Resumo
O propósito do presente artigo é explorar o papel da imaginação na produção de dispositivos de assistência circulatória no âmbito da biomedicina moderna, tecnologias também conhecidas como Corações Artificiais. Os dados etnográficos sugerem a caracterização de uma imaginação marcada pelo engajamento material e corporal. O diálogo com teóricas feministas que propõem novos materialismos e com a antropologia da ciência e da tecnologia permite qualificar a matéria e reivindicar uma atenção às práticas. São abordagens que trazem para o primeiro plano a participação de distintas entidades e seres, permitindo observar o modo como as coisas podem se impor e contribuir para o molde de suas próprias formas, o que implica que, além de corporificado, o processo imaginativo encontra-se distribuído. Trata-se de (re)colocar a imaginação, que é comumente recusada ou pouco reconhecida na produção científica moderna purificada, destacando o engajamento material como essencial no processo de desenvolvimento tecnológico. A tarefa de descrever e reivindicar uma imaginação corporificada, partilhada e não reduzida à intencionalidade humana levará ao diálogo com abordagens e compreensões distintas sobre o processo criativo.
Palavras-chave:
Imaginação; Processo criativo; Inovação responsável; Corpo e corporalidade
Resumen
El propósito de este artículo es explorar el papel de la imaginación en la producción de dispositivos de asistencia circulatoria dentro del alcance de la biomedicina moderna, tecnología conocida como Corazones Artificiales. Los datos etnográficos sugieren la caracterización de una imaginación marcada por el compromiso material y corporal. El diálogo con teóricas feministas que proponen nuevos materialismos y con la antropología de la ciencia y la tecnología, permite calificar la materia y reivindicar una atención dirigida a las prácticas en el proceso de emergencia de nuevos dispositivos/cuerpos. Son enfoques teóricos que ponen en primer plano la participación de diferentes entidades y seres en el proceso de creación y desarrollo de tecnologías médicas. La mirada atenta a las prácticas nos permite observar el modo en el que las cosas pueden imponerse y contribuir en el molde de sus propias formas, lo que implica que además de materializarse, el proceso imaginativo se distribuye. Se trata de (re)poner la imaginación, comúnmente rechazada o poco reconocida en la producción científica moderna purificada, destacando la materialización como esencial en el proceso de desarrollo tecnológico. La tarea de describir y reivindicar una imaginación materializada, compartida y no reducida a la intencionalidad humana conducirá a un diálogo con diferentes enfoques y entendimientos sobre el proceso creativo.
Palabras clave:
Imaginación; Proceso creativo; Innovación responsable; Cuerpo y corporeidad
Abstract
This article explores the role of imagination in the development of circulatory assistant devices, technologies also known as Artificial Hearts, by contemporary biomedicine. Ethnographic data suggests an imagination that is characterized by a material and corporeal engagement. Feminist theorists who propose new materialisms and the anthropology of science and technology provide a basis from which we can be attentive to practices in the enactment of new devices/bodies. These are theoretical approaches that foreground the participation of different entities and beings in the process of creating and developing medical technologies. A focus on practices allows us to observe how things can impinge on and contribute to the shape of their own forms, which implies that, in addition to being embodied, the imaginative process is also distributed. The article (re)situates the imagination, which is commonly rejected or sidelines in a purified modern scientific output, highlighting material engagement as an essential element in the process of technological development. The task of describing and claiming an embodied imagination, shared and not reduced to human intentionality, will establish a conversation with different approaches to and understandings of the creative process.
Keywords:
Imagination; Creative process; Responsible innovation; Body and embodiment
O desafio de abordar uma temática multifacetada e a reivindicação de um entendimento da imaginação fundamentado em dados etnográficos
[…] O pintor Edgar Degas teria comentado certa vez com Stéphane Mallarmé: “Tive uma ideia maravilhosa de poema, mas parece que não consigo desenvolvê-la”, ao que Mallarmé replicou: “Meu caro Edgar, poemas não se fazem com ideias, mas com palavras” (Sennett 2019:137SENNETT, Richard. 2019. O Artífice. Rio de Janeiro: Record .).
O tema da imaginação e da inovação já rendeu muitas linhas, análises, livros e palestras motivacionais em campos diversos como a arte, a ciência e a tecnologia. São também múltiplas as abordagens e as tentativas de criar métodos para “desvendar” ou abstrair possíveis lógicas, modelos universais capazes de sumarizar o que se considera ser o processo inventivo responsável por trazer coisas à existência, ora atribuindo-lhe razões sociológicas, referentes às condições de produção, ora valorizando gênios individuais, perfis psicológicos, explicações metafísicas etc. Tais modelos parecem ser interessados na natureza do processo criativo, o que significa que quase sempre interrogam a respeito de onde vêm as ideias. A tarefa aqui será menos interrogar de onde elas vêm, e mais como ganham existência e materialidade.
Partindo da pesquisa realizada junto a uma rede de dispositivos de assistência circulatória e pesquisadores engajados na produção de tais tecnologias cardíacas - cujo propósito é mitigar o alto índice de mortes em decorrência da insuficiência cardíaca - o esforço será recuperar cenas etnográficas que permitam desenvolver uma compreensão de imaginação corporificada e distribuída.
Foram distintos os recintos percorridos ao longo da pesquisa de doutorado: laboratórios de bioengenharia vinculados a universidades públicas, laboratório de cirurgias experimentais em animais e centros cirúrgicos destinados a intervenções em pacientes humanos, localizados em um reconhecido hospital público da cidade de São Paulo. Em todos eles presenciei cenas que remetiam à atuação da imaginação, à dimensão inventiva presente nos processos de desenvolvimento e aprimoramento dos artefatos. Quase sempre eram ocorrências e aspectos que desapareciam dos registros da produção científica e tecnológica. Eu me refiro sobretudo a imprevistos, intercorrências, atuações acidentais que marcaram presença desde os testes de bancada, os chamados testes in vitro, por onde primeiramente passavam os protótipos, ou seja, as primeiras formas dos dispositivos. A atuação inventiva, passível de promover desvios de percurso, acompanhou as trajetórias dos artefatos nos caminhos que os moldavam, como no emprego em porcos, nos testes in vivo, e mesmo na implantação em humanos - momento em que estava prevista certa estabilidade, o que nem sempre se concretizava, no entanto.
A imaginação remetia, por exemplo, à eficácia de um formato específico de aleta,1 1 A aleta é uma espécie de pá acoplada ao rotor da bomba que, ao girar, empurra e impulsiona o sangue para frente, similar às hélices de ventiladores, helicópteros e liquidificadores, por exemplo. cuja avaliação evidenciou a sua superioridade em relação às outras também projetadas; à inadequação de um encaixe de um dispositivo, revelada ao ser manuseado por um cirurgião na tentativa de implantá-lo junto a órgãos nativos, fato que demandou sua reformulação; ao tempo de uso que evidenciou a inconformidade dos materiais que se desgastaram precocemente. Cada uma dessas situações, presenciadas, respectivamente, nos testes in vitro, nos testes in vivo e na avaliação em humanos - as três fases preconizadas para o desenvolvimento dos corações artificiais - revelam as relações inventivas emergentes no engajamento material que configuram e dão forma às tecnologias. São atuações que elucidam o caráter distribuído do processo criativo, fundamentais aos esforços imaginativos destinados à busca de novas soluções, de estratégias alternativas diante das limitações postas pelas tecnologias vigentes.
Situações comezinhas, as mais triviais, os procedimentos até entediantes2 2 Eu me refiro a procedimentos de bancada para os quais às vezes eu nem era convidada, pois, segundo um dos pesquisadores da bioengenharia, nada de interessante acontecia neles. Ao contrário dos testes in vivo, por exemplo, que mobilizavam uma equipe de cirurgiões e enfermeiras, além da presença dos porcos, o que fazia deles procedimentos custosos e emocionantes. Apesar do “sacrifício” do animal, que necessariamente sairia morto do procedimento - dado que a eutanásia era uma exigência ética - havia o caráter da manipulação da vida, o reconhecimento de uma vida em jogo. Eram procedimentos que demandavam todo um preparo, agendamentos antecipados e que cumpriam o papel de formar alianças entre os bioengenheiros e equipes médicas. Os testes de bancada operavam mais no sentido de criar intimidade entre os bioengenheiros e os dispositivos. Depois dessas primeiras avaliações, mais reservadas, engenheiros e dispositivos pareciam ambos mais seguros, mais preparados para os testes in vivo e para atuações mais públicas. participam da produção de tecnologias médicas e são fundamentais tanto quanto as ideias mirabolantes - ou mais, se considerarmos que os conceitos extravagantes operam sobretudo como estratégia de marketing, para justificar e fortalecer o direcionamento de recursos para as pesquisas das quais decorrem esses dispositivos. Criar, inovar e o nascimento de soluções alternativas, originais e ousadas demandam um esforço imaginativo projetivo, assim como um tanto de engajamento material e negociação entre atores e entidades das mais diversas. É no desdobrar das horas de um dispositivo “rodando” persistentemente em uma bancada, posto em ação em um corpo (humano ou não humano) que coisas acontecem. São essas as relações que dão existência aos dispositivos, que os (trans)formam até que tenham encontrado suas melhores formas. E são essas transformações que dão pistas do processo criativo corporificado e distribuído que será aqui desenvolvido.
Não é apenas à produção científica e tecnológica experimental, interessada em encontrar novas respostas ou formas de aprimoramento dos mecanismos que ainda apresentam certa precariedade, que interessa a imaginação e a projeção de futuros possíveis, alternativos.
À abordagem antropológica o tema tem interessado e ganhado relevância, seja no âmbito das discussões relativas aos desafios postos pelas crises socioambientais - como o debate em torno do Antropoceno, que coloca a urgência de imaginar e construir novos modos de existência (Krenak 2019KRENAK, Ailton. 2019. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.; Kopenawa & Albert 2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras .; Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press.; Danowski & Viveiros de Castro 2017DANOWSKI, Déborah & Viveiros de Castro, Eduardo. 2017. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie / Instituto Socioambiental.) - seja nos esforços teóricos interessados em refletir sobre a mudança e o processo dinâmico e criativo das culturas (Wagner 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.). O tema tem brotado e apresentado rendimentos em campos e problemáticas distintas,3 3 A problemática da imaginação demonstrou ser cada vez mais relevante no processo de escrita da tese, na qual, porém, foi apresentada sem o devido aprofundamento. O interesse no tema encontrou reverberação nos trabalhos de colegas de pesquisa, entre eles André Bailão e Joana Cabral de Oliveira. Além dos nossos debates e interlocução no âmbito do Lapod (Laboratório de Estudos Pós-disciplinares), o interesse comum rendeu o Grupo de Trabalho Imagination and knowledge production, realizado no IUAES, de 2018, em parceria com Cristián Simonetti. Agradeço às parcerias, às instigantes provocações, especialmente à leitura interessada da Joana Cabral de Oliveira de uma versão do artigo e por suas contribuições. revelando-se pertinente e desafiador.
A reflexão proposta circunscreve-se aos desafios relativos ao desenvolvimento biotecnológico e navegará entre: 1. a proposição de uma imaginação corporificada fundamental para o aprimoramento de corações artificiais, o que nos levará a reflexões em torno do corpo, da corporalidade e da materialidade; 2. compreensões diversas sobre o processo criativo, incluindo um diálogo com o campo das artes e da produção tecnocientífica; 3. uma breve arqueologia da trajetória da imaginação de corpos “sem coração”, presente em distintas estratégias de substituição da função cardíaca na história da biomedicina; 4. um alargamento do alcance da imaginação, incluindo uma dimensão cosmopolítica, voltada à compreensão das visões de mundo e condições de produção tecnológica que informam o contexto brasileiro.
Na narrativa que se desdobra a proposição de uma maneira específica de compreender a imaginação, a tarefa de descrever e reivindicar uma imaginação corporificada, partilhada e não reduzida à intencionalidade humana levará ao diálogo com entendimentos consolidados e validados do processo criativo em outros campos.
Dialogar com outras elaborações sobre processo de criação permitirá problematizar os limites de uma abordagem pautada na imagem, do entendimento da imaginação como projeção ou visualização, ou da imaginação como traçada para o futuro, para algo inexistente dentro de uma compreensão linear do tempo. A centralidade da imagem, certo caráter “intuitivo” da imaginação, as fronteiras entre aspectos cognitivos e materiais serão investigados a partir de formulações do processo criativo nas artes, bem como das elaborações do inventor Nikola Tesla sobre seus próprios processos de invenção.
Além de explorar a divisão entre manual e cognitivo, o esforço será recuperar a história da especulação de possibilidades de manutenção de um corpo vivo sem seu coração nativo, o que possibilitou a emergência da imaginação de novos corpos, como pretendo argumentar.
Por fim, a imaginação científica ganhará uma nova qualificação ao ser investigada na chave das condições de possibilidade de projetos experimentais e de inovação, dadas as especificidades locais diante de uma produção tomada como central e modelar, designando uma posição “marginal” para o Brasil. Abordar as condições de produção, o que passa pelo reconhecimento da lógica mercantil na qual está inserida a produção científica e tecnológica, coloca em questão a própria imaginação como propriedade.4 4 Como apontou Magda dos Santos Ribeiro a partir da leitura do presente texto, considerando que há uma relação fundamental entre imagem e forma, ideia e imagem, como buscarei argumentar adiante, pode-se considerar que a ideia de uma coisa, a imaginação mesma, pode ser tratada em termos de propriedade, e não de imaginação, evidenciando uma captura primária, ou seja, o lugar da imaginação na ciência pode estar capturado pela lógica da autoria, de direito de propriedade, o que de saída limita a imaginação. Daí viria o reconhecimento ou certa intensificação da percepção de que os mecanismos capitalistas e neoliberais colocam em crise a criatividade tecnocientífica, comprometendo a própria capacidade inovadora. Tive oportunidade de apresentar e debater o texto no âmbito do LACS (Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas), na UFMG, em fevereiro de 2021. Agradeço a leitura atenciosa e registro aqui esse apontamento instigante, que permite abrir caminhos que poderei explorar no futuro.
A potencialidade da imaginação nos campos da ciência, da tecnologia e da biomedicina carrega intrinsicamente perigos que são alvo de apreensão. O desenvolvimento de bombas atômicas é o emblema desse temor. Ao retomar o argumento de Hannah Arendt, em A condição humana, Richard Sennett (2019SENNETT, Richard. 2019. O Artífice. Rio de Janeiro: Record .) argumenta que o medo da invenção de materiais destrutivos remonta, na cultura ocidental, ao mito grego de Pandora. Os temores associados às crises pandóricas que nos colocam em risco de infligir danos a nós mesmos, às outras espécies, ao planeta, danos extensos e irreparáveis, remete à crença de que, em certo sentido, não há limites para a produção científica e tecnológica - uma curiosidade insaciável e arriscada, somada à sedução do discurso do progresso técnico e de suas infinitas possibilidades. Essa crença encontra-se explicitada, por exemplo, em anotações do diário de Robert Oppenheimer, diretor do projeto Los Alamos, responsável pela primeira arma de destruição em massa: “Quando vemos alguma coisa tecnicamente agradável, vamos em frente e fazemos, e só pensamos no que fazer com ela depois de ter sucesso do ponto de vista técnico” (Sennett 2019:12SENNETT, Richard. 2019. O Artífice. Rio de Janeiro: Record .). Será que a imaginação científica deve ser irrestrita, ilimitada, não regulamentada? Na última parte do argumento, olhando para a produção brasileira, a tarefa será levantar questões sobre o que significa reivindicar liberdade imaginativa na tecnociência.
Em linhas gerais, o intuito é abordar a imaginação como prática, como processo corporificado e distribuído, destacando o caráter processual do desenvolvimento e do aprimoramento de artefatos biomédicos. Tais elaborações estarão em diálogo com teorias feministas interessadas em recolocar a materialidade, conhecidas como novos materialismos (Pitts-Taylor 2016PITTS-TAYLOR, Victoria. 2016. Mattering: feminism, science, and materialism/ edited by Victoria Pitts-Taylor. New York: New York University Press.), feminismo orientado por objetos (Pollock 2015POLLOCK, Anne. 2015. “Heart Feminism”. Catalyst: Feminism, Theory, Technoscience, v. 1, n. 1.) e virada para a prática (praxiografia, Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham: Duke University Press .). São todas proposições interessadas em destacar a inseparabilidade da matéria e dos significados. Nesse sentido, trata-se de explorar o modo como uma nova abordagem materialista pode deslocar estruturas dualistas, permitindo a conceitualização da passagem dos fluxos da natureza e cultura, matéria e mente (Barad 2017BARAD, Karen. 2017. “Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria”. Vazantes, Fortaleza, v. 1, n. 1:7-34.).
O esforço será olhar para o modo como as coisas são feitas, para os processos que levam a situações inesperadas, a novos arranjos, destacando a participação de atores diversos,5 5 Para uma compreensão aprofundada e uma caracterização dos atores no campo de produção de dispositivos de assistência circulatória, ver Marini (2019b). desnaturalizando a centralidade do humano (e da racionalidade) e reconhecendo uma multiplicidade de atuações que se impõem no processo criativo (às vezes silenciosamente).
Iluminar os processos imaginativos para a emergência de novos corpos/artefatos, evidenciando seu caráter processual, não implica considerar que a matéria seja uma ilusão, ou que os enredamentos sejam puro fluxo e devir. Olhar para os processos possibilita atentar para os esforços de estabilização da matéria. Olhar para a materialidade torna-se central, incitando um exame dos procedimentos de manutenção dos arranjos, a sustentação do entrelaçamento da matéria com a significação. Os artefatos são importantes para sustentação das sociedades, os não humanos são condições de possibilidade para a formação das sociedades humanas (Latour 1991LATOUR, Bruno. 1991. “Technology is Society Made Durable”. In: J. Law (ed.), A Sociology of Monsters: Essays on Power, Technology and Domination. Sociological Review Monograph, n. 38:103-132.).
O propósito é suspeitar da compreensão de que há uma ideia dada, que nasce pronta, algo que emerge como imagem para depois ganhar materialidade. Atentar para o processo, problematizando as causalidades lineares, nos intima a considerar o desenvolvimento como produtor/criativo, e não apenas transformador ou tradutor. O engajamento concreto com o mundo e com as coisas, do qual decorrem novos artefatos, não é um processo apenas de aprimoramento de uma ideia pré-formulada mentalmente. É preciso considerar que os processos mentais e materiais estão emaranhados, não há a anterioridade de um em relação ao outro. De modo que, se os estágios e os desdobramentos não são isolados do processo, a anterioridade desaparece.
Trata-se de considerar o fazer como uma modalidade do tecer, tomando-o como prática (habilidosa) formadora que abranda e coloca em questão a divisão entre artefatos e organismos, coisas construídas e vivas, feitas e em crescimento (Ingold 2000INGOLD, Tim. 2000. The perception of the environment - Essays in livelihood, dwelling and skill. London and New York: Routledge.). Explodir a centralidade das ideias, das imagens e a noção de algo que opera como uma projeção mental que nasce determinada permite evidenciar o empenho necessário à criação, que longe de ocorrer por inspiração, ser marcada por processos etéreos, mágicos ou transcendentais, demanda intensos e prolongados esforços, um incansável fazer e refazer.
A imaginação corporificada
A proposição de uma imaginação corporificada decorre de um duplo interesse no corpo: relativo à corporalidade e a compreensões fenomenológicas da experiência corporal; pertinente aos desenvolvimentos teóricos associados aos novos materialismos, à centralidade da matéria e das práticas no desenvolvimento tecnocientífico. São discussões das quais decorrem novas possibilidades investigativas diante da crise da concepção dualista do humano, além de certo esgotamento dos seus limites autocontidos (Haraway 2000HARAWAY, Donna. 2000. “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: T. T. Silva (org.), Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.). Essas reflexões são pontes para a fabulação (Haraway 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press.) de novas formas de existência e possibilidades políticas que incluam a diversidade e problematizem a hierarquização de saberes.
Diante de novos fenômenos, emergem novas sensibilidades políticas, epistemológicas e metodológicas que nos levam a reconsiderar a matéria, o material, reconciliando esferas que foram forçosa e insistentemente apartadas na Modernidade.
A imaginação de corações artificiais permite a emergência de novos corpos, composições sustentadas pela participação de sujeitos e entidades diversas, que diante do esgotamento dos mecanismos de purificação tornam insustentáveis as separações ontológicas entre coisas, pessoas, humanos e não humanos (Latour 1991LATOUR, Bruno. 1991. “Technology is Society Made Durable”. In: J. Law (ed.), A Sociology of Monsters: Essays on Power, Technology and Domination. Sociological Review Monograph, n. 38:103-132., 1994bLATOUR, Bruno. 1994b. Jamais fomos modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro. Ed. 34.), ou seja, os novos corpos, as novas entidades que emergem na relação com os corações artificiais correspondem a uma assembleia, cujas definições ontológicas se tornam instáveis à medida que se tornam indistinguíveis (Latour 1994aLATOUR, Bruno. 1994a. “On technical Mediation - Philosophy, Sociology, Genealogy”. Common Knowledge, v. 3, n. 2:29-64., 2011LATOUR, Bruno. 2011. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp.).
Os corações artificiais nos levam a reconhecer a explosão das fronteiras dualistas e das definições ontológicas rigidamente determinadas, não só o dualismo entre corpo e mente, mas também as prolíferas dicotomias entre organismo e máquina, público e privado, natureza e cultura, animal e humano, homens e mulheres, primitivo e civilizado, que, no entanto, estão sendo todos “canibalizados” ou “tecnodigeridos”, como destaca Donna Haraway (2000HARAWAY, Donna. 2000. “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: T. T. Silva (org.), Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.). Trata-se da imaginação e da instituição de novos corpos que colocam em questão o racionalismo e o antropocentrismo como pilares exclusivos da produção de conhecimento e tecnologias.
A ruptura operada por Descartes possibilitou a emergência do “corpo biotecnológico”, o corpo máquina e passível de ser manipulado, ao tornar a matéria ontologicamente diferente do espírito. E o corpo biotecnológico voltou-se contra a dualidade corpo/espírito, tornando-a problemática com a emergência de corpos pós-humanos e ciborgues, ou seja, o que instituiu as ciências e a medicina modernas é também o que a coloca em crise.6 6 As transformações nas ciências e na biomedicina relacionam-se a dois aspectos centrais: a falência dos dualismos, o que inclui o dualismo entre ciência/biomedicina e sociedade, implicando na derrocada da ideia de neutralidade científica; e a crise da representação, que leva ao enfrentamento da materialidade e das práticas sociomateriais a partir das quais emergem novos corpos.
É justamente para lidar com os limites da separação cartesiana diante do surgimento de aparatos que possibilitam novos acessos à materialidade que Donna Haraway (2000HARAWAY, Donna. 2000. “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: T. T. Silva (org.), Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.) propõe a figura do ciborgue. Trata-se de uma estratégia intelectual que permite explorar o cruzamento de fronteiras, abordar a íntima conexão entre tecnologia e corpo, que decorre na criação de quimeras - entidades compostas, para além de compreensões puristas, visões romantizadas do eu/humano tomado como puro, natural, inviolável.
A centralidade do corpo e da materialidade entre teóricas feministas corresponde à reconciliação da matéria, da compreensão de diferenças que precisaram ser, de certa forma, recusadas - uma vez que todo o empreendimento médico-científico moderno localizou a diferença no corpo material. Não se pode falar de corpo biológico sem ciência e de ciência sem corpo biológico - e a circulação de poder é profundamente implicada em ambos. Recolocar a materialidade, no entanto, implica reconhecer que não há matéria ou corpo biológico universal, ou seja, não pode haver corpo ou matéria genérica e descontextualizada (Roy & Subramaniam 2016ROY, Deboolena & SUBRAMANIAM, Banu. 2016. “Matter in the shadows: Feminist new materialism and the practices of colonialism”. In: Victoria Pitts-Taylor (ed.), Mattering: Feminism, science and materialism. New York, NYU Press.). Trata-se de um convite a novos materialismos, decorrentes da observação de que vivenciamos manipulações sem precedentes da matéria e da vida - ao menos no âmbito da biomedicina e da tecnociência.
Olhar para a prática e para a materialidade nos permite ver a mistura de sujeitos e sua coprodução. Se, por um lado, as práticas reforçam e evidenciam o pragmatismo de determinadas divisões que permitem à biomedicina e à ciência produzirem coisas, por outro lado, permite destacar também os limites de tais divisões, os momentos em que a “máquina de purificação” da modernidade é obstruída, para falar com a teoria ator-rede e a compreensão latouriana da falência da divisão moderna entre natureza e cultura. A reação epistemológica diante desses limites se volta para o modo como os objetos são performados, evidenciando não haver realidade anterior ao seu ordenamento por meio das práticas (Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham: Duke University Press .).
Os dados etnográficos sobre a produção de corações artificiais decorrentes da pesquisa de doutorado desenvolvida por mim colocam em questão uma suposta divisão entre a projeção de algo e seu desenvolvimento - que em certas abordagens é característica da própria separação entre engenharia e tecnologia. Trata-se de interrogar a compreensão de que no processo tecnológico contemporâneo a racionalização dos processos tem como efeito apartar o processo criativo do contexto de engajamento físico entre trabalhador e materiais (Ingold 2000INGOLD, Tim. 2000. The perception of the environment - Essays in livelihood, dwelling and skill. London and New York: Routledge.).7 7 “[…] A imagem do artesão, imerso com todo o seu ser, num engajamento sensual com a matéria, foi gradualmente suplantada pela imagem do operário cujo trabalho é colocar em movimento um sistema exterior de forças produtivas, de acordo com princípios de funcionamento mecânicos que são indiferentes a aptidões e sensibilidades humanas particulares. […] O efeito desta racionalização, entretanto, é remover a parte criativa do fazer do contexto do envolvimento físico entre o trabalhador e o material, e localizá-la antecedente a esse engajamento na forma do processo intelectual do design. Uma distinção absoluta é então introduzida entre o design das coisas e sua construção. A coisa, dizemos, é virtualmente ‘concebida’ anteriormente à sua realização na prática.” (Ingold 2000:295, tradução nossa).
Com o intuito de evocar materialidade à compreensão de uma imaginação corporificada e distribuída, trago mais detidamente uma situação vivenciada na pesquisa etnográfica, quando o dispositivo prototipado foi implantado em porcos no âmbito dos testes in vivo, depois de ter passado pelos testes in vitro.
Ao tentar conectar a cânula do dispositivo no órgão do animal, o cirurgião teve dificuldade de fechar a peça do encaixe que tornaria tais entidades intimamente conectadas. O dispositivo continha dois tubos, um de entrada, outro de saída, que deveriam ser implantados na aorta e na parte inferior do órgão (ápice do ventrículo). Com isso, o sangue era desviado e o dispositivo realizava a função de distribuí-lo pelo corpo. Para sua fixação, um dos tubos era costurado e o outro encaixado na aorta, ambos a partir de um anel de metal, como descreve um dos pesquisadores da bioengenharia, Apolo:8 8 Os pseudônimos aqui adotados seguem a lógica proposta na tese de doutorado, na qual nomes de heróis e deuses gregos foram utilizados. Trata-se de uma estratégia espirituosa que sugere certa homologia arquetípica entre as personagens, dando indícios da relação construída com os interlocutores da bioengenharia e da cardiologia.
Ambas as conexões, entrada e saída, são cilindros que ficam presos ao corpo da bomba, sendo que eles diferem entre si pelo diâmetro e posicionamento. A entrada da bomba possui um diâmetro maior com detalhes específicos (sulcos e ressaltos) para conectar ao bordelete, que por sua vez é fixado ao músculo cardíaco. Esta conexão se dá por meio de uma trava, tipo anel elástico. Essa trava também pode ser descrita como um rígido arame de aço conformado em anel. Uma abertura neste anel permite a manipulação do seu diâmetro para que possa ser adequadamente posicionado nos sulcos e ressaltos para o efetivo travamento da entrada da bomba no bordelete. O bordelete é um anel metálico que possui no diâmetro externo um tecido feito de material biocompatível para a fixação no músculo cardíaco.
Para fixar as partes a partir do anel era necessário pressionar dois pinos a um só tempo. Diante da impossibilidade de realizar tal ação agilmente - o que é uma necessidade para o melhor andamento de um procedimento cirúrgico, que deve combinar precisão, facilidade, agilidade, impedindo perda de tempo e intercorrências que demandem desfazer e refazer ações - o cirurgião queixou-se da estrutura do encaixe sem esconder sua irritação aos bioengenheiros ali presentes. As tentativas de segurar o anel e pressionar os pinos se demonstraram complicadas, e parecia não haver um alicate cirúrgico apropriado, o que possivelmente decorria do fato de que engenheiros e cirurgiões utilizavam instrumentos diferentes em suas tarefas - o instrumental cirúrgico se desenvolveu e era todo adaptado às condições e às necessidades das intervenções cirúrgicas. Dada a dificuldade, não era viável fixar um dispositivo com aquele encaixe, que escorregava, para o qual não havia ferramentas que permitissem agarrá-lo com segurança e manuseá-lo com precisão, que dificultava a tarefa de manusear um artefato composto por materiais rígidos, distintos da carne, das estruturas fisiológicas que implicavam novas formas de relacionalidade. Além da dificuldade de engate, o feixe não parecia oferecer segurança, podendo soltar-se da cânula presa à aorta com a movimentação contínua do órgão, o que poderia implicar grave acidente depois de implantado, com o peito já fechado e o acesso direto ao dispositivo impossibilitado. Avaliando posteriormente o episódio, o engenheiro responsável por seu desenvolvimento, Orestes, comentou:
Acontece que esse sistema de "encaixe rápido" teve problema de vazamento de sangue e também foi bem difícil de o cirurgião conseguir prender. Essa foi uma ideia do cardiologista idealizador do projeto e tinha funcionado bem nos testes, mas na hora H, sabe como é… Então mudamos esse sistema de encaixe para um com rosca, coisa simples, no estilo usado em encanamento doméstico. Esse sistema funcionou bem, ele foi mais fácil para o cirurgião e também não deu problema de vazamento.9 9 O vazamento estava relacionado ao tipo de encaixe, mas também à relação entre a cânula e o sangue. A permeabilidade da cânula está diretamente relacionada à viscosidade do sangue, ou seja, as cânulas só se tornam impermeáveis quando o sangue não se encontra anticoagulado, o que não é o caso em intervenções cirúrgicas, por conta dos riscos de formação de coágulos. O problema da viscosidade reduzida do sangue que interferiu no vazamento pela cânula foi resolvido com a aplicação de uma camada de um material, chamado de PU, na parte externa da cânula, que a tornou menos flexível, mas impermeabilizada.
Embora a agilidade seja uma qualidade necessária nos procedimentos cirúrgicos, é preciso desmitificar a afobação tipicamente representada em filmes, própria dos repertórios midiáticos populares que caracterizam as situações cirúrgicas como momentos aflitivos de extrema agitação.10 10 Ao longo de cerca de uma dezena de procedimentos que acompanhei - entre cirurgias performadas em porcos e em pacientes humanos - foram raras as situações que pareciam ter fugido do controle, ocasionando reações nervosas ou agitadas. No geral, as cirurgias transcorreram dentro de um roteiro, ainda que momentos de maior tensão fossem parte do roteiro. Mais do que pressa, a precisão é a atitude mais valorizada nos testes in vivo que simulam as situações cirúrgicas. As texturas e a viscosidade do sangue interferiam na agilidade do manejo, produzindo uma temporalidade distinta. Já nos testes in vitro os materiais pareciam não demandar tamanha agilidade, ou melhor, eles pareciam admitir certos lapsos, ou ajustes ao longo dos procedimentos, quase sempre mais demorados, ou não caracterizados pela celeridade, mas por relações funcionais tendo em vista a duração dilatada dos testes.
Desta forma, a temporalidade e as condições materiais produziam diferentes relações nos testes in vitro e nos testes in vivo. Nos primeiros não há a inconstância, a variabilidade causada pela movimentação das estruturas orgânicas, as texturas escorregadias e deslizantes. A bancada configura-se como um modelo simplificado e, portanto, facilitador. Por isso a tarefa de manusear a “mesma” estrutura de encaixe pode se diferenciar em cada situação.
Com o caráter performativo das práticas (Mol 2002MOL, Annemarie. 2002. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham: Duke University Press .), o que se evidencia nessa cena é que um dispositivo pode atuar de diferentes modos em ecologias distintas. O encaixe projetado estabeleceu relações diferentes em cada uma das situações. Há uma ecologia de práticas própria a cada um dos testes. É nesse sentido que Ingold (2000INGOLD, Tim. 2000. The perception of the environment - Essays in livelihood, dwelling and skill. London and New York: Routledge.) sugere apostar na abordagem ecológica para compreender a geração e a dinâmica do desenvolvimento das habilidades, considerando-as como técnicas que são cultivadas, incorporadas ao organismo pela prática, que não se caracterizam como atributos humanos, mas são parte do entrelaçamento entre os corpos e os ambientes - encontro necessário para a concretização das habilidades.
A relação que posteriormente levou a uma nova forma do encaixe do dispositivo envolveu a participação mais ou menos engajada do corpo do cirurgião,11 11 Para uma compreensão aprofundada da atuação das mãos/corpo do cirurgião e sua eficácia tecno-ritualística, ver Marini (2019b). do coração artificial, dos engenheiros que o haviam desenvolvido e que foram solicitados para lidar com a dificuldade de manipulação do feixe, assim como do próprio porco, caracterizado pelas estruturas do seu coração. O envolvimento (complicado12 12 Ou coimplicada, como sugere o brilhante trocadilho formulado por Joana Cabral de Oliveira (2020). No contexto de sua etnografia, o termo remete às relações estabelecidas com um grupo de pesquisadores acadêmicos (do qual ela fazia parte) que atuava na terra indígena (na qual ela desenvolvia sua pesquisa). A complicação está posta na sua posição como pesquisadora em campo, mas também na sofisticada estratégia metodológica empregada por ela, que complica as clássicas divisões antropológicas entre nós e eles, sustentando-as na diferenciação própria da língua wajãpi entre um nós inclusivo e um nós exclusivo. ) instituído entre os atores presentes na cena desencadeou a necessidade de buscar novas formas, um outro mecanismo de encaixe. O que se passou foi um feixe de relações materiais que se diferenciou nos testes de bancada e em animais, de modo que o encaixe da bomba atuasse de maneiras diversas nas distintas ecologias de práticas. Foi em meio a cirurgias experimentais performadas13 13 A sugestão de que cirurgias possam ser compreendidas como performances no sentido de atuações teatralizadas foi desenvolvida e descrita em Marini (2019b). Nas cenas cirúrgicas, as ações são uma performance no sentido de serem roteirizadas. Mas o caráter performativo remete também ao trabalho de Annemarie Mol (2002) e sua proposta de que a metáfora teatral serve melhor ao que acontece num hospital do que a metáfora de construção, ou seja, considerar que coisas e relações são performadas diz respeito não apenas à realização dramática de ações orientadas por um roteiro de atos e relações, mas também se articula à proposição central do trabalho de Mol relativa ao modo como as doenças são “feitas”. Assim como Mol quer se distanciar de uma conotação da performance como representação, falsificação da realidade, ou mascaramento por meio de atuação, aqui o propósito é tratar a performance como ato que produz realidade. em porcos que a necessidade de (re)criar o dispositivo se revelou. Foi na situação de entrelaçamento material do órgão nativo do porco com o coração mecânico que se inventou a necessidade de uma nova estrutura de encaixe entre eles. A partir da inadequação daquele encontro uma nova forma se instituiu. Embora o anel de encaixe não fosse o foco de avaliação do teste, que pretendia certificar a eficácia (hemodinâmica) da bomba em garantir a perfusão do corpo, sua atuação impôs desafios e promoveu mudanças à própria forma do dispositivo.
Anteriormente, durante outro procedimento de implantação do dispositivo, diante da dificuldade de encaixá-lo, o mesmo cirurgião havia se queixado da aorta do porco, que era menor, segundo ele, do que as aortas humanas médias. Era como se o porco e suas estruturas fisiológicas não estivessem atuando bem como modelo/substituto de humano14 14 Marini (2019b). naquela situação. Sua atuação invisível, ou seja, não problemática, parecia não se realizar. Ao impor dificuldades, a aorta do porco atuava imprevisivelmente, agenciando o desdobramento da cirurgia. No procedimento seguinte, performado em um porco maior, cuja aorta, portanto, também apresentava maiores dimensões, novamente a mesma dificuldade de encaixe foi vivenciada.
Os desafios relacionais que se apresentaram com o mecanismo de encaixe do dispositivo antes tinham sido imaginados em termos de uma anatomia atuante, por ser distinta e colocar desafios. Posteriormente, a impossibilidade de encaixe ágil foi atribuída ao dispositivo, cuja forma aberta, mais instável, era passível de ser (re)inventada. Há limites na possibilidade de tornar a anatomia de porcos substituta ideal da anatomia humana.
A “imaginação corporificada” busca iluminar os atributos corporais, a dimensão material posta nas práticas, característica do envolvimento entre atores diversos, extrapolando a compreensão da imaginação como uma habilidade cognitiva, no sentido de uma disposição mental, ou seja, uma capacidade de vislumbrar soluções para o aprimoramento das tecnologias em desenvolvimento.
No âmbito da produção de corações artificiais há uma composição de diversas imaginações, que operam como um motor na invenção desses dispositivos, ou seja, como uma força constitutiva, no sentido de que é da busca por novas soluções, por meio das práticas de aprimoramento, que emergem os dispositivos e as inovações.
Em linhas gerais, considero que a imaginação nesse campo refere-se à procura de novos resultados para os desafios postos ao desenvolvimento tecnológico, isto é, a tentativa de encontrar respostas em face das limitações ou das interações indesejáveis que os dispositivos apresentam quando implantados. O engajamento entre materiais, dispositivos, corpos humanos e não humanos nas práticas de validação das tecnologias médicas ao longo das fases de seu desenvolvimento - os testes in vitro, in vivo e avaliação em humanos - leva a interações inesperadas, reações imprevistas, relações que demandam adequações, transformam os dispositivos, alteram suas formas. Tudo se passa como se a imaginação corporificada fosse uma imposição dos próprios dispositivos, dos atores humanos e não humanos em sua interação, em situações em que esses corpos se fazem percebidos, transformando os projetos e as imaginações originais.
A imaginação é fundamental para a idealização, para a formulação de problemas, para a busca de soluções, para projetar futuros. Mas é preciso considerar uma compreensão do processo criativo que está inscrito no fazer manual, no trato com os materiais, com os animais etc., caracterizando-se, portanto, como uma imaginação corporificada e distribuída entre atores diversos. Não se trata de uma atividade puramente cognitiva ou mental, a menos que tomemos a mente como “um ‘órgão incontinente’ que não admite ficar confinado dentro do crânio, mas que se mistura despudoramente com o corpo e o mundo na conduta de suas operações” (Clark 1997 citado em Ingold 2010:19INGOLD, Tim. 2010. “Da transmissão de representações à educação da atenção”. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1:6-25.).
Se o intuito for ampliar a noção de cérebro para além da compreensão de um órgão humano - já que o propósito é dar conta de um processo criativo colaborativo, material, que escapa à racionalidade, à atuação e à lógica puramente antropocêntrica - é conveniente recorrer às proposições do filósofo Emanuele Coccia, interessado em resgatar e dar o devido valor à mente e à racionalidade das plantas. Nesse sentido, se ampliamos as compreensões de saber e de pensamento numa direção oposta ao aristotelismo, como sugere Coccia, abre-se a possibilidade de chegar a uma definição não anatômica e mais que humana. Em sua elaboração, o cérebro não é um órgão humano, nem sequer um órgão, mas um segmento de matéria que detém saber e conhecimento. Nesse sentido, sua sugestão é “não fazer do intelecto um órgão separado e sim fazê-lo coincidir com a matéria” (Coccia 2018:103COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie.).
As plantas explicitam uma intimidade absoluta entre sujeito, matéria e imaginação, segundo Coccia. Em suas elaborações, as imagens estão relacionadas às formas no mundo. Embora as plantas não tenham olhos nem ouvidos que lhes permitam distinguir as formas do mundo, elas fazem o mundo: “a planta é um transdutor que transforma o fato biológico do ser vivo em problema estético e faz desses problemas uma questão de vida e de morte” (Coccia 2018:19COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie.). Assim, as plantas
[…] Não têm mãos para manejar o mundo e, no entanto, seria difícil encontrar agentes mais hábeis na construção de formas. As plantas não são apenas os artesãos mais finos de nosso cosmos, são também as espécies que abriram para a vida o mundo das formas, a forma de vida que fez do mundo o lugar da figurabilidade infinita. Foi através das plantas superiores que a terra firme se afirmou como o espaço e o laboratório cósmico de invenção de formas e de modelagem da matéria (Coccia 2018:18COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie.).
Interessa-me não apenas sua proposição ampliada de cérebro, mas também sua compreensão de imagem associada à forma, uma vez que na produção de corações artificiais o aprimoramento de tais dispositivos passa, entre outros aspectos, pela busca de formas distintas que possam realizar com eficácia a função do coração nativo, ou seja, substituir a função do órgão de maneira eficaz não necessariamente passa pela reprodução de sua forma. Diante dessa tarefa, a busca pela forma ideal pode encontrar inspiração nas formas do mundo natural.15 15 A relação entre formas geométricas, concepções de beleza, simetria e perfeição foi elaborada em Marini (2019a). O argumento explora a aproximação metafísica de beleza e perfeição com as regras matemáticas decorrentes da sequência de Fibonacci e da proporção áurea - relações numéricas frequentemente encontradas no mundo natural, como na forma de pétalas de flores, sementes, frutas, conchas etc. Tal desafio parece evidenciar que a imaginação passa pela construção de formas.
A tarefa de imaginação da semente, no entanto, não consiste em atualizar uma imagem inerte e imaterial, materializando-a. Não se trata de um acidente, de uma existência virtual de uma forma que define puramente uma aparência. Imaginar é
Contemplar a força que permite transformar o mundo e uma porção de sua matéria em uma vida singular. [...] A semente é o lugar onde a forma não é um conteúdo do mundo, mas o ser do mundo, sua forma de vida. A razão é uma semente, pois, diferentemente do que a modernidade se obstinou em pensar, não é o espaço da contemplação estéril, não é o espaço da existência intencional das formas, mas a força que faz existir uma imagem como destino específico de tal ou qual indivíduo ou objeto. A razão é o que permite uma imagem ser um destino, espaço de vida total, horizonte espacial e temporal. É necessidade cósmica e não capricho individual (Coccia 2018:21COCCIA, Emanuele. 2018. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie.).
Embora a etimologia de imaginação remeta à formação de imagem mental, à representação, é tentador pensá-la em termos da associação entre imagem e ação. Com isso, abarca-se a dimensão da ação. As imagens não podem ser dissociadas dos processos e das ações que dão existência a novas coisas, à criação de mundos por meio do engajamento material entre atores diversos.
Sugiro que a imaginação não só não pode ser desconectada das práticas sociomateriais por meio das quais emergem as tecnologias médicas, como também deve ser pensada como corporificada, no sentido de passar pelos corpos, por um conhecimento sensorial e sensível, por um engajamento com o mundo material através das práticas laboratoriais.
A divisão entre manual e intelectual e as relações causais no processo criativo
O desejo de algo mais duradouro que as matérias que se decompõem é uma das explicações, na civilização ocidental, da suposta superioridade da cabeça sobre a mão, considerando-se o teórico melhor que o artífice porque as ideias perduram. Esta convicção deixa felizes os filósofos, mas não deveria. A palavra grega theoria tem a mesma raiz que theatron, teatro, significando literalmente “lugar para ver”. No teatro das ideias, o filósofo pode pagar pelas ideias duráveis um preço que o artífice não paga na oficina (Sennett 2019:143SENNETT, Richard. 2019. O Artífice. Rio de Janeiro: Record .).
Nikola Tesla é conhecido por seus inúmeros inventos e patentes no campo do eletromagnetismo, corrente alternada, sistemas de distribuição de energia e contribuições para a transmissão sem fio. Em sua autobiografia, o caráter inventivo do seu trabalho é explorado em íntima conexão com as experiências da infância e da adolescência. Sua habilidade inventiva é associada à sua curiosidade, assim como ao modo peculiar como percebia e habitava o mundo.
Figura intensa e controversa, acometida por inúmeros “estados doentios” ao longo da vida, com episódios frequentes de “esgotamento nervoso”, Tesla dedicou-se a descrever suas habilidades sensoriais supersensíveis, assim como habilidades muito próprias. Eram características percebidas como mecanismos fundamentais para sua imaginação, que lhe permitiram projetar, simular e aprimorar suas invenções.
Tal ferramenta ou habilidade manifestou-se como certa perturbação,16 16 “[...] Na minha infância, sofria de uma estranha perturbação devido ao aparecimento de imagens, geralmente acompanhadas de fortes clarões de luz, que dificultavam a visão de objetos reais e interferiam em meus pensamentos e atos [...] Isso me deixava muito incomodado e ansioso. Nenhum dos estudiosos de Psicologia ou de Fisiologia com os quais me consultei jamais conseguiu explicar esses fenômenos de maneira satisfatória” (Tesla 2012:11). associada a visões que ele procurou desenvolver, tornando-as um método de materialização de conceitos e ideias inventivas, que se diferenciava radicalmente do método experimental. Ele argumentava que seu procedimento era mais rápido e eficiente, pois eliminava custos com execução de protótipos e testes para seu aprimoramento. As visões de imagens, que não eram alucinações, em sua compreensão, tornaram-se um método associado à capacidade de visualizar “imagens fantasmas”:
Meu método é diferente. Quando tenho uma ideia, começo imediatamente a construí-la em minha imaginação. Mudo a construção, faço melhorias e opero o aparelho em minha mente. É absolutamente irrelevante para mim se testo a minha turbina em pensamento ou na oficina. Noto até se está desequilibrada. Não há nenhuma diferença; os resultados são os mesmos. Desse modo, sou capaz de desenvolver e aperfeiçoar rapidamente uma concepção sem tocar em nada (Tesla 2012:14TESLA, Nikola. 2012. Minhas invenções - A autobiografia de Nikola Tesla. São Paulo: Editora Unesp .).
Embora seu método operasse “como se” as representações fossem reais - o que parece de certa forma colocá-lo como menos real e instituir uma diferenciação entre o seu método “imaginativo” e o experimental (seria um efeito do obstinado esforço ao longo da história da ciência de constituição do método experimental como científico por excelência?) - ele defendia que em vinte anos, invariavelmente, sem nenhuma exceção, os experimentos funcionariam como havia imaginado. Depois de fazer todas as melhorias, Tesla colocava o produto final do seu cérebro na forma concreta.
Há ao longo da história da ciência diversos exemplos da contribuição da imaginação como projeção de imagem para o desenvolvimento de hipóteses ou soluções: os cientistas Faraday e Maxwell visualizaram mentalmente campos eletromagnéticos como minúsculos tubos cheios de fluido; Kekulé concebeu o anel benzênico tendo como referência a imagem da serpente que morde o próprio rabo; Watson e Crick mentalmente fizeram girar modelos do que viria a ser a hélice dupla do DNA; Einstein afirmava que sua habilidade não residia no cálculo matemático, mas sim em visualizar efeitos, possibilidades e consequências - destacando a relevância das imagens mentais para o processo cognitivo (Zuanon 2017ZUANON, Rachel. 2017. “Imagens Mentais: Interações multidimensionais em Arte-Design-Neurociência”. 16º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia#16.ART: Artis intelligentia: IMAGINAR O REAL. Editora: i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. ISBN eletrônico: 978-989-99839-5-3.).
A imaginação como uma habilidade de visualização, relacionada à imagem, é bastante explorada nas abordagens interessadas em compreender o processo criativo. Interpelarei duas dessas abordagens, cujas fontes de imagens são bastante distintas: enquanto uma se pauta na psicologia analítica junguiana, a outra recorre a mapeamentos cerebrais que permitem especulações a respeito do processo de emergência de imagens cerebrais, ou seja, a primeira busca compreender a origem das imagens, enquanto a segunda investiga seus efeitos numa cadeia de eventos cerebrais.17 17 Trata-se de proposições desenvolvidas por dois professores do Instituto de Artes da Unicamp, às quais tive acesso na disciplina ministrada por eles no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais. Participei como ouvinte da disciplina que era intitulada “Tópicos Especiais em Poéticas Visuais e Processos de Criação I”, oferecida no primeiro semestre de 2020. Agradeço à abertura, o repertório estudado, às aulas e à disponibilidade de diálogo.
Ambas focalizam as habilidades visuais e a relação da imaginação com imagens. À visão outros sentidos podem ser somados, ou explodidos. Nos termos do filósofo social e poeta William E. Thompson, a imaginação é expressa em termos de uma capacidade de sentir aquilo que ainda não se conhece, de intuir o que (ainda) não pode ser compreendido: “A canção que você ainda não ouviu e que pode começar a assobiar. A bactéria que você não viu e que pode vislumbrar em sua mente” (Thompson 2014:8THOMPSON, William Irwin. 2014 [1987]. Gaia - Uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia.). Ao buscar uma nova proposta de teoria do conhecimento, Thompson entende a imagem como resultado de outras dimensões de sensibilidade, isto é, como uma capacidade imaginativa e sensitiva (sem com isso instituir uma divisão entre racionalidade e sensibilidade, mas ao mesmo tempo tentando escapar à racionalidade iluminista simplificadora). As capacidades sensíveis e “intuitivas” destacadas por Thompson não são atributos reconhecidos como próprios à racionalidade tecnocientífica. De toda forma, é preciso qualificá-las.
Filipe Mattos de Salles encontra na psicologia analítica junguiana o terreno que sustenta sua compreensão de processo criativo. Interessada em formular um modelo que dê conta de interpretar a subjetividade e a multidisciplinaridade intrínseca ao campo da arte, tal proposição parte do diagnóstico de que as abordagens existentes não eram capazes de oferecer uma explicação ampla e definitiva do processo criativo. No esforço de propor uma resposta geral, sua sugestão é que a essência fundamental da criação não se localiza no objeto em si, mas na psique (humana). A abordagem junguiana, então, apresenta-se convenientemente como fundamento, uma vez que para Jung não só a arte ou a experiência estética, mas a própria realidade, o modo como vivenciamos a realidade é uma experiência psíquica: “cada pensamento, cada sentimento e cada ato de percepção são formados de imagens psíquicas, e o mundo só existe na medida em que somos capazes de produzir sua imagem" (Jung 2016 citado em Salles 2019SALLES, Filipe Matos de. 2019. “O Processo Criativo da Arte: uma abordagem junguiana”. Anais do World Congress of Communications and ArtsAt, Salvador/BA).
A matéria-prima dos processos criativos é encontrada no arquétipo. O que se passa são processamentos de imagens e sensações que seriam decorrentes de uma atração energética, ou seja, a formalização, a obra acabada, consiste em uma ativação inconsciente de arquétipos (Salles 2019SALLES, Filipe Matos de. 2019. “O Processo Criativo da Arte: uma abordagem junguiana”. Anais do World Congress of Communications and ArtsAt, Salvador/BA). Os arquétipos são como um estoque de imagens mobilizado por atrações energéticas. São formas instintivas de imaginar, como inferiu Nise da Silveira a partir da obra de Jung, recuperada por Salles. As concepções criativas são produtos psíquicos que dialogam e encontram ressonância na energia psíquica contida nos arquétipos.18 18 Salles explora a ideia de energia e campo energético em diálogo com compreensões contemporâneas da física quântica.
Tudo se passa como se imagens arquetípicas brotassem no psiquismo por meio de um processo que é descrito como uma sensibilização a um ideal arquetípico: “Do ponto de vista criativo, quando um arquétipo nos sensibiliza, há uma reação natural de interpretação cerebral, física, que se traduz, no mais das vezes, nas imagens arquetípicas” (Salles 2019:5SALLES, Filipe Matos de. 2019. “O Processo Criativo da Arte: uma abordagem junguiana”. Anais do World Congress of Communications and ArtsAt, Salvador/BA). O processo criativo consiste na atualização da energia psíquica das imagens arquetípicas.
Já no esforço de compreender a mediação e a interação entre os processos criativos e cognitivos no âmbito da arte e do design, Rachel Zuanon recorre às neurociências e às elaborações de um dos seus expoentes, António Damásio, para explorar a emergência de imagens mentais no processo criativo. Pode-se considerar que tal abordagem oferece um esquadrinhamento dos processos biológicos da emergência de imagens - seu reconhecimento e entendimento de padrões. Nesta perspectiva, a criação e a manipulação de imagens mentais apresentam-se como fundamentais para o surgimento de ideias e pensamentos que decorrem de operações do cérebro. As representações neurais podem se tornar imagens, que podem ser manipuladas em um processo chamado pensamento: “No nível mental, ocorre a integração das imagens provenientes da percepção atual com as provenientes da memória. E essas integrações respondem diretamente pelas inúmeras manipulações dessas imagens, indispensáveis à solução de novos problemas e à criatividade” (Zuanon 2017:604ZUANON, Rachel. 2017. “Imagens Mentais: Interações multidimensionais em Arte-Design-Neurociência”. 16º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia#16.ART: Artis intelligentia: IMAGINAR O REAL. Editora: i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. ISBN eletrônico: 978-989-99839-5-3.)
O processo de criação passa pela formação de imagem, ou seja, as imagens são fundamentais para a formação de pensamento, ou para ficar com os termos de Zuanon: “A construção de imagens constitui-se em um processo cerebral fundamental [...]. O conhecimento factual necessário para o raciocínio e a tomada de decisão vem à mente na forma de imagens” (Zuanon 2017:605ZUANON, Rachel. 2017. “Imagens Mentais: Interações multidimensionais em Arte-Design-Neurociência”. 16º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia#16.ART: Artis intelligentia: IMAGINAR O REAL. Editora: i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. ISBN eletrônico: 978-989-99839-5-3.). Elas são de vários tipos e podem se articular: há imagens que representam o presente, as que representam o passado e aquelas que se relacionam à projeção de futuros. As imagens do presente e do passado são decorrentes de ações, percepções, ou seja, estão relacionadas aos sentidos e ao modo de estar no mundo.
Proposições encontradas nos discursos de dois gurus - o estadunidense Steven Johnson e o escocês radicado no Brasil Charles Watson, cujos métodos são decorrentes da investigação com e voltados para artistas, cientistas, empresários etc. - destacam a importância do processo, da realização e do desenvolvimento das ideias. Ainda assim, nessas abordagens, concretamente muito pouca atenção é dada aos processos e à prática. Assim, o caráter processual é valorizado, mas a narrativa em torno de sua realização parece não romper com a percepção da ideia como algo que surge na cabeça (e, portanto, de certa forma, pronta), que é posteriormente desenvolvida, aprimorada, testada. Paradoxalmente, embora compreendidos como fundamentais, os processos não são explorados como produtores. Nesse sentido, não problematizam o entendimento da criação como decorrente de uma imagem consolidada.
O enfoque dado à natureza do processo criativo acaba por condicioná-lo à uma relação causal, em que a ideia brota como imagem, acontece primeiro como um processo cognitivo. Entre as distintas abordagens do processo criativo, ainda que a dimensão da realização seja incluída, ela parece quase sempre estar reduzida em face da importância da ideia enquanto conceito, como algo apartado de sua concretização. O processo, portanto, é pouco explorado em detrimento da emergência da imagem, diretamente vinculada ao estabelecimento de algo novo. Mas será que dar existência às coisas é traduzir algo impalpável e sensível em algo material e inteligível? É necessário questionar em que medida as compreensões focadas na imagem não acabam por reduzir a criação a um momento do processo criativo, destacando-o como prevalecente. Não estariam essas abordagens de certa forma reduzindo uma cadeia de eventos e fenômenos a um dos seus momentos, tomando a criação de algo novo como a projeção de uma ideia/imagem?
Como o processo criativo pode ser sintetizado como um fenômeno em que algo é destacado e forçosamente isolado de uma série de eventos? O que se perde e quais atores são silenciados quando se institui o surgimento de uma ideia inovadora como o momento de uma projeção mental? De que modo essa purificação não acaba por encobrir a participação de atores diversos? Em que sentido esse “destacamento” é conveniente ao permitir a instituição de algo que é passível de virar uma propriedade intelectual, ou seja, algo que pode ter sua autoria (individual) reconhecida?
Como bem evidencia Flora Rodrigues Gonçalves (2019GONÇALVES, Flora Rodrigues. 2019. Autorias em Contexto: estudos antropológicos sobre criação e propriedade. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Antropologia, Departamento de Antropologia e Arqueologia, UFMG.) em sua etnografia sobre processos de reconhecimento de propriedade intelectual, a autoria é uma ferramenta de fabricação da noção de autor, e está intimamente relacionada à noção de propriedade. O direito autoral é um instrumento jurídico utilizado para resguardar o direito de autores. Se alguém busca o reconhecimento da criação de algo, uma convenção jurídica reconhece e garante a autoria como um direito de propriedade.
Pode-se extrapolar sua hipótese de que o conceito de propriedade intelectual está atrelado à noção de pessoa no pensamento ocidental, caracterizada em termos de entidades singulares. Se o direito de propriedade está atrelado à compreensão de pessoa como indivíduo autônomo, a concepção da ideia como apartada de um processo e o apagamento da participação de outros atores não humanos parecem servir ao mesmo mecanismo, a uma lógica orientada pelo reconhecimento de autoria (individual) e direito de propriedade, passível de ser patenteada.
O entrelaçamento entre autoria, indivíduo e noção de direito de propriedade é inspiradora para refletirmos sobre o destacamento da noção de ideia de um processo de emergência e (trans)formação de coisas. Sugiro que a concepção da anterioridade da ideia (em relação ao processo de construção e desenvolvimento, como atividades que trazem coisas à vida) pode ser conveniente à instituição de autoria das coisas. Se algo nasce na cabeça de alguém, se algo brota como ideia (supostamente pronta), se alguém é um canalizador de uma ideia original e inovadora - ou seja, se há algo que pode ser destacado de uma cadeia de eventos, ações e interações das mais diversas - então tal ideia, no contexto de direito autoral sustentado por uma instituição jurídica, deve ser compreendida como propriedade de alguém.
Imaginando corpos “sem corações” e formas de vida que prescindem de órgãos nativos
Evidenciar o modo como a concepção de imaginação é destacada dos processos que fazem emergir novos artefatos e conceitos não implica considerar que estas ficções não possam ser produtivas. A história do desenvolvimento de dispositivos cardíacos, a busca pela substituição do órgão nativo falho evidenciam o papel fundamental das projeções imaginativas e a maneira como ideias são destacadas e individualizadas, atribuídas a certos “gênios”.
Ao construir uma linearidade e dar inteligibilidade a uma série de desenvolvimentos e desdobramentos tecnológicos, encontramos esforços cumulativos e imaginativos que consolidaram e sustentaram compreensões sobre a fisiologia, assim como possibilidades de intervenção e sua transformação. Desde o início do século XIX havia indagações em torno da possibilidade de substituir o coração por uma forma alternativa de circulação sanguínea. Em 1812, o fisiologista francês Le Gallois especulava sobre modos de substituir o órgão nativo por um bombeamento artificial do sangue, o que possibilitaria manter vivo por tempo indeterminado um organismo, em sua expectativa.
Tais idealizações não se restringiam à imaginação médica, se considerarmos que, alguns anos mais tarde, o Dr. Frankenstein, de Mary Shelley, encontrava o segredo da geração da vida e criava sua própria criatura. O romance foi escrito entre os anos 1816 e 1817, publicado em 1818, sem crédito para a autora na primeira edição. A versão definitiva, a terceira versão revisada, é de 1831.
A especulação imaginativa é uma dimensão valorizada no campo de produção de dispositivos cardíacos, uma vez que são intervenções radicais que demandaram quebra de tabus, posturas ousadas. Imaginar soluções “fora da caixinha” segue sendo valorizado, uma vez que ainda não existem soluções definitivas ou estabilizadas para a insuficiência cardíaca. O transplante de órgãos impõe limitações intransponíveis, e os dispositivos mecânicos ainda não oferecem sobrevida ou qualidade de vida equiparadas aos transplantes.
Nos desdobramentos da história da produção de dispositivos de assistência circulatória, vemos que foi preciso que primeiramente se idealizasse a possibilidade de manter um organismo vivo substituindo a função cardíaca, para que essa especulação pudesse abrir novas possibilidades imaginativas, ou seja, imaginar ser concebível o bombeamento artificial abriu frente para novas imaginações, como a realização da transferência de um órgão de um corpo para outro. Embora atualmente a busca seja por alternativas aos transplantes, a especulação em torno da possibilidade de transplantar corações é posterior e decorrente da especulação da substituição do órgão mecanicamente.
As narrativas sobre a “corrida” pelo primeiro transplante cardíaco, na década de 1960, apresentaram um outro aspecto imaginativo. O sul-africano Christian Barnard havia aprendido as técnicas nos Estados Unidos, quando trabalhou com Norman Shumway na Universidade de Minnesota. Ele realizou o primeiro transplante de coração em humanos, deixando para traz o favoritismo de Shumway.
Na manhã do acidente que ocorreria um pouco mais tarde, e que tornaria Denise Darvall a doadora, Barnard tirou um cochilo e teve um sono agitado. Ele contou mais tarde que naquele momento seu subconsciente assumiu o controle e “o encheu de uma convicção súbita de que, quando acordasse, não deveria seguir a técnica cirúrgica de Lower e Shumway ao pé da letra” (McRae 2009:222McRAE, Donald. 2009. Cada segundo conta - a corrida pelo primeiro transplante de coração. Rio de Janeiro: Record.). Ao invés de cortar toda a parede de trás das câmaras atriais do coração do doador, Barnard resolveu que faria dois pequenos buracos, que dariam acesso às veias cavas e pulmonares, o que permitiria que o septo continuasse intacto no coração do doador.
O procedimento foi bem sucedido e permitiu que o receptor, Louis Washkansky, tivesse uma sobrevida de 18 dias. Em uma de suas declarações polêmicas às enfermeiras, Washkansky disse, com senso de humor, que Barnard era o novo Frankenstein. Era como se a imaginação literária, (co)produzida pelo imaginário médico-científico, tivesse tornado possível e inteligível a realização do primeiro transplante.
A resolução de Barnard decorreu de um estado não consciente e não havia sido testada anteriormente. Porém, o acúmulo de prática com a técnica cirúrgica desenvolvida pelos americanos lhe traziam uma convicção, uma disposição intuitiva, não racional (ao menos não nos termos da racionalidade moderna, médico e científica). A capacidade imaginativa, intuitiva, sustentada e orquestrada pelas suas habilidades técnicas permitiu a Barnard realizar o procedimento de forma diferente do que havia testado. Em sua narrativa, os sonhos e um sono turbulento abriram a possibilidade de imaginação, de projeção daquilo que não existia.
A potencialidade imaginativa é fundamental em campos de produção de conhecimento que se encontram instáveis, em que não há respostas prontas, soluções definitivas. Trata-se de investigações experimentais caracterizadas como ciência antecipatória, que carregam esperanças e promessas (Sharp 2014SHARP, Lesley A. 2014. The Transplant Imaginary: Mechanical Hearts, Animal Parts, and Moral Thinking in Highly Experimental Science. Berkeley: University of California Press.). São campos em que os problemas são elaborados em termos de “e se”. A experimentação científica é tomada como um empreendimento criativo, semelhante à criação na arte, uma vez que são as reflexões dos cientistas do tipo "what if" que abrem possibilidade para a criação de procedimentos e dispositivos inovadores, como sugere Lesley Sharp.
Divagações cosmopolíticas - Onde se refugiou a coragem de criar?
Cresci numa bela época, que infelizmente já passou. Havia nela uma enorme disposição para mudanças e a capacidade de criar ideias revolucionárias. Hoje em dia ninguém mais tem coragem de inventar algo novo. Fala-se apenas sobre como as coisas já são e se continua lançando as mesmas ideias antigas. A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo - envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares - os sentidos - sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria. Em grego essa palavra significa “a queda das pétalas. As pétalas do mundo caíram (Tokarczuk 2019TOKARCZUK, Olga. 2019. Sobre os Ossos dos Mortos. São Paulo: Editora Todavia.).
Na produção científica e tecnológica, embora a invenção seja o motor que faz girar a roda, sua redução a um rendimento orientado pelo lucro, pela lógica e a temporalidade impostas pelo mercado parece colocar em crise a criatividade e as reais contribuições desse campo de atividade humana.
Ao abordar as dificuldades em produzir e patentear tecnologias médicas, o pesquisador da bioengenharia que foi interlocutor da pesquisa de doutorado, Agamenon (coordenador de uma instituição que produz dispositivos médicos), destacou que o principal desafio atualmente está associado ao excesso de regulamentação. Em sua opinião, o imperativo de se adequar à lógica da patente e aos procedimentos preconizados pelas agências reguladoras torna o desenvolvimento lento, atravancado. Hoje em dia, em sua percepção, os pesquisadores e as instituições são desencorajados pelo excesso de regulamentação do processo de patente: “Quando você vai depositar uma patente, você precisa dizer o que você tem. Mas como você sabe o que você tem antes de fazer experimentos, avaliações? O sistema é muito complexo para criar atualmente. A criatividade está reprimida por conta disso. Antes a criatividade era coroada pelos resultados”.
As distintas dimensões do processo criativo destacadas anteriormente parecem depender de uma liberdade que não corresponde à idealização de liberdade criativa defendida por Agamenon, embora se possa considerar que há também no seu discurso um diagnóstico da gravidade do avanço neoliberal sobre as práticas de pesquisa que passam a ser motivadas pelo desenvolvimento de patentes. Agamenon destaca que há uma dificuldade em patentear, porque é necessário guardar segredo, ou seja, manter a produção em sigilo (pois do contrário a ideia pode passar a ser de domínio público), o que é de certa forma contraditório, pois é preciso submeter sua criação à avaliação antes de registrá-la, o que implica de alguma maneira compartilhar com determinados atores e instituições. Além disso, reivindica-se patente de uma ideia, o que não é sinônimo de produto que poderá ser comercializado, pois, como ele destaca, pede-se registro de algo que mal se sabe o que será.
Seu discurso parece contraditório e de certa forma embaralha dois processos, que é a necessidade de pedir autorização às agências reguladoras para realizar testes e os processos de pedido de patente, ambos, em sua opinião, contraproducentes ao desenvolvimento de tecnologias. A aparente contradição em seu discurso e na própria lógica de registro de patentes, no entanto, evidencia o caráter criativo que quero destacar aqui, presente em todas as etapas de produção da tecnologia. O reconhecimento de que uma ideia não corresponde a um artefato evidencia a necessidade de engajamento material, tornando explícito todo o trabalho envolvido na criação de algo.
Na concepção de Agamenon, vivemos um período de transição delicado em relação à criatividade. Segundo ele, antes eles estavam acostumados “com as coisas fáceis: plasmavam uma ideia, buscavam prototipá-la, faziam modelos até atingir algo que seria útil para uma intervenção, para melhoria de saúde. Havia uma facilidade para fazer essas coisas”. Do seu ponto de vista, há um excesso de regulamentação no Brasil e em boa parte do mundo nos últimos vinte, vinte e cinco anos referente à produção de tecnologia ou à intervenção em interação com o corpo humano. No passado, de acordo com ele, um médico criava uma parceria com um pesquisador, um engenheiro, um cientista, e juntos concebiam uma ideia, instituíam parcerias com outros profissionais, criavam, faziam testes até “se sentirem tranquilos para colocar em pacientes”. O atual cenário, no entanto, está de tal forma “engessado que os cientistas, pesquisadores [...], ninguém mais tem coragem de fazer alguma coisa, ficam travados no sistema”.
Ocupando uma posição de liderança, sendo parente do médico que dava nome à instituição, fazendo parte de sua história e entendendo-se como um guardião de seu legado, Agamenon se queixava de que, embora ainda fosse possível produzir tecnologia, isso se dava num ritmo descompassado em face do que ocorria no passado. Herdeiro de um modo de produção em crise, ele rememorava um tempo em que as três etapas eram realizadas com agilidade, sem o que entendia que existiam impedimentos burocráticos. Na entrevista concedida em janeiro de 2017, Agamenon lamentava ter que pedir autorização “para aquilo que nem se sabe como funcionará”. Em suas descrições, o passado ideal em que se concebia uma ideia e a desenvolvia praticamente sem impedimentos contrasta com um presente em que, depois de conceber uma ideia, é preciso enfrentar as dificuldades para se fazerem testes em animais, uma “série de legislações proibitivas que impedem o desenvolvimento”, além dos procedimentos burocráticos exigidos para implantação em humanos. Isto sem contar com as intimidações diante de resultados não satisfatórios, como quando um dos dispositivos desenvolvidos por eles fora aprovado pela Anvisa, mas, caso houvesse dois óbitos subsequentes, a autorização para implantar em humanos seria suspensa.
Agamenon descreve ter ocorrido no processo de regulamentação da criatividade - ou seja, da produção e do registro de novas tecnologias - a retração da imaginação pelos procedimentos de validação dos dispositivos. Tudo se passa como se, com a ampliação da burocracia, o que torna os processos lentos e custosos, a regulamentação estabelecesse o que pode ou não ser imaginado/produzido.
O argumento de Agamenon sobre a censura da criatividade produzida por uma “política de desencorajamento” no atual contexto de produção de tecnologias médicas acrescenta um novo aspecto à ideia de imaginação aqui proposta: a imaginação é atravessada/modelada também pela regulação, já que esse controle intervém diretamente nas práticas de produção das tecnologias.
Assim, ao considerar que a regulamentação impõe limitações à criatividade, Agamenon evidencia a criação como um processo que atravessa as diversas etapas de desenvolvimento tecnológico, e não apenas a concepção do projeto inicial. Segundo ele, “a criatividade não pode ter limites”, pois “a limitação tira o direito de pensar livremente”, o que é um aspecto importante, em razão de que soluções inovadoras podem emergir do inesperado. “Pensar livremente” - o que inclui também a dimensão do fazer, associada aos aspectos práticos da produção tecnocientífica, e não apenas a projeção de ideias - é entendido como uma condição para a produção tecnológica.
Agamenon e eu, por razões e de modos diversos, concordamos que é preciso coragem para criar, assim como investimentos e uma política de planejamento. Além da coragem, há em seu discurso uma compreensão de liberdade, cuja ausência ou redução estaria implicada na dificuldade de criação. Talvez a liberdade reivindicada por ele corresponda, em algum nível, àquela defendida por movimentos que apostam na Ciência Aberta, compartilhada, baseada em cooperação. Menos do que a não responsabilização e a responsabilidade de pesquisadores, no entanto, tal liberdade remete à possibilidade de pautar-se em ideologias distintas daquelas homogeneizadas pelo mercado. No caso da produção tecnocientífica, portanto, a problemática em torno da criação acompanha as questões: Quem pode imaginar? Quem deveria imaginar? Quais os limites da concretização daquilo que (tecnicamente) é possível vislumbrar? Quem pode se beneficiar com as criações? Quem lucra com as invenções?
Sennett sugere desdobrar a proposição de Hannah Arendt a respeito da necessidade de se promover um debate público, permitindo que a sociedade discuta e decida o que fazer com as tecnologias produzidas, ou melhor, que se possa debater enquanto ainda estão em desenvolvimento. Além disso, ele sugere avançar em relação à compreensão de Martin Heidegger de que era preciso recuar em face do “frenesi tecnológico”, optando por um meio de vida mais simples na natureza. Retomando a elaboração do moderno teólogo Reinhold Niebuhr, que afirma que “é da natureza humana acreditar que tudo que parece possível deve ser tentado” (Sennett 2019:12), Sennett sugere que “nos imaginássemos como imigrantes atirados pelo acaso ou o destino num território que não é nosso, estrangeiros num lugar de que não podemos nos apossar” (Sennett 2019:23SENNETT, Richard. 2019. O Artífice. Rio de Janeiro: Record .).
Como sintetizar esse caleidoscópio de temas?
Nos estudos sociais da ciência e da tecnologia há uma compreensão estruturante de que não há natureza fora de laboratório (Latour & Woolgar 1997LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve. 1997. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará.), de que o corpo emerge por meio das práticas (bio)médicas e científicas (Mol 2008MOL, Annemarie. 2008. “Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas”. In: J. Nunes & R. Roque (orgs.), Objectos impuros: experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Edições Melhoramentos.), o que evidencia o lugar da imaginação, assim como das formas tomadas pelas tecnologias e pelos artefatos, que são fundamentais para a manutenção da sociedade, dos coletivos (Latour 1991LATOUR, Bruno. 1991. “Technology is Society Made Durable”. In: J. Law (ed.), A Sociology of Monsters: Essays on Power, Technology and Domination. Sociological Review Monograph, n. 38:103-132.). Ao explorar a invenção das culturas, Roy Wagner evidencia não só que o mundo inteiro é inventado, mas também que nas ditas sociedades ocidentais modernas, que apartam as esferas da natureza e da cultura, a invenção do mundo natural é levada com tanta seriedade “de modo que não se trate absolutamente de invenção, mas de realidade” (Wagner 2010:123WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.).
A invenção da natureza decorre dos meios tecnológicos e culturais, que são atualizados a cada nova invenção. Nesse sentido, o esforço de Wagner é evidenciar a imbricação entre natureza e cultura, de modo que “sem a invenção da Cultura que essa criatividade origina e encarna, a Cultura, por sua vez, não poderia ser usada para inventar a natureza (Wagner 2010:125WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.). Natureza e Cultura estão intimamente relacionadas, e fundamentam sua própria divisão:
Como tantas outras coisas, nossa Cultura tecnológica precisa “falhar” para ser bem sucedida, pois suas próprias falhas constituem aquilo que ela está tentando medir, arregimentar ou prever. Se as fórmulas e as previsões da ciência fossem completamente efetivas e exaustivas, se as operações da tecnologia fossem completamente eficientes, então a natureza se tornaria ela própria ciência e tecnologia. [...] A ciência e a tecnologia “produzem” nossas distinções culturais entre o inato e o artificial na medida em que falham em ser completamente exatas ou eficientes, precipitando uma imagem do “desconhecido” e de forças naturais incontroláveis (Wagner 2010:123-124WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.).
Com isso, Roy Wagner reivindica as capacidades criativas da Cultura de inventar a Natureza, localizando a tecnociência como um dos meios de invenção do “mundo físico”, reconhecendo o universo fenomênico natural como, a um só tempo, objeto e produto da invenção. Estabelecer convenções implica sua antítese dialética, como ele sugere, colocando a exigência da invenção. A invenção é um motor: “Criamos nossos problemas, e com eles nos impulsionamos para adiante” (Wagner 2010:129WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.). A invenção das coisas não é um privilégio humano, no entanto, como Wagner argumenta, recuperando o poeta Rainer Maria Rilke: há uma moralidade nas coisas, que não são apenas dispositivos utilitários, se considerarmos que “as ferramentas ‘usam’ os seres humanos” (Wagner 2010:129WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.). É por aí que caminha o argumento tecido a respeito da corporificação e da partilha da imaginação, evidenciando que não só os valores e as atitudes se materializam, como também o processo criativo se dá a partir de práticas sociomateriais que envolvem diversos seres.
No arranjo específico entre natureza e cultura aqui desenvolvido interessava reivindicar a imaginação como uma prática, suportada por fazeres que colapsam os limites da imagem como substrato do processo criativo. É no atrito entre a projeção e o desenvolvimento que são tensionadas as divisões entre mente e corpo, ideia e prática, imagem e forma. Por fim, a compreensão da imaginação como um fazer permite evidenciar as intensas relações e o incansável fazer e refazer necessários para a emergência de novos artefatos. Dar forma ao mundo, ocupá-lo com plenitude são condutas que exigem engajamento material, cognitivo, político e muita responsabilidade.
Referências bibliográficas
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- WAGNER, Roy. 2010. A invenção da Cultura São Paulo: Cosac Naify.
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A pesquisa etnográfica, foco da presente análise, foi realizada no âmbito do doutoramento em Antropologia Social (Universidade de São Paulo - USP) com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - processo nº 2013/02389-2. Agradeço mais uma vez à FAPESP pela concessão de uma bolsa de Pós-Doutorado (processo n° 2018/22183-3), realizado na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, sem a qual este não teria sido escrito.
Notas
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1
A aleta é uma espécie de pá acoplada ao rotor da bomba que, ao girar, empurra e impulsiona o sangue para frente, similar às hélices de ventiladores, helicópteros e liquidificadores, por exemplo.
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2
Eu me refiro a procedimentos de bancada para os quais às vezes eu nem era convidada, pois, segundo um dos pesquisadores da bioengenharia, nada de interessante acontecia neles. Ao contrário dos testes in vivo, por exemplo, que mobilizavam uma equipe de cirurgiões e enfermeiras, além da presença dos porcos, o que fazia deles procedimentos custosos e emocionantes. Apesar do “sacrifício” do animal, que necessariamente sairia morto do procedimento - dado que a eutanásia era uma exigência ética - havia o caráter da manipulação da vida, o reconhecimento de uma vida em jogo. Eram procedimentos que demandavam todo um preparo, agendamentos antecipados e que cumpriam o papel de formar alianças entre os bioengenheiros e equipes médicas. Os testes de bancada operavam mais no sentido de criar intimidade entre os bioengenheiros e os dispositivos. Depois dessas primeiras avaliações, mais reservadas, engenheiros e dispositivos pareciam ambos mais seguros, mais preparados para os testes in vivo e para atuações mais públicas.
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3
A problemática da imaginação demonstrou ser cada vez mais relevante no processo de escrita da tese, na qual, porém, foi apresentada sem o devido aprofundamento. O interesse no tema encontrou reverberação nos trabalhos de colegas de pesquisa, entre eles André Bailão e Joana Cabral de Oliveira. Além dos nossos debates e interlocução no âmbito do Lapod (Laboratório de Estudos Pós-disciplinares), o interesse comum rendeu o Grupo de Trabalho Imagination and knowledge production, realizado no IUAES, de 2018, em parceria com Cristián Simonetti. Agradeço às parcerias, às instigantes provocações, especialmente à leitura interessada da Joana Cabral de Oliveira de uma versão do artigo e por suas contribuições.
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4
Como apontou Magda dos Santos Ribeiro a partir da leitura do presente texto, considerando que há uma relação fundamental entre imagem e forma, ideia e imagem, como buscarei argumentar adiante, pode-se considerar que a ideia de uma coisa, a imaginação mesma, pode ser tratada em termos de propriedade, e não de imaginação, evidenciando uma captura primária, ou seja, o lugar da imaginação na ciência pode estar capturado pela lógica da autoria, de direito de propriedade, o que de saída limita a imaginação. Daí viria o reconhecimento ou certa intensificação da percepção de que os mecanismos capitalistas e neoliberais colocam em crise a criatividade tecnocientífica, comprometendo a própria capacidade inovadora. Tive oportunidade de apresentar e debater o texto no âmbito do LACS (Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas), na UFMG, em fevereiro de 2021. Agradeço a leitura atenciosa e registro aqui esse apontamento instigante, que permite abrir caminhos que poderei explorar no futuro.
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5
Para uma compreensão aprofundada e uma caracterização dos atores no campo de produção de dispositivos de assistência circulatória, ver Marini (2019bMARINI, Marisol. 2019b. “Unproductive Participation and Protection Against Germs: Technical-Ritualistic Practices in Heart Surgery”. Vibrant, Virtual Braz. Anthr., v. 16, e16604. ISSN 1809-4341. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412019v16d604.
https://doi.org/10.1590/1809-43412019v16... ). -
6
As transformações nas ciências e na biomedicina relacionam-se a dois aspectos centrais: a falência dos dualismos, o que inclui o dualismo entre ciência/biomedicina e sociedade, implicando na derrocada da ideia de neutralidade científica; e a crise da representação, que leva ao enfrentamento da materialidade e das práticas sociomateriais a partir das quais emergem novos corpos.
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7
“[…] A imagem do artesão, imerso com todo o seu ser, num engajamento sensual com a matéria, foi gradualmente suplantada pela imagem do operário cujo trabalho é colocar em movimento um sistema exterior de forças produtivas, de acordo com princípios de funcionamento mecânicos que são indiferentes a aptidões e sensibilidades humanas particulares. […] O efeito desta racionalização, entretanto, é remover a parte criativa do fazer do contexto do envolvimento físico entre o trabalhador e o material, e localizá-la antecedente a esse engajamento na forma do processo intelectual do design. Uma distinção absoluta é então introduzida entre o design das coisas e sua construção. A coisa, dizemos, é virtualmente ‘concebida’ anteriormente à sua realização na prática.” (Ingold 2000:295INGOLD, Tim. 2000. The perception of the environment - Essays in livelihood, dwelling and skill. London and New York: Routledge., tradução nossa).
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8
Os pseudônimos aqui adotados seguem a lógica proposta na tese de doutorado, na qual nomes de heróis e deuses gregos foram utilizados. Trata-se de uma estratégia espirituosa que sugere certa homologia arquetípica entre as personagens, dando indícios da relação construída com os interlocutores da bioengenharia e da cardiologia.
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9
O vazamento estava relacionado ao tipo de encaixe, mas também à relação entre a cânula e o sangue. A permeabilidade da cânula está diretamente relacionada à viscosidade do sangue, ou seja, as cânulas só se tornam impermeáveis quando o sangue não se encontra anticoagulado, o que não é o caso em intervenções cirúrgicas, por conta dos riscos de formação de coágulos. O problema da viscosidade reduzida do sangue que interferiu no vazamento pela cânula foi resolvido com a aplicação de uma camada de um material, chamado de PU, na parte externa da cânula, que a tornou menos flexível, mas impermeabilizada.
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10
Ao longo de cerca de uma dezena de procedimentos que acompanhei - entre cirurgias performadas em porcos e em pacientes humanos - foram raras as situações que pareciam ter fugido do controle, ocasionando reações nervosas ou agitadas. No geral, as cirurgias transcorreram dentro de um roteiro, ainda que momentos de maior tensão fossem parte do roteiro.
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11
Para uma compreensão aprofundada da atuação das mãos/corpo do cirurgião e sua eficácia tecno-ritualística, ver Marini (2019bMARINI, Marisol. 2019b. “Unproductive Participation and Protection Against Germs: Technical-Ritualistic Practices in Heart Surgery”. Vibrant, Virtual Braz. Anthr., v. 16, e16604. ISSN 1809-4341. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412019v16d604.
https://doi.org/10.1590/1809-43412019v16... ). -
12
Ou coimplicada, como sugere o brilhante trocadilho formulado por Joana Cabral de Oliveira (2020OLIVEIRA, Joana Cabral de. 2020. “As vicissitudes do matar. Conflitos ontológicos em um estudo sobre leishmaniose tegumentar americana na TI Wajãpi”.Horiz. antropol., v. 26, n. 57:177-205. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0104-71832020000200007. Acesso em 18/01/2021
https://doi.org/10.1590/s0104-7183202000... ). No contexto de sua etnografia, o termo remete às relações estabelecidas com um grupo de pesquisadores acadêmicos (do qual ela fazia parte) que atuava na terra indígena (na qual ela desenvolvia sua pesquisa). A complicação está posta na sua posição como pesquisadora em campo, mas também na sofisticada estratégia metodológica empregada por ela, que complica as clássicas divisões antropológicas entre nós e eles, sustentando-as na diferenciação própria da língua wajãpi entre um nós inclusivo e um nós exclusivo. -
13
A sugestão de que cirurgias possam ser compreendidas como performances no sentido de atuações teatralizadas foi desenvolvida e descrita em Marini (2019b). Nas cenas cirúrgicas, as ações são uma performance no sentido de serem roteirizadas. Mas o caráter performativo remete também ao trabalho de Annemarie Mol (2002MOL, Annemarie. 2002. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham: Duke University Press .) e sua proposta de que a metáfora teatral serve melhor ao que acontece num hospital do que a metáfora de construção, ou seja, considerar que coisas e relações são performadas diz respeito não apenas à realização dramática de ações orientadas por um roteiro de atos e relações, mas também se articula à proposição central do trabalho de Mol relativa ao modo como as doenças são “feitas”. Assim como Mol quer se distanciar de uma conotação da performance como representação, falsificação da realidade, ou mascaramento por meio de atuação, aqui o propósito é tratar a performance como ato que produz realidade.
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Marini (2019bMARINI, Marisol. 2019b. “Unproductive Participation and Protection Against Germs: Technical-Ritualistic Practices in Heart Surgery”. Vibrant, Virtual Braz. Anthr., v. 16, e16604. ISSN 1809-4341. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1809-43412019v16d604.
https://doi.org/10.1590/1809-43412019v16... ). -
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A relação entre formas geométricas, concepções de beleza, simetria e perfeição foi elaborada em Marini (2019aMARINI, Marisol. 2019a. “Platônicos, aristotélicos ou sexistas? A metafísica implícita nas concepções geométricas associadas à produção de corações artificiais”. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1:97-113.). O argumento explora a aproximação metafísica de beleza e perfeição com as regras matemáticas decorrentes da sequência de Fibonacci e da proporção áurea - relações numéricas frequentemente encontradas no mundo natural, como na forma de pétalas de flores, sementes, frutas, conchas etc.
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“[...] Na minha infância, sofria de uma estranha perturbação devido ao aparecimento de imagens, geralmente acompanhadas de fortes clarões de luz, que dificultavam a visão de objetos reais e interferiam em meus pensamentos e atos [...] Isso me deixava muito incomodado e ansioso. Nenhum dos estudiosos de Psicologia ou de Fisiologia com os quais me consultei jamais conseguiu explicar esses fenômenos de maneira satisfatória” (Tesla 2012:11TESLA, Nikola. 2012. Minhas invenções - A autobiografia de Nikola Tesla. São Paulo: Editora Unesp .).
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Trata-se de proposições desenvolvidas por dois professores do Instituto de Artes da Unicamp, às quais tive acesso na disciplina ministrada por eles no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais. Participei como ouvinte da disciplina que era intitulada “Tópicos Especiais em Poéticas Visuais e Processos de Criação I”, oferecida no primeiro semestre de 2020. Agradeço à abertura, o repertório estudado, às aulas e à disponibilidade de diálogo.
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Salles explora a ideia de energia e campo energético em diálogo com compreensões contemporâneas da física quântica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Set 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
02 Set 2020 -
Aceito
28 Jun 2021