIGAUD, Lygia. 1996. “Direito e Coerção Moral no Mundo dos Engenhos”. Estudos históricos , (18): 361-388.:362) por parte de pequenos agricultores nordestinos, a autora estabelece que “a cobrança dos direitos está subordinada a outras normas que regem a vida social, às coerções morais que se abatem sobre todos aqueles envolvidos em relações de troca e aos interesses que lhes estão associados” (:380). Em outra publicação, Sigaud alerta que a análise deve ir além dos aspectos normativos mais óbvios para se interessar pelos processos sociais e pela forma como cada um se engaja no campo social:

[Q]uando se trata de explicar, por exemplo, a ida à Justiça para a regulação de conflitos, o olhar é dirigido seja sobre os reclamantes - sobre sua tomada de consciência das injustiças, sobre suas possibilidades de acesso às instituições jurídicas -, seja sobre o conteúdo das normas e a função dos experts (advogados e magistrados). Tudo se passa, então, como se não fosse necessário ir além do direito, como se fosse possível compreender esta prática sem fazer a sociogênese dos conflitos, sem se interrogar sobre as propriedades sociais dos indivíduos envolvidos e a história de suas relações, sem, enfim, reinscrever os fatos relevantes do direito em quadros sociais mais amplos (2004SIGAUD, Lygia. 2004. “Armadilhas da honra e do perdão: usos sociais do direito na mata pernambucana”. MANA 10(1):131-163.:155).

No espaço deste artigo, no qual abordo um objeto de pesquisa novo para mim, não pretendo responder à ambição programática dos sociólogos franceses, nem mesmo seguir integralmente a brilhante proposta etnográfica da antropóloga brasileira. De forma mais modesta, gostaria de propor uma comparação entre duas narrativas, escolhidas por parecerem a priori paradigmáticas dos modos de se posicionar em contexto de conflitos por terra na Amazônia.

De fato, embora os números atestem as consequências sobre as populações vulneráveis dos tensos, e às vezes mortíferos, conflitos de terra na região,3 3 Conforme o Relatório "Conflitos no Campo no Brasil" publicado pela CPT em 2022, foram registrados em 2021 no Brasil 1.768 conflitos no campo (agregando Conflitos por terra, Conflitos trabalhistas e Conflitos por água) envolvendo 897.335 pessoas, e “35 assassinatos no campo, um número que supera em 75% o número registrado em 2020, de 20 mortos” (2022:7). No que diz respeito especificamente à Amazônia, Ricardo Gilson da Costa Silva nota que “97% das áreas de conflitos localizam-se na Amazônia, com um total de 68.849.402 de hectares” e que a região concentrou “52% dos conflitos por terra no Brasil e 62% do número de famílias envolvidas” (2020:109) pouco se sabe sobre os termos em que falam de violência e sobre as explicações que dão para tal irrupção nas suas vidas.4 4 No meu conhecimento, Paula Lacerda e Igor Rolemberg (2002) são os únicos autores a propor uma análise etnográfica da categoria êmica de violência na região amazônica. Ambas as entrevistas foram realizadas com pequenos agricultores na região de Altamira, no Estado do Pará, mas os dispositivos de interlocução diferem, já que a primeira conversa se deu entre um homem e um antropólogo enquanto a segunda teve um casal e dois pesquisadores como protagonistas.5 5 No âmbito de uma pesquisa financiada pela Agencia nacional de pesquisa (ANR, França) sobre “Conflitos territoriais sobre as frentes de expansão agrícola (Amazônia brasileira): violências, expulsões e dominação política” (ANR-21-CE41-0021), realizamos em fevereiro de 2022 um survey inicial que nos levou a conhecer diversas situações em Santarém e em torno de Altamira, entre as quais: a ocupação no lote 96 em Anapu, de que se tratará nestas páginas; a comunidade da Vila Ressaca ameaçada pela mineradora Belo Sun; um assentamento criado para realojar os ribeirinhos na beira do reservatório de Belo Monte, onde ficam proibidos de pescar. Roberto Araújo, do Museu Paraense Emilio Goeldi estava sozinho, em 2017, quando encontrou Bernardo, um homem de mais ou menos 50 anos, que morava na RESEX Rio Xingu.6 6 Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/30/opinion/1532957463_995238.html e https://uc.socioambiental.org/arp/4888. Com aproximadamente 303.841 hectares e 44 famílias cadastradas (Castro e Oliveira 2016CASTRO, Roberta Rowsy Amorim de & OLIVEIRA, Myriam Cyntia Cesar de. 2016. “Contradições em meio à tradição: o processo de criação da Reserva Extrativista Rio Xingu, Terra do Meio, Pará, Brasil”. Desenvolv. Meio Ambiente, 38: 439-460.), esta Unidade de Conservação de Uso Sustentável foi criada em 2008 para frear o processo de grilagem que, desde o fim dos seringais na década de 1970, ocorre com muita intensidade na região chamada Terra do Meio, multiplicando os conflitos fundiários e acelerando o êxodo rural (Castro e Oliveira 2016CASTRO, Roberta Rowsy Amorim de & OLIVEIRA, Myriam Cyntia Cesar de. 2016. “Contradições em meio à tradição: o processo de criação da Reserva Extrativista Rio Xingu, Terra do Meio, Pará, Brasil”. Desenvolv. Meio Ambiente, 38: 439-460.; Castro, Maia; Carvalho e Guerra 2017CASTRO, Roberta Rowsy Amorim de, MAIA, Ricardo Eduardo de Freitas, CARVALHO, Gleiciane Barroso & GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. 2017. “Da posse à Reserva Extrativista Rio Xingu: ameaças conflitos e mobilização social na Terra do Meio, Pará, Brasil”. Sustentabilidade em Debate - Brasília, 8(2): 88-101.). De modo diferente, estávamos juntos quando, em 2022, fomos à gleba pública federal Bacajá no município de Anapú (Km 80 da BR-230), para conhecer Erasmo, liderança da ocupação do lote 96 na casa dos seus trinta anos, e sua esposa Natalha,7 7 Natalha pediu para que seu nome e o do Erasmo aparecessem como forma de dar publicidade a sua luta e assim protegê-los, por isso não os anonimizei. O nome de Bernardo é fictício, uma vez que seria impossível perguntá-lo como queria ser abordado. com mais ou menos a mesma idade. Após conquistar uma lamentável notoriedade por ter sido o local onde a missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada em 2005,8 8 https://apublica.org/2021/04/na-terra-de-dorothy-stang-lider-ameacado-pede-socorro-novamente/ o lote 96 e as 54 famílias que ali vivem são tema de inúmeras publicações jornalísticas, regionais, nacionais e internacionais9 9 Entre os resultados de matérias jornalísticas contabilizadas pelo Google, ver, por exemplo: https://apublica.org/2022/06/quem-e-um-dos-dez-suspeitos-de-queimar-casas-e-ameacar-agricultores-no-para/; https://midianinja.org/news/portaria-determina-criacao-do-assentamento-de-reforma-agraria-no-lote-96-em-anapu/; https://pontodepauta.com/2022/08/19/lote-96-em-anapu-e-novamente-atacado-por-pistoleiros-armados-marinor-cobra-providencias/; https://www.cath.ch/newsf/bresil-en-amazonie-la-cpt-presente-malgre-les-menaces/; https://brasil.elpais.com/opiniao/2019-12-20/protejam-erasmo-ele-pode-ser-assassinado-a-qualquer-momento.html , e de diversos vídeos divulgando sua “luta” pela criação de um assentamento de aproximadamente 4.000 hectares (somando ao 96 o lote 97 vizinho)10 10 Ver: https://reporterbrasil.org.br/2022/08/com-criacao-de-assentamento-parada-ataques-contra-sucessores-de-dorothy-stang-se-agravam-no-pa/ bem como os ataques sofridos por parte do fazendeiro.

Ao longo do artigo, usarei abundantemente de citações para restituir, com a maior proximidade possível das falas dos atores, a sua maneira de enunciar e interpretar a sua participação no campo social. A primeira parte explica como a mulher e os dois homens descrevem situações semelhantes em que são repetidas as tentativas de intimidação e homicídio, tiroteios e incêndios criminosos, e o medo ao viver sob constantes ameaças. Contudo, se os três se referem a um quadro comum e a experiências semelhantes, eles não parecem apreender da mesma forma a origem da violência, nem imaginar da mesma maneira poder se proteger dela.

Prestando atenção aos termos que Natalha, Erasmo e Bernardo utilizam, destacaremos num segundo momento as conexões que eles estabelecem usando palavras-chaves diferentes. Para o primeiro homem, Bernardo, o uso arbitrário ou abusivo da força está, antes de mais nada, contido pelo “respeito” e a “consideração” que cada um deve ter pelas pessoas às quais está, de uma forma ou de outra, vinculado por uma relação pessoal: esta versão enfatiza a importância da inserção em redes de interconhecimento como forma de proteção, sendo vista a deflagração da violência no entorno imediato como uma consequência direta da violação dessa convenção moral fundamental. Na segunda leitura, exemplificada pelas figuras de Erasmo e Natalha, o face a face entre aquele que detém a força física e os demais que ficam a ela submetidos é rompida pela introdução de um terceiro ator: o Estado e seus representantes. Nesta, o exercício do poder deveria obedecer a leis e regras normativas, em princípio alheias a qualquer “favor”, devendo ser administrado e fiscalizado pelas instituições. A irrupção da violência aqui atestaria a incapacidade do Estado de proteger seus cidadãos cumprindo as regras que ele mesmo promulgou - atestaria até sua cumplicidade com os “poderosos” para que a justiça não faça vigorar os “direitos” consagrados na constituição.

A escolha das entrevistas, como foi dito, foi norteada pelos contrastes que oferecem, à primeira vista, nas suas maneiras de abordar e elaborar as situações de conflito: código moral versus código jurídica. Estas formas subjetivas de percepção e resposta à violência parecem ilustrar a conhecida distinção entre a escrita do mundo da lei e a oralidade do mundo doméstico. Seria então tentador apreendê-las como exemplos de uma oposição entre um sujeito moderno e um sujeito arcaico, oposição que foi amplamente discutida pelas ciências sociais brasileiras, como bem lembra Roberto Efrem Filho (2023EFREM , FILHO Roberto. 2023. “Confrontar o presente: a crise democrática a partir do setor de Direitos Humanos do MST”. Horizontes Antropológicos [Online], 65.:26). Contudo, a respeito da casa e da rua, Roberto da Matta (1987DaMATTA, Roberto. 1987. A casa & a rua. Rio de Janeiro: Guanabara.) já chamava a atenção para o fato de que uma mesma pessoa pode alternar os repertórios de referência conforme o espaço em que se encontra. Portanto, não se trata aqui de pensar em termos dicotômicos, mas sim de considerar essas diferenças como reveladoras da coexistência de diversos ideal-tipos. Seguindo os antropólogos acima mencionados, a questão que o artigo tenta colocar é aquela das diferenças e convergências entre as tramas narrativas e das distorções que isso implica.

Experiências compartilhadas

Para comparar as narrativas de Bernardo, por um lado, e de Erasmo e Natalha, por outro, em suas diferenças, é preciso estabelecer primeiro em que medida são semelhantes e, para isso, nada melhor do que ouvi-los contar a sua trajetória. Ambos evocam situações de violência ao se referirem a acontecimentos análogos e, para isto, eles se utilizam de um vocabulário semelhante: “ameaças”, “tocar fogo”, “tiroteios”, “pistoleiros” etc. Por isso, pode-se argumentar que, embora não se conheçam pessoalmente, o homem e o casal se espelhariam sem muita dificuldade um no relato do outro.

Bernardo é filho de migrantes nordestinos. O seu pai ainda é criança quando, na década de 1940, seus próprios pais resolvem tentar a sorte na Amazônia. Já adulto, encontra-se em São Félix do Xingu e ali conhece a mulher que se tornará sua esposa. Bernardo tem grande admiração por esta geração de “pioneiros” que souberam se forjar uma “reputação” e impor “respeito”: por seu pai, que tudo fez para criar os muitos filhos e era conhecido por todos na região, mas também pelo avô materno que, diz Bernardo, marcou a história de São Félix ao construir, em 1938, a primeira igreja no que, na época, era apenas uma vila.

Este homem importante decide ajudar sua filha e seu genro dando-lhes uma terra “comprada”, ou seja, em princípio adquirida legalmente. O jovem casal prossegue então para o seringal Bom Jardim, na região de Altamira, onde tiveram 21 filhos, entre os quais 16 vivos, inclusive Bernardo. Os meninos ajudando o pai a cortar seringa, as meninas ajudando a mãe a cuidar da casa, e assim a vida segue seu ritmo. Quando cai o preço da borracha, Bernardo parte para buscar sustento em outros cantos: na década de 80, aos treze anos, ele trabalha alguns anos como tripulante na balsa, e depois como intermediário, comprando a produção dos "beradeiros" e vendendo-lhes mercadorias.

A partir do fim da década de 1990, a pressão fundiária começa a se exercer com maior força sobre as populações locais. No decorrer da entrevista, Bernardo retorna várias vezes às ameaças e “humilhações” incessantes por parte de um fazendeiro da região chamado Zé Serra, que manda “pistoleiros”11 11 No contexto de conflitos fundiários no Paraná, Dibe Ayoub (2014:109) chama a atenção sobre o caráter moral das maneiras de designar os homens de armas: “guarda” indicando o respeito, “jagunço” a agressividade e “pistoleiro” a “ruindade”. cujo “trabalho” consiste, no mínimo, em assustar as pessoas:

Zé Serra “veio com oito pistoleiros com forma de policiais [...] e acabou com a casa todinha a crivo de bala, furou a mobila toda, entendeu? Baleou um sobrinho meu, que ainda hoje ele é deficiente da perna devido esses balaços [...] Então eles fizeram todo esse trabalho, foi obrigado o pai vender a área e hoje. Nem assim mesmo, meu irmão, ele ainda vive ameaçado por ele, ele tirou a sua cabeça [...] Vale um prédio, dos melhores que [Zé Serra] tem no Rio Grande do Norte [...] estando dentro de casa [ele perguntou a Bernardo]: “tu tem isqueiro?” Tenho. “Me empreste teu isqueiro?” Aí pegou o isqueiro e tocou fogo na nossa casa nos nossos pés, um barracão que nos tinha [...] e a gente devia falar o que? Nada, entendeu [...] Ele tava com outro, querendo matar meu irmão, passou a noite toda acolá para matar o meu irmão, esse Zé Serra, e falou que aonde ele pegasse meu pai, ia dar um tiro nele [...] Humilhou bastante meu irmão e meu irmão não falou nada, que tinha medo, que não tinha como agir mesmo, se agisse ia morrer, entendeu?

O fato de o pai acabar cedendo à pressão vendendo sua terra ao fazendeiro, no entanto, não traz à família uma paz durável. Não apenas um contrato continua vigorando na cabeça do irmão de Bernardo, mas a terra onde reconstruíram as suas casas é cobiçada por outros atores: um seringalista chamado Debalde que, diz Bernardo, é parceiro “em aviamento” de um político de São Félix do Xingu conhecido por resolver qualquer disputa com homens armados, e uma empresa de Engenharia de Obras levando o nome do seu fundador, CR Almeida12 12 Sobre a atuação de CR Almeida na grilagem de terras, ver Araújo 2006:7. :

E a gente continua ameaçado. Tem um outro rapaz aqui, o seu Debalde, sempre vem ameaças. Já dormiu na mata amanhecido, ele diz que veio matar nos […] Então, depois, já foi a CR Almeida, aí é só o conflito. Veio a CR Almeida com esse policiamento militar de férias […] A CR Almeida é com polícia, né? Fazendo a grilagem com polícia […] Derrubou a nossa casa, uma casa que a gente tinha, de moserra (sic), carregou o motor de luz, dois moserra (sic), e eu comecei fazer cobranças, ele pegou e rodou com a pistola na mão, e falou: “aqui está o pagamento do qual que eu tenho na mão, essa pistola aqui presa na cabeça dele, entendeu?”

Quando Roberto Araújo encontra Bernardo em 2017, este mora há um ano na RESEX Rio Xingu. Embora seja um território em princípio mais protegido por se tratar de uma Unidade de conservação federal, ele afirma continuar a sofrer ameaças e ataques:

Quando foi agora, esses dias, esses meses passados no meio do mato, entendeu, tornaram, vieram de novo, invadiram de novo a minha casa, eu não tava. Invadiram aqui a minha casa, eu e a minha mulher. Rebentaram a porta do quarto, rebentaram a porta do quarto, carregaram o moserra (sic), carregaram os meus documentos, tô sem documentos, sem identidade, sem nada, que eles carregaram, entendeu? Carregaram meus documentos.

Apesar de tudo, Bernardo está confiante na possibilidade de um desfecho desta vez mais propício. Com efeito, espera que a justiça enfim os ampare, considerando, por um lado, o estatuto jurídico da RESEX e, por outro lado, o empenho da associação de moradores (um coletivo maior e, portanto, mais forte do que a rede familiar a que está acostumado se referir). No entanto, fica também evidente nesta citação e em outras adiante, que a concretização de tal situação favorável depende, em última análise, dos planos de Deus para com ele:

Então a gente espera da justiça, do trabalho da Resex é que melhore, que melhore a situação. Igual prometem pra gente, entendeu, que nem desse trabalho, entendeu, as conversa (sic) que eu ouvi, […] eu espero em Deus que atire tudo certinho, que agasalha, que nem a gente sai fora desse sufoco. Que pode andar amplo aí, para qualquer um canto, pode pescar sossegado, pode adentrar na mata aqui, que não tenha medo de pistoleiro vir varando.

O relato do Bernardo é de uma trajetória familial - a dos pais e depois a sua própria - constrangida pela vontade de mais poderosos, sejam eles humanos ou não-humanos. Porém, ele também acredita que o equilíbrio de poder possa ser modificado pelo envolvimento na associação da RESEX.

Erasmo13 13 Como esta seção se preocupa sobretudo com a apreensão da violência nas áreas rurais, e que Natalha tem experiência principalmente no território urbano, examinarei aqui a trajetória de Erasmo. No entanto, fornecerei elementos bibliográficos a respeito na seção seguinte, quando se trata de destacar diferenças entre as narrativas. também é filho de migrantes nordestinos. Ele é o filho único de uma baiana e de um paranaense que vieram ainda adolescentes para a Amazônia e se encontraram em Medicilândia na época da colonização da transamazônica (1970-80). E, como Bernardo, faz referência a um ambiente percorrido por diversas formas de violências. Embora não as associe diretamente a esse tema, não há dúvida de que as consequências de uma paralisia infantil, que o obrigou a passar, desde os três anos de idade, por várias cirurgias em Belém, Terezinha e São Paulo, contribuíram para forjar o seu caráter para a “luta”: insiste que passou “dez anos nesta batalha”. O exemplo do pai “que sempre esteve envolvido na militância social” foi igualmente importante. Erasmo diz que foi isso o que lhe deu o gosto de discutir “dos direitos” e de agir para obtê-los: por essa razão, organizou uma associação de pessoas com deficiência, da qual se tornou o primeiro presidente com 16 anos (ou seja, criando assim uma exceção legal, já que era menor de idade).

Por volta dos anos 2010, a família deixa Medicilândia para receber um lote num assentamento do INCRA em Anapu, mas o projeto acaba não se concretizando. Com efeito, no momento de implementar o processo de indenização do proprietário, o Estado percebe que este último tem uma dívida para com a SUDAM (autarquia que concede incentivos fiscais) e cancela o seu título de propriedade sem que isso implique uma transferência da terra para o órgão fundiário. Sem condições financeiras para adquirir outra terra por via de compra, Erasmo busca soluções alternativas. É nestas circunstâncias que um conhecido lhe fala de uma “ocupação” se organizando a pouca distância do projeto de assentamento para contestar a decisão de cancelá-lo, e que ele, por sua vez, convide seus pais a “entrar também nesta luta pela terra”:

Erasmo: Onde nós estávamos, foi uma terra titulada, tudo, certinha, que foi cancelado, o título, devido a uma dívida de um programa que teve do governo, chamado SUDAM. E o cara ficou em debito com o governo, e cancelou o título dele. Essa terra virou pública. Aí houve a ocupação da comunidade, nessa área aqui. Roberto: E vocês chegaram como aqui? Erasmo: Eu cheguei através de um amigo que me convidou, por que não tínhamos condições de comprar e ele disse de eu vir pra cá. Que tinha uma área pública, que algumas famílias já estavam e que gostariam de mais gente para fortalecer a luta deles e também era uma forma da gente ter uma terra. Entende? E uma forma da gente lutar pra uma terra. Que a gente não tem condição de comprar. E assim que nós viemos pra cá. Entrei aqui, nessa luta, e aqui foi a mesma questão: ameaças, pistoleiros, a Norte Energia, por causa da barragem, era na época da barragem. A gente lutou contra isso. Depois [veio] a Belo Sun, a gente lutou contra a Belo Sun. A Belo Sun querendo pegar essa área daqui para transformar em reserva [de terras para a mineração]. A gente não permitiu. Eu participei dessa luta ativamente, ativamente com os principais atores dessa luta. Depois eu consegui, com um cara daqui [...] eu consegui fazer uma negociação através o Banco da terra,14 14 O Banco da terra é um projeto do Banco Mundial implementado na década de 1990 em parceria com o Estado brasileiro para o financiamento de terras por trabalhadores do campo (Oliveira 2021). que é do estado do Pará. Acho que tem só duas negociações dessas. Consegui fazer e nós conseguimos, consegui fazer uma negociação na qual o cidadão daqui foi indenizado pelo INCRA. E aí, o INCRA veio, fez assentamento. Então tem todo um processo aqui.

O contexto fundiário descrito por Erasmo difere de Bernardo, já que se trata aqui de assentamento e não de RESEX. Outra diferença é que Erasmo relata sua experiência também em outras lutas: contra a construção da barragem de Belo Monte e contra as recentes tentativas de criação da mineradora canadense Belo Sun. Mas, da mesma forma, os dois homens estão acima de tudo preocupados com as ações dos fazendeiros e seus pistoleiros.

Erasmo conta que a situação se tornou ainda mais difícil quando o fazendeiro contestou a anulação pela justiça do seu título de propriedade e obteve, num primeiro momento, a reintegração de posse. Convencido de que estava em seu direito, Peixoto mandou homens armados para ameaçar e expulsar os moradores. O clima ficou tão tenso que Erasmo foi incluído por um tempo no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, criado após o assassinato de Dorothy Stang (Lacerda & Rolemberg 2022LACERDA, Paula & ROLEMBERG, Igor. 2022. “Violências contemporâneas contra lideranças na Amazônia brasileira: enquadramentos morais, legais e associativos”. Anuário Antropológico [Online], 47(1): 87-106.:101). Se a instalação de um sistema de videovigilância o tranquilizou um pouco, o mesmo não aconteceu com a proteção policial que lhe foi concedida por justiça. E sua desconfiança (“não se sabe o que o policial vai fazer quando termina o expediente”) se revelou justificada: quando o programa foi interrompido, um delegado da polícia civil, alegando estar agindo por ordem do juiz, apareceu duas vezes, “alterado e falando arrastado”, apontando a arma para eles.

No dia 28 de junho de 2022, a pedido do MPF, uma portaria do Incra decretou enfim o Projeto de Assentamento PA Irmã Dorothy Stang, nomeado assim em homenagem à missionária assassinada: uma área de 4.000 hectares destinados a 73 famílias de pequenos produtores agroflorestais. No entanto, a alegria que suscitou durou pouco. Apenas quatro dias depois, a decisão foi suspensa, supostamente devido a um erro processual, mas talvez, mais provavelmente, devido à pressão de fazendeiros, grileiros e madeireiros.15 15 Ver: https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2022/07/06/apos-pressao-incra-revoga-criacao-de-assentamento-irma-dorothy-em-anapu-pa.htm Depois de muita resistência, Erasmo acabou renunciando, em outubro 2022, o seu trabalho de liderança da ocupação, em razão dos riscos de morte, levando a família para outra parte da Amazônia.

Das conversas com Bernardo e Erasmo, nota-se que ambos enfatizam trajetórias de vida conturbadas, marcadas por relações de poder desequilibradas que dificultam o cotidiano e atrapalham a possibilidade de realização de projetos. Elas atestam também o seu apego às figuras paternas (Bernardo não esconde a admiração pela tenacidade do pai, mas também do avô; Erasmo sublinha que o pai serviu de modelo) e às relações pessoais, sejam elas de parentesco, de militância ou de amizade, por meio das quais têm acesso a oportunidades (o “convite”) ou podem encontrar solidariedade.

Além disso, eles chegam ao mesmo diagnóstico de corrupção generalizada. Bernardo afirma que, no início, confiava na polícia e, quando o pai foi obrigado a vender o terreno, a sua primeira providência foi prestar queixa na delegacia. No entanto, o que ele descobre, diz ele, é um dispositivo generalizado de subornos: “Então foi batido uma ocorrência, chamei umas autoridades. As autoridades falou (sic): ‘sofre? tem que pagar!’, que tava (sic) sendo compradas as autoridades de São Félix do Xingu, comandadas por eles, os políticos de São Félix”. Erasmo compartilha com ele da mesma opinião e denuncia as propinas distribuídas pelo “grileiro” Peixoto à polícia “na forma de caminhões de gado”. Destas experiências, decorre uma avaliação semelhante da ineficácia, em razão de sua utilização para fins privados, das administrações do município, do estado e da União. Só escapam da crítica instituições como o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública -tidos como prejudicados por este funcionamento, mas nunca corruptas em si.

Outra convergência aparece nas distinções que ambos fazem entre o modus operandi de seus diversos adversários e, portanto, dos riscos a que se expõem ao enfrentá-los. Se Bernardo evoca armas e “pistoleiros em forma de polícia” para todos, ele diferencia os atores que os ameaçam a fim de comprar terra a um preço irrisório e outros, mais perigosos, que mandam matar sem hesitação “para limpar a área” e assustam até mesmo seus rivais. Tais distinções são também evidentes no depoimento de Erasmo. Este último desconfia do “grileiro” Peixoto, que não hesita em mandar pistoleiros para intimidá-los; mas diz que teme a sua morte e ter de então lidar com os seus herdeiros, homens que seriam ainda mais violentos. Ele não explica exatamente como formulou esta opinião, se ele considera que se trata de uma questão de temperamento ou que resulta da ausência de relação pessoal com os moradores. O que importa aqui, para nossa análise, é que Erasmo, tal como Bernardo, realiza avaliações diferenciadas dos seus adversários.

Uma certa desconfiança em relação às diversas intuições, e, em primeiro lugar, à polícia, bem como uma capacidade em avaliar a gravidade das ações dos autores das violências que os atingem e um apelo para investir-se em projetos territoriais coletivos, resultam de uma avaliação semelhante das experiências que tiveram e ainda têm. Contudo, conforme veremos agora, as referências que eles mobilizam para decifrar as situações, suas formas de imaginar como seria possível evitar ser subjugado por uma relação de força desfavorável e ainda conseguir resgatar autonomia, são muito diferentes.

Elaborações diferenciadas

Nessa segunda parte, prossigo na comparação entre as entrevistas, considerando, desta vez, as especificidades que cada uma delas apresenta. Alguns pontos já podem ser adiantados: unicidade ou não das figuras de referência (o pai para Bernardo, o pai e a esposa para Erasmo), valorização de redes de relações diferentes (de proximidade no caso do primeiro agricultor, de militância para o segundo), bem como os valores destacados (“consideração” versus “direitos”). A descrição, portanto, concentra-se na maneira como os atores articulam esses diferentes elementos em função das estratégias que constroem.

Um pai por proteção, a “consideração” como leme e a violência como “trabalho”

A referência que domina o depoimento de Bernardo é, sem sombra de dúvidas, a do pai. No comovente relato da sua expulsão pelo fazendeiro, esta figura masculina onipresente, quase avassaladora, se desdobra na do avô que "entrega a terra" e, mais tarde na entrevista, se espalha na do padrinho "que dá força". A ênfase está, portanto, em uma relação de autoridade:

Eu não tinha necessidade de pegar [minhas coisas] e sair da forma que nem saiu, entendeu? [...] Tem o respeito e a consideração por nós que nos era nascido e criado na região! Então não pertencia ele [o fazendeiro Zé Serra] de fazer um tipo de coisa que ele igualmente veio com oito pistoleiros com forma de policiais [...] Ele devia ter pelo menos uma consideração pelo menos pelo meu pai. Digamos que nem por nós, pelo menos pelo meu pai, que era um veterano, um antigo, chegou em 40 com 8 anos de idade, entendeu? E meu avô comprou por doze mil reis na época, e entregou para meu pai […] Então ele devia ter pelo menos um respeito e uma consideração por nós. Ele devia comprar ou devia negociar, fazer conta um negócio para não haver atrapada (sic) nenhuma.

O que torna o episódio particularmente intolerável aos seus olhos é, tanto quanto a expulsão em si, o fato deles terem sido tratados como completos estranhos, ou seja, como pessoas desprovidas da inserção social que caracteriza aqueles que são “nascidos e criados na região”. O fato é importante, pois, para Bernardo, é por meio do interconhecimento que as pessoas criam um ambiente familiar, que se espera seguro. E, pelas suas histórias pessoais e pelas redes de relações que souberam construir, o pai e o avô parecem-lhe ter uma posição de destaque neste mundo personalista. Por fim, ele julga que a forma de proteção conferida pelo “respeito” e pela “consideração” que lhes é merecida, se estende também aos seus descendentes, ou seja, a ele. Ora, ao chegar para tomar a terra com a ajuda dos seus pistoleiros, o fazendeiro desconsiderou os laços que unem as pessoas à terra, não avaliou as reputações locais e transformou todos os “pequenos” em seres descartáveis (por serem “não rentáveis” como escreve Robert Kurz em 2005KURZ, Robert. 2005. “Unrentable menschen. Ein Essay über den Zusammenhang von Modernisierungsgeschichte, Krise und neoliberalem Sozialdarwinismus”, In: Ausserfamiliäre Sozialisation: Analyse, Visionen und Schritte. Bologna - Pisa - Brunnen. Zürich: 6-11 [tradução em português: http://www.obeco-online.org/rkurz254.htm]
http://www.obeco-online.org/rkurz254.htm...
). Descumpriu, portanto, a obrigação moral de “considerar” - reconhecendo as inscrições sociais locais - e “negociar”, abrindo o diálogo para se chegar assim a um acordo, mesmo que este fosse desigual.

Como se sabe, a figura do pai não é, necessariamente, a do progenitor e um “padrinho” pode, portanto, operar como substituto. Na citação seguinte, ela encontra uma expressão original, “pessoas de autonomia”, o que Bernardo imagina se tratar do exato oposto daquilo que ele pensa ser: uma pessoa analfabeta, dependente de favores e lutando para ser vista pelos mais poderosos. Ele retrata as “pessoas de autonomia” como bem-intencionadas, com sólida formação acadêmica e conhecimento das normas jurídicas, o que lhes permite explicar a eles as razões da situação de exploração em que se encontra. Por isso, seriam pessoas dispostas a defender a sua causa, como, por exemplo, chamando a atenção de jornalistas de um canal de TV nacional:

Então que a gente não tem nem como agir, a gente não tem um padrinho, força para chegar, entrar junto com a gente no trabalho, [...] explicar a situação, o acontecido: assim, assim [...] Então, eu acredito quando as coisas acontecem assim, que, as pessoas de autonomia, que tem um reconhecimento da lei, que informam a gente, nós que somos analfabetos, eles explicam que é por conta da, dos políticos, da cidade, que segura, que defende eles [os fazendeiros...] Então o que eles falam, as pessoas de autonomia, estou acreditando que seja. Por que isto já foi pra Brasília, as pessoas de autonomia já levou (sic), isto já passou no Fantástico, entendeu?

Do seu ponto de vista, a “autonomia” destas pessoas significa que não estão sendo presas nas relações locais de poder, o que lhes permitiria tomar medidas fora do seu alcance. O maior desejo de Bernardo é, portanto, encontrar alguém mais forte do que ele (podendo ser, inclusive, o pesquisador de passagem); alguém em quem possa “se encostar” para chegar ao que ele chama de “autoridade máxima” (o governo, as instituições, Brasília), outra expressão original que aparece diversas vezes em seu relato. Em outros termos, Bernardo considera que, a partir do momento em que uma “pessoa de autonomia”/ “padrinho” aceita colocá-lo sob a sua proteção, ela não só pode, como deve, falar em seu nome, tornando-se um escudo, mas também uma espécie de trampolim que lhe permite acessar a níveis mais elevados do poder e áreas geográficas distantes. Isto, o contato estabelecido com o poder central, é uma condição para a concretização do seu verdadeiro objetivo: ser finalmente escutado pelas autoridades locais em suas denúncias sobre a “corrupção”, desengavetando, ainda, as antigas já feitas.

Tem [...] ocorrência baseada em Altamira, [...] em São Felix e nunca foi resolvido nada. E não vou mais, não tem como. A não ser que seja acompanhado, que uma pessoa possa querer pedir para me acompanhar ele para Belém, ou Brasília, esses lugares assim do Brasil para frente para mim dar um depoimento e sair a verdade [...] Eu queria chegar a oportunidade ainda de me encostar numa pessoa que nem o senhor, outra pessoa, de me encostar, assim chegar até o lugar que eu queria, pra bater a verdade. Mas um dia vai chegar essa oportunidade, eu tenho fé em deus, eu tenho fé em Jesus que vai chegar essa oportunidade. De eu chegar um dia e bater essa oportunidade de contar pra autoridade máxima, das corrupção (sic) que acontecem, e não vou falar mentiras, e o que aconteceu, que é isso, isso mesmo, não é mentira.

Para explicar a necessidade em que se encontra de buscar apoios exteriores, Bernardo refere-se a sua própria vulnerabilidade - recorrendo a diversos qualificadores depreciativos (“sem estudo”, “sem diploma”, “sem profissão”, insiste ele em outro momento) -, e a de todos que passam por dificuldades semelhantes às suas. Esta vulnerabilidade explicaria porque as populações não têm outra opção senão deixarem-se comprar por “mixarias”. Mas tal fragilidade social pode se transformar em fraqueza moral quando, segundo o seu julgamento, elas acabam contaminadas pela corrupção, da mesma forma que acontece com os “poderosos”:

O ribeirinho, muito ribeirinho aqui, é comprado. Ou eles [os fazendeiros] fazem avisos onde, e eles chegam com açúcar, com café, uma taça de açúcar, uma taça de café, uma caixa de óleo e ele fica contente. Por que? Por que ele não tem condições de manter uma quantidade de mercadoria daquela com o trabalho dele, entendeu. Então ele faz tudo aquilo.

Devido a condições de vida problemáticas e a “corrupção”, Bernardo pensa que algumas pessoas poderiam deixar-se tentar pelo exercício da violência, como os pistoleiros, “‘pequenos’ armados pelos ‘grandes’ para assassinar ‘outros pequenos’” (Barreira 1998BARREIRA, César. 1998. Crimes por encomenda. Violência e pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política.:13), que recebem pagamentos pelo “serviço prestado” (:79). Causar violência é enunciado por Bernardo como um “trabalho”, ou seja, um serviço que alguém faz de maneira repetitiva para ganhar a vida. É neste sentido peculiar que a palavra “trabalho” é usada a respeito das diversas incursões de atores armados na área onde morava com o pai.

Tiraram policiamento militar de lá e vinham passar as férias aqui fazendo um trabalho aqui, os trabalhos aqui de zona, humilhando as pessoas [...] Madeireiro e grileiro de terra. Continua sempre fazendo um trabalho dele, a mesma coisa. [...] Sempre fazendo essa continuação no seu trabalho.

Este “trabalho” certamente é especial, mas, afinal, o medo e o sofrimento que provoca são inerentes à atividade. Portanto, considerando que “trabalho” se define pelo fato de ter finalidade e não pela natureza sua, Bernardo traça um tipo de equivalência, ou, no mínimo, de paralelismo, entre as atividades ameaçadoras dos fazendeiros e as atividades de mobilização. É como se cada qual, uns atacando para espoliar e outros organizando-se para se defender, estivessem no fim das contas cumprido com o seu próprio trabalho:

Então, por esse trabalho que [os fazendeiros] estão fazendo, estamos muito ameaçados, a nossa família. Somos muito ameaçados por conta que eles acham que nos esteje (sic) junto, fazendo um trabalho [com a associação da RESEX] para prender eles, desativar eles.

Vale notar, no trecho abaixo, que Bernardo parece ter pensado nesta possibilidade de se tornar pistoleiro. E que, se desistiu de seguir essa trilha, foi menos por apego a uma ética que por medo das consequências dramáticas que essa decisão poderia acarretar para ele e sua família: diante dos riscos, decidiu que era melhor levar uma vida de "pobre" do que virar alvo de outro pistoleiro:

Então chegou o ponto que falei para minha mulher: eu não tenho mais nada, não tenho compra, não tenho caboco me alugando: “me dá um milhão por dia para mim alugar”... “Eu te dou um milhão pra tu não falar nada”. Não... de jeito nenhum, eu fico comendo a minha farinha com peixe assado mesmo, entendeu, eu moro na minha casinha de palha. De jeito nenhum [...] Porque vai me dar um milhão e depois vai gastar quatro com a sua cabeça, tá entendendo? Então fica difícil isto, não fica? Muito difícil muito complicado. Então, indo com a verdade, é melhor.

Bernardo resolveu, portanto, seguir o caminho da "verdade". Na época da entrevista, ele afirmou estar bastante investido na associação da RESEX, onde atua na articulação dos pequenos agricultores. Isso faz com que permaneça bem longe da "pistolagem", apesar dos perigos que essa escolha também comporta.

Dizem que o primeiro que [os homens armados] vão fechar é vocês, que vocês estão fazendo um trabalho junto com [...] o pessoal da RESEX”. Eu digo: “olha, eu participei de uma reunião, e o pessoal nunca vieram mais em casa”. Só que eu vou trabalhar junto agora pra frente, com o pessoal da RESEX. Eu não vou parar, entendeu? Se eles vierem procurar, eu vou trabalhar até o fim, entendeu?

Agora, o seu objetivo é proteger a família de um fazendeiro agressivo, o que se daria pela criação de um coletivo de luta para o bem comum de pares. O seu engajamento duradouro, contudo, depende da obtenção de marcas de atenção, ou seja, que Bernardo receba “respeito” e “consideração”: as visitas ao seu domicílio pelo “pessoal da RESEX”, - que não aconteceram, mesmo que sejam ardentemente desejadas por ele - constituiriam o sinal mais óbvio do reconhecimento de um valor pessoal.16 16 Durante uma pesquisa realizada nos anos 1990 nos terreiros da baixadas de Belém, pude constatar que o prestígio das médiuns era avaliado em relação ao número de visitas que recebiam nas suas casas (Boyer 1993). Num tema completamente diferente, o dos períodos eleitorais e o “tempo da política”, Beatriz de Heredia e Moacir Palmeira (2006:46) apontam para o fato de que o prestígio que os líderes comunitários esperam adquirir localmente também depende das “visitas” que recebem dos candidatos.

Uma mulher como parceira, a multiplicação de “companheiros” e a luta pelos “direitos”

Ao contrário da situação de entrevista com Bernardo, que consistia essencialmente numa discussão entre dois homens, éramos quatro para a conversa no Erasmo: ele e a mulher, Natalha, conversaram com os dois antropólogos. Mónica Fernanda Figurelli (2011FIGURELLI, Mónica Fernanda. 2011. Família, escravidão, luta: histórias contadas de uma antiga fazenda, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social Museu Nacional , , UFRJ.) ressalta que, nas famílias de pequenos agricultores do Rio Grande do Norte com quem conversou, as mulheres não se sentiam legítimas para falar e encaminhavam os antropólogos para o marido. Geralmente isso também acontece na Amazônia, mas não neste caso. Erasmo, que participou da ocupação desde o início, sabe tudo sobre a situação fundiária e sobre as famílias que ali vivem, e é ele quem ouvimos na seção anterior. Mas, no que diz respeito ao presente trabalho de articulação no lote 96, quem fala é principalmente Natalha. Tal transgressão de um código implícito nas relações de gênero é certamente ligada à trajetória pessoal dela.

Natalha nasceu na região leste do Pará, numa comunidade ribeirinha hoje legalmente reconhecida como quilombola. Conta ela que, depois de ter-se criado no “quilombo”, foi morar numa favela em Santa Isabel e depois em Belém. A sua trajetória é de militância, desde os seus 17 anos: no movimento quilombola, no movimento negro, no movimento sindical e no movimento social trabalhando “mais especificamente com crianças, jovens e mulheres”. Natalha e Erasmo se encontraram, como dizem, “no Facebook”, enquanto estavam separados por 800 km. Se, em 2018, eles se desencontraram no evento em Belém, do qual Erasmo participou, a postagem do Facebook dele, com a foto de uma das filhas de uma famosa liderança Munduruku - “que vão ser as caciques do povo Munduruku no futuro” -, fez com que ela mandasse o like que iniciou a troca de mensagens. Em 2019, aproveitando uma viagem prevista para Altamira, Natalha vai “conhecer o assentamento”, onde quer checar a possibilidade de articular um grupo de mulheres. Sua estadia supostamente duraria uma semana, mas os dois resolveram continuar a “caminhar juntos”. Além dos filhos de outros relacionamentos que Natalha foi buscar em Belém, o casal se orgulha agora do seu bebê recém-nascido.

As redes sociais são hoje intensamente utilizadas na região, e certamente no mundo inteiro, e não dizem respeito apenas à vida pessoal. Em Altamira, os grupos de WhatsApp compartilham informações diversas (decisões judiciais, andamento das medidas de compensação de Belo Monte, notícias sobre “desintrusões” de Terras Indígenas etc.). Essas tecnologias permitem estabelecer contatos com outras lideranças, conhecer outras situações e também defender-se contra as investidas de homens armados. Erasmo compartilhou conosco vários vídeos gravados com seu celular por uma moradora da ocupação, neles aparecem policiais civis armados e pistoleiros invadindo o seu quintal em uma manobra de intimidação. No fim estes homens, acabaram desistindo por medo que esses pequenos filmes fossem difundidos de maneira viral nas redes, o que se tornaria uma evidência contra eles.17 17 Se uma parte das mensagens visa facilitar as mobilizações e a organização da resistência, outras são mais ambivalentes e os apoiadores de Bolsonaro estão, sem dúvida, presentes.

Natalha se considera, e é considerada por Erasmo, não apenas como uma companheira de vida, mas também como uma “parceira” de luta. Envolvida desde jovem em “grupos quilombolas” e “grupos de mulheres”, ela traz para ele a “vivência” de outras militâncias, o que o sensibiliza a novas questões e amplia os seus registros políticos. Erasmo apoia, por exemplo, a sua iniciativa de um “trabalho” centrado nas mulheres, contra as violências domésticas e a favor da saúde reprodutiva, algo que os outros homens da ocupação não apreciaram. É possível que seja, segundo Natalha, por ela ser mulher, mas é também possível que seja por eles acharem que essa é uma luta menor, quando comparada à luta pela terra, ou mesmo por esses homens a virem como uma pessoa da cidade desconectada das realidades locais.

Qualquer que seja a explicação, as ideias de Natalha de que “a gente vive uma cultura de violência [...] que isso é muito importante para nós, mulheres [...] que aquilo ali é errado e que a gente tem que mudar o quadro”, incitam Erasmo a pensar em novas questões, como a de gênero, a tal ponto de, durante o nosso último encontro em janeiro de 2023, ele se declarar “não-binário”. O casal, portanto, pensa nas lutas não apenas como convergência, mas talvez também como interseccionalidade. Trata-se, no entanto, de uma perspectiva ainda bastante excepcional. Em outras palavras, as ações violentas no contexto de conflitos fundiários costumam suscitar uma indignação mais ampla do que as outras formas de violência que afetam, diretamente e majoritariamente, mulheres e crianças - estas últimas sendo, até os dias de hoje, apenas associadas às prerrogativas do chefe de família na esfera doméstica.

O casal demonstra agilidade na reflexão sobre as formas embutidas de dominação, e é novamente em termos de sobreposição e reforço mútuo que os dois pensam nos contatos estabelecidos com pessoas externas à ocupação, no intuito de “fortalecer a luta” coletiva e o “trabalho de articulação” daqueles que passam pelas mesmas dificuldades cotidianas. A sua rede de relações, de fato, impressiona: combina jornalistas, advogados, políticos, universitários etc. Ao descrever seu processo de formação com a imagem de uma bola de neve, Natalha qualifica tais pessoas como “companheiros”. A sua certeza quanto aos planos protetores de Deus, enquanto Bernardo apenas “esperava” que assim fossem, talvez se explique pela confiança que deposita nestes modos de relações sociais:

Natalha: A gente encontrou na caminhada, nestes últimos anos, desde 2019, foi quando mudou o quadro, porque foi a partir de Eliane, Eliane Brum [jornalista, fundadora da plataforma SUMAÚMA18 18 Ver: https://sumauma.com/ e colunista no jornal El País]. Eliane começou a dar visibilidade, ela se aproximou de Erasmo e começou de mudar o quadro, sabe? Véronique: ela já veio aqui com vocês? Natalha: Sim, ela já veio aqui [...] O companheiro dela já veio também. Aí eles vieram aqui e criaram uma rede, uma rede de advogados, sabem, que nos apoia. A gente tem instituições que [...] nos ajudaram todas as vezes que a gente teve que sair às pressas, a conseguir recursos [...] pra ser retirada às pressas de um lugar, família grande que nem a nossa. Então a gente conseguiu que os nossos companheiros da SBPC viessem, trouxessem uma gama de companheiros, sabe do tipo a Sociedade brasileira dos direitos humanos, vieram, o comitê Dorothy. Veio uma serie de pessoas numa caravana, que fizeram uma grande reunião no assentamento. Teve parlamentares. Foi daí que saiu a ideia do nosso projeto de agroflorestal, que o professor Anderson [da universidade, membro na época da ONG Fundação Viver, Preservar, Produzir19 19 Ver: https://fvpp.org.br/quem-somos/ baseada em Altamira] fez, saiu pra pleitear com uma emenda parlamentar com a Vivi [Reis, deputada federal pelo Pará - PSOL], na federal, e a gente acha que vai sair, porque ela já pediu uma reunião. Então, são companheiros que vão abrindo as portas, e essas coisas nos fortalecem [...] Então isso tem nos garantido muito das vezes, [...] primeiro Deus nos guardando, depois os companheiros [...] Porque se a gente não tivesse esse contato com o professor Anderson, vocês estariam aqui agora? [...] Então, assim, um companheiro aciona outro, uma outra área, e isso nos fortalece.

Quando voltei a ver Natalha na cidade, ela me contou que um desses contatos, a jornalista Eliane Brum, foi particularmente importante para ela porque, assim como outras lideranças da região, ela havia sido “indicada” para ingressar no curso de jornalismo oferecido pelo Sumaúma.20 20 Conversei com duas mulheres em Altamira que estavam fazendo este curso, sem conseguir encontrar mais informações a respeito na Internet. As duas disseram que estavam recebendo uma bolsa e que a proposta é fazer jornalismo a partir das suas experiências cotidianas de resistência. Ainda assim, no dia da nossa visita na ocupação, o casal enfatiza que a aquisição de novos conhecimentos é, sobretudo, colocada ao serviço de um coletivo em luta. Por meio das conversas com profissionais de diversas áreas, eles vão adquirindo um certo domínio da linguagem jurídica e das normas administrativas, bem como um bom conhecimento da estrutura do poder, apesar de sua complexidade. Isto é aproveitado para desenvolver estratégias bastante sofisticadas. Durante uma reunião no “Colégio Paulo Anacleto”, uma pequena estrutura de madeira recoberta de palha que leva o nome de um militante assassinado no município de Anapu, em 2019,21 21 Ver: https://reporterbrasil.org.br/covamedida/perfil/paulo-anacleto/ Erasmo lembrou aos moradores que seu reconhecimento pelo MEC não era nada simbólico. O cadastro das 30 crianças confere visibilidade à ocupação e permite então acionar a máquina do estado para se beneficiarem de melhorias, como a estrada aberta pela municipalidade para que as crianças acessem à escola, mas que também é utilizada pelos pais quando se deslocam à cidade. Além disso, proporciona empregos remunerados (vigília, merendeira, professor) e gera a expectativa de que outros serviços, como os relativos à saúde, sejam implementados em breve: “precisa de um começo, e o começo é a escola”, conclui ele. É, portanto, uma base para que um conjunto de pessoas, mesmo desprovidas de “documentos” fundiários, possa reivindicar seus “direitos”.

Esta interação etnográfica também trouxe a luz outro elemento, bastante conhecido nos estudos sobre as consequências da guerra, mas que Natalha e Erasmo ainda não integraram totalmente em suas análises: os traumas psicológicos (depressão, suicídio etc.) e doenças fisiológicas (infarto, hipertensão etc.) causadas pelo estresse. Contudo, quando estávamos na reunião na escola do lote 96, bastou que fizéssemos uma pergunta relativa a esse assunto, para que as pessoas começassem a falar, às vezes chorando, sobre os efeitos dramáticos de uma vida sob ameaça.

A comparação entre esses dois depoimentos elucidou alguns dos eixos estruturantes dos relatos sobre situações de violência: entre a violência apreendida como quebra moral ou como infração criminal, entre uma leitura acentuando a verticalidade das relações sociais (a autoridade do “padrinho”) ou pressupondo uma maior horizontalidade (o apoio dos “parceiros”), entre estratégias que procuram diversificar social e espacialmente as redes de apoio ou reforçar as relações já existentes localmente. Assim, Erasmo e Natalha parecem se referir, sobretudo, a um universo de referências baseado no direito normativo e nos grandes princípios internacionais. Um elemento discursivo sugerindo essa inscrição é o fato de ambos tenderem a se apresentar não mais como "lideranças comunitárias", mas como "defensores dos direitos humanos".22 22 O fato de o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos estar associado à morte de uma figura conhecida por seu comprometimento com as lutas camponesas da região de Altamira talvez explique por que a expressão “defensores dos direitos humanos” é tão difundida por lá, a ponto de eclipsar a de “liderança comunitária”, o que não observei em outras áreas da Amazônia. Bernardo, por sua vez, retrata um mundo regido mais pela “consideração”, onde a violência tem o seu lugar (já que pode até fazer parte de um tipo de “trabalho”), mas cujo impacto deveria, em princípio, ser contido pelo código que rege as relações interpessoais.

Entretanto, estes eixos não organizam tanto oposições irredutíveis como tensões entre polos. Por exemplo, é óbvio que o casal, que fala muito sobre direitos e justiça institucional, também espera proteção por parte dos seus “parceiros”, e alguns se tornam como “padrinhos” ou padrinhos de fato dos seus filhos. Fica igualmente claro que Bernardo, que insiste na sua busca por uma “pessoa de autonomia”, também já tentou várias vezes apresentar queixa judicial, além de considerar importante envolver-se num coletivo como uma “associação”. Ao valorizar a formação e consolidação de vínculos, tanto pessoais quanto “profissionais”, nos processos de mobilização social, o casal e o chefe de família acabam compartilhando muito mais do que a antropóloga imaginava quando os ouviu pela primeira vez.

Em conclusão

Este artigo visou salientar que populações confrontadas a situações semelhantes, caracterizadas por acontecimentos unanimemente associados ao que é percebido como violência (seção 1), podem apreendê-las e elaborá-las de forma distinta (seção 2). Talvez a expressão mais forte da diferença entre os dois posicionamentos seja o contraste entre a violência pensada como um fato extraordinário, em outros termos, como algo que vem quebrar o que deveria ser a rotina do cotidiano, e a violência pensada como “trabalho”, isto é, como uma atividade que possa ser exercida de forma rotineira. Além disso, quem sabe seja possível acrescentar outra diferença relativa à palavra “direito”, dependendo se ela é usada no plural ou no singular. No plural, o termo é recorrente nos discursos de lideranças e ativistas dos chamados movimentos sociais, e também na literatura sobre a constituição de “novos sujeitos políticos”, para indicar que os “direitos” abrangem diversos aspectos (saúde, educação, terra) e dizem respeito a um coletivo. Mas é utilizado igualmente, desta vez no singular, por homens que afirmam sobretudo o seu enraizamento em uma genealogia familiar. Trata-se, principalmente, aqui, de se referir à autoridade de uma determinada pessoa sobre o que ela já considera seu (sua propriedade, sua família etc.). Em Torres (2017TORRES, Mauricio, DOBLAS, Juan & ALARCON, Daniela Fernandes. 2017. “Dono é quem desmata”. Conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo: Urutu-branco; Altamira: Instituto Agronômico da Amazônia, Disponível para download em: http://pdrsxingu.org.br/site/publicacoes.
http://pdrsxingu.org.br/site/publicacoes...
:154), é assim reproduzido um diálogo entre grileiros na Amazônia, um deles expressando o receio de perder o “seu direito” sobre a área que ocupa devido à concorrência.

Apesar da distância cronológica e geográfica, o que se observa nas situações de graves conflitos fundiários na Amazônia atual não deixa de evocar as análises desenvolvidas por Maria Sylvia de Carvalho Franco ([1969] 1997FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. 1997 [1969]. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP.) sobre a violência estrutural que atravessa a sociedade que se formou na região paulista no século XIX. Com efeito, no mesmo sentido do que já havia identificado a socióloga (:132-134), a tensão entre os “direitos” e a “consideração”, tal como aquela entre o reconhecimento dos mecanismos legais como fonte de justiça e a valorização das relações e compromissos pessoais como vetor de proteção, ilustram a "unidade contraditória" da sociedade brasileira, que nunca foi uma "dualidade integrada" (:11).

Mas, como tentei sugerir, os imaginários contrastados não são impermeáveis um ao outro. Nos casos considerados pelo artigo, nota-se que, mesmo articuladas de maneira diferente, as noções-chaves (“consideração” e “direitos”, “padrinhos" e "parceiros") se encontram presentes em ambas as tramas discursivas. Mesmo que ambiguidades, passagens, contradições apareçam com mais ou menos clareza no discurso dos entrevistados, não há dúvida de que, em todos os casos, as relações interpessoais continuam a ser uma referência fundamental.

A tese recentemente defendida por Igor Rolemberg sobre os acampamentos no Pará assessorados pela CPT, faz apenas três breves menções aos valores de “consideração” e de “respeito”, definidos como “bens intangíveis” (Rolemberg 2023ROLEMBERG, Igor. 2023. Mobilizar, Acompanhar, Denunciar. Uma etnografia da Comissão Pastoral da Terra na Amazônia Oriental. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro/EHESS.:214) ou “retribuições não materiais” (:370). A análise se detém mais sobre “a linguagem dos direitos”: “um idioma preferencial [...] num contexto de interlocução com o Estado” (:226), mas que “se torna cada vez menos audível” (:184) em razão da recusa do último governo de resolver as questões fundiárias. Pelo tema da tese, que trata da ação e do discurso dos agentes CPT e não faz das relações no acampamento um eixo privilegiado de reflexão, esse descompasso me parece passível de ser interpretado como mais um índice da coexistência de registros: um (centrado nos “direitos”) sendo acionado, como diz Rolemberg, na interlocução com o Estado e o outro operando mais internamente (a "consideração" que determina posições entre “quase-iguais”).

É, portanto, preciso levar a sério as conclusões de John Comerford quando, no que diz respeito aos múltiplos sentimentos assumidos pela noção de “luta”, afirma existir “inúmeras possibilidades de ‘hibridização’ [de] discursos analiticamente diferenciados, na fala concreta” (1999COMERFORD, John. 1999. Fazendo a luta. Sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política .:44). Entender o que faz com que os atores lancem mão e passem de um registro para outro exige levar em conta os contextos e os interlocutores. Pode-se dar mais dois exemplos de situações em que os diferentes registros e referências encontram-se entrelaçados. Durante suas atividades de mobilização das comunidades ribeirinhas, o movimento Xingu Vivo para Sempre perguntou aos moradores que nome pretendem dar a seu território para torná-lo visível às autoridades. Em resposta a esta questão, o dono da casa que nos recebeu naquele dia sugeriu espontaneamente dar o seu próprio nome, ao que a militante gentilmente objetou afirmando que o nome não pode ser personalista, mas deve evocar alguma coisa que é comum. Em outra ocasião, conhecemos uma mulher com reputação firmada de liderança trabalhando para o bem-comum, que se declarou feliz por uma das filhas ter conseguido o emprego no posto de saúde, mas queixou-se de que a outra não tinha conseguido o de professora. Não houve menção de compartilhar os cargos com as famílias da vizinhança. Pesquisas futuras deverão aprofundar a dimensão situacional desses engajamentos discursivos no campo social e, por enquanto, a questão de saber se, e quando, os “parceiros” são, ou não, por vezes vistos como “padrinhos”, permanece em aberto.

Referências

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Notas

  • 1
    Agradeço aos meus colegas do laboratório de pesquisa MondesAméricains (EHESS) pela generosidade na leitura de uma primeira versão do artigo e pelas suas sugestões muito úteis para melhorá-lo. Gostaria de agradecer também aos dois pareceristas cujas observações e críticas me ajudaram a pensar melhor em termos de tensão, e não simples oposição, a comparação entre os dois casos expostos. Por fim, agradeço a Roberto Araújo por me permitir usar a entrevista de Bernardo que ele gravou.
  • 2
    No original: Plutôt que d’essayer de rendre compte des actions observables en mobilisant la boîte noire des « relations de pouvoir », cette sociologie s’intéresse aux actions observables elles-mêmes en tant qu’elles produisent des relations de pouvoir. La boîte noire se trouve alors ouverte : les structures de pouvoir ne sont plus considérées comme les causes, mais bien comme les résultantes, de ce qui est observé; et plutôt que de prétendre épuiser la description et l’explication des comportements par l’invocation d’un mot totem («pouvoir », «domination», etc.), le chercheur se met à étudier les effets de pouvoir et les agencements qui les rendent possibles.
  • 3
    Conforme o Relatório "Conflitos no Campo no Brasil" publicado pela CPT em 2022, foram registrados em 2021 no Brasil 1.768 conflitos no campo (agregando Conflitos por terra, Conflitos trabalhistas e Conflitos por água) envolvendo 897.335 pessoas, e “35 assassinatos no campo, um número que supera em 75% o número registrado em 2020, de 20 mortos” (2022COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT), Conflitos no campo Brasil 2021/ Centro de documentação Dom Tomás Balduino - Goiânia: CPT Nacional, 2022. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/14271-conflitos-no-campo-brasil-2021
    https://www.cptnacional.org.br/downlods/...
    :7). No que diz respeito especificamente à Amazônia, Ricardo Gilson da Costa Silva nota que “97% das áreas de conflitos localizam-se na Amazônia, com um total de 68.849.402 de hectares” e que a região concentrou “52% dos conflitos por terra no Brasil e 62% do número de famílias envolvidas” (2020:109)
  • 4
    No meu conhecimento, Paula Lacerda e Igor Rolemberg (2002LACERDA, Paula & ROLEMBERG, Igor. 2022. “Violências contemporâneas contra lideranças na Amazônia brasileira: enquadramentos morais, legais e associativos”. Anuário Antropológico [Online], 47(1): 87-106.) são os únicos autores a propor uma análise etnográfica da categoria êmica de violência na região amazônica.
  • 5
    No âmbito de uma pesquisa financiada pela Agencia nacional de pesquisa (ANR, França) sobre “Conflitos territoriais sobre as frentes de expansão agrícola (Amazônia brasileira): violências, expulsões e dominação política” (ANR-21-CE41-0021), realizamos em fevereiro de 2022 um survey inicial que nos levou a conhecer diversas situações em Santarém e em torno de Altamira, entre as quais: a ocupação no lote 96 em Anapu, de que se tratará nestas páginas; a comunidade da Vila Ressaca ameaçada pela mineradora Belo Sun; um assentamento criado para realojar os ribeirinhos na beira do reservatório de Belo Monte, onde ficam proibidos de pescar.
  • 6
    Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/30/opinion/1532957463_995238.html e https://uc.socioambiental.org/arp/4888.
  • 7
    Natalha pediu para que seu nome e o do Erasmo aparecessem como forma de dar publicidade a sua luta e assim protegê-los, por isso não os anonimizei. O nome de Bernardo é fictício, uma vez que seria impossível perguntá-lo como queria ser abordado.
  • 8
    https://apublica.org/2021/04/na-terra-de-dorothy-stang-lider-ameacado-pede-socorro-novamente/
  • 9
    Entre os resultados de matérias jornalísticas contabilizadas pelo Google, ver, por exemplo: https://apublica.org/2022/06/quem-e-um-dos-dez-suspeitos-de-queimar-casas-e-ameacar-agricultores-no-para/; https://midianinja.org/news/portaria-determina-criacao-do-assentamento-de-reforma-agraria-no-lote-96-em-anapu/; https://pontodepauta.com/2022/08/19/lote-96-em-anapu-e-novamente-atacado-por-pistoleiros-armados-marinor-cobra-providencias/; https://www.cath.ch/newsf/bresil-en-amazonie-la-cpt-presente-malgre-les-menaces/; https://brasil.elpais.com/opiniao/2019-12-20/protejam-erasmo-ele-pode-ser-assassinado-a-qualquer-momento.html
  • 10
    Ver: https://reporterbrasil.org.br/2022/08/com-criacao-de-assentamento-parada-ataques-contra-sucessores-de-dorothy-stang-se-agravam-no-pa/
  • 11
    No contexto de conflitos fundiários no Paraná, Dibe Ayoub (2014AYOUB, Dibe, 2014. “Sofrimento, tempo, testemunho: expressões da violência em um conflito de terras”. Horizontes Antropológicos, 20(42): 107-131.:109) chama a atenção sobre o caráter moral das maneiras de designar os homens de armas: “guarda” indicando o respeito, “jagunço” a agressividade e “pistoleiro” a “ruindade”.
  • 12
    Sobre a atuação de CR Almeida na grilagem de terras, ver Araújo 2006:7.
  • 13
    Como esta seção se preocupa sobretudo com a apreensão da violência nas áreas rurais, e que Natalha tem experiência principalmente no território urbano, examinarei aqui a trajetória de Erasmo. No entanto, fornecerei elementos bibliográficos a respeito na seção seguinte, quando se trata de destacar diferenças entre as narrativas.
  • 14
    O Banco da terra é um projeto do Banco Mundial implementado na década de 1990 em parceria com o Estado brasileiro para o financiamento de terras por trabalhadores do campo (Oliveira 2021OLIVEIRA, I. G. R. 2021. Análise jurídico-constitucional da política de reforma agrária de mercado no Brasil - a luta dos movimentos sociais pela democratização da terra. Dissertação de Mestrado em Direito Agrário, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.).
  • 15
    Ver: https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2022/07/06/apos-pressao-incra-revoga-criacao-de-assentamento-irma-dorothy-em-anapu-pa.htm
  • 16
    Durante uma pesquisa realizada nos anos 1990 nos terreiros da baixadas de Belém, pude constatar que o prestígio das médiuns era avaliado em relação ao número de visitas que recebiam nas suas casas (Boyer 1993BOYER, Véronique, 1993. Femmes et cultes de possession au Brésil: les compagnons invisibles, Paris: Éditions L'Harmattan.). Num tema completamente diferente, o dos períodos eleitorais e o “tempo da política”, Beatriz de Heredia e Moacir Palmeira (2006HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de & PALMEIRA, Moacir Gracindo Soares. 2006. “O voto como adesão”. In: J.M.P.M Henriques, I.A Pordeus Júnior e F. Laplatine, (orgs.). Imaginários sociais em movimento: oralidade e escrita em contextos multiculturais. Lyon, França: Universidade de Lyon 2; Fortaleza, Brasil: Edições UFC; Campinas, Brasil: Pontes Editores, p. 281-298. :46) apontam para o fato de que o prestígio que os líderes comunitários esperam adquirir localmente também depende das “visitas” que recebem dos candidatos.
  • 17
    Se uma parte das mensagens visa facilitar as mobilizações e a organização da resistência, outras são mais ambivalentes e os apoiadores de Bolsonaro estão, sem dúvida, presentes.
  • 18
    Ver: https://sumauma.com/
  • 19
    Ver: https://fvpp.org.br/quem-somos/
  • 20
    Conversei com duas mulheres em Altamira que estavam fazendo este curso, sem conseguir encontrar mais informações a respeito na Internet. As duas disseram que estavam recebendo uma bolsa e que a proposta é fazer jornalismo a partir das suas experiências cotidianas de resistência.
  • 21
    Ver: https://reporterbrasil.org.br/covamedida/perfil/paulo-anacleto/
  • 22
    O fato de o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos estar associado à morte de uma figura conhecida por seu comprometimento com as lutas camponesas da região de Altamira talvez explique por que a expressão “defensores dos direitos humanos” é tão difundida por lá, a ponto de eclipsar a de “liderança comunitária”, o que não observei em outras áreas da Amazônia.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2023
  • Aceito
    16 Abr 2024
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