Lembro da minha infância. Final dos anos 1980, início dos anos 1990. A casa da minha avó materna era uma das poucas da rua feitas de alvenaria: imensa bondade do patrãozinho dela. Ele tinha pedido, ainda antes de eu nascer, que a minha avó dissesse como queria a sua casa, porque ele mandaria construí-la tal qual o seu desejo. E assim se fez: um quarto, uma cozinha e um banheiro, tudo feito de alvenaria. Fico pensando nesse tipo de configuração residencial. A coisa mais comum em casa de pobre é não existir uma sala, ou a sala ser ao mesmo tempo cozinha. É como se não precisássemos de um espaço projetado unicamente para podermos estar, sentar, pensar, fazer nada. A própria estrutura da casa nos sugere o que podemos e o que não podemos fazer (Falero 2021FALERO, José. 2021. Mas em que mundo tu vive? São Paulo: Todavia.:96).
Este trecho de uma crônica de José Falero - “um autor marginal-periférico”, segundo ele mesmo (Falero 2021FALERO, José. 2021. Mas em que mundo tu vive? São Paulo: Todavia.:60) - dá pistas precisas sobre um fenômeno extraordinário e comum: a concentração de elementos muito diversos, contraditórios, que uma casa costuma envolver. Coincidentemente, o escritor porto-alegrense mobiliza um “tipo de configuração residencial” como tema de sua reflexão, expressão que lembra a noção de “configuração de casas” do antropólogo Louis Marcelin. Tal conceito, fartamente utilizado na coletânea Casa-Mundo, merece ser comentado desde já. Até porque ele resume, no âmbito de nosso tópico específico, mas também como um olho mágico que nos deixa entrever um longo percurso teórico, boa parte das questões levantadas pelos ambientes domésticos nas ciências humanas e na antropologia, em particular.
Comecemos pela casa-tema, com suas quinquilharias e miudezas. Para Falero e Marcelin toda morada compreende uma rede de espaços contíguos - da vizinhança ou do mato, onde muitas vezes vivem bruxos e mortos - e inúmeros trânsitos entre lugares afastados e temporalidades diferentes, periódicas ou não. O caso das crianças que circulam por cômodos improvisados em duas favelas do Rio de Janeiro discutido por Camila Fernandes em “Casas de tomar conta”, ou os vínculos afetivos estabelecidos pelos estudantes residentes no exterior descritos por Ceres Brum em “Maison Du Brésil” - ambos são capítulos de Casa-Mundo - demonstram-no perfeitamente.
Todavia, o cronista gaúcho parece tratar somente de um local específico, ao contrário de Marcelin. A diferença é ilusória. As configurações do segundo autor equivalem afinal às “referências espaciais que concretizam cada casa” (Marcelin 1999MARCELIN, Louis. 1999. “A linguagem da casa entre os negros do Recôncavo Baiano”. Mana,5(2): 31-60.:37) e a insistência de Falero na quebrada ou nos longos trajetos que separam as profundezas citadinas das águas superficiais do centro de Porto Alegre deixa claro que a “configuração residencial” da sua lembrança é típica, comum - como ele próprio diz - e compartilhada. Para usar uma expressão batida, é uma instituição social.
No artigo de abertura de Casa-Mundo, as organizadoras recuperam algumas definições desta instituição, como a famosa “máquina de morar” de Le Corbusier. Na esteira do arquiteto modernista, podemos dizer que as habitações também se encontram entre as equações matriciais e os jogos de armar. A domesticidade, que é basicamente o tema do livro, estaria assim na interseção de três esferas correlatas. A primeira delas apontaria para dentro, tal como “A casa da memória”, de Luiz Fernando Duarte, que fecha a coletânea. Já a segunda, ora transmitida transversalmente pelos bens ou humilhações herdadas, ora espacializada no terreno dos fundos, como vemos nas cozinhas escravistas apresentadas por Anita de Almeida e Mariana Muaze em “O jantar está servido”, equivale à casa enquanto aparato produtivo e produtor de hierarquias. Finalmente, as casas são totalizantes, perpassam todos os âmbitos da vida social. Ao confrontar modos de morar e fazer música no Brasil em “Da orla à sala de jantar”, Heloísa Pontes e Rafael César lembram-nos que os espaços privados não devem ser meramente projetados contra um contexto supostamente público. Nessas histórias todas o palco e a plateia revezam-se no desempenho de seus papéis.
Podemos voltar agora às recordações de Falero comparativa e contrastivamente. Minha infância, num exemplo banal, também se deu no “final dos anos 1980, início dos anos 1990”. A possibilidade de fazer esse tipo de trigonometria social está aberta a todos. “Minha infância” e o próprio ato de lembrar, via madeleines ou pelos documentos arquivados que roubam a cena em alguns capítulos de Casa-Mundo, tais como “Uma educação sentimental” de Ann Laura Stoler ou “A imigração judaica na França” de Mônica Schpun, são expressões e ocupações pessoais, intransferíveis, mas também vagas, socialmente triviais. Em seguida vêm os materiais construtivos, as relações de poder e constrangimento acatadas pela própria avó do autor junto à expressão “casa de pobre”. Vale dizer, aliás, que a primeira parte de Casa-Mundo é inteiramente dedicada a diferentes “casas de pobre”, à assimetria materializada. Para terminar, Falero emprega um raciocínio que mobiliza a ideia de estrutura de maneira excepcionalmente lúcida. A palavra “sugere” aqui é essencial. Sem ligações diretas e ingenuamente substancialistas, ele esboça um quadro de analogias e implicações necessárias, mas frequentemente indiretas, difratados como o raio de luz num prisma.
Casa-Mundo mostra que as ciências humanas procuram refletir há tempos sobre tais questões, por vezes lançando mão de qualidades literárias comparáveis. A prosa ensaística de alguns de seus capítulos, como o “Filosofia política da casa” de Ana Carneiro, podem comprová-lo. A coletânea, que merece ocupar um lugar privilegiado em nossas bibliotecas, tem algo de enciclopédico. Ainda que não seja organizada de maneira tão sistemática, ela fornece-nos um estado da arte sobre o tema. Nela temos acesso a numerosos debates, autores que vêm da arquitetura, da história e do cinema, além dos cientistas sociais, e que mobilizam, evidentemente, uma bibliografia variada, embora a maior parte das referências seja proveniente da antropologia.
O artigo inicial - cujo título, “A vida social das casas”, homenageia a famosa coletânea sobre antropologia dos objetos organizada por Arjun Appadurai em 1986- é uma espécie de revisão teórica. Conduzindo-nos por um corredor bibliográfico, as organizadoras levam-nos de Marcel Mauss aos novos estudos sobre parentesco, que aparecerão particularmente na primeira parte de Casa-mundo. Destacam-se então a presença de autores como Marshall Sahlins, Cláudia Fonseca e o mencionado Marcelin. Depois disso, as partes II, III e IV da coletânea serão dedicadas às conexões entre a domesticidade e as expressões artísticas, a história e as fronteiras, respectivamente.
Como indicado anteriormente, o conceito de “configuração de casas” de Marcelin é inclusivo e teoricamente sintético. De forma paralela ao texto de abertura de Casa-Mundo, o autor embasa-o numa recuperação bibliográfica, desabilitando criticamente os determinismos economicistas ou sociológicos frequentes na literatura clássica sobre domesticidade e família. Para fazê-lo, ele é obrigado a enfrentar e a remodelara noção de casa de Claude Lévi-Strauss. Porém, como nota Ana Claudia Marques em “A casa, o umbigo, o mundo”, quarto capítulo de nosso livro, a société à maisons lévi-straussiana é excessivamente abrangente - abarcando linhagens, nomes e altares - a ponto de banalizar seu “valor heurístico” (Pontes & Rosatti 2022:93-94). Todavia, essa noção inspiraria a reabertura do tema na antropologia com o lançamento, em 1995, de uma coletânea de Stephen Hugh-Jones e Janet Carsten, além de ser brilhantemente paradoxal. As casas, enquanto pessoas morais, extrapolariam sim o domínio do parentesco. Lévi-Strauss chega a afirmar que o mesmo não se resume “nem à filiação, nem à propriedade, nem à residência tomadas em si, isoladamente” (Lévi-Strauss 1986LÉVI-STRAUSS, Claude. 1986 [1984]. Minhas palavras. São Paulo: Brasiliense.:191). As casas seriam precisamente a materialização disso tudo, a “objetivação de uma relação” (191) que conectaria tais dimensões.
Para estudar esse acúmulo de relações objetivadas, não acredito que a bibliografia mobilizada preferencialmente nas partes seguintes de Casa-Mundo - nas quais Michel Foucault e Pierre Bourdieu predominam - resolva as aporias levantadas pelos espaços domésticos, pela simples razão de que os melhores problemas são intermináveis. De todo modo, continuo sublinhando que “os conflitos sociais” são muitas vezes expressos e analisados “pelo prisma do mundo doméstico” (Pontes & Rosatti 2022:201-202) especialmente entre os intelectuais brasileiros, nas palavras do capítulo “Entre quatro paredes”, escritas por Vincent Jacques. De fato, o conflito social é a tônica de Casa-Mundo. Contudo, ao lado dos exemplos cinematográficos nacionais que o autor mobiliza não é difícil listar diversos casos paradigmáticos de confrontos e tensões coletivas metonimicamente discutidas através da descrição das residências ou linhagens da Casa de Usher ao quarto contrarrevolucionário de Xavier De Maistre, da prosa de Appiah aos palácios da corte Heian milimetricamente descritos por Sei Shônagon. Novamente, as casas parecem particularmente boas para se pensar o equilíbrio instável entre singularidade e recorrência.
Por fim, as organizadoras de Casa-mundo admitem implicitamente que livros equivalem a habitações. A estrutura física, a alvenaria da coletânea, com suas divisórias de páginas inteiramente pretas, assim como o pedido insistente para que os leitores entrem e sintam-se à vontade, indicam-no. Para mim, tanto uns quanto as outras são objetos transcendentes, como diria Caetano Veloso, que merecem de nós o mesmo amor táctil que votamos aos maços de cigarro (Veloso 1997VELOSO, Caetano. 1997. Livro (CD). Polygram.: faixa 2). Certamente o momento difícil de preparo desta casa-livro fornece outra dimensão às suas contribuições. A obra é fruto da pandemia da Covid-19, momento em que todos se trancaram em seus lares. Poucos puderam fazê-lo num fluxo de consciência comovente, como o dos romances de Clarice Lispector, a maioria teve que se virar na periferia ou no lixo, para recuperar o contraste que Ana de Castro e Joana Silva traçam no capítulo “Apartamento-espelho e quarto de despejo”. Para espantar essa angústia coletiva, retendo, no entanto, algo de seu fugaz aprendizado, visualizando melhor e refletindo sobre o universo doméstico, cabe a nós habitarmos a coletânea de Heloísa Pontes e Camila Rosatti.
Referências
- FALERO, José. 2021. Mas em que mundo tu vive? São Paulo: Todavia.
- LÉVI-STRAUSS, Claude. 1986 [1984]. Minhas palavras São Paulo: Brasiliense.
- MARCELIN, Louis. 1999. “A linguagem da casa entre os negros do Recôncavo Baiano”. Mana,5(2): 31-60.
- VELOSO, Caetano. 1997. Livro (CD). Polygram.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
29 Nov 2023 -
Aceito
15 Mar 2024