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A cidade das mulheres

RESENHAS

Regina Abreu

Professora, UNIRIO

LANDES, Ruth. 2002. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 352 pp.

A experiência etnográfica, incluindo as pesquisas de campo e os tradicionais "diários de campo" – onde os antropólogos registram suas primeiras sensações a partir dos encontros com os "nativos" e com o mundo do diferente e do "exótico" –, tem sido analisada como lugar privilegiado de construção da alteridade. Entretanto, uma outra dimensão se impõe ao revisitarmos alguns dos relatos etnográficos considerados clássicos: a dimensão do "eu" ou da subjetividade. Chamam a atenção, especialmente, as conexões estreitas desses relatos com o gênero do "diário" – espaço por excelência da memória social e de construção da subjetividade enquanto singularidade, muito próximo do gênero da "autobiografia". Desse ponto de vista, falar do outro é encontrar um lugar para falar de si próprio e para construir a si mesmo enquanto pessoa. O livro A Cidade das Mulheres, de Ruth Landes (1908-1991), agora em sua segunda edição no Brasil, incita a uma análise por esse viés. A trajetória da antropóloga americana – estimulada por seu mestre, Franz Boas, e por sua orientadora, Ruth Benedict –, da Universidade de Columbia para o Rio de Janeiro e a Bahia, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, é relatada na primeira pessoa. Suas impressões, sensações, emoções e sentimentos são expostos em uma narrativa em que é privilegiada a idéia do encontro com o outro, do qual ela retira o material para produzir sua obra. O falar de si e o construir a si mesma nessa narrativa tornam-se indissociáveis da produção do texto, na contramão de uma tradição hegemônica nas ciências sociais que bane a primeira pessoa dos relatos científicos e, como assinalou Walter Benjamin, substitui a experiência pela informação e a narrativa pela história. A Cidade das Mulheres, escrito na contramão das tendências científicas vigentes no final da década de 40, significou a revitalização do estilo narrativo, contribuindo também para a construção de um modo de fazer antropologia marcado pela valorização da experiência (a pesquisa de campo), pela sensibilidade para com as questões de gênero e, sobretudo, pela afirmação da singularidade do sujeito no processo de construção do conhecimento.

Ruth Landes chegou ao Brasil em 1938 para realizar uma "pesquisa antropológica sobre a vida dos negros" com o objetivo de completar seu doutorado em antropologia na Universidade de Columbia. Com uma perspectiva comparativa, a antropóloga nova-iorquina pretendia investigar as diferenças entre a situação inter-racial brasileira e a americana: "Ouvíramos contar que a grande população negra [no Brasil] vivia fácil e livremente em meio à população geral e queríamos saber de que forma a situação inter-racial diferia da nossa, nos Estados Unidos. Tratava-se de um projeto que excitava a imaginação de poucas pessoas" (:35). A pesquisa acabou tomando rumo completamente diverso do originalmente pretendido. Após uma breve estada no Rio de Janeiro, a antropóloga embarcou para a Bahia, onde permaneceu por alguns meses. Lá, com o auxílio de Édison Carneiro, Ruth Landes foi aos poucos penetrando o universo da cultura negra. Édison Carneiro, na época com 26 anos, era já um intelectual respeitado, autor de dois livros sobre cultura e religião negra na Bahia, repórter do jornal O Estado da Bahia, integrante, juntamente com Jorge Amado e intelectuais locais, da Academia dos Rebeldes e simpatizante do Partido Comunista. A aproximação entre os dois deu início a uma longa amizade e, como a própria Ruth Landes reconheceu, abriu-lhe as portas da sociedade local, viabilizando sua pesquisa de campo.

O Brasil vivia, entretanto, sob a ditadura de Getulio Vargas. A antropóloga americana foi seguida de perto por policiais durante todo o seu percurso. No início de 1939, foi forçada pela polícia baiana a deixar às pressas o estado, tendo de esconder seu material de pesquisa. Pairavam sobre ela suspeitas de espionagem e de filiação ao comunismo. Chegando ao Rio de Janeiro, Ruth Landes recorreu a amigos brasileiros e conseguiu visto de permanência por mais algum tempo. Não lhe foi possível, porém, retornar à Bahia, pois as autoridades que a haviam expulsado não estavam em completo acordo com a administração central. Após permanecer alguns dias no Rio de Janeiro, onde, em companhia de Édison Carneiro, visitou alguns terreiros de "macumba", partiu para os Estados Unidos.

Somente em 1947, ou seja, oito anos depois, Landes publicou os resultados de sua pesquisa no livro intitulado The City of Women. Na ocasião, uma parcela importante do establishment antropológico sobre o Brasil, tanto do lado brasileiro quanto do americano, procurou desqualificar suas descobertas. Arthur Ramos, então professor catedrático de antropologia na Universidade do Brasil, e Melville Herskovits, da Northwestern University, trocaram correspondência compartilhando o desprezo pelo trabalho da autora, que, visto como mero relato de viagem, foi rejeitado por eles como não científico. Como observou a antropóloga canadense Sally Cole, a comunidade antropológica americana trabalhava na época no sentido de expandir sua base institucional nas universidades, profissionalizar seus praticantes e cultivar sua respeitabilidade como a "ciência da cultura", noção que, entre os anos 30 e 60, substituía a de raça como paradigma central da disciplina. Nesse quadro, os antropólogos procuravam catalogar traços culturais e representar as culturas em "monografias científicas", e o texto de Ruth Landes aparecia como problemático: primeiro, por seu interesse teórico em questões de raça, gênero e sexualidade, que fugiam ao debate principal; segundo, porque ela inseria sua própria experiência e falava de suas relações interpessoais. Landes recusou-se a produzir um retrato etnográfico do candomblé e da cultura afro-brasileira como homogêneos, integrados e estáticos, conforme o padrão da antropologia de seus pares, e descreveu os conflitos internos, diálogos e contestações do significado do candomblé em um contexto de mudança e fluidez, situando historicamente a cultura afro-brasileira. Com uma percepção fina e sensível, ela foi capaz de apontar algumas singularidades do candomblé baiano, como a tendência ao aumento gradual do poder feminino e do número de mães-de-santo, nos candomblés mais tradicionais, e do de "homossexuais passivos", nos candomblés de caboclo. Entretanto, como assinala Marisa Corrêa no Prefácio desta edição, a antropóloga estava remando contra a maré. "A visão corrente era a de que a dominação masculina, vigente na sociedade brasileira como um todo, era também vigente nos cultos afro-brasileiros. Ao desmontar este esquema simplista [ ] Landes expôs uma fratura de gênero na análise dos cultos afro-brasileiros que merece atenção até hoje" (:15).

As pesadas críticas atrasaram a tradução do livro no Brasil. Apenas em 1967, graças, em grande parte, ao empenho de Édison Carneiro, ele foi enfim lançado pela Civilização Brasileira, integrando a Coleção "Retratos do Brasil". É bastante significativo que hoje, passados 35 anos da primeira edição brasileira e 55 anos da americana, o livro esteja ganhando aqui sua segunda edição. Concordamos com a observação de Sally Cole de que as mesmas características que fizeram sua marginalidade nos anos 40 fazem hoje sua excepcional atualidade. Ruth Landes antecipou um estilo de antropologia reflexiva, dialógica e experimental, em que a alteridade é pensada enquanto construção e a subjetividade desempenha papel central. Em A Cidade das Mulheres, o que está em jogo é muito mais a narrativa de um "lugar de encontro" do que um retrato que se pretenda "objetivo" de uma "realidade social". Landes não quis fazer como a maior parte dos intelectuais que tomavam o Brasil enquanto objeto de estudo: conduzir entrevistas formais em suas salas nas universidades ou basear-se em material de segunda mão. Sua proposta foi viver o trabalho de campo como uma experiência que alterasse sua própria vida. Aos poucos, vamos compartilhando com essa antropóloga incomum suas descobertas. Uma verdadeira metamorfose vai se processando durante uma viagem narrada em detalhes: da Universidade de Columbia, onde "havia o sentimento geral de que eu estava sendo mandada ao extremo do tabuleiro do mundo, de onde somente a sorte me pouparia de cair", até o encontro com Mãe Menininha no Terreiro do Gantois, em quem ela percebe uma mulher independente, admirada, dona de si. O candomblé e, especialmente, o lugar das mães-de-santo na sociedade baiana impressionam Ruth Landes. É a partir dessas mulheres que ela passa a refletir sobre a própria condição feminina, fazendo uma leitura sensível do poder que detinham. Essa impressão positiva com relação ao candomblé é alimentada por seus diálogos com Édison Carneiro, que considera o candomblé "uma força criadora. Dá às pessoas coragem e confiança e faz com que se concentrem na solução dos problemas desta vida, e não na paz do outro mundo. Não sei onde estariam os negros sem o candomblé!" (:149).

A experiência da antropóloga a faz dialogar com suas próprias tradições e seu mundo em permanente transformação. Fica evidente o modo como a experiência de campo parece transformar seus pontos de vista: "A filosofia, o misticismo e a emocionalidade do candomblé sempre me intrigaram. Aprendi a conhecê-lo do modo rotineiro, como alguém que aprende uma nova língua na escola, e me tornei um dos seus adeptos; as minhas reações, porém, eram tão distantes como as de uma máquina de calcular para com os números." Ainda em diálogo com Édison Carneiro, ela reflete criticamente sobre sua própria cultura: "[ ] a nossa geração americana foi nutrida com uma dieta de razão e de ceticismo. As generalizações científicas não nos dão muita sensibilidade para a natureza da fé ou do destino [ ]". Ruth Landes explora também a diferença de modo de pensar de americanos e brasileiros. Relatando uma discussão acalorada com Édison Carneiro, que se exaltava afirmando que os norte-americanos se importavam apenas com o "vil metal", desprezando a cultura, Landes retrucava: "os norte-americanos pensam em termos de raça. Um preto é inferior a um branco por causa da sua raça. [ ] Não se imagina que um negro tenha cultura alguma, a não ser a que lhe vem do branco".

Ruth Landes termina seu livro tecendo um elogio às mulheres baianas do candomblé e prometendo a uma amiga brasileira que, ao chegar aos Estados Unidos, escreveria sobre elas: "Penso que elas ajudam a engrandecer o Brasil. Acreditarão os americanos que haja um país em que as mulheres gostam dos homens, se sentem seguras e à vontade com eles e não os temem?" (:316).

A antropóloga cumpriu a promessa. Ao chegar aos Estados Unidos, escreveu alguns artigos sobre o lugar de destaque das mulheres no candomblé, entre eles, "Matriarcado Cultural e Homossexualidade Masculina"; "O Culto Fetichista no Brasil" e "Escravidão Negra e ‘Status’ Feminino", todos traduzidos para o português e incorporados em seu livro que, nesta bela edição da UFRJ, vem acompanhado de imagens registradas pela própria autora em sua passagem por uma Bahia idílica onde a vida parecia deliciosamente "remota e fora do tempo".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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