mana
Mana
Mana
0104-9313
1678-4944
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo explorar la noción de la rigtheouss person (persona correcta) propuesta por los Rastafaris Bobo Shanti de Jamaica y su relación con el comercio de productos alimenticios referidos por los Rastas como comida I-tal. Además, busca analizar específicamente cómo la venta de estos productos (incluyendo otras “sustancias nutritivas”, como el cannabis) por parte de los comerciantes Bobo Shanti articula dos dimensiones centrales en la formación de la noción de la persona correcta: a) la autonomía del trabajo asociada con la idea de una persona “que trabaja sin jefe”; b) la dieta I-tal y el régimen alimenticio propuesto por los Bobo Shanti. Hay varias instancias en las que se construye la "persona correcta", en gran medida a través del comportamiento cotidiano y las relaciones entre este comportamiento y los principios cosmológicos que organizan la comunidad Bobo Shanti. Aquí busco presentar esta noción de personalidad como un proceso complejo que involucra prácticas laborales y prácticas alimenticias, enfatizando cómo los Bobo Shanti imaginan y viven el Rastafarianismo en Jamaica. Finalmente, también tengo la intención de describir los modos en que las relaciones de género atraviesan y dan forma a la corporeidad Rastafari.
Introdução - O movimento Rastafári na Jamaica
O movimento Rastafári surgiu no último século do período colonial na Jamaica como um fenômeno religioso e político - originado entre a classe trabalhadora negra, rural e urbana - que mesclava interpretações particulares do Antigo Testamento, elementos de religiões afro-jamaicanas e princípios do Pan-Africanismo proposto por Marcus Garvey1 na construção de um movimento de libertação negra (Edmonds 2003; Semaj 1980).
Ainda que formas embrionárias do Rastafári já existissem desde as primeiras décadas do século XX, o marco histórico da fundação do movimento foi a coroação do príncipe Tafari Makonem (nomeado Ras Tafari)2 como Haile Selassie I, líder supremo do Estado Etíope (Barnett 2018; Chevannes 1994). Esse evento concretizou a realização da profecia aventada por algumas lideranças jamaicanas, mas particularmente vinculada a Marcus Garvey, que a visionava como o ponto de partida para a redenção da população negra na diáspora. Essa profecia enxergava no Salmo 68:31 - “Príncipes virão do Egito, e a Etiópia cedo estenderá para Deus as suas mãos” - o anúncio da libertação contemporânea que viria com a chegada de um rei negro e, para os Rastafáris, essa figura libertadora era o imperador Haile Selassie I (Edmonds 1998).
O movimento Rastafári surgiu em meio a um caldo político, social e econômico intenso, marcado pela Grande Depressão em 1930, pelos movimentos anticoloniais, pela acentuação das desigualdades sociais após a Segunda Guerra e pela independência política jamaicana da coroa britânica, em 1962. Era um contexto de desemprego generalizado marcado pelo racismo contra a classe trabalhadora negra jamaicana (Llewellyn Watson 1974). Michael Barnett (2018) argumenta que, a partir da coroação de Selassie I, podemos observar duas épocas importantes que resumem o desenvolvimento do movimento Rastafári na Jamaica.
A primeira época, entre os anos de 1930 e 1948, configura-se com o surgimento dos primeiros líderes, como Leonard Howell, Robert Hinds, Archibald Dunkley e Joseph Hibbert, e pode ser considerada enquanto um período de formação do movimento e da constituição de acampamentos Rastafáris. Cada uma dessas lideranças desenvolveu, de maneira independente, seus próprios grupos e comunidades, mas encontraram semelhanças no reconhecimento de Haile Selassie como o “Rei dos Reis” e arauto da libertação da população negra. Dunkley e Hibbert restringiram suas atuações à periferia urbanizada de Kingston, enquanto Howell, o mais proeminente entre eles, peregrinou com suas pregações entre a capital jamaicana e a província rural de Port Morant, tendo Hinds como seu braço-direito. Em 1940, após cumprir dois anos na prisão sob a acusação de sedição, funda o acampamento denominado Pinnacle em uma propriedade rural abandonada na província de St.Catherine, levando consigo entre 500 e 2000 seguidores (Smith et al. 1967).
Entre 1948 e 1968 instaura-se a segunda época de formação do movimento Rastafári, marcando, também, a segunda geração de líderes, como Mortimo Planno, Bongo Wato e Prince Emmanuel I, responsáveis pela constituição das primeiras Casas (“Houses”) Rastafári: a casa Nyahbinghi e a casa Bobo Shanti, às quais viria a se juntar mais tarde, a casa das Twelve Tribes of Israel. Foi a partir da organização das casas que os principais fundamentos do movimento, que permanecem até os dias atuais, foram implementados, especialmente o consumo da ganja,3 o uso de dreadlocks e as práticas alimentares que constituem a I-tal livity, sobre a qual trataremos mais adiante.
Enquanto um movimento político, os Rastafári se organizavam em torno de princípios que apresentam algumas diferenças entre as casas. Mesmo assim, o fim da perseguição policial, a liberdade de cultivar e utilizar a ganja, a reparação material pelos danos causados pela escravidão, a repatriação para a África, a defesa da liberdade de expressão e da auto-organização da população negra, a luta contra a “opressão da sociedade branca” eram algumas das demandas compartilhadas entre os brethrens.4 Como argumenta o Rastafári Jahlani Bongo-Niaah, o Rastafarianismo veio oferecer uma resposta à crescente repressão sofrida pela classe trabalhadora negra jamaicana, se posicionando criticamente contra o complexo de opressões sobre as quais os negros foram vítimas, e que se manifestou historicamente através do colonialismo, do neocolonialismo, do imperialismo e do racismo (Bongo-Niaah 2008).
A partir do início da década de 1970, várias questões confluíram para que o movimento Rastafári passasse a ser mais aceito na sociedade jamaicana: a resistência coletiva dos Rastas à repressão; a ascensão do nacionalismo jamaicano (crescente com a independência do domínio britânico decretada em 1962) que enxergava no movimento Rastafári uma afirmação política da identidade jamaicana contra os ingleses; o uso político que o Jamaican Labour Party (JLP) e, principalmente, o People’s National Party (PNP), de Norman Manley, fizeram do movimento Rasta para caracterizar suas plataformas de campanha; o advento da música reggae que, entre 1968 e 1981, teve uma enorme expansão global que colaborou para o reconhecimento internacional do Rastafarianismo; o número crescente de pesquisas acadêmicas, matérias e reportagens que abordavam o Rastafári de maneiras menos estereotipadas; o crescimento de espaços de veiculação de informações produzidas por membros, coletivos e ordens Rastafári; a adesão da classe média, acadêmicos e figuras públicas ao Rastafarianismo ou à sua defesa etc. (Barnett 2018; Chevannes 2014; Edmonds 2003; Barrett 1988; Nettleford 1978).
Outra conquista importante, fruto da mobilização constante dos Rastas, foi o processo de descriminalização da cannabis, iniciado em 2015. Grande parte das prisões das quais os membros do movimento foram alvo era justificada pela proibição do uso da ganja na Jamaica. A posse da planta servia como pretexto para prisões de indivíduos e para operações policiais em acampamentos e cerimônias religiosas. A partir da descriminalização, foi assegurado o direito do uso religioso da erva, salvaguardando o direito dos Rastas à liberdade religiosa (Miller 2015).
Atualmente, os Rastafáris seguem uma prática antissistêmica, sendo críticos incessantes do status quo jamaicano, das desigualdades de classe e raça e da situação de opressão vivida pela população negra na Jamaica. Apesar desta caracterização histórica e aparentemente genérica sobre “o movimento Rastafári”, é ponto pacífico na literatura especializada o fato de que os Rastas se constituem a partir de associações heterogêneas e descentralizadas, com autoridades situadas em células e ramificações que agem independentemente umas das outras, mas que se mantêm unidas por um ethos simbólico, ritualístico e ideológico comum. As casas se diferenciam nas maneiras em que abordam e praticam, justamente, essas pressuposições comuns, tanto ritualmente quanto simbolicamente e teologicamente. Além disso, também se distinguem na força de alguns princípios e demandas políticas. Mais especificamente, como aponta Bamikole (2017), o que une os Rastas enquanto grupo é a adoção de um tipo específico de livity,5 que identifica práticas particulares e modos de se relacionar com o mundo. Identificaremos, a seguir, como se constitui a livity entre os Rastas Bobo Shanti.
A livity e a noção de pessoa Bobo Shanti
Em 1972, após terem ocupado e sido expulsos de diversas localidades da cidade de Kingston pelas autoridades jamaicanas, os Rastafári da Casa Bobo Shanti fixaram a sede de sua comunidade em Bobo Hill (também chamada de Zion Hill), na área seca e montanhosa de Bull Bay, a mais ou menos quinze quilômetros de distância de Kingston. O Ethiopia Africa Black International Congress (E.A.B.I.C.) - como é chamada oficialmente a Casa Bobo Shanti - foi fundado em 1958 por Emmanuel Charles Edwards, uma das principais lideranças Rastafári do período, e que viria a ser conhecido mais tarde como King Emmanuel.
King Emmanuel incorporou uma leitura do Antigo Testamento que considerava a história do jugo e da redenção dos israelitas como uma referência direta ao tráfico transatlântico dos negros africanos. Essa leitura se baseava em princípios já compartilhados por certa parte do movimento Rastafári, que enfatizava a primazia da Etiópia e do continente africano como berços de toda a humanidade e a população negra como o povo sagrado originário. A divindade de Selassie I, considerado como descendente direto do Rei Salomão, é dessa maneira estendida ao resto da população negra, vista aqui como os verdadeiros Israelitas, e a escravidão negra como a genuína história de perseguição sofrida pelos filhos negros de Israel que é narrada na Bíblia (Emmanuel 1978; Newland 2014).
Esse processo de redenção - imortalizado no lema Bobo Shanti “Freedom, Redemption, Reparation and International Repatriation” - culminaria em duas demandas políticas: a) repatriação: a volta custeada pelos atores internacionais responsáveis pela escravidão transatlântica ou que dela se beneficiaram (Inglaterra, Jamaica e outros países europeus) ou por intervenção divina, que faria esse traslado acontecer como parte das profecias; b) reparação: compensação financeira pelos crimes da escravidão a ser custeada pelos mesmos atores acima descritos. Os Bobo Shanti argumentam que estamos nos últimos dias do julgamento (“the last days of judgement”) e que a redenção chegará para aqueles que seguirem o caminho da righteousness para se tornarem “righteous persons”.
Nesse sentido, e aqui está um ponto absolutamente central para os Bobo Shanti, a vida seria constituída por uma peregrinação moral que busca unir os dois polos (ou os dois “Is”) do indivíduo em uma pessoa completa ou total. Existe, entretanto, uma expressão usada com muita frequência e que serve para definir aquele indivíduo que segue o caminho correto, de acordo com a doutrina Bobo Shanti, para se tornar uma “pessoa completa”. A expressão que define essa completude do sujeito é, precisamente, a de righteous person (pessoa correta).
A righteous person define tanto aqueles indivíduos que estão no caminho de construir uma “pessoal moral” (Mauss 2003), ou seja, no caminho para se tornar uma pessoa completa, quanto aqueles que já se tornaram pessoas completas. Para os Bobo Shanti, o caminho para ser uma righteous person depende da obediência a uma série de princípios e regras comportamentais de maneira a construir um modo de vida puro e correto. Esse modo de vida é chamado pelos Bobos de “I-tal livity” e denomina um conjunto de práticas e preceitos a serem seguidos para se alcançar uma “boa vida”, estabelecendo divisões, fronteiras e separações entre o que se deve ou não consumir/fazer para se viver uma vida equilibrada e conectada com a “consciência divina” (Congo-Nyah et al. 2013). O termo “I-tal” é uma combinação do pronome “I” e a palavra inglesa “vital”, onde se substitui a primeira sílaba “vi” pelo pronome “I”, buscando enfatizar a importância do self e da consciência divina existente em cada indivíduo. Esse modo de vida exemplar é baseado na purificação do corpo, alcançada através da observação de alguns princípios práticos baseados, de maneira geral, em uma convivência harmônica com a natureza, na busca por conhecimento, e no uso de alimentos naturais em detrimento de produtos industrializados (Araujo 2022; Barnett 2018; Chevannes 1994; Homiak 1998). Nesse sentido, a I-tal livity se organiza a partir de uma cosmologia baseada na constante negociação entre pares de oposição como bem e mal; positivo e negativo; limpo e poluído; saudável e nocivo; natural e processado, entre outros (Edmonds 2002).
É importante notar, no entanto, que a I-tal livity é muito mais do que um conjunto de regras e de proibições. O tabu é apenas a forma social do princípio I-tal, isto é, é a camada organizacional de um fundamento que, em última instância, determina a maneira como os Rastas se relacionam com o mundo e os próprios modos de ser um Rastafári. Bamikole (2017) comenta que o Rastafári é uma forma de agência e atitudes, e assim como a livity:
[...] pode ser reconstruída e receber uma interpretação filosófica mais ampla que pode engendrar como as pessoas devem ser entendidas em sua individualidade e a relação que têm umas com as outras e, também, como se relacionam com não-pessoas, como o divino, animais e plantas e com o universo físico e social (Bamikole 2017:452).
É desse modo que Bamikole define a livity como “modo de vida total” (2017), e de tal modo, se apresenta como um organizador do cotidiano dos Rastas.
A base que constitui a I-tal livity é múltipla e característica da própria história de formação do movimento Rastafári na Jamaica. No caso dos Bobo Shanti, baseia-se em: a) princípios religiosos construídos a partir de interpretações particulares das Leis Mosaicas, do Código Levítico e de outras referências bíblicas - especialmente do Antigo Testamento; b) no pan-africanismo garveysta;6 c) nas práticas tradicionais que constituíram a vida cotidiana do campesinato jamaicano, em especial a relação com a alimentação (Dickerson 2004).
Nesse sentido, para viver uma vida I-tal, ou para seguir o caminho da righteousness, deve ser observada, entre outras coisas, -uma série de diretrizes em relação à alimentação, de acordo com uma dieta I-tal essencialmente vegetariana, orgânica, não-industrializada, composta de frutas, vegetais, ervas, raízes, e outros alimentos naturais nos quais estão ausentes qualquer tipo de tratamento químico (Homiak 1998; Tafari-Ama 2012). Nesse ponto, estão inseridos um conjunto de tabus alimentares como a proibição do uso de sal, de bebidas alcoólicas, de tabaco, e interdições bíblicas como a carne de porco e frutos do mar, como parte do código Levítico (Chevannes 1994). Quando se fala sobre alimentação, a expressão I-tal is vital é comumente utilizada pelos Bobo Shanti, significando que I-tal é tudo aquilo que se traduz em vitalidade e saúde corporal.
Os alimentos consumidos pelos Bobo Shantis - frutas, vegetais, ervas, tônicos, chás, sopas, cozidos etc. - funcionavam como veículos para a produção de um corpo equilibrado, no qual os fluidos podiam circular livremente. A comida adquire, nesse sentido, um papel medicinal de cura corporal, sendo usada para “purgar as toxinas” em um mundo no qual a doença e a contaminação do corpo estão sempre à espreita. Para os Bobo Shantis, o corpo deve ser constantemente ‘produzido’, no sentido de se tornar saudável, ou melhor, de permanecer em estado de equilíbrio para que se alcance a comunhão com o “eu” divino.
Mesmo assim, dentro do universo simbólico e prático de Bobo Shanti, a definição de "alimento" transcende o mero consumo corpóreo e se estende à nutrição do espírito e da mente, que são vistos como entes separados, mas complementares entre si. A ganja, por exemplo, encapsula essa dualidade. Embora não seja um "alimento", no sentido convencional de substância ingerida para sustento físico, ela assume uma função alimentar distinta, particularmente quando falamos da ganja sacralizada. Por um lado, a cannabis é consumida em rituais sagrados ou cotidianamente, atuando como uma espécie de "alimento para a mente", facilitando a meditação, a introspecção e a conexão com o divino. Por outro lado, seu consumo pode ser visto como um "alimento para o corpo", dado que, na medicina tradicional Rastafári, à cannabis são frequentemente atribuídas propriedades curativas e terapêuticas. Mesmo assim, a linha que separa os momentos em que a ganja alimenta nutre a mente ou o corpo é bastante difusa, e não parece haver uma concordância efetiva entre os Bobos sobre quando um ou outro ocorre, passando a sensação de que essa planta pode alimentar ambos ao mesmo tempo. Por isso, argumento que sob a lente Bobo Shanti, a dicotomia entre mente e corpo é frequentemente desafiada, e substâncias como a cannabis são reconhecidas por seu potencial holístico, alimentando tanto o físico quanto o espiritual, em uma simbiose que reflete a visão Rastafári da unidade da vida I-tal.
Na cosmovisão Bobo Shanti, a alimentação não é apenas uma necessidade do corpo, mas uma manifestação tangível da conexão entre espiritualidade e essência divina. A dieta I-tal não é inerentemente definida por um conjunto fixo de ingredientes ou práticas culinárias, mas é "construída" por meio de uma relação dinâmica entre indivíduo, comunidade e ambiente. O I-tal, mais do que uma simples abstenção de carnes e aditivos processados, reflete uma busca constante de alinhamento com o "natural", considerado aqui como uma categoria múltipla que é mediada e moldada. Portanto, o que é reconhecido como I-tal em uma circunstância, pode não ser em outra, dependendo do contexto social, ambiental e espiritual em que se encontram. Assim, a alimentação Rastafári não é meramente prescritiva, mas emergente, conformada por uma linha contínua entre o sagrado e o sustentável, entre tradição e circunstância.
Observando essa interdependência entre corpo e espírito, veremos que não é apenas via dieta que se constrói um corpo I-tal. Como pretendo debater neste artigo, o trabalho é fundamental na construção da pessoa correta e do corpo I-tal. Trarei, como exemplo, na próxima seção, a prática do comércio como um composto central dessa dinâmica de corporalidade, destacando que as diversas etapas que constituem a produção da comida, também participam da formação do corpo I-tal. Nesse sentido, o plantio, o cultivo, a colheita, a produção e a distribuição comercial e não comercial da comida são considerados, pelos Rastas, e pelos Bobos, mais especificamente, como trabalho e esse, por sua vez, como definidor da pessoa correta. Como veremos, é o trabalho que permite aos Rastas a rejeição dos sistemas da Babylon na medida em que é por meio dele que se constrói a autonomia e autossuficiência de suas comunidades. É também o trabalho que aproxima e mantém os Rastas próximos da natureza e do contato com a terra, elemento sagrado, pois é vista tanto como a terra que produz o alimento como a terra que é a pátria e o lar (homeland). É por isso que o trabalho autônomo (no-boss work) não precarizado é, ao mesmo tempo, um exercício crítico das formas de trabalho babilônicas, e uma diligência prática na construção da pessoa correta e do corpo I-tal. Sendo assim, o comércio é, por excelência, a principal forma de trabalho Rastafári realizado fora da comunidade.
Durante todo o meu trabalho de campo, foram poucos os Rastas que encontrei que não realizavam algum tipo de comércio, em especial os homens de todas as idades, que vendiam algum tipo de produto, sendo mais comuns os produtos da terra. É claro que o comércio encontra alguns momentos de precarização na sociedade jamaicana, mas esse ofício também oferece aos Rastas um veículo para exercer dimensões importantes da vida I-tal, como a autossuficiência, a distribuição de produtos da terra, a rejeição de produtos ou dinâmicas da Babylon (venda de produtos da terra não processados) etc. Entre os Bobo Shanti, a venda de produtos processados é um tema controverso. Alguns Bobos criticavam os Rastas que vendiam esse tipo de produto por estarem “fazendo circular produtos da Babylon” mas, simultaneamente, defendiam o trabalho autônomo feito por eles. Ou seja, ao passo que exerciam sua autonomia, o faziam às custas de colocar no mercado produtos que não eram naturais. Outros Bobos com os quais tive contato não faziam essa distinção, e enxergavam o trabalho no comércio como fundamental para garantir a autonomia.
Na próxima sessão, apresentarei alguns episódios etnográficos que exemplificam como a I-tal livity atravessa o dia a dia dos comerciantes Bobo Shanti. Esse episódio está situado no mercado de Ocho Rios, uma pequena vila de pescadores da costa norte da ilha jamaicana e, a despeito de seu tamanho reduzido, se transformou em um dos principais centros do turismo de cruzeiro na Jamaica, e ponto fundamental para o comércio Rastafári.
O comércio de alimentos I-tal
Ao se aproximar do mercado de Ocho Rios pela entrada frontal, observa-se uma grande área aberta com chão de terra que antecede a entrada e funciona como estacionamento de veículos. Ao meio-dia de uma quarta-feira comum, esse espaço contíguo ao mercado já se vê completamente tomado de comerciantes, entre eles diversos Rastafáris, cada um com seu tipo de produto colocado à venda. Dois deles, um rapaz mais jovem e outro um pouco mais velho, ambos ostentando grandes turbantes,7 trabalhavam todos os dias da semana até tarde da noite, um vendendo sopas de vegetais e o outro, diversos tipos de sucos naturais. A sopa cozinhava em uma grande tina de ferro cuidadosamente posicionada sob um fogo baixo de carvão, enquanto os sucos ficavam em garrafas de plástico dentro de três caixas pequenas de isopor, cobertas por folhas de jornal e panos que os conservavam frescos até pelo menos o meio do dia. Os Rastas mantinham, junto a outros comerciantes, o cheiro constante de comida cozida e frita e de cascas de frutas que se mesclavam à fumaça dos route taxis e dos carros particulares que se aglomeravam na rua principal em frente ao mercado. A música dance-hall e o reggae faziam o pano de fundo sonoro que se derramava sobre a movimentação cotidiana da área central do mercado e da região adjacente na qual se situava a Clock Plaza, a praça central da pequena vila. Na praça, diversos grupos jogando bones (dominós), valendo algum dinheiro, se juntavam a uma massa de jovens recém-saídos das aulas da manhã e que se fartavam dos patties, pequenos pastéis fritos vendidos em barracas próximas à praça.
Mais adiante, na entrada do mercado, seguia caminhando um Rasta mais jovem, de locks amarrados em cima da cabeça por uma tira de pano, e que vendia laranjas enquanto escutava reggae numa boom-box ao lado de um carrinho de mão, onde expunha suas mercadorias. No lado oeste do estacionamento do mercado, estava estacionada uma barraca na qual outro Rasta vendia artigos variados em uma pequena carroça, pintada no típico “red, gold and green”, e que ocupava, mais ou menos, dois metros quadrados de um dos espaços laterais do estacionamento do mercado.
O responsável pela carroça (Figura 1) era Ras Kingson,8 comerciante Bobo Shanti que tinha estabelecido seu posto de comércio no mercado há alguns anos. Assim que o interpelei, ele logo passou a me mostrar as mercadorias que vendia: chapéus e cintos de couro-falso e lã nas cores vermelho, amarelo e verde; colares e anéis de couro-falso e semente de coco; bolsas e recipientes feitos de cabaça. Ao lado desses produtos estava uma grande caixa de cocos verdes, chamado de jelly pelos jamaicanos. Após me vender um dos cocos, Kingson me disse então para voltar mais tarde, quando o mercado estivesse encerrando suas atividades do dia, pois, segundo ele, os cocos tinham que ser vendidos enquanto o sol ainda estava quente e as pessoas com sede.
Figura 1:
Carroça de Ras Kingson - 2017.
Fonte: Acervo pessoal autor.
Quando o encontrei novamente, tarde da noite, fechando sua carroça, ele começou a me explicar alguns detalhes do seu trabalho como comerciante. Disse que fazia quatro trajetos semanais de Spanish Town, onde residia, para o mercado de Ocho Rios (pouco mais de setenta quilômetros de distância), mas também vendia em outros mercados da região. Vivia em uma pequena casa em cujo yard (“quintal”) plantava batatas, inhames, calalloo, ackee e ganja, mas o seu comércio baseava-se mais no artesanato do que nos “produtos da terra”, que eram majoritariamente utilizados para subsistência. Notou, entretanto, que a venda de coco era muito lucrativa naquela época do ano, em que chovia pouco e o sol quente fazia com que os estudantes, trabalhadores e outros comerciantes, buscassem avidamente seus cocos. Segundo ele, os cocos que vendia eram os melhores do mercado, pois até os pequenos vinham cheios de água. Isso porque, dizia, ele sabia escolher os que estavam bons, e sabia também que deviam ser armazenados na sombra para que a fruta não continuasse absorvendo a água.
Enquanto falava, Kingson montava sem muito esforço um spliffs (cigarros) de cannabis, e após acendê-lo, deu duas baforadas e fez um longo discurso, no estilo de fala profética comum aos Rastas, sobre o que significava ser um Rastafári. Em sua fala, comentou que, quando jovem, entrou em contato com os Rastas mais velhos (elders) e aprendeu que “Deus é humano e os humanos são deuses”. E, apontando para o chão, concluiu dizendo que Jah Rastafari existe neste mundo e não em outro. Cada ser é divino, homem ou mulher, por isso cada corpo é sagrado e deve ser tratado com cuidado. Ele prosseguiu:
Os Rastas gravitam em torno disso, você sabe, manter o corpo limpo, manter a mente limpa. Você tem que ver o que você coloca dentro do seu corpo, o que entra no seu corpo. Comer I-tal é essencial, entende? Para eliminar as toxinas. Como os verdadeiros Rastas não bebem álcool, apenas vinho [de raiz], suco e água da nascente. Um pouco de água fresca e limpa de nascente. Você sabe, você pode simplesmente pegar um pouco de inhame fresco, algumas bananas verdes, um pouco de ackee e fazer uma refeição totalmente natural. Alguns Rastas não usam plástico, usam os ‘pratos Rasta’ e não comem nem bebem o que não é natural, orgânico, sabe. Rastas não amaldiçoam, não fazem mal às pessoas e apenas vivem em retidão, você sabe, para caminhar para uma boa vida, para mim e para fora da Babilônia (tradução minha).9
Kingson interrompeu sua fala para cumprimentar dois outros Rastas que passavam logo adiante, enunciando a típica saudação “Hey! Rasta!”, ao que eles responderam “Blesss up! Jah, Rastafári!”. Um deles, Prophet Tibah, levava um carrinho de mão cheio de abóboras, algumas inteiras, mas a grande parte estava descascada e cortada em pedaços dentro de pequenos sacos de plástico. O outro Rasta, Prophet Nature Makonnen, carregava apenas uma mochila nas costas. Apontando para ele, Kingson disse: “este Profeta aqui vende a melhor ganja do mercado!”. Prophet Makonnen abriu sua mochila e despejou na bancada de madeira da carroça uma série de saquinhos plásticos com “flores” secas de cannabis ainda presas nos galhos. Retirou uma dessas flores, desmanchou na palma de uma das mãos e a aproximou do meu nariz para que eu sentisse o cheiro. Disse que a erva não precisa ser “forte”, ela tem que ser “boa”, e que essa cannabis que é vendida nos EUA e na Europa é veneno feito por cientistas para enganar as pessoas e afastá-las do verdadeiro remédio plantado “totalmente natural”. A melhor ganja é a jamaicana e a melhor ganja da Jamaica é a St. Elizabeth, que ele plantava em um terreno compartilhado com mais cinco outros Rastas.
Passou a explicar que a cannabis plantada nas montanhas de St. Elizabeth é a melhor, uma vez que recebe os ventos úmidos que vêm do litoral e está próxima a fontes de água fresca (fresh wata). Makonnen apontou outro motivo. Disse que tudo que é plantado pelos negros em St. Elizabeth tem uma qualidade mais elevada, porque as plantas crescem ali para dar força à população negra que a consome, dando vigor à resistência contra o homem branco. Segundo ele, nos tempos da escravidão se plantava apenas café e cana-de-açúcar, que eram colhidos pelos negros nas montanhas de St. Elizabeth, mas que hoje a terra e o plantio servem a um outro propósito:
Tudo foi criado por Deus com um propósito. Tudo tem um propósito, entende? Os negros na Jamaica sofreram por séculos, nas mãos dos homens brancos, e Deus deu as armas para a resistência. Mas o Rastaman é pacífico. Não travamos guerras. Guerra é coisa de homem branco. Somos rebeldes da alma, rebeldes da mente, entende? Lembre-se de que tudo que cresce da terra é sagrado. O livro diz 'tu comerás a erva do campo' (Gênesis 3:18) e que 'a erva é a cura das nações' (Apocalipse 22:2). Então, você não usa a ganja para ficar "chapado", mas para alcançar o "Eu", entende, para se conectar com o Todo-Poderoso. Ganja é a arma da alma. Não se deixe enganar (tradução minha).10
A ganja é um dos produtos mais vendidos pelos Rastas jamaicanos, especialmente os homens. Isso porque, como me disse outro interlocutor Bobo Shanti, é muito fácil vender, pois há muita demanda, e caso, por algum motivo, não se consiga, uma vez que é um produto seco, ele não se perde tão facilmente, como outros produtos alimentícios. Para os Rastafáris a planta é considerada um “erva da sabedoria”, elemento importante para o reasoning,11 e é vendida como um medicamento. Aqui, não se exclui o uso não-ritual da erva, que também é considerado um procedimento que permite estar todo o tempo “conectado” com a energia divina de Jah Rastafári. Essa conexão possibilita enxergar além (Rasta Far Eye),12 concedendo a percepção da verdade do mundo que se esconde por trás do véu de enganações da Babylon. Nesse sentido, a “ganja”, enquanto veículo de iluminação, está a serviço de toda a humanidade,13 assim como todas as ervas e plantas. E, portanto, pode ser vendida como qualquer outro produto da terra que possa contribuir para uma boa livity.
Após a fala de Prophet Makonnen, com a qual os dois Rastas concordaram com gestos afirmativos de cabeça, cada um deles começou a citar as melhores maneiras de usar a ganja e quais eram seus benefícios. Makonnen disse que fazia tempo que não usava a ganja em forma de cigarro, pois, segundo ele, a melhor forma é o chá, que pode ser servido até para crianças e pessoas mais velhas que possuem algum tipo de irritação estomacal, que são inquietas ou que têm problemas para dormir. Ainda com seu spliff aceso na boca, Kingson discordou, dizendo que a cannabis fumada não oferecia problemas, mas que os jovens (“the youth”) cometiam o erro de misturar tabaco nos spliffs, contaminando a ganja. Prophet Makonnen apontou para o carrinho de abóboras de Prophet Tibah, que até então permanecia em silêncio, e comentou que, se alguém estiver se sentindo enjoado e sem fome, ou se a mulher com cólica menstrual não conseguir comer por causa da dor, é só consumir a ganja e preparar uma sopa de abóbora com gengibre para fazer o sangue circular melhor e aliviar os sintomas.
Assim como Prophet Tibah, que vendia abóboras picadas em saquinhos individuais, outros Rastas montavam seus saquinhos com preparados para sopas, vários combinados de ingredientes, cada um deles com uma função. Ao contrário de sopas de gengibre que aumentam a circulação do sangue, as que levam hortelã (mint) ou coentro (cilantro), servem para diminuir o fluxo sanguíneo e acalmar sensações de queimação estomacal. A pimenta “scotch bonnet” (boné escocês), bastante picante e muito saborosa, fazia parte de vários preparados, especialmente para purificar o sangue (porque o calor e o suor promovido pela pimenta eliminam as impurezas) ou como estimulante sexual (pois o ardor da pimenta acorda o corpo - “wakes up the body”). As sopas (chamadas de sip pelos Rastas) são componentes fundamentais da cultura alimentar jamaicana, e integram esse conjunto de itens medicinais que estão presentes na culinária da população negra da ilha. No entanto, no caso dos Rastas, a sopa está envolvida em uma perspectiva particular que envolve o corpo como a morada da divindade. Nesse sentido, além do benefício medicinal mais direto que cada um desses combinados oferece, o princípio I-tal é satisfeito pelo caráter “natural” da comida (desde os ingredientes até o seu preparo).
No-boss work: o trabalho autônomo entre os Bobo Shanti
Em outra ocasião em que me encontrei com Kingson, conversamos novamente sobre sua rotina. Uma vez por semana, Kingson ia para o Coronation Market em Kingston, onde comprava o material necessário para fazer os chapéus, cintos, anéis e cabaças que vendia em sua carroça junto aos produtos alimentícios. Dessas viagens, voltava com pacotes de tiras de couro sintético, cabaças secas, sementes e outros materiais, que eram comprados de diversos comerciantes que revendiam esses itens no atacado. Ele comentou que todos os seus produtos eram I-tal e que tudo o que ele fazia e usava era natural, desde a cabaça seca, o coco, os amuletos, tudo era completamente natural, pois para um Rasta tudo deveria ser “natural”. Aproveitei para perguntar se os chapéus e cintos de couro-falso também eram naturais, mesmo sendo feitos de material sintético, ao que ele respondeu: “Yah man, they are all natural, they were made by I and I hands”.
Essa fala de Kingson é emblemática ao demonstrar como o princípio I-tal aparece no discurso Rastafári. Nela, estão presentes diversos elementos que constituem a vida nesses moldes, como a alimentação e o cuidado com o corpo, mas a partir de uma apropriação particular que complexifica o entendimento da I-tal livity. A resposta de Kingson sobre os chapéus de couro sintético informa que a naturalidade do produto não advém apenas do fato de ele não ser processado ou fabricado, mas também dos circuitos em que o mesmo participa. No caso, o fato de um produto sintético entrar no circuito do trabalho autônomo e integrar a dimensão da “autoconstrução de si mesmo” o torna “natural”.
O trecho reverbera um argumento bastante comum entre os comerciantes, principalmente entre aqueles que não vendem apenas “produtos da terra”. Vários deles também comercializavam mercadorias como capas de celular, óculos, roupas, relógios, caixas de som, fones de ouvido, gomas de mascar e outros tantos utensílios que poderiam ser taxados como “artificiais”. No entanto, quando perguntados sobre a “natureza” do produto, não parecia haver nenhum conflito existente entre uma vida I-tal e o comércio de produtos fabricados. Priest Bongo History, um Bobo Shanti mais idoso que produzia vinhos de raízes, comentou certa vez que:
Trabalhar para si mesmo é I-tal, entende. É antinatural trabalhar para outro homem. Isso é escravidão. O único homem livre é aquele que tem a si mesmo como mestre. Este é o ensinamento de [Marcus] Garvey. Sua Majestade Selassie I também disse isso e o Rei Emmanuel I depois dele. (Priest Bongo History 2019)
Nesse sentido, a centralidade do trabalho autônomo - chamado pelos Rastas de no-boss work - no movimento Rastafári possibilita a produção de espaços e relações em que certas restrições da I-tal livity são flexibilizadas ou deixam de estar presentes.
Nas primeiras décadas de seu surgimento, sendo percebidos como críticos ao status quo, os Rastas eram considerados “atrasados” e “perigosos”, e como tal foram reprimidos pelo Estado jamaicano em conflitos extremamente violentos, nos quais vários membros do grupo morreram ou desapareceram14. Nesse período, já se delineava uma postura contrária ao trabalho assalariado, como aponta um membro do movimento no final da década de 1950:
Trabalhar é bom, mas não na forma escravista, que atualmente é representada na Jamaica pelo trabalho assalariado oferecido por mestres injustos. Qual é o motivo de trabalhar quando em dois ou três meses nós estaremos desempregados novamente? (Smith; Augier Nettleford 1967:22).
“Trabalhar é bom” pois faz parte da constituição da “pessoa correta”, mas apenas “não era quando tal constituição da livity emerge a partir da criação cultural ou do trabalho autônomo, isto é, pelo “no-boss work”. Em Pinnacle, o acampamento liderado por Leonard Howell, os Rastas cultivavam uma série de artigos alimentícios, produziam carvão queimado, operavam uma padaria e faziam artesanato e artigos caseiros, criavam gado, seja para consumo próprio ou para ser vendido para as vilas vizinhas (Dunkley 2012). Em Bobo Hill, os Bobo Shanti também plantam, mas o que é cultivado nas poucas e áridas terras disponíveis serve somente para atender a uma parca parcela da subsistência da comunidade. Por esse contexto territorial, Bobo Hill encontra dificuldades em estabelecer uma produção comunitária de artigos alimentícios. Certos Bobos plantam em seus “yards”, quintais individuais contíguos às suas habitações. Alguns acabam alugando frações da terra de propriedades próximas para plantar certos artigos que são colhidos e vendidos nos mercados. Outros compram de higglers15 ou de pequenos agricultores que vendem diretamente da sua colheita. Esses produtos são, então, processados ou vendidos in natura nas feiras locais ou nos grandes mercados de Kingston, como o Coronation Market ou Papine. E, na medida em que o trabalho autônomo tem uma importância central para os Bobo Shanti, questões que envolvem o acesso à terra se tornam ainda mais delicadas.16
Sem dúvida, se entendermos a I-tal livity como um princípio de libertação da população negra, a pessoa correta deve ser fundamentalmente livre. Por isso dissemos anteriormente, seguindo Bamikole (2017), que a I-tal livity não é apenas um conjunto de regras e prescrições, mas um complexo de atitudes e princípios em relação à existência e a si mesmo. Os Bobo Shanti têm para si uma percepção muito clarificada de que cada pessoa é “construída” de maneira absolutamente individual, ainda que passe por um coletivo ou grupo. A autonomia se reflete aqui na responsabilidade que o indivíduo tem pelas suas desventuras, na medida em que, tudo que não for coagido/constrangido, é passível de ser subvertido ou enfrentado. Aquele que não o consegue, provavelmente não estava seguindo o caminho correto e deve ter “vacilado” em sua trilha pela livity.
A negação Rastafári da morte pode ser entendida da mesma maneira. Era um consenso entre os Rastas, especialmente durante a década de 1950, que se um membro do movimento estivesse seguindo de maneira correta a livity, ele não deveria morrer (Chevannes 2014).17 Por um lado, como descendentes diretos de Salomão e carregando o sangue divino da dinastia de Haile Selassie I, os Rastas seriam imortais, como sinaliza o princípio Deus-homem. Por outro, a dieta I-tal deveria preservar o corpo de qualquer moléstia. Nesse sentido, a morte era encarada como uma responsabilidade individual. No entanto, com o passar dos anos, morreram algumas figuras centrais para o movimento, especialmente Haile Selassie I, em 1975, King Emmanuel, em 1994, e Mortimo Planno, em 1996. No caso de Selassie I, sua morte foi disputada por alguns Rastas e, hoje em dia, é um tema bastante comum, no qual argumentam que o imperador havia se transfigurado para se deter nos preparativos da salvação da população negra. Quando a notícia da morte de Selassie I atingiu as comunidades Rastafáris, vários questionaram a veracidade do acontecimento, dizendo que ninguém até hoje havia visto a tumba de Selassie I para comprovar o acontecido (Chevannes 2014:20). O mesmo argumento é usado pelos Bobo Shanti sobre King Emmanuel I.
Ao longo do tempo, e com a entrada de membros mais jovens no movimento (2014), o tema da morte se tornou menos rígido e o valor de um indivíduo enquanto Rastafári era medido principalmente pelas suas conquistas em vida. A morte do corpo, que antes era indicativo do grau de comprometimento aos princípios da vida I-tal, não mais produziria a aniquilação social da pessoa.
A ausência das mulheres no comércio: higglers e empresses
Como se pode notar, a paisagem etnográfica que fornece a base deste artigo é povoada por homens, com pouca ou nenhuma menção às mulheres nos mercados ou nos espaços de comércio, e daí decorre um problema importante.
Existe uma farta literatura sobre um fenômeno típico da região caribenha (também presente em outros contextos diaspóricos) que é o comércio autônomo realizado por mulheres negras. Essa é uma prática que remonta ao período escravista e aos sistemas de plantation, em que as mulheres escravizadas vendiam o excedente cultivado nas roças de subsistência cedidas à população negra nas terras dos engenhos e fazendas, e está ligada ao processo de surgimento das feiras locais e pequenos mercados nas áreas rurais e urbanas jamaicanas (Mintz 1983; 1955). Na Jamaica, essas mulheres são chamadas de “higglers”18 e, apesar de, no uso popular e coloquial, tal expressão fazer alusão a qualquer comerciante de pequena escala, o termo foi histórica e culturalmente recortado pelo gênero, e indica uma prática quase exclusivamente feminina (Brown-Glaude 2011; Ulysse 2008). Isso ocorre de tal maneira que as higglers se tornaram uma espécie de “símbolo cultural” jamaicano, vistas como a representação do trabalho duro e autônomo feito por “mulheres fortes” que superaram os grilhões da escravidão para se lançarem ao empreendedorismo do comércio. Essa imagem romantizada foi intensamente explorada pelo Estado jamaicano, especialmente após a segunda metade do século XX, numa tentativa de valorizar o papel da população negra da ilha, que se revoltava contra o racismo institucionalizado da sociedade jamaicana, no desenvolvimento nacional, e para apresentar uma espécie de “tipo ideal” de profissionalismo negro (Tulloch 2016).
De fato, os mercados e feiras estão repletos de higglers que dividem o espaço do comércio junto aos Rastas e outros homens que ali vendem os seus produtos. No entanto, durante meu trabalho de campo, tanto nas cidades de Ocho Rios e Kingston, como em outras cidades como Negril, Portland, Port Antônio e outras que visitei durante minha estadia na Jamaica, notei poucas mulheres Rastafári praticando o comércio.
Em determinado momento, questionei o fato dessa ausência a um dos meus interlocutores em Ocho Rios, que respondeu que as mulheres Rastas também participam das vendas. Quando perguntei onde poderia encontrá-las, após pensar por algum tempo, meu interlocutor conseguiu lembrar de apenas uma que, entretanto, apenas ajudava o seu marido a vender mel engarrafado na praça central da cidade. Por que, então, um ofício multifacetado, utilizado como importante estratégia de sobrevivência, principalmente por mulheres negras de baixa renda na ilha jamaicana, estava tão ausente entre as mulheres Rastas? Sem almejar responder a essa problemática, esta seção pretende debater algumas questões relevantes que podem ajudar a iluminar esse fenômeno a partir da perspectiva da comunidade Bobo Shanti.
Como aponta a autora Rastafári Imani Tafari-Ama, vale a pena notar que o movimento Rastafári foi historicamente composto por homens ocupando cargos de liderança, portando, assim, a responsabilidade pela condução de rituais, a primazia na interpretação de eventos significativos para a comunidade e estando encargo da proteção da família (Tafari-Ama 1998). As Rastawomen no movimento Rastafári ocuparam o espaço privado da casa, sendo forçadas pelas próprias dinâmicas da comunidade a ocupar funções de cuidado perante ao “chefe da casa” (chamado kingman ou lion), às crianças e ao ambiente doméstico (Rowe 1980). As crianças do sexo masculino eram vistas como princes, ou seja, como um Kingman em formação, e, por esse motivo, também eram consideradas como superiores às meninas, ainda que estas carreguem os títulos de queens e empresses. (Lake 1998)
Por ser uma Casa mais ortodoxa (o que significa que segue os preceitos bíblicos e as regras dos antigos líderes fundadores com menos flexibilidade), os Bobo Shanti observam com mais rigor os tabus relacionados às mulheres. Existem várias obrigações e restrições impostas a elas - como manter os braços e pernas cobertos e os dreadlocks envolvidos por turbantes. Mas, talvez, a mais central seja a restrição ritual das mulheres menstruadas (e, em grande medida, das mulheres em geral) de acessarem o ambiente da cozinha.
No que tange à alimentação, as mulheres estão proibidas de servir os homens da comunidade, ainda que possam servir os visitantes. Tradicionalmente, entre o campesinato jamaicano, as mulheres cozinham e servem, papéis que, entre os Bobos, são ocupados exclusivamente pelos homens. As mulheres podem comer nos assentos situados fora da cozinha ou em seus quartos, mas nunca com os homens. No entanto, elas podem cozinhar para si mesmas depois que os “vinte e um dias de purificação” do fluxo menstrual tiverem se encerrado (Chevannes 1994).
A feitura da comida desnovela uma série de outras restrições impostas às mulheres - como a de colher determinados vegetais ou participar de momentos rituais como os reasonings e nyabinghis.19 As mulheres, contudo, participam de vários fundamentos I-tal que estão presentes na construção de uma corporalidade pura e de uma pessoa correta, mas o seu processo de feitura é distinto daquele praticado pelos homens. Enquanto os homens realizam o trabalho autônomo como forma de exercer a liberdade, a mesma prática não é demandada às mulheres. Isso se repete na participação do Sabbath semanal, que é obrigatória aos homens, mas é flexibilizada para as mulheres quando estas precisam cuidar das crianças. O que se constata, portanto, é que existe uma diferença pela qual corpos femininos e masculinos Rastafáris são pensados e praticados entre os Bobo Shanti.
Como aponta Chevannes, o tratamento que as mulheres recebem entre os Bobo Shanti não difere, em grande parte, da maneira como os outros Rastas também lidam com elas em outros contextos. A diferença central encontra-se nos modos e na extensão em que os Bobos ritualizam a natureza “impura” das mulheres (Chevannes 1994:179). Essa natureza, representada pelo período menstrual, é ritualmente objetivada no afastamento total das mulheres Bobo Shanti do âmbito da produção da comida. Sua presença na cozinha é vetada, bem como sua participação coletiva nas refeições.20 A importância da manutenção da pureza do alimento I-tal é diretamente proporcional à relevância da impureza das mulheres. O corpo feminino é composto por uma natureza ambígua, sendo considerado tanto como algo precioso que deve ser preservado e cuidado, quanto como um veículo de contaminação e impurezas que são reflexos do pecado original da mulher narrado pelo Antigo Testamento (Tafari-Ama 2005; Rowe 1980).21
Aqui, podemos traçar um paralelo entre as perspectivas amazônicas sobre o sangue menstrual trazidas por Luisa Elvira Belaunde (2006). Belaunde observa que, entre vários povos amazônicos, o sangue feminino e o masculino são considerados como substâncias distintas, que estão envolvidas em processos de construção do corpo também singulares. Assim como entre os Bobo Shanti, o fluxo do sangue representa a vitalidade, mas entre as mulheres conecta-se também ao “perigo”, no caso do período menstrual, estando envolvido em uma série de práticas de resguardo, dieta e reclusão, estabelecidas como estratégias de manipulação do sangue. Ou seja, se no contexto ameríndio em questão sangrar é uma prerrogativa feminina interligada a uma lembrança cosmológica ancestral (o incesto primordial entre a Lua e sua irmã), no caso dos Bobo Shanti, o “sangrar” também abre a comunicação entre o tempo cotidiano e o espaço-tempo cosmológico do Antigo Testamento, tal como interpretado pelos Bobos. Nesse sentido, o sangue menstrual recupera seu significado cosmológico de ameaça e perigo, isto é, de substância poderosa que afeta a dinâmica de outras substâncias, devendo ser, portanto, controlado e manipulado.
Imani Tafari-Ama e Maureen Rowe fazem parte do movimento Rastafári e foram pioneiras nos estudos de gênero entre os Rastas, apontando diversas críticas ao papel ocupado pelas mulheres. Rowe (1984; 1995) argumenta que, em parte, essa desigualdade de papéis se explica pela adoção da interpretação negativa que o Antigo Testamento apresenta acerca das mulheres. Uma das interlocutoras da pesquisa de Tafari-Ama exemplifica o ponto de Rowe:
Embora eu respeite os ensinamentos da Bíblia, ela é amplamente usada para impor complexos de inferioridade a muitas irmãs. Seções da Bíblia são citadas especialmente por homens para mostrar que as mulheres são como Eva, más e responsáveis pela corrupção da humanidade. Eles usam os ensinamentos de São Paulo e outros do Antigo Testamento para mostrar que a mulher é impura durante a menstruação. Foi assim que a Bíblia foi usada por tradutores e senhores de escravos [...]. Em uma passagem da Bíblia, é dito que os maridos devem amar suas esposas e as esposas devem ser obedientes a seus maridos. Isto significa que, para a esposa ser obediente, ela tem que ser inferior (Tafari-Ama 1998:106).
Segundo Tafari-Ama, “a ênfase na dominação masculina no nível doméstico pode ser atribuída ao fato de que os Rastas se apropriaram do modelo ocidental do homem como chefe da casa e da família. Isso pode ser interpretado como uma tentativa de recuperar um modo de vida africano idealizado, em que o homem é a representação de Haile Selassie, como Kingman, e a mulher sua ajudante” (Tafari-Ama 2005:195).
Dito isso, as autoras apontam que as mulheres Rastas não devem ser vistas como meras espectadoras das relações de gênero internas ao movimento. Ao contrário, elas têm sido o vetor mais importante de mudança dessas relações:
Sem dúvida, o Rastafári é um movimento patriarcal. No entanto, como acontece com todos os movimentos sociais, o Rasfari tem, ao longo dos anos, experimentado mudanças dinâmicas nas relações de gênero e de poder como resultado da revisão das próprias autodefinições pelas mulheres, justapostas às designações atribuídas pelos homens que criaram o movimento (Tafari-Ama 2005:196).
A autora argumenta que, juntamente à postura de rebel women que as mulheres Rastas apresentavam no questionamento às dinâmicas de gênero, alguns homens Rastas (especialmente os mais novos) também passaram a perceber a centralidade e o valor da liberação das mulheres “não apenas como um direito humano inalienável, mas também como interesse da sua própria liberação, de sua família, da comunidade [...], provando que as relações de gênero providenciam um caminho importante para a manifestação de Deusas e Deuses negros” (Tafari-Ama 2005).
De fato, durante a realização do meu trabalho de campo, parecia haver uma intenção por parte dos homens e dos sacerdotes Bobo Shanti de valorizar as Rastawomen, o que podia ser visto na deificação da Empress Menen Asfaw, consorte do império etíope pelo casamento com Haile Selassie I. Empress Menen também é chamada de Queen Omega, e ao lado do King Alpha (Selassie I), é fonte de toda a existência humana. Essas figuras eram constantemente equiparadas às mulheres Bobo Shanti para ressaltar o lugar de realeza e importância delas na comunidade Rastafári. Sempre que questionados diretamente sobre as mulheres, havia uma resposta de deferência e respeito, em especial quando se tratava de mulheres mais velhas, ainda que, de modo geral, os homens seguissem ocupando as posições de liderança, a primazia de discursar em público e os cargos religiosos.22
A cannabis, por exemplo, é utilizada por grande parte da população jamaicana, sobretudo entre a classe trabalhadora, rural ou urbana. Quando Melanie Dreher fez sua primeira pesquisa sobre o uso de ganja entre as jamaicanas na década de 1970, poucas delas faziam uso da planta, especialmente considerando a cultura rural masculina em torno do cultivo e comércio da erva (Dreher 1984). Atualmente, mais da metade da população feminina jamaicana utiliza a ganja, e, entre as mulheres Rastas, o uso sempre foi mais presente do que entre aquelas que não faziam parte do movimento (Brady 1999). Entre os Bobo Shanti, o uso da cannabis entre as integrantes femininas é tão frequente quanto entre os homens, apesar destes fumarem em público mais do que elas. Outra diferença é que, entre as mulheres, observei o consumo da ganja principalmente através de chás e sucos, ao passo que entre os homens era mais comum a erva fumada. De todo modo, refletindo a ausência das mulheres Rastas no comércio, a ganja era majoritariamente vendida por homens Rastas, sendo ausente inclusive entre as higglers, conhecidas por venderem produtos da terra.
Retornando à questão que motivou esta seção, se o higglering jamaicano é conhecido como uma prática de mulheres negras, intensificada na contemporaneidade como uma forma de alcançarem autonomia financeira e independência dos homens no cuidado do espaço doméstico e do autossustento, como a quase ausência dessa atividade se explica entre as mulheres Rastafáris? Ou melhor dizendo, se a construção da pessoa correta entre os homens passa pela autonomia no trabalho, por que a mesma regra não se aplica às mulheres?
O breve exercício feito logo acima permite identificar a existência de uma forma distinta de constituir a corporalidade da mulher Rasta, que é atravessada pelo retorno ao espaço doméstico e à dependência do homem (Kingman), sendo este quem deve cuidar das mulheres e da comunidade. Nesse sentido, na vida comunitária Bobo Shanti, é patente o lugar que estas ocupam, muitas vezes sendo furtadas de participar dos espaços rituais por estarem cuidando das crianças, quarando roupas ou cozinhando (quando não estavam no período menstrual). Ao mesmo tempo, elas não participam das tarefas braçais mais “pesadas” como cortar lenha, consertar cercas e telhados ou participar da manutenção geral da infraestrutura da comunidade. Sobre isso, se dizia que não eram tarefas de mulheres. O homem se posicionava como aquele que deve servir à mulher, oferecendo a ela a proteção e o conforto. Em contrapartida, a mulher deve ocupar o lugar de cuidado doméstico.
Isso fazia com que as mulheres em Bobo Hill estivessem menos presentes na vida pública da comunidade e nos espaços coletivos da rua, dos mercados, das feiras, nos quais se encontravam as higglers. Mesmo assim, entre as mulheres mais velhas com quem conversei, parecia haver uma certa concordância com o lugar que ocupavam, e acredito que esse ponto seja importante salientar. Como argumenta Maureen Rowe (2014), não se deve usar uma lente ocidental para fornecer os critérios de liberdade das mulheres Rastas, pois elas próprias vêm construindo dinâmicas particulares em relação à livity. Ou seja, existe um duplo movimento capitaneado pelas mulheres: a) a crítica de posições consideradas por elas como “subalternas” dentro da comunidade; b) a concepção positiva de uma corporalidade aliada ao lugar divino que as mulheres ocupam enquanto representantes da sacralidade de Menen Asfaw, imperatriz etíope e esposa de Haile Selassie.
O contraponto crítico trazido aqui sobre o papel das mulheres e sua relação com a corporalidade Bobo Shanti não visa medir o grau de liberdade das mulheres Rastas segundo a perspectiva de liberdade ocidental. Ao contrário, busquei demonstrar como corpos de mulheres e homens são vistos de maneiras diferentes, e como as próprias mulheres Rastas se articulam em relação a essa diferença. Como aponta Lila Abu-Lughod “o que significa a liberdade se aceitarmos a premissa fundamental de que os humanos são seres sociais, sempre criados em certos contextos sociais e históricos e pertencentes a comunidades particulares que dão forma a seus desejos e entendimentos do mundo?” (Abu-Lughod 2012:459).
Nesse sentido, ainda que exista um retorno das mulheres ao espaço doméstico em comparação a outras que ocupam os espaços públicos do comércio, é válido o exercício de diferenciar os princípios que coordenam esse retorno (como o entendimento da sua função sagrada no cuidado da casa; seu lugar como veículo da divindade feminina Bobo Shanti) considerando o próprio posicionamento das mulheres Bobo Shanti sobre seu estatuto na comunidade, e respeitando os movimentos de mudança internos à comunidade.
Considerações finais
O “caráter total” da I-tal livity nos permite conhecer diversas dimensões que caracterizam o movimento Rastafári e os Rastas Bobo Shanti. Mas é preciso notar que no processo de constituição da livity são concebidas dinâmicas simultâneas de construção do corpo e de construção da pessoa que são atravessadas, por um lado, pelo alimento I-tal (cocos, sopas, vinhos de raízes, ganja etc.) que é um “medicamento natural”, e por outro lado, pelo exercício do trabalho autônomo. Ambos funcionam simultaneamente como aspectos constitutivos da I-tal livity e, em última instância, da pessoa correta.
Vale lembrar que os Rastas, em geral, e os Bobo Shanti em particular, não são um movimento religioso missionário. Os Bobos possuem os cargos de Profetas e Sacerdotes por serem portadores da palavra divina, que deve ser buscada pelo indivíduo que, autônomo, procura sua salvação. O comerciante Bobo Shanti deixa disponível seu produto I-tal para que a salvação do corpo e o caminho da retidão possam ser encontrados por aquele que os procura. A inclinação deliberada dos Rastas em mostrar com detalhes os benefícios de cada produto, as receitas e seus efeitos, serve como um conselho de um especialista.
Ao mesmo tempo, vimos alguns breves exemplos etnográficos na sessão anterior que iluminam como a caracterização do Natural e do I-tal se dá em contextos nos quais seus significados são negociados de acordo com os circuitos em que estão presentes os produtos vendidos pelos Rastafári. Essas negociações atravessam e demarcam o exercício do comércio Rastafári, construindo narrativas e novos significados tanto sobre o ofício quanto sobre os produtos vendidos, sob a luz de visões particulares do que é ou não I-tal e do que é ou não natural. Nesse caso, o trabalho autônomo no comércio aparecia como característica mais importante. Foi um tipo semelhante de negociação que atingiu o debate Rastafári sobre a morte, culminando em uma nova perspectiva sobre a pessoa Bobo Shanti.
Ademais, destaca-se como a construção da pessoa Rastafári é fundamentalmente atravessada pelo gênero, e que homens e mulheres trilham caminhos distintos nesse processo. Ainda que grande parte dos preceitos seja válida para homens e mulheres, em alguns momentos o que é I-tal para um não o é para o outro. Se para o homem o trabalho no comércio é garantidor da autonomia, para as mulheres essa autonomia não é absolutamente necessária, sendo mais desejável que ela se ocupe do cuidado da casa e das crianças da comunidade, permitindo que o Kingman vá atrás de sua independência. Nesse sentido, os processos que levam à constituição da pessoa correta diferem entre os homens e as mulheres Bobo Shanti.
É, portanto, central para o entendimento das práticas alimentares Bobo Shanti que se compreenda a I-tal livity como um constructo complexo que envolve dimensões que ultrapassam a simples proibição do consumo de determinados alimentos. Do mesmo modo, o que constitui um trabalho I-tal não é apenas o ato de comercializar esses alimentos, mas também o contexto em que essa prática está inserida. A I-tal livity, como uma carreira, como um caminho, está sempre em movimento e depende dos circuitos nos quais se insere. É a prevalência de uma vida de conquistas e realizações em torno do caminho da retidão, da construção da pessoa correta, que marca a construção da pessoa Rastafári.
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TULLOCH, Carol. 2016. The birth of cool: Style narratives of the African diaspora. Bloomsbury Publishing.
TULLOCH
Carol
2016
The birth of cool: Style narratives of the African diaspora
Bloomsbury Publishing
Notas
*
Este artigo é fruto de trabalho de campo realizado na Jamaica em duas ocasiões: nos anos de 2017 e 2019, entre os Rastafáris Bobo Shanti. A primeira etapa de campo foi feita com comerciantes Bobo Shanti nas cidades de Ocho Rios e Kingston, e a segunda na comunidade Bobo Shanti de Bobo Hill, localizada na periferia semiurbana da capital jamaicana.
1
Marcus Garvey foi uma das lideranças mais importantes do movimento panafricanista mundial. Nascido na Jamaica no final do século XIX, fundou em 1914 a Universal Negro Improvement Association (UNIA) em torno do nacionalismo negro voltado para a emancipação política, socioeconômica e cultural da população negra na diáspora. Foi também um forte defensor do movimento que apoiava o retorno à África dos negros na diáspora (“Back to Africa Movement”).
2
O nome que intitula o movimento tem origem na junção de dois termos da língua amárica: Ras, que significa “cabeça” e é um título equivalente a príncipe ou chefe na Etiópia, somado ao nome pessoal Tafári, que significa aquele que é respeitado ou temido. Tafári Makonem se tornou Ras Tafári quando foi coroado príncipe em 1917 e mais tarde Haile Selassie I quando se tornou imperador em 1930.
3
Ganja é o nome dado à cannabis na Jamaica.
4
Brethren é um termo em inglês que significa “irmãos” e é utilizado pelos Rastas para se referir uns aos outros.
5
O conceito de livity pode ser grosseiramente traduzido como “modo de vida” ou, seguindo Bamikole (2017), como “modo de vida total”.
6
O panafricanismo garveyista, idealizado por Marcus Garvey, representa uma corrente político-filosófica que propõe a unidade racial africana, o orgulho negro e a autodeterminação, defendendo o retorno à África como estratégia de emancipação cultural e política diante do colonialismo e do racismo estrutural.
7
Uma característica distintiva dos membros da Casa Bobo Shanti são seus turbantes, chamados de “coroas”, sob os quais encobrem o cabelo trançado em dreadlocks. Um Bobo Shanti não pode ser visto em público sem o seu turbante, e as túnicas e roupas que usam devem estar sempre impecavelmente limpas. Nos seus ensinamentos, King Emmanuel diz que os Bobos são uma comunidade real, de príncipes, reis e rainhas e, portanto, devem se comportar como tal.
8
Uso aqui o nome real do interlocutor por pedido do próprio. Mais especificamente, Kingson me disse: “what is a name? We are all the King’s sons aren’t we”.
9
No original: “Rastas gravitates towards that, you know, keeping the body clean, keeping your mind clean. You have to see what you put inside your body, what enters your body. Eating I-tal is essential, seen? To purge the toxins, to cleanse the pollution. Like true Rastas don't drink alcohol, just [roots] wine, juice and spring wata. Some clean spring wata. You know, you can just get some fresh yam, some green bananas, some ackee and make an all-natural meal. Some Rastas don't use plastic, they use dem ‘rasta plates’ and don't eat and drink what isn't natural, organic, you know. Rastas don’t curse and don’t do bad to people. Rastas don't curse, they don't hurt people and they just live righteously, you know, to walk towards a good life for me and out of Babylon”
10
No original: “Everything was created by God for a purpose. Everything has a purpose, understand? Blacks in Jamaica suffered for centuries, at the hands of the white men, and God gave the weapons for resistance. But Rastaman is peaceful. We wage no war. War is white men thing. We are soul rebels, mind rebels, you know? Remember that everything that grows from the earth is sacred. The book says ‘thou shalt eat the Herb from the field’ (genesis 3:18) and that ‘the Herb is the healing of the nation’ (Revelation 22: 2). So, you don’t use ganja to get “high”, but to get to the “I”, you know, to connect with the almighty. Ganja is the weapon of the soul. Don’t be fooled.”
11
O reasoning é uma prática ritual Rastafári em que duas ou mais pessoas se reúnem para fumar ganja e conversar sobre qualquer tema, com o objetivo de chegar à razão fundamental (uma espécie de “verdade fundamental”) daquele tema. O reasoning pode ser agendado com antecedência, como é o caso de reuniões ou rituais, ou pode acontecer casualmente.
12
Alguns Rastas usam a expressão “Rasta Far Eye” para denotar essa capacidade de ver além. É um jogo de palavras com o nome do movimento Rastafari, com ênfase na letra “I” (eu, em inglês) sendo pronunciada como a palavra olho em inglês (“eye”).
13
Apesar da perspectiva generalista de humanidade aqui posta, é importante lembrar que a ganja é, de maneira geral, utilizada pelos mais pelos homens (mas isso não é uma regra)
14
Existem vários episódios na história do movimento na Jamaica. Os principais foram os ataques ao acampamento de Leonardo Howell durante a década de 1950 e o massacre de Coral Gardens em 1968.
15
Como veremos mais adiante, higgler é o nome dado às comerciantes de frutas e vegetais. É um tipo de comércio historicamente recortado pelo gênero e praticado quase exclusivamente por mulheres. Possui algumas diferenças em relação ao mesmo tipo de comércio feito pelos Rastas (Brown-Glaude 2011)
16
Estamos falando aqui de “produtos da terra”. Os Bobos fazem artesanato e produzem outros artigos, como as famosas vassouras Bobo Shanti, feitas da madeira e palha das árvores nativas que circundam o acampamento.
17
O funeral de um dos principais líderes Rastafáris do período, Robert Hinds, não contou com a presença de nenhum dos seus seguidores, fato que também era regra no caso de falecimento de algum membro do movimento.
18
O termo higgler deriva do verbo em inglês haggle, que significa pechinchar ou negociar.
19
Esta discussão merece um artigo próprio e não se pretende esgotá-la aqui. Grande parte do debate sobre gênero no movimento Rastafári foi realizado por mulheres que fazem ou fizeram parte do movimento. Entre elas podemos citar o trabalho pioneiro de Maureen Rowe (1989; 1998; 2014), primeira a escrever sobre o tema, e as contribuições de Imani Tafari-Ama (1998; 2012; 2014) e, Obiagele Lake (1985; 1998; 2014). A jornalista Barbara Blake-Hannah não participava do movimento, mas foi importante na sua defesa em diversos trabalhos (1997; 2002).
20
O Nyabinghi é um ritual em que são empregados instrumentos de percussão, sendo os tambores os mais proeminentes. Os tambores utilizados incluem o fundo (ou bass), o repetidor (repeater) e o kete, cada um com um papel específico na criação do ritmo. Outros instrumentos de percussão, como guiro e shakers, também podem ser usados para adicionar textura ao som. A batida do Nyabinghi é caracterizada por um ritmo pulsante e sincopado, no ritmo de "três contra um". Isso significa que há três batidas em um tempo, seguidas por uma pausa, criando um padrão rítmico distintivo que é central para as cerimônias e celebrações Rastafari. Os Rastas dizem que o ritmo do nyabinghi imita as batidas do coração, e, por isso, é altamente energético e envolvente, incentivando a participação ativa dos participantes através da dança e do canto.
21
Esse ponto é ressaltado por algumas pesquisadoras que notam que tem havido uma evolução na maneira como os Rastas enxergam as mulheres no movimento, mas como é um processo recente e que atravessa questões relativas à preceitos cosmológicos, tem demorado um tempo mais longo para se implementar (Rowe 2014; Tafari-Ama 2014). Em um dos reasonings do qual participei em Bobo Hill, uma discussão intensa ocorreu, pois um dos sacerdotes defendia que a proibição da participação das de mulheres menstruadas de participar dosem rituais deveria ser extinta. Segundo ele, esse era um dos motivos de poucas mulheres participarem do movimento, o que significava que o acesso à palavra sagrada de Negus era vetado a elas.
22
Defendendo que as pesquisas com os Rastas devem ser feitas a partir de um olhar “interno” ao movimento, Maurren Rowe comentou criticamente os trabalhos de Sheila Kitzinger (1969), que empreendeu uma análise crítica das relações de gênero no movimento Rastafári durante a década de 1960 na Jamaica. Rowe (2014 :177) diz: “Ainda que Kitzinger ofereça evidências para suas observações, suas conclusões não são geralmente aceitas na comunidade Rastafári. Suas observações sobre as relações entre homens e mulheres parecem baseadas em uma teoria de equidade de gênero que necessita igual participação nos rituais de uma cultura específica [...]”. Rowe não nega que o movimento Rastafári seja patriarcal, mas oferece um contraponto crítico dizendo que dentro das comunidades Rastas as próprias mulheres têm se articulado para ter uma participação adequada aos preceitos da livity que não pode ser reduzida às noções ocidentais de igualdade de gênero.
Autoría
Fernando Vieira de Freitas
Fernando Vieira de Freitas
é Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR (UFRJ) e Bacharel em Ciências Sociais pela UFMG. É membro pesquisador do Laboratório de Antropologia e História (LAH/Museu Nacional/UFRJ). Atualmente, atua como Staff UX Researcher no setor de tecnologia.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.Universidade Federal do Rio de JaneiroBrasilRio de Janeiro, RJ, BrasilUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.Universidade Federal do Rio de JaneiroBrasilRio de Janeiro, RJ, BrasilUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
imageFigura 1:
Carroça de Ras Kingson - 2017.
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Fonte: Acervo pessoal autor.
Como citar
Freitas, Fernando Vieira de. |No-boss but the I-man: El comercio de alimentos y la construcción de noción de persona entre los Rastafári Bobo Shanti en Jamaica. Mana [online]. 2024, v. 30, n. 3 [Accedido 17 Abril 2025], e2024032. Disponible en: <https://doi.org/10.1590/1678-49442024v30n3e2024032.pt>. Epub 13 Ene 2025. ISSN 1678-4944. https://doi.org/10.1590/1678-49442024v30n3e2024032.pt.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJQuinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 -
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