Open-access Força e vulnerabilidade: lições de etnografia e feitiçaria na obra de Jeanne Favret-Saada

Fuerza y vulnerabilidade: lecciones de etnografía y brujería en la obra de Jeanne Favret Saada

Strength and vulnerability: Lessons in ethnography and witchcraft in the work of Jeanne Favret-Saada

Resumo

Mais de dez anos depois da primeira etnografia em Bocage, Jeanne Favret-Saada formula de maneira mais acabada uma reorientação metodológica definitiva para a etnografia que toma o “ser afetado” como dimensão crucial do trabalho de campo e do conhecimento antropológico. Como um dos efeitos desse encontro da etnografia com a feitiçaria, esta última deixa de ser tomada como um sistema de crenças para figurar como uma pragmática da linguagem. A etnógrafa e sua etnografia, por sua vez, deslocam o lugar pretensamente invulnerável do sujeito de conhecimento que passa a se deixar afetar pela relação com as pessoas e com os mundos que elas habitam. O objetivo deste artigo é apresentar lições de etnografia de Jeanne Favret-Saada como contribuições à antropologia contemporânea. Pretendo, com isso, apresentar a proposição segundo a qual a etnografia Les mots, la mort et le sorts e outros livros e artigos, que prolongam a reflexão sobre essa experiência de campo, exploram uma via de crítica e criação etnográfica fundamentada na vulnerabilidade do sujeito de conhecimento que defendo ser um caminho de reinvenção da etnografia não trilhado pela virada reflexiva da antropologia das décadas de 1980 e 1990.

Palavras-chave: Etnografia; Teoria antropológica; Jeanne Favret-Saada; Feitiçaria

Resumen

Más de diez años después de la primera etnografía en Bocage, Favret-Saada formula de manera más completa una reorientación metodológica definitiva para la etnografía que toma el “ser afectado” como dimensión crucial del trabajo de campo y del conocimiento antropológico. Como uno de los efectos de este encuentro de la etnografía con la brujería, la brujería deja de ser tomada como un sistema de creencias para figurar como una pragmática del lenguaje. La etnógrafa y su etnografía, a su vez, desplazan el lugar presuntamente invulnerable del sujeto de conocimiento que pasa a dejarse afectar por la relación con las personas y con los mundos que ellas habitan. El objetivo de este artículo es presentar lecciones de etnografía de Jeanne Favret-Saada como contribuciones a la antropología contemporánea. Mi intento es presentar una reflexión según la cual la etnografía Les mots, la mort et le sorts y otros libros y artículos que prolongan la reflexión sobre esa experiencia de campo, exploran una vía de crítica y creación etnográfica fundamentada en la vulnerabilidad del sujeto de conocimiento y, en ese sentido, se presentan como un camino de reinvención de la etnografía no recorrido por el giro reflexivo de la antropología de las décadas de 1980 y 1990.

Palabras-clave: Etnografía; teoría antropológica; Jeanne Favret-Saada; brujería

Abstract

More than ten years after her first ethnography in the Bocage, Jeanne Favret-Saada formulates a more polished, definitive methodological reorientation towards an ethnography that takes “being affected” as a crucial dimension of fieldwork and anthropological knowledge. One of the effects of this encounter of ethnography and witchcraft is that witchcraft is no longer assumed to be a system of beliefs, but rather as a linguistic pragmatics. The ethnographer and her ethnography, in turn, shift the purportedly invulnerable vantage point of the knowing subject, now affected by the relationship with people and the worlds they inhabit. The aim of this article is to present Jeanne Favret-Saada’s lessons in ethnography as contributions to contemporary anthropology. I thereby argue that Les mots, la mort et le sorts and other books and articles on experience in the field carve a path for a critical and creative ethnography based on a vulnerability of the knowing subject that, I argue, is a path for ethnography not traveled by the reflexive turn of the 1980s and 1990s.

Keywords: Ethnography; anthropological theory; Jeanne Favret-Saada and witchcraft

A etnografia foi e continua sendo objeto de críticas perturbadoras, bem como de criações duradouras na antropologia. A antropóloga tunisiana Jeanne Favret-Saada conjugou crítica e criação etnográfica e consagrou a vulnerabilidade do metié etnográfico como um de seus aspectos mais potentes. A atenção ao processo de “ser afetado” descreve outro caminho possível para a crítica e, ao mesmo tempo, para a reinvenção da pesquisa etnográfica.1

Com Jeanne Favret-Saada, redescobrimos a etnografia como um ofício arriscado em que se experimentam a desorientação da “comunicação involuntária” e a perda do autocontrole e do controle racional sobre a produção de conhecimento. Na sua obra, a pesquisa de campo é redimensionada enquanto um vetor de risco e de conhecimento2 da etnografia, na medida em que são acolhidas suas implicações políticas, contradições e limites. Como observou Veena Das (2015), em prefácio à edição inglesa de Désorceler, a obra de Favret-Saada é uma “terapia antropológica” que mantém o sonho da “etnografia como uma teoria viva”.

Apresento aqui as contribuições de Jeanne Favret-Saada para a antropologia contemporânea a partir de lições de feitiçaria que são convertidas em lições de etnografia. Esse encontro entre etnografia e feitiçaria, como um processo de entrecaptura, modifica os dois dispositivos de maneira simultânea. A feitiçaria deixa de ser um sistema de crenças para figurar como uma pragmática da linguagem. A etnógrafa e sua etnografia, por seu turno, deslocam o lugar pretensamente invulnerável do sujeito de conhecimento, que passa a se deixar afetar pela relação com as pessoas e com os mundos que elas habitam.

Este artigo, portanto, concentra-se nas publicações sobre feitiçaria nas quais as tensões com o campo da antropologia são mais evidentes. Defendo que a etnografia Les mots, la mort et le sorts, os livros e os artigos que prolongam a reflexão sobre essa experiência de campo lançam as pistas de uma antropologia pós-representacional ou antropologia pragmática, como prefere designar Jeanne Favret-Saada (2008). Tal reorientação metodológica desloca o foco da etnografia da função de “representar” para a disposição de “ser afetado” que transforma a relação de conhecimento em um processo de entrecaptura. Essas produções não apenas antecipam como também exploram outra via de crítica etnográfica não trilhada pela virada reflexiva da antropologia das décadas de 1980 e 1990.3

As duas pesquisas de campo no interior da Argélia e no interior da França com comunidades camponesas posicionam o trabalho etnográfico em diferentes planos de atuação política. Jeanne Favret-Saada se engajou na primeira pesquisa de campo alinhando-se às insurreições camponesas contra o julgo francês, no calor das lutas pela independência da Argélia. Na sua segunda pesquisa, ela etnografa uma prática historicamente estigmatizada como a feitiçaria e toma sua experiência pessoal de envolvimento com a feitiçaria como um canteiro ou laboratório para elaboração da crítica etnográfica às formas de hierarquização do conhecimento.

Seu interesse pelo inesperado e pelos acontecimentos intempestivos da vida social atraiu a antropóloga para diversos temas, como a vendeta na Cabila (Favret-Saada 1968), as insurreições camponesas, a feitiçaria em Bocage e as polêmicas públicas religiosas como o antissemitismo cristão (Favret-Saada 2014), o caso das caricaturas de Maomé (Favret-Saada 2007a) e as acusações de blasfêmia em torno de símbolos do islamismo (Favret-Saada 1992, 2016). Nesse amplo espectro de interesses, Favret-Saada define seu próprio trabalho como uma etnografia de situações de crise (Favret-Saada 2008, 2007b).

Os efeitos de sua obra, contudo, não são facilmente dimensionados por sua irradiação ou por seus rastros nos debates no momento de sua aparição. Foi preciso esperar algumas décadas para que sua etnografia repercutisse no campo da antropologia e se tornasse mais conhecida no Brasil a etnógrafa que extraiu de seus próprios dilemas de pesquisa o “ser afetado” como vetor de conhecimento antropológico.

A trilogia sobre a feitiçaria Les Mots, la mort, les sorts: La sorcellerie dans le Bocage (1977), Corps pour corps: Enquête sur la sorcellerie dans le Bocage (1981) e Désorceler (2009)4 é uma obra gestada em um tempo lento: quase quatro anos de pesquisa de campo (várias viagens entre 1969 e 1972) e mais de quatro décadas dedicadas ao trabalho da escrita sobre sua experiência de campo em Bocage. Seus livros e artigos ainda aguardam o/a leitor/a disposto/a a se afetar, a demorar-se em suas páginas e levar a sério as objeções que o estudo da feitiçaria coloca ao conhecimento antropológico.

Mesmo depois que as palavras pousam nas páginas dos seus livros, seus efeitos continuam ativos e suas obras passam a afetar os/as leitores/as de modo inusitado. Alguns leitores de Désorceler, por exemplo, escreviam para Favret-Saada pedindo indicação de um bom desenfeitiçador ou pedindo para que ela os desenfeitiçasse. Sua etnografia foi apropriada em algumas leituras como lições de feitiçaria, de como se proteger, reconhecer um agenciamento feiticeiro e desenfeitiçar (Favret-Saada 2012).

As práticas de enunciação começam em campo e se prolongam na escrita que não se oferece apenas como locus de subjetivação, ordenação e significação da experiência pessoal do/a etnógrafo/a. O texto é também um anteparo permeável a afetos, no qual reverberam a perplexidade vivida em campo, as hesitações e os dilemas profissionais e existenciais. No curso da escrita de Favret-Saada, percebe-se a etnografia como uma arte arriscada e atravessada por agenciamentos da linguagem que passam do campo para o texto e seguem produzindo efeitos inesperados.

A “bruxa” e sua heresia

Como antropóloga tunisiana, a trajetória inicial de Favret-Saada se embaraça aos episódios finais da colonização francesa no norte da África: sua formação escolar sob o protetorado francês na costa sul da Tunísia, seu engajamento nas lutas pela independência da Argélia durante sua formação em filosofia e etnologia em Tunis e Paris, na década de 50, e sua estreia na pesquisa de campo e na docência durante o processo de independência e reconstrução da Argélia (entre 1959 e 1964).

Em seus estudos em Tunis, ela se aproximou das lutas pela independência da Tunísia e da Argélia a partir dos cursos de François Châtelet e do contato com Lucien Sebag,5 que também a ajudou a se inserir no meio estudantil francês. Como o ensino superior para as mulheres de sua geração era uma opção provisória enquanto não se conseguia um casamento, ela precisou de uma autorização especial dos anciãos de sua família judaica para continuar seus estudos em Paris.

Na década de 50, ela estudou filosofia na Sorbonne e escolheu o curso de ciências etnológicas no Museu do Homem por acreditar ser esta sua única chance de obter um diploma em ciência que lhe garantisse acesso à carreira de docente. Frequentou as aulas de André Leroi-Gourhan, assistiu aos seminários de Lévi-Strauss e reencontrou a teoria espinosiana6 dos afetos nos cursos de Gilles Deleuze. Admirava com a mesma intensidade Lévi-Strauss e Malinowski, e apreciava o livre fluxo de imaginação e desejos dos diários de Michel Leiris.

Nos anos de sua formação, na França, envolveu-se intensamente na mobilização política e participou dos protestos contra a colonização francesa na Argélia. No ano de 1959, ela se mudou para a Argélia com seu marido e sucedeu Pierre Bourdieu no ensino de sociologia e etnologia na Universidade de Argel. No exercício da docência, enquanto discutia as obras de Marx nas aulas de sociologia, ela e sua família sofreram várias ameaças de morte da organização paramilitar contrária à independência do país. Ela foi obrigada a interromper suas aulas e se refugiar em outra cidade.

Entre filosofia e etnologia, ela se decidiu pela segunda. Para ela, o trabalho de campo era sua maneira de contribuir para a construção da nova nação independente depois de se dedicar por sete anos às lutas pela libertação da Argélia (Favret-Saada 2008, 2007b).

Logo depois da independência da Argélia, em 1962, ela partiu para o trabalho de campo de dois anos seguindo o rastro das insurreições camponesas árabes. Seus artigos sobre a segmentaridade e violência entre bérberes da Cabila e do Magrebe (Favret-Saada 1966,1968) foram muito bem recebidos por Lévi-Strauss e logo publicados na revista L’Homme. Em 1966, ela passou a integrar o Laboratório de Etnologia e Sociologia Comparada do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) em Nanterre.

Depois desse reconhecimento inicial e de rápida inserção na carreira como etnóloga, a comunidade antropológica e o meio acadêmico de modo geral se fecharam para ela quando começaram a circular as primeiras publicações de sua pesquisa sobre feitiçaria. Esse seu novo interesse de pesquisa não apenas foi recebido com rechaço, como também lhe rendeu a acusação de se servir de financiamento público para praticar a feitiçaria. A acusação de mau uso do dinheiro público é um dos ataques mais mordazes à figura de um/a pesquisador/a, cuja agressividade é comparável à acusação de feitiçaria.

Favret-Saada colocou em risco sua própria credibilidade como antropóloga quando aceitou participar do jogo da feitiçaria e tomou o desenfeitiçamento como uma modalidade de psicoterapia com a qual ela se envolveu como paciente e aprendiz. A feitiçaria comparece em sua etnografia como experiência vivida que transtorna a distância entre sujeito e objeto de conhecimento que, até então, assegurava legitimidade às etnografias clássicas. A aproximação entre feitiçaria e psicanálise foram recebidas no campo acadêmico francês como uma “heresia teórica” e uma “traição profissional”, conforme a autora comenta (Favret-Saada 2008).

Seu primeiro artigo sobre feitiçaria, publicado em 1971, foi completamente ignorado. Em 1974, ela resolveu conceder uma entrevista à revista de notícias parisiense L’Express com a intenção de mostrar o desenfeitiçamento como uma terapia e esclarecer sobre uma prática profundamente estigmatizada (CÉAS 2002a, 2002b). Contrariando suas expectativas, a publicação foi apresentada como a entrevista com “a bruxa do CNRS” e ilustrada com fotos que exotizavam ainda mais a prática da feitiçaria no oeste da França. O título da entrevista responde com zombaria à sua atitude de levar um tema como a feitiçaria para um dos templos das ciências.

Ela também não encontrou apoio dos colegas da antropologia nesse seu propósito de redimensionar a feitiçaria como tema relevante e atual. Para ela, antes de ser uma especificidade cultural de camponeses “crédulos”, a feitiçaria concernia a dilemas e aflições existenciais que poderiam acometer qualquer um, inclusive a/o etnógrafa/o:

Minha posição no campo e o que isso implicava - o desgoverno de si e a perda do autocontrole, a aceitação do desejo desconhecido do outro, o reconhecimento de uma opacidade constitutiva da comunicação humana - tudo isso era banal para analistas, insuportável para os etnólogos (Favret-Saada 2008:9, tradução livre).

Favret-Saada não fez concessão ao consenso acadêmico da época, tampouco mudou o fluxo de desenvolvimento de sua teoria sobre feitiçaria. Bem ao contrário, ela passou os 20 anos que se seguiram à publicação da etnografia trabalhando sobre seus próprios diários de campo, repassando suas gravações para analisar, na companhia da terapeuta Josée Contreras, os efeitos terapêuticos das sessões de desenfeitiçamento.

As lições de feitiçaria e as lições de etnografia, aqui imanentes, acompanharam momentos cruciais em que Jeanne Favret-Saada e sua etnografia são afetadas: 1. quando a etnógrafa ocupa involuntariamente um lugar no sistema da feitiçaria (primeiro como enfeitiçada, depois como enunciadora de casos de feitiçaria e, finalmente, como aprendiz de desenfeitiçadora); 2. esse novo lugar (totalmente deslocado do lugar do sábio/acadêmico/cientista) a engaja em um jogo mortal. O sujeito de conhecimento passa a ser um sujeito vulnerável e a prática de falar e escrever se torna arriscada por torná-la suscetível aos perigos da feitiçaria. Este seria o momento de plena participação, em que a etnógrafa é sujeita a forças desconhecidas e exposta a afetos incontroláveis. A visão sobre a feitiçaria também se modifica no processo e ela passa a ser vivida como uma guerra sem o filtro das representações e crenças; 3. essa mutação no campo perceptivo leva a etnógrafa a reconhecer no exercício antropológico uma relação abusiva que designo como pacto ontológico da crença, que insiste em tomar o conhecimento dos outros como crença ou representação.

Busquei condensar as contribuições de Favret-Saada especificamente voltadas para a prática da etnografia em cinco lições aos aprendizes de etnografia e (por que não?) de feitiçaria: 1. as palavras são perigosas; 2. é preciso romper com o pacto ontológico da crença; 3. o sujeito da pesquisa é um sujeito vulnerável; 4. participar e observar são disposições parciais; 5. ser afetado é “uma dimensão central do trabalho de campo”.

As palavras são perigosas

Jeanne Favret-Saada chegou a Bocage7 querendo pesquisar feitiçaria, mas não pôde fazê-lo do modo como pretendia, por meio de um diálogo mutuamente transparente. Ela precisou ser afetada, sentir e temer a feitiçaria por experiência própria para, então, fazer parte de sua rede de comunicação.

Logo no início do trabalho de campo, a etnógrafa se viu em uma pesquisa impossível. Na medida em que explicitava seu interesse em conhecer a feitiçaria, escancarando seu projeto de conhecimento, ela via desaparecer diante de si seu objeto nas esquivas ou evasivas dos camponeses de Bocage: “feitiçaria? Não há nada aqui, são crendices”. Quando insistia, recebia demonstrações de debochado ceticismo: “não acreditamos nisso”. Não havia dados a serem coletados porque ninguém falaria com ela sobre o assunto para satisfazer sua curiosidade ou para colaborar com sua pesquisa. Aos poucos, ela foi percebendo que o silêncio e a atitude reticente das pessoas eram, ao mesmo tempo, um modo de se prevenir do jogo de afetos e vulnerabilidades da feitiçaria e uma forma de reagir e se proteger da operação da crença sobre a qual trataremos adiante.

Jeanne Favret-Saada constatou em campo a inutilidade das perguntas que utilizava para coletar informações. O que costumamos chamar de informação ou dados de pesquisa está envolto em uma pragmática da linguagem, em agenciamentos de enunciação específicos que, a princípio, desconhecemos. Ali em Bocage ninguém falava sobre feitiçaria, a menos que se suspeitasse que o interlocutor tivesse sido enfeitiçado. Falar sobre o assunto poderia tornar o locutor vulnerável à ação de feitiços. Em um regime de enunciação em que as palavras são signos que afetam e produzem efeitos sobre os corpos, “quanto menos se fala, menos se é pego” (Favret-Saada 1977:115).

Uma das lições de feitiçaria ou de etnografia, aqui coincidentes, é que o objeto recalcitra, resiste, esquiva-se e não se dispõe como dados a serem colhidos pelos/as etnógrafos/as, e uma trama discursiva se interpõe entre o/a etnógrafo/a e o tema do qual se pretende se aproximar. A etnografia de Jeanne Favret-Saada, ao invés de apresentar crenças ou representações sobre feitiçaria, descreve um mundo possível em que a feitiçaria é vivida como uma guerra que se faz com palavras e afetos. Note-se que os termos da sua descrição da feitiçaria são retirados do vocabulário da guerra. Enfeitiçar e desenfeitiçar são ataques e contra-ataques que podem enfraquecer a força de vida das pessoas envolvidas e levá-las à morte.

Em sua obra, a feitiçaria aparece como uma forma de regulação da violência, uma rede singular de comunicação (Favret-Saada 1977) e como uma forma de terapia (Favret-Saada 1981, 2009). Nas comunidades camponesas, as agressões diretas tenderiam a ser substituídas por agressões feiticeiras, assim as tensões sociais seriam conduzidas para o campo da feitiçaria que lhes ofereceria os meios de enfrentamento e de resolução de conflitos. Nos livros Corps pour corps e Désorceler, a autora aprofunda a comparação entre as práticas de desenfeitiçamento e as técnicas psicoterapêuticas, e chega a sugerir que os desenfeitiçadores deveriam ser considerados como terapeutas cuja atuação é tão efetiva quanto àquela dos psicanalistas.

No sistema da feitiçaria, aqueles que possuem força, como o feiticeiro e o desenfeitiçador, podem atacar ou proteger aqueles que não a possuem e que podem ser enfeitiçados. Quando um camponês é vítima de infortúnios recorrentes,8 isto é um sinal de que um feiticeiro está sugando sua força vital. O feiticeiro geralmente é alguém do círculo de convivência da vítima e inicia seu ataque drenando a riqueza de uma fazenda, o vigor dos animais de criação e plantas, e a força física do camponês. Essa relação perniciosa é estabelecida e mantida por canais cotidianos de comunicação: a fala, o olhar e o toque.

Se esse elo danoso permanecer, os animais começarão a adoecer, as plantações serão perdidas e o camponês poderá morrer. Para sobreviver a essa crise, é preciso devolver a agressão. A vítima recorre, então, a um desenfeitiçador que esteja em condições de enfrentar o feiticeiro em seu lugar em um combate mortal por meio de rituais e encantações. O desenfeitiçamento é um contra-ataque que corrói as forças do feiticeiro podendo levá-lo à morte ou à loucura e, ao mesmo tempo, uma terapia coletiva que restaura as forças da vítima, de sua família, de seus animais, plantações e outras produções (Favret-Saada 1977).

No início da pesquisa, Favret-Saada foi confundida com uma desenfeitiçadora e com uma anunciadora9 da feitiçaria, ocupando posições equívocas dessa rede específica de comunicação. Mas a etnóloga não pôde permanecer por muito tempo nesse lugar de quem, a certa distância, apenas regista histórias de feitiços. Quando menos esperava, foi lançada nas tramas da feitiçaria, ao ser apanhada em uma corrente de infortúnios: seus filhos doentes, problemas de saúde recorrentes e mais de um acidente de carro que sofrera em campo. Esse estado vulnerável foi percebido por um de seus interlocutores que se dispôs a ajudá-la e lhe recomendou procurar uma desenfeitiçadora. Depois de ter sido afetada por feitiço, ela pôde finalmente conhecer o trabalho das/os desenfeitiçadoras/es durante os tratamentos e as práticas de desenfeitiçamento a que foi submetida.

Foi assim que a etnógrafa e sua etnografia se engajaram nesse mundo de afetos perigosos. No primeiro livro, Les Mots, la mort, les sorts (1977), Favret-Saada aparece como uma antropóloga enfeitiçada, depois de, inicialmente, ser confundida com uma desenfeitiçadora e uma anunciadora. Em Désorceler (2009), ela ocupa outra posição no sistema de feitiçaria como aprendiz de desenfeitiçadora durante os dois anos em que acompanhou o trabalho de Madame Flora.

É preciso romper com o pacto ontológico da crença

Outra lição legada por sua pesquisa sobre feitiçaria é que o objeto de conhecimento antropológico já se encontra pré-formatado por uma hierarquia de conhecimento que desqualifica os enunciados sobre feitiçaria relegando-os ao catálogo de crenças. Como Favret-Saada percebe:

Os camponeses do Bocage recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande Divisão comigo, sabendo bem onde isso deveria terminar: eu ficaria com o melhor lugar (aquele do saber, da ciência, da verdade, do real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Escola, a Medicina, todas as instâncias nacionais de controle ideológico os colocavam à margem da nação sempre que um caso de feitiçaria terminava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era apresentada como o cúmulo do campesinato, e este como o cúmulo do atraso ou da imbecilidade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir o acesso a uma instituição que lhes prestava serviços tão eminentes, ergueram a sólida barreira do mutismo, com justificações do gênero: “Feitiço, quem não pegou não pode falar disso” ou “a gente não pode falar disso com eles” (Favret-Saada 2005:157).

Insistir em tomar a feitiçaria como crença deixava a etnógrafa cada vez mais isolada dos diálogos locais. A pesquisa não funcionou enquanto ela não se colocou no lugar de alguém que não sabe e está disposto a encarnar a “imagem inversa do sabido”.10 O início da etnografia Les Mots, la mort, les sorts posiciona a etnógrafa no lugar de quem é observada como uma personagem da produção etnográfica e, assim, nessa outra perspectiva, ela ironiza uma espécie de pacto ontológico da crença:

Suponha uma etnógrafa. Ela passou mais de trinta meses em Bocage de Mayenne estudando a feitiçaria. [...] Isso parece “excitante, perigoso, extraordinário... conte-nos estórias de feiticeiros”, assim lhes solicitam as pessoas quando ela volta para a cidade. Como se dissessem: conte-nos as estórias de ogros ou de lobos, de chapeuzinho vermelho. Aterrorize-nos, mas cuide de que seja apenas uma estória e de que eles sejam apenas camponeses: crédulos, atrasados e marginais (Favret-Saada 1977:15-17, tradução livre do francês).

Em outras palavras, cuide de que tudo não passe de crenças e a feitiçaria não ultrapasse a linha segura das representações culturais. E assim se reproduz, no quadro das relações da pesquisa, o pacto ontológico da crença como uma operação de hierarquização científica dos conhecimentos que o/a pesquisador/a tende a desempenhar involuntariamente no campo e na escrita. Esse pacto pressuposto em toda pesquisa precisa ser explicitado e, então, bloqueado para que o/a etnógrafo/a se torne capaz de acompanhar o conhecimento e o mundo de seus interlocutores.

A operação da crença, por vezes naturalizada nas pesquisas antropológicas, funciona como uma moldura na qual dispomos o discurso das pessoas. Quando conduzimos nossa análise ou descrição dentro do quadro da crença, um pacto é selado com o leitor: não importa o que as pessoas irão nos dizer ou o que iremos experimentar em seu mundo, tudo será encarado como crença, lançado em uma solução inócua que neutraliza os efeitos perturbadores da diferença e os aspectos não controláveis da experiência etnográfica. Assim a intensidade da experiência de campo, na qual a/o etnógrafa/o se expõe existencialmente a afetos desconhecidos, é precocemente obstruída pela operação da crença.

A crença nomeia o problema que a/o etnógrafa/o precisa enfrentar. Favret-Saada recusa as respostas da antropologia cognitiva para esse problema e também o lugar da crença enquanto categoria analítica para, então, buscar no campo da psicanálise11 uma maneira de abordar as práticas de desenfeitiçamento como uma forma de terapia (Favret-Saada & Contreras 1981).

Romper com a operação da crença é também romper com o pacto ontológico que lhe dá sustentação. O que estou chamando aqui de pacto ontológico da crença se constitui no momento da escrita quando esta prática atua para controlar a possibilidade de ser afetado e suas implicações políticas e epistemológicas. A suposição da crença dos outros remete a uma ontologia única12 (Viveiros de Castro 2012), e imagina que apenas as ciências modernas13 teriam acesso privilegiado ao real, enquanto outras formas de conhecimento somente seriam capazes de construir representações culturais.

Além de sobrecodificar os conhecimentos e as experiências dos outros como crença, enunciados como “os camponeses de Bocage acreditam em feitiçaria” também supõem que acreditar seria a única atitude que os camponeses teriam diante da feitiçaria. Como a autora observa (Favret-Saada 1991, 2005 e 2012), os bocagianos não acreditam em feitiços com mesmo grau de certeza, existem hesitação e dúvida em relação aos acontecimentos. Eles ponderam, desconfiam e se previnem diante de uma possível situação de feitiçaria.14

A questão da crença é retomada em seus artigos mais recentes sobre as acusações de blasfêmia e que deram origem a uma série de seminários na École Pratique des Hautes Études entre 1989 e 1990 sobre Etnologia da religião na Europa. Ela questiona a imagem que pesquisadores constituem dos praticantes de uma fé como “crentes” e a acepção uniforme de “tradição” que faz desaparecerem a heterogeneidade e a diversidade de interpretações sobre o tema (Favret-Saada, 1991).

Nas polêmicas religiosas suscitadas pela circulação de caricaturas de símbolos do islamismo na imprensa da Dinamarca (Favret-Saada, 2007a) e pelas acusações de blasfêmia (Favret-Saada, 1992), ela observa os efeitos das palavras em trocas de agressões públicas. Por meio das acusações de blasfêmia, os muçulmanos também reagem a essa operação da crença que os posiciona em uma hierarquia estabelecida entre aqueles que se arrogam ocupar o lugar de sujeito de conhecimento e aqueles que são relegados ao lugar de crédulos, cujas atitudes e objeções são vistas como sinais de fanatismo religioso.

Sua análise das acusações de blasfêmia (Favret-Saada, 1992) chama a atenção para o caráter pernicioso da oposição entre modernidade e tradição nos estudos das ciências sociais sobre as religiões. Esses estudos tendem a expor os acusadores de blasfêmia como crédulos desarrazoados ao mesmo tempo em que protegem os modernos, inclusive o pesquisador, no abrigo da razão e do secularismo. Quando descritas como “crédulas”, as minorias étnicas, raciais e religiosas seguem sendo toleradas sem, contudo, serem respeitadas.

O sujeito da pesquisa é um sujeito vulnerável

Esta poderia ser uma das mais produtivas lições que a feitiçaria poderia legar para a antropologia por meio da sensibilidade de Favret-Saada: lidar com a vulnerabilidade do sujeito de conhecimento e fazer dela a potência criativa do ofício etnográfico. Um aspecto tão original quanto desconcertante de sua etnografia foi considerar o lugar do/a etnógrafo/a no sistema da feitiçaria e problematizar a vulnerabilidade do/a pesquisador/a.

Há muitos anos a antropologia se dedica ao estudo da feitiçaria em outras sociedades, sem, contudo, deixar-se afetar pelo pensamento que lida com a feitiçaria e com a questão da vulnerabilidade. Jeanne Favret-Saada aceita experimentar a posição perturbadora de objeto de observação dos bocagianos e de alvo de afetos incontroláveis15 em um mundo que para ela era desconhecido.

Argumento que sua etnografia mostra que o problema do sujeito da pesquisa reside na pretensão do/a antropólogo/a de se imaginar como um sujeito invulnerável. Alternativamente à posição de sujeito de conhecimento que se constitui através do espelho invertido do outro como objeto, Favret-Saada experimenta outra posição, qual seja, de um sujeito que se deixa afetar e isso desestabiliza as posições de sujeito e de objeto de conhecimento. Desse modo, ela expõe o que não era admissível por seus colegas etnólogos que faziam coro à alcunha de bruxa. Coube à etnógrafa tunisiana, que tomou o interior da França como campo de pesquisa, contrariar os consensos em torno da antropologia enquanto projeto de conhecimento que confere prerrogativas políticas, epistemológicas e ontológicas ao/à pesquisador/a.

Diferentemente da crítica pós-moderna ao realismo etnográfico, a crítica de Favret-Saada ao sujeito de conhecimento não se detém na reinvindicação de um lugar na pesquisa para subjetividade. Argumento que a colaboração de Favret-Saada para a crítica da autoridade do conhecimento antropológico se faz por outra via, qual seja, pela insistência na vulnerabilidade do sujeito que conduz a pesquisa.

Por meio de uma crítica etnograficamente sustentada, Favret-Saada mostra que o controle sobre o projeto de conhecimento antropológico é uma reivindicação instável e provisória. Assim ela empenha outra antropologia que se arrisca inteiramente ao lidar com sua própria vulnerabilidade. Ao tomar o risco como inerente a uma prática de conhecimento, conforme propõe Isabelle Stengers (2000), podemos supor que a vulnerabilidade dessa prática seria justamente aquilo que nos obriga a pensar e a colocar o pensamento ou a produção de conhecimento em movimento.

Ser afetado/a envolve um processo de entrecaptura segundo o qual a/o etnógrafa/o é capturada/o por práticas e forças que a/o atravessam durante a experiência de campo que, posteriormente, serão capturadas ou apropriadas por ela/ele como vetor de criatividade e de renovação de conceitos, pressupostos, concepções e práticas que medeiam a pesquisa. Posicionar-se como sujeito vulnerável é posicionar-se e, ao mesmo tempo, deixar-se ser posicionado tal como acontece no jogo da feitiçaria. A atenção à vulnerabilidade induz o/a pesquisador/a a um movimento para fora de si, como veremos na seção seguinte.

Participação e observação são disposições parciais

Ao final da década de 70, a problematização da etnografia de Favret-Saada acerca do lugar do etnógrafo e da representação etnográfica não encontrou um ambiente intelectual que permitisse provocar na antropologia francesa uma fermentação crítica comparável ao movimento que James Clifford, George Marcus e outros colaboradores de Writing culture16 (1986) repercutiram no campo da antropologia nos EUA.

Favret-Saada chegou a viajar algumas vezes aos EUA, na década de 80, para falar sobre escrita etnográfica.17 Mas perdeu o interesse pelo diálogo com os colegas estadunidenses ao perceber que o impulso crítico descrevia um movimento para dentro de si. A reflexividade, que a princípio incidia sobre as próprias condições de produção do conhecimento antropológico, tendia a estiolar e passar a fazer um movimento autorreflexivo como um mergulho no mundo subjetivo do antropólogo. Essa ênfase na subjetividade que, segundo ela, beirava o narcisismo, conduzia a um desvio da vocação antropológica do modo como ela concebia: “É isso que me interessa na antropologia: o efeito boomerang que qualquer encontro verdadeiro com o outro produz inevitavelmente” (Favret-Saada 2008:9, tradução livre do francês).

Sua obra explora outro caminho da reflexividade antropológica que tonifica a pesquisa de campo e a alteridade - não aquela objetificada em povos ou conjuntos sociais - mas como uma força que desloca e descentra a posição do/a pesquisador/a a partir da participação. Ao invés de operar subjetivando o objeto ou objetivando o sujeito,18 sua crítica colhe os efeitos do encontro etnográfico em seu potencial de desestabilizar e afetar os supostos do conhecimento antropológico.

Até a publicação da etnografia de Favret-Saada, os etnógrafos, que se dedicaram ao tema da feitiçaria na França, mantinham-se distantes e, muito raramente, tinham uma experiência pessoal de participação nos rituais de desenfeitiçamento. Na antropologia britânica, as acusações de feitiçaria eram os aspectos disponíveis à observação direta. Na tradição folclorista da antropologia francesa19 inspirada na abordagem etnográfica de Van Gennep, o tema da feitiçaria era exemplo do “atraso” da sociedade camponesa da qual se tinham notícias por meio de questionários e entrevistas com intelectuais locais (Favret-Saada 1977, 2005).

Favret-Saada experimenta um modo alternativo de enfrentar essa herança cientificista na antropologia pela via da participação (Favret-Saada 1990a). Na pesquisa sobre feitiçaria, a fala nativa não era apenas um fato a ser observado e anotado. Ela exigia participação de um tipo muito específico. A despeito da síntese consagrada ao método etnográfico, Favret-Saada (2005) faz notar a incongruência entre as palavras que compõem o nome da prática muito cara ao trabalho de campo: Observação participante. Observação e participação aparecem como disposições parciais que descrevem movimentos contraditórios:

No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para “observar”. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado (Favret-Saada 2005:157).

“Observar” e “participar” seriam dois eixos entre os quais o trabalho etnográfico hesitaria. A observação se coadunaria à pretensão de formular um conhecimento científico, ao passo que a participação abrir-se-ia para a possibilidade de afetação. Uma hesitação produtiva e também constitutiva da disciplina da antropologia, como observa Goldman (2006:163): “Entre um saber científico sobre os outros e um diálogo com os saberes desses mesmos outros, entre as teorias científicas e as representações ou teorias nativas, nesse espaço se desenrola a história da antropologia”.

A participação não é de modo algum evidente. O que seria participação numa pesquisa de campo sobre feitiçaria? O que significa participar nessa situação? Por certo, não se reduz ao convívio, ao acompanhamento das atividades cotidianas, à comunicação corriqueira. Como discuti em outro momento, na participação não sabemos o que nos pegará (que afetos, que influências, que experiências nos assaltarão), o que irá nos tirar do sério e nos arrancará da posição de observador20 (Vieira 2015). Diferentemente do que ocorre na observação, o controle das convenções da participação está nas mãos dos interlocutores da pesquisa.

Ser afetado é uma “dimensão central do trabalho de campo”

Mais de dez anos depois da primeira etnografia em Bocage, Favret-Saada (1990b) formula de maneira mais acabada uma reorientação metodológica que toma a experiência de ser afetado como dimensão central do trabalho de campo e do conhecimento antropológico.

“Ser afetada” foi a senha para a etnógrafa participar da rede de comunicação específica da feitiçaria. Contudo, a compreensão do sentido de afeto nessa proposição permanece em aberto e permite interpretações diferentes. Kaufmann (2014) e Kaufmann e Kneubühler (2014), por exemplo, optam por uma interpretação subjetivista da noção de afeto como emoções e desejos, que emergem na pesquisa de campo da autora, e como efeitos performáticos da linguagem. Kyriakides (2016) alinha as contribuições de Favret-Saada à virada ontológica, entretanto, em sua interpretação sobre a opacidade do sujeito, enfatiza os aspectos cognitivos da crença e a labilidade no modo como ela se apresenta à consciência do sujeito.

Aposto aqui numa abordagem mais atenta ao processo de devir na pesquisa etnográfica e à influência da filosofia de Espinosa na noção de afeto de Favret-Saada. Afetos não representam, como insiste a autora (Favret-Saada 2005, 2008). Eles podem curar ou produzir qualquer outro efeito nos corpos, mas não se reduzem a um estado subjetivo, a uma comoção sentimental, tampouco a uma atitude empática (Favret-Saada 1990b). “Ser afetado” é uma disposição do/a pesquisador/a que é crucial para uma significativa reorientação metodológica da pesquisa etnográfica.

O que a disposição de “ser afetado” muda no modo como se pensam a prática e a produção de conhecimento na antropologia? Arrisco aqui uma interpretação, que se coaduna à compreensão de Goldman (2005) e Barbosa Neto (2012) sobre “ser afetado” como um lugar bombardeado por intensidades e um experimento conceitual forjado no encontro entre a feitiçaria e a etnografia.

É possível reconhecer na formulação de Favret-Saada traços da teoria dos afetos de Espinosa, embora esta referência não seja completamente explicitada em suas publicações. Compreendo o “ser afetado” por meio do auxílio à noção de afeto de Espinosa (2010) enquanto aquilo que conhecemos por seus efeitos no corpo, por encontros que fazem variar o grau de afetabilidade de um corpo (Deleuze 1978). O afeto21 remete, nessa compreensão, a um modo de pensamento não representativo, a uma variação contínua na força de existir ou na potência de agir.

Em uma troca de mensagens que tivemos, no dia 11 de dezembro de 2020, Jeanne Favret-Saada responde à minha questão sobre a influência de Espinosa em sua concepção de afeto:

Primeiro, na minha vida, eu estudei filosofia e Espinosa foi para mim mais do que um autor: alguém por meio de cuja obra comecei a considerar o mundo e a história, um mestre pensador e mestre da vida, se você quiser. A tal ponto que logo fui incapaz de saber quem estava pensando em mim, Espinosa ou "Favret-Saada". Depois, quis ser antropóloga, ou seja, explorar formas de viver. Portanto, é normal que minha concepção de afetos tenha a ver com aquela de Espinosa22 [tradução livre do francês].

Favret-Saada (2005, 2008, 2015) reafirma em vários momentos a “opacidade essencial do sujeito em face de si mesmo”. Tal opacidade pode remeter ao inconsciente, na psicanálise, ou às intensidades que afetam as pessoas na feitiçaria. A autora constata que algo acontece no encontro etnográfico e ressoa na experiência da/o etnógrafa/o, mas se furta à representação direta. Esse plano de comunicação “não verbal, não intencional e involuntária” é anterior à elaboração cognitiva (representação) e subjetiva (emoções). A significação dessa experiência virá depois.

“Ser afetado”23 é um movimento que não começa no sujeito, ele o atravessa. Supõe-se um sujeito vulnerável que sofre a ação dos afetos, uma permeabilidade ou transitividade e, principalmente, uma disposição ativa do/a etnógrafo/a para se envolver profundamente com as questões que absorvem seus interlocutores e vivenciá-las como dilemas de sua existência. O/a etnógrafo/a aceita que não tem o controle sobre as afecções de sua experiência em campo. Nas palavras da autora, “aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível” (2005:160).

Os afetos não repercutem apenas no corpo e na subjetividade, mas também nas ações, práticas, nos textos, objetos, em relações sociais, pensamentos, conceitos. Tudo isso pode ser transformado por esse encontro entre o dispositivo etnográfico e as forças da feitiçaria. É preciso prolongar esse efeito para que também seja afetado todo o projeto de conhecimento antropológico. A etnografia se dispõe como uma caixa de ressonância capaz de amplificar as afecções dessa experiência profunda de aprendizado para o campo dos conceitos, da teoria e da produção textual.

Nesta acepção, “ser afetado” tanto marca o lugar da/o antropóloga/o quanto designa um operador metodológico da produção etnográfica, conforme as pistas lançadas por Favret-Saada. O procedimento crucial da etnografia seria mais bem definido como um “estar em presença de” e uma “atenção flutuante”, como explica a autora: “o etnólogo deixa flutuar suas referências e abandona ao nativo o cuidado de designar o lugar que ele deve ocupar - um lugar desconhecido para o pesquisador, em um sistema de lugares que é precisamente o objeto da investigação” (2017:299).

Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa é literalmente inimaginável, sobretudo para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, se é bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los (2005:159).

Esta aplicação específica da teoria dos afetos também envolve uma definição pragmática de feitiçaria e igualmente de etnografia caracterizada pela indeterminação e incompletude. “O que é feitiçaria” ainda é desconhecido no momento em que se começa a pesquisa. A etnógrafa passa a conhecer a partir do momento em que é afetada e ocupa uma posição no sistema da feitiçaria e um lugar específico de enunciação.

O que Favret-Saada problematiza em sua pesquisa sobre feitiçaria pode ser experimentado na pesquisa etnográfica de maneira geral. A etnógrafa se engaja em uma cadeia de mediações (pessoas, palavras, relatos, trabalhos e rituais), em uma rede de comunicação involuntária que faz existir para ela a feitiçaria. Acreditar ou não na feitiçaria deixa de ser decisivo, pois não se trata aqui de uma convicção ou inclinação subjetiva para acreditar, mas de afetos perturbadores que se dão a conhecer por seus efeitos no corpo da etnógrafa. É um conhecimento corporificado que transtorna a separação entre representação e o mundo que atua como uma ficção de controle da experiência etnográfica.

Esse encontro é imprevisível para a/o antropóloga/o porque, no início dessa relação de pesquisa, ela/ele não sabe ainda quais são os critérios de realidade de seus interlocutores e ainda não é capaz de levar a sério questões da existência que são fundamentais para eles. Tornar-se capaz de levar a sério o que as pessoas levam a sério é um aprendizado árduo.

Favret-Saada introduz no ato de representar a experiência etnográfica uma hesitação fundamental: não sabemos em que mundo estamos entrando, não sabemos o que se passa, que forças e afetos nos atravessam. É como se Favret-Saada desdobrasse a “atitude filosófica da dúvida”, que Lévi-Strauss24 (2008) reconhecia como vocação da antropologia, em um terreno ontológico. Na formulação de Lévi-Strauss, a dúvida é provocada pelo encontro com sociedades diferentes daquela do observador. Tal encontro com a alteridade desestabilizaria nossas próprias convicções e representações de mundo.

A dúvida suscitada por Favret-Saada é em relação ao mundo em que estamos nos engajando. O encontro com a alteridade não se processa apenas no nível da confrontação entre diferentes visões de mundo. É também o encontro com um mundo possível que pode não estar regido pelos mesmos critérios de plausibilidade e de objetividade das ciências modernas que tendem a predefinir para nós o que é o real. Essa nova atitude filosófica da dúvida perturba nossa segurança ontológica ao extrapolar o terreno das representações. Não se está lidando apenas com representações culturais, mas com forças e seres desconhecidos e afetos pré-significantes.

A pesquisa sobre feitiçaria ajudou a expor o pacto ontológico tácito selado a cada etnografia ou teoria antropológica que circunscreve a experiência das pessoas e a experiência do próprio etnógrafo no domínio da representação. A partir de sua própria etnografia, Favret-Saada endereça uma crítica ao lugar do sujeito de conhecimento e às possibilidades de representação tanto realista quanto subjetivista e reafirma o potencial desestabilizador e perturbador do encontro com a alteridade no projeto de conhecimento antropológico.

É como se Favret-Saada girasse mais uma vez a virada reflexiva pós-moderna. Ao recusar a distância entre sujeito e objeto que caracterizou o modernismo antropológico, o pós-modernismo na antropologia apagou as luzes da pretensão de objetividade e de neutralidade posicionando o sujeito política e historicamente. O antigo caminho em direção à alteridade foi revertido em um movimento para dentro de si, uma virada reflexiva que posiciona o sujeito da pesquisa.

A crítica que emerge da obra de Favret-Saada, como tentei aqui explicitar, é imanente à etnografia e vem dos limites e dos dilemas vividos em campo. É a experiência do encontro com a alteridade que desloca as representações realistas de etnografia. Sua crítica etnográfica (crítica à e por meio da etnografia) se contrasta à crítica pós-moderna.25 Diferentemente do discurso crítico irônico que se distancia do objeto da crítica posicionando-se em um lugar exterior à prática da etnografia, a crítica etnográfica coloca em causa sua própria experiência e se envolve naquilo que critica.

“Ser afetado” provoca um novo desvio nesse movimento reflexivo, fazendo-o revirar para o tema da alteridade e para a pesquisa de campo. O que passa a desterritorializar as ficções de controle objetivo do conhecimento antropológico não é o discurso crítico ou a crítica cultural, mas a experiência e o encontro com a alteridade, com as pessoas e seus mundo plausíveis. O giro do domínio das representações para o campo experiencial dos afetos faz com que Favret-Saada traga para sua etnografia o mistério, o segredo, forças que ela vivencia. Talvez a assim chamada virada ontológica houvesse começado mais cedo se o campo da antropologia tivesse honrado a feitiçaria e sua etnografia e prestado mais atenção nas lições da “bruxa do CNRS”.

Por fim, a última lição, aqui apenas imaginada como lição de etnografia, seria assumir que o problema do método etnográfico não é somente a representação realista ou as estruturas de poder que envolvem a produção do conhecimento. O problema da etnografia concerne à representação como um todo. A crítica etnográfica de Favret-Saada enuncia um problema ontológico chamando a atenção para uma hierarquia residual que situa o conhecimento dos outros como crença e representação do mundo.

Favret-Saada soube colher de sua experiência de campo as lições de feitiçaria capazes de reinventar o método etnográfico. Assim como Lévi-Strauss extraiu do mito a transformação como operação do pensamento, poderíamos dizer que Favret-Saada soube extrair da feitiçaria os afetos não representáveis da experiência humana e o “ser afetado” como dispositivo metodológico crucial da experiência etnográfica, tornando assim inextrincáveis as lições de feitiçaria e de etnografia.

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Notas

  • 1
    Agradeço a Simone Silva, Kleyton Rattes e Marcelo Mello por seus comentários preciosos e críticas em relação à reconstrução biográfica de Jeanne Favret-Saada. Agradeço a Clara Flaksman pela leitura e por precisas observações. Agradeço a Indira Nahomi Viana Caballero pela leitura e pela tradução do resumo para o espanhol. Sou grata aos pareceristas da revista pelas sugestões e críticas muito atentas. Agradeço também a Jeanne Favret-Saada pelo diálogo e por prontamente ter autorizado a publicação de parte dele neste artigo.
  • 2
    O risco aqui é compreendido, no sentido que Isabelle Stengers (2000) emprega ao termo, como algo inerente a uma prática e que obriga seus praticantes a pensar e colocar o pensamento ou a produção de conhecimento em movimento. O conhecimento se renova no momento em que se expõe ao risco. Portanto, aqui entendo que a vulnerabilidade da etnografia é também sua força.
  • 3
    A crítica pós-moderna nos EUA é contemporânea das publicações de Favret-Saada sobre feitiçaria. A autora enuncia sua crítica à representação realista na etnografia sem, contudo, abandonar a produtividade do encontro com a alteridade na antropologia (Vieira 2017). Os anos 80 e 90 foram marcados pelo acirramento da crítica à etnografia que, ao expor as implicações políticas da pesquisa, alterou a autopercepção da antropologia e inspirou a reconfiguração da produção etnográfica. A representação da alteridade e as posições de sujeito e objeto de conhecimento foram problematizadas pelas críticas pós-modernas, críticas pós-coloniais e crítica feminista. Evoco aqui as críticas pós-modernas que tomam por alvo mais diretamente as práticas realistas de representação no trabalho etnográfico. A publicação Writing culture: the poetics and politics of ethnography, organizada por James Clifford e George Marcus em 1986, constituiu um marco desse movimento crítico na antropologia que também infundiu uma nova atenção e sensibilidade em relação à textualidade, à subjetividade e às mediações históricas, políticas e culturais da produção do conhecimento antropológico.
  • 4
    O livro Les Mots, la mort, les sorts: La sorcellerie dans le Bocage foi traduzido para o inglês como Deadly words: Witchcraft in the Bocage, em 1980, e o livro Désorceler foi traduzido para o inglês como The anti-witch, em 2015. Nenhum de seus livros foi traduzido para o português. Houve uma tentativa de tradução que se tornou um trabalho coletivo de recontar a etnografia, organizado por Suely Kofes (2012) junto com alunos e alunas de um de seus cursos no PPGAS da Unicamp.
  • 5
    Lucien Sebag foi um etnólogo de origem tunisiana que fez sua formação com Lévi-Strauss. Ao longo de sua vida, abreviada por um suicídio aos 32 anos de idade, ele ficou conhecido por costurar as principais linhas teóricas e filosóficas que dominavam e se rivalizavam no debate acadêmico da época: marxismo, estruturalismo lévi-straussiano, fenomenologia e psicanálise lacaniana. Ele acompanhou Pierre Clastres na pesquisa de campo entre os Guayaki e dedicou-se à análise dos sonhos do povo Aché. Assim como Favret-Saada, ele foi aluno de François Châtelet em Tunis, onde iniciou seu ativismo político pela libertação da Tunísia do julgo colonial francês (Leavitt 2017).
  • 6
    Favret-Saada já tinha feito um trabalho sobre o Tratado Teológico-Político de Espinosa na sua formação anterior em filosofia. Mas foi nos cursos de Deleuze que a obra de Espinosa foi redimensionada por ela.
  • 7
    Bocage é um nome fictício para o lugar onde Favret-Saada fez sua pesquisa de campo. Também são fictícios os nomes das pessoas que são mencionadas na sua etnografia.
  • 8
    A feitiçaria não envolve todos os casos de aflições físicas ou mentais, ela é reconhecida em situações muito específicas em que há uma recorrência de infortúnios que afetam todo o campo de produção agrícola: desde a capacidade produtiva dos membros da família até a saúde dos animais e das plantas.
  • 9
    Anunciadora é alguém a quem as pessoas em aflição recorrem para saber se estão enfeitiçadas. Esse lugar permitiu à etnógrafa acessar as narrativas sobre feitiçaria. As pessoas lhe confessavam seus infortúnios na esperança de que ela pudesse anunciar que se tratava de um caso de feitiçaria.
  • 10
    Do original “L’image inverseé du savant”, a imagem inversa do sábio ou daquele que sabe, poderia ser também o cientista. Em português, contudo, a evocação do “sabido” seria mais adequada para a ocasião ao adicionar uma ironia que revela o caráter impróprio dessa hierarquia de conhecimentos. A expressão dá nome ao primeiro subitem do primeiro capítulo de Les Mots, la mort, les sorts, e é assimilada aqui como a primeira lição de etnografia.
  • 11
    Favret-Saada argumenta que a feitiçaria seria um dispositivo de resolução de tensões psicológicas comparável à psicanálise. A influência da psicanálise na antropóloga francesa também se faz presente na obra de Roger Bastide, Georges Devereux, Bernard Juillerat, René Girard, entre outros (Parkin 2005).
  • 12
    Uma das consequências da chamada virada ontológica é mostrar a persistência de uma única ontologia, aquela que garante às ciências modernas o acesso privilegiado ao real, e inspirar na antropologia o movimento de explorar outras ontologias possíveis (Viveiros de Castro 2012)
  • 13
    De modo semelhante, Latour (2002) percebe a crença como um modo pelo qual os modernos imobilizam e desqualificam o conhecimento dos outros. Moderno é aquele que opera com a crença para se relacionar com outras formas de conhecer: “ele sabe”, enquanto os outros apenas “creem”.
  • 14
    Favret-Saada observa que os relatos de casos de feitiçaria provocam muito mais fascínio do que uma afirmação da certeza de um acontecimento ou uma constatação da existência de forças malignas. A autora retira o problema da crença do quadro da convicção para o plano da especulação e reivindica a consideração do “peso epistemológico da suposição” (Favret-Saada 2012:48) de modo a valorizar os momentos de hesitação e especulação de seus interlocutores: “Whenever I drove the bewitched back to their houses, following a séance with Madame Flora during which they had experienced two or three moments of certainty, I was struck by the speed with which they regained their footing - returning to a suppositional stance - with, of course, some variation” (:47).
  • 15
    Voltemos à introdução do relato de Jeanne Favret-Saada sobre sua trajetória de aproximação em relação ao tema da feitiçaria, no início do livro Les mots, La mort, les sorts (1977). Ela começa a falar sobre sua experiência com a feitiçaria em terceira pessoa, para fazer a passagem desde o momento em que ela tomou a feitiçaria como tema de interesse intelectual e de pesquisa até o ponto em que ela foi tomada pela feitiçaria.
  • 6
    Os anos 1970 e início dos anos 1980 testemunharam uma mudança radical na escrita etnográfica. Era preciso encontrar novas formas retóricas para responder à crise de representação da antropologia.
  • 17
    A etnografia Les mots, La mort, les sorts (1977) é mencionada de maneira muito breve no livro Writing Culture, de Marcus e Clifford (1986), como um dos exemplos de criação textual feita por antropólogas.
  • 18
    A história recente da antropologia e mais especificamente da etnografia poderia ser contada como uma progressiva “subjetivação do objeto e objetivação do sujeito”, conforme formulação de Mauro Almeida (2004). Considero produtiva a analogia para caracterizar melhor os movimentos críticos na antropologia. A subjetivação do objeto caracteriza os movimentos da crítica pós-colonial que emancipa e libera as vozes antes subalternizadas como objetos de conhecimento, e a objetivação do sujeito remete à crítica pós-moderna que busca posicionar o sujeito de conhecimento.
  • 19
    Os estudos de folclore continuaram expressivos na França até os anos 1970 e 1980, assim como o interesse pela cultura material e narrativas orais (Parkin & Sales 2010).
  • 20
    Enquanto vivi em uma comunidade quilombola em Caetité, ao longo de minha pesquisa de campo, participar era se envolver em um jogo de brincadeiras chamadas de pirraças. Era preciso “ser pega” pela pirraça e se tornar uma pessoa risível e pirraçável. Para aquela experiência etnográfica, era o humor que constituía o sentido de participação (Vieira 2015).
  • 21
    Acompanhando os conceitos de Espinosa, “ideia” remete a um modo de conhecer representativo, enquanto o “afeto” diz respeito a um modo de conhecer não representativo (Deleuze 1978). No livro Ética, como observa Deleuze, Espinosa distingue affectio e affectus, o primeiro poderia ser mais bem traduzido como afecção e o segundo, como afeto.
  • 22
    Reporto aqui o trecho original: “Vous avez raison, mais d'une manière très particulière. J'ai d'abord, dans ma vie, étudié la philosophie et Spinoza a été pour moi plus qu'un auteur: quelqu'un à travers l'œuvre de qui je me suis mise à considérer le monde et l'histoire, un maître à penser et un maître à vivre, si vous voulez. Au point que j'ai bientôt été incapable de savoir qui pensait en moi, Spinoza ou ‘Favret-Saada’. Ensuite, j'ai voulu devenir anthropologue, c'est-à-dire explorer des façons de vivre. Il est donc normal que ma conception des affects ait à voir avec celle de Spinoza... celle de Spinoza!”.
  • 23
    Mantenho a formulação original “ser afetado” da expressão em francês “être affecté”. Em francês como no português, o verbo na voz passiva desloca o sujeito da ação. Ao invés de dizer que temos ideias e sentimos, representamos e construímos a pesquisa, penso que essa formulação envolve uma abertura para imaginar, em um quadro espinosiano, que também somos atravessados por ideias e forças que se afirmam em nós e, sob seus efeitos em nossos corpos, sofremos a variação contínua em nossa potência de agir.
  • 24
    Como compara Lévi-Strauss (2008), a história e a antropologia analisam sociedades distantes no tempo e no espaço. Mas a antropologia, por meio de sua experiência com a alteridade, expõe as convenções culturais da sociedade do observador à dúvida. Para ele, é mais difícil provocar a dúvida quando pensamos nós mesmos. Quando estudamos outra sociedade, a dúvida se coloca naturalmente.
  • 25
    A crítica à representação etnográfica nos EUA e na Inglaterra é urdida em uma análise teórica e histórica de etnografias, é a teoria que desloca a etnografia. Basta lembrar que não é exatamente a experiência de campo de James Clifford que fornece os elementos para sua crítica, mas sim sua análise teórica e histórica de etnografias que outros produziram. É uma crítica que não alcança os afetos e a experiência de campo, mas representação textual dessa experiência. Como notou Favret-Saada (2008), a questão dos afetos pode se tornar para o etnógrafo em pesquisa de campo uma questão muito cara tanto profissional quanto existencialmente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2020
  • Aceito
    30 Set 2021
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