Resumo
Para além do seu aspecto econômico-produtivo, o agronegócio é um fenômeno sociocultural e político. Embora não seja um setor homogêneo (como evidenciam os seus conflitos setoriais internos), nem por isso deixa de mobilizar uma imagística comum fundamentada na figura do produtor rural produtivo. Ao analisar sua relação com o Estado, através da dimensão oficial do seu discurso e da perspectiva de algumas lideranças do setor, é possível perceber que a sua hegemonia cultural e o seu pragmatismo político visam ao controle do aparelho estatal como condição necessária para legitimar legal e socialmente o seu discurso no e sobre o meio rural brasileiro, não raro sem excluir a pretensão de atingir a sociedade como um todo.
Palavras-chave:
Agronegócio; Estado; Discurso; Hegemonia
Abstract
Beyond its economic-productive aspect, agribusiness is a socio-cultural and political phenomenon. Although it is not a homogeneous sector (as evidenced by its internal sectorial conflicts), it nevertheless mobilizes a common image based on the figure of the productive rural producer. By analysing its relationship with the State, through the official dimension of its discourse and the perspective of some leaders in the sector, it is possible to see that agribusiness’ cultural hegemony and political pragmatism aim to control the State apparatus as a necessary condition for the legal and social legitimization of its discourse in and about the Brazilian rural milieu, often without excluding the intention of reaching society as a whole.
Keywords:
Agribusiness; State; Discourse; Hegemony
Resumen
Más allá de su aspecto económico-productivo, el agronegocio es un fenómeno sociocultural y político. Aunque no es un sector homogéneo (como lo demuestran sus conflictos sectoriales internos), moviliza sin embargo una imagen común basada en la figura del productor rural productivo. Al analizar su relación con el Estado, a través de la dimensión oficial de su discurso y de la perspectiva de algunos líderes del sector, es posible ver que su hegemonía cultural y su pragmatismo político pretenden controlar el aparato estatal como condición necesaria para la legitimación legal y social de su discurso en y sobre el medio rural brasileño, muchas veces sin excluir la intención de alcanzar a la sociedad como un todo.
Palabras claves:
Agronegocio; Estado; Discurso; Hegemonía
Quando se trata de estabelecimentos políticos, são o tempo e o lugar que tudo decidem.
Rousseau,
Discurso sobre as ciências e as artes,1999ROUSSEAU, Jean-Jacques. 1999. Discurso sobre as ciências e as artes. In.: Rousseau, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Maria E. Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes ..
Na década de 1960, em um momento em que ainda não se falava em agronegócio no Brasil, Florestan Fernandes escreveu em relação ao processo de formação nacional que a burocratização da dominação dos estamentos senhoriais do passado colonial e imperial foi o que lhes permitiu privilegiar “sua condição econômica, social e política” (2008bFERNANDES, Florestan. 2008b. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5ª ed. São Paulo: Global Editora.:52-53). Cinco décadas mais tarde, João Pedro Stédile (2021a STÉDILE, João P. 2021a. “Entrevista Canal Tutameia”, em 03 set. 2021. Disponível em: https://youtu.be/MiRIlYCGdss . Acesso em 09/03/2022.
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), membro fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, ratificaria este raciocínio ao declarar que a “correlação de forças atual é contra a agricultura familiar”, uma vez que “nós temos o Estado contra e o capital contra”, opinião que é corroborada por Plínio Simas (2022SIMAS, Plínio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Palmeira das Missões, 25 out. 2022.), dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores do Rio Grande do Sul - MPA-RS, segundo o qual “todo o aparelhamento do Estado brasileiro está a serviço do agronegócio”.1
1
Ambos os movimentos parecem convergir com Marx e Engels (1998), segundo os quais o Estado serve como instrumento político que assegura a dominação da classe burguesa.
Tudo se passa como se a moderna agricultura empresarial brasileira tivesse como que herdado algumas instituições prontas, como diria Durkheim (2009DURKHEIM, Émile. 2009. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 3ª ed. 2ª tir. São Paulo: Martins Fontes.), o que levou Heredia, Palmeira e Leite (2010HEREDIA, Beatriz; PALMEIRA, Moacir & LEITE, Sérgio P. 2010. “Sociedade e economia do ‘agronegócio’ no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25 (74):159-176.:165) a afirmarem que “não se pode falar do agronegócio sem pensar no Estado”.
Partindo desta relação e de suas implicações jurídicas e políticas, este artigo objetiva analisar aquilo que Leonilde Medeiros (2021MEDEIROS, Leonilde S. 2021. “Atores, conflitos e políticas públicas para o campo no Brasil contemporâneo”. Caderno CRH, (34):1-16.:13) chamou de a “crescente hegemonia do agronegócio e sua capacidade de construir um discurso com enorme poder de verdade”, isto é, um discurso universalizante que procura apreender, além do meio rural agrícola, como notaram Maria Mendonça (2015MENDONÇA, Maria L. 2015. “O papel da agricultura nas relações internacionais e a construção do conceito de agronegócio”. Contexto Internacional, 37 (2):375-402.) e Caio Pompeia (2020POMPEIA, Caio. 2020. “Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 35 (104):1-17.), a sociedade como um todo. É o que fica evidente através da fala de Ricardo Nicodemos (2021NICODEMOS, Ricardo. 2021. “Entrevista Koppert Brasil”, em 13 abr. 2021. Disponível em: https://www.koppert.com.br/noticias/2021/entrevista-todos-a-uma-so-voz/ . Acesso em 28/03/2022.
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), presidente da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio - ABMRA, quando admite explicitamente que “estamos criando uma narrativa de comunicação consistente” cujo “grande objetivo” é “tornar o agro admirado pelo povo brasileiro”. O atual nível de incorporação e difusão social deste discurso pode ser evidenciado por declarações como as de Gedeão Pereira (2021PEREIRA, Gedeão S. 2021. “Entrevista Página Rural”, em 09 dez. 2021. Disponível em: https://youtu.be/Pl4AA4ftqy0 . Acesso em 30/03/2022.
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), presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul - Farsul, para quem o fato de o Brasil ser uma “potência agrícola” resulta não de “uma conquista tão somente do produtor rural, senão da sociedade brasileira”, “do povo brasileiro”, opinião que é corroborada por Geraldo Borges (2021BORGES, Geraldo. 2021. “Entrevista Correio Braziliense”, em 26 nov. 2021. Disponível em: https://youtu.be/645dqmtgt8w . Acesso em 25/03/2022.
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), presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Leite - Abraleite, que chega ao limite de afirmar que “o que é bom para o Agro” “é bom para a sociedade brasileira como um todo”.2
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A Farsul e a Abraleite são instituições patronais de classe, a primeira voltada à defesa e representação do produtor rural de forma geral, enquanto a segunda se limita ao setor da pecuária de leite; a ABMRA, por sua vez, é uma instituição mais fortemente vinculada à agricultura empresarial, sobretudo no que se refere à sua autopromoção e marketing. Embora diferentes, convergem em pelo menos três pontos: empregam a categoria produtor rural, defendem o ordenamento jurídico e se veem como partes constitutivas do agronegócio brasileiro.
A simples e amplamente difundida expressão Agro, como observou Gerhardt (2021GERHARDT, Cleyton. 2021. “Agronegócio ‘desde o gene até o meme’: a invasão do vírus/totem agro”. Mana, 27 (3):1-36.), é um bom exemplo da dinamicidade do setor, capaz de se metamorfosear em uma forma prefixal e apocopada, mas também substantiva, no duplo sentido do termo, o que contribui sobremaneira para a legitimação de sua hegemonia. Entendida no sentido de Gramsci (2001GRAMSCI, Antonio. 2001. Cadernos do cárcere. Vol. 2. Trad. Carlos N. Coutinho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ), a hegemonia compreende, dentre outros fatores, a presença de intelectuais orgânicos capazes de influenciar parte significativa da sociedade através de uma imagística relativamente consensual. Sem excluir os vínculos com o aparelho estatal, a hegemonia é exercida por um grupo ou classe tendo em vista o controle de outros grupos e classes, motivo pelo qual não pode prescindir da cooperação para o exercício deste controle. Logo, é de fundamental importância que o discurso hegemônico consiga, ainda que formal e minimamente, absorver críticas e cooptar apoios. No meio rural brasileiro, o agronegócio contempla todos os pressupostos de uma só vez: apesar de sua relação estreita com o Estado, não se resume apenas à atuação jurídica e política, é também um fenômeno cultural, econômico e social; possui um discurso homogêneo, inclusive no que se refere às suas categorias e doxas, elaborado por diversos especialistas, dentre os quais os intelectuais orgânicos; conta com inúmeras formas de mídia para a difusão do seu discurso, bem como consegue persuadir e cooptar grupos e classes que vão da agricultura familiar consolidada à agricultura empresarial e patronal, passando por todos os setores médios do campo.3 3 A cooptação da classe média rural pelo agronegócio é analisada em outro texto; o mesmo se aplica aos usos, às críticas e consequências geradas pelo emprego da categoria camponês por alguns intelectuais e movimentos sociais. Estes textos, em conjunto com o estudo da racionalização da agricultura e da relação do agronegócio com o Estado formam um conjunto de análises que abrange, no nosso entender, as principais faces do setor.
A relação do agronegócio com o Estado pode ser particularmente autocentrada: se, por um lado, o setor depende do aparato estatal para assegurar seus privilégios, tão somente sejam satisfeitas suas necessidades corporativas, o Estado passa a ser visto como um empecilho. A fala do deputado federal Jerônimo Goergen (2021GOERGEN, Jerônimo. 2021. “JR Entrevista”, em 19 ago. 2021. Disponível em: https://noticias.r7.com/jr-24h/conteudo-exclusivo/jr-entrevista/videos/jr-entrevista-deputado-jeronimo-goergen-fala-sobre-reformas-e-parcelamento-dos-precatorios-19082021 . Acesso em 03/04/2022.
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) é paradigmática neste sentido, pois ilustra com precisão os compromissos políticos assumidos junto ao setor. Segundo o parlamentar, “o que nós precisamos” é “tirar o peso do Estado de cima do produtor”. Por outro lado, o Estado não só assegura como legitima sua hegemonia: assim, se a Constituição Federal reconheceu a função social da terra, nem por isso deixou de registrar, como assevera Medeiros (2021MEDEIROS, Leonilde S. 2021. “Atores, conflitos e políticas públicas para o campo no Brasil contemporâneo”. Caderno CRH, (34):1-16.:10), que junto com as pequenas e médias propriedades, as terras produtivas não serão objeto de desapropriação. Manobras semelhantes foram efetuadas durante e após o impeachment de 2016, como demonstrado por Mattei (2018MATTEI, Lauro. 2018. “A política agrária e os retrocessos do governo Temer”. Revista OKARA, 12 (2):293-307.), o que levou autores como Niederle et al. (2019NIEDERLE, Paulo et al. 2019. “Narrative disputes over family-farming public policies in Brazil: conservative attacks and restricted counter movements”. Latin American Research Review, 54 (3):707-720.) a identificarem uma nova categoria discursiva, o produtor rural produtivo. Entretanto, a ideia que está por trás desta “nova” categoria surgiu junto com o próprio agronegócio, se não antes, sendo identificada por Regina Bruno (1997BRUNO, Regina. 1997. Senhores da terra, senhores da guerra: a nova face política das elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária/UFRRJ.) já no final da década de 1980.
Nada mais natural, portanto, do que uma afirmação como a do ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA e atual deputado federal Alceu Moreira (2022MOREIRA, Alceu. 2022. “Entrevista Jornal da Cidade On-line”, em 03 abr. 2022. Disponível em: https://youtu.be/_6xBPMH8WZ8 . Acesso em 04/04/2022.
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), para quem, “do ponto de vista social, a terra, com seus benefícios, não está diretamente ligada a quem é o seu dono. Está ligada ao que ela produz”. Racionalidade que, de uma só vez, se opõe tanto ao latifúndio improdutivo como à agricultura de subsistência. Em que consiste este discurso e como o agronegócio se relaciona com o Estado a fim de legitimá-lo, considerando as divergências setoriais por ele desencadeadas? Para responder a este problema, partimos da antropologia digital, tal como entendida por Aouragh (2019AOURAGH, Miriyam. 2018. Digital Anthropology. The International Encyclopedia of Anthropology, 1-10. Disponível em: https://doi.org/10.1002/9781118924396.wbiea1982 . Acesso em 22/09/2023.
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) e Cesarino (2021CESARINO, Letícia. 2021. “Antropologia digital não é etnografia: explicação cibernética e transdisciplinaridade”. Civitas, 21 (2):304-315.), sobretudo no que se refere ao recolhimento e ao processamento de fontes para, adjunta à análise sociológica, efetuar uma abordagem nomológica das categorias jurídico-econômicas empregadas pelo agronegócio em seu discurso e contrastá-la com as declarações (obtidas através de entrevistas recolhidas ou efetuadas ao longo da pesquisa) e tomadas de posição de algumas de suas principais lideranças. O presente texto está estruturado em três partes. Na primeira delas, o agronegócio é abordado como um fenômeno sociocultural; na segunda, são tomadas como objeto de discussão as categorias oficiais, portanto legitimadas pelo Estado; por fim, são analisadas algumas divergências setoriais, o que permite avançar a discussão acerca das nuances entre as agriculturas empresarial e patronal, e o modo como elas impactam na concertação e na atuação política do setor.
O agronegócio, fenômeno sociocultural
Para Marcello Brito (2021e BRITO, Marcello. 2021e. “Entrevista Agroanalysis”, em 06 dez. 2021. Disponível em: https://abag.com.br/quem-nao-se-move-pelo-poder-do-incomodo-nao-sabe-o-poder-do-protagonismo/ . Acesso em 24/03/2022.
https://abag.com.br/quem-nao-se-move-pel...
), presidente da Associação Brasileira do Agronegócio - Abag, instituição que agrega os ramos empresarial e industrial do setor, “nesta pequena palavra - Agro - cabe quase tudo”, afirmação que parece comprovar as constatações de Caio Pompeia (2020POMPEIA, Caio. 2020. “Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 35 (104):1-17.:3), para quem o agronegócio opera por meio de “sinédoques políticas” visando “simular uma representatividade superdimensionada para a opinião pública e o Estado”. Mais do que a unificação da agricultura brasileira, trata-se de tomar uma parte dela como representativa do todo, fazendo do agronegócio um protótipo a ser seguido. É com este objetivo que foi criada a ABMRA. Segundo seu presidente, Ricardo Nicodemos (2022NICODEMOS, Ricardo. “Entrevista Agronews”, em 15 jul. 2022. Disponível em: https://youtu.be/cnT31MhbQKg . Acesso em 14/04/2023.
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), um dos seus “grandes desafios” consiste em “nos conscientizarmos, como brasileiros, de que o nosso país, ele é vocacionado ao Agro. Nós temos vocação ao agronegócio”. Visando difundir a sua imagística, conforme expressão de Roy Wagner (2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. Trad. Marcela C. Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify.), o agronegócio transmite em seu discurso uma visão duplamente homogeneizante: se a agricultura brasileira é uma só, como defende o setor, também os agricultores constituem um único perfil, o dos produtores rurais.
É esta interpretação que permite a Antônio Galvan (2021GALVAN, Antônio. 2021. “Entrevista Agronews Brasil”, em 01 abr. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/agronewsbrasil/videos/135302578532933/ . Acesso em 20/03/2022.
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), presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja - Aprosoja Brasil, tradicional instituição vinculada à exportação de soja, afirmar que “nós”, os produtores rurais, “nada mais fizemos do que produzir alimentos” dentro da ordem, ou seja, sem contestar o modelo de produção agrícola e agrário sancionado pelo Estado.4
4
O apelo à segurança jurídica é uma constante junto ao setor. Assim, ao se manifestar em relação aos protestos ocorridos junto à sede da Aprosoja Brasil em 14 de outubro de 2021, ocasião em que a instituição teria sido alvo de protestos por parte da Via Campesina, movimento popular que atua frequentemente em parceria com o MST, Fábio Meirelles Filho, ex-presidente do Instituto Pensar Agropecuária - IPA, “principal e mais influente núcleo do agronegócio”, segundo Caio Pompeia (2022:27), alegou ser “indispensável a observância do regime jurídico constitucional”, uma vez que o “direito de propriedade”, supostamente ferido, constitui “cláusula pétrea da Constituição Federal” (2018:9-10); posicionamento semelhante pode ser encontrado junto ao ex-ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Marco Aurélio de Mello (2009), que ao ser questionado se o MST poderia atuar “acima da lei” a fim de modificá-la via pressão social, afirmou categoricamente que “fazer justiça com as próprias mãos, ainda que legítimo o interesse, não é justificável. Precisamos coibir esses movimentos quando eles se mostrarem transgressores das normas legais”. Para uma abordagem sociológica acerca da relação entre direito, direita ideológica e classes dominantes, cf. Bourdieu (2010:209-254).
Diferentemente dos movimentos sociais, que utilizam categorias e defendem pautas específicas, o agronegócio possui uma abrangência sem igual, podendo-se encontrar suas doxas agindo mesmo entre os seus críticos e opositores. Este é o caso, por exemplo, de Mitidiero Jr. e Goldfarb (2021MITIDIERO JR., Marco A. & GOLDFARB, Yamila. 2021. O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. ABRA/Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil.:3) que, conscientes de que o “ímpeto de consolidar a imagem de que o Agro é tudo não passa apenas pela quantidade de dinheiro investida em publicidade, mas por uma presença e captura de dimensões social, política e cultural do cotidiano”, ainda assim não se deram em conta de que estavam mobilizando a categoria produtor rural da mesma forma como o faz o agronegócio.
O efeito político desta naturalização discursiva em larga escala pode ser observado no caso analisado por Regina Bruno. Segundo a autora, enquanto a Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA apresenta os “seus interesses corporativos e de classe como interesses do conjunto da sociedade” (2021BRUNO, Regina. 2021. “Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA): campo de disputa entre ruralistas e petistas no Congresso Nacional”. Estudos Sociedade e Agricultura, 29 (2):461-502.:465), a Frente Parlamentar da Terra - FPT e a Frente Parlamentar da Agricultura Familiar - FPAF filiam-se, respectivamente, às imagísticas da agricultura camponesa e da agricultura familiar. Ora, de um ponto de vista lógico-formal, a agricultura nacional não pode ser representada pelas duas últimas; contudo, nada impede que elas sejam formalmente representadas pela primeira. Mais interessante ainda é o fato de que a atuação dos parlamentares ruralistas não se restringe unicamente à FPA, uma das mais importantes instituições políticas do setor, pois marcam presença também junto à FPT e à FPAF: ao agirem desta forma, de acordo com Regina Bruno (2021BRUNO, Regina. 2021. “Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA): campo de disputa entre ruralistas e petistas no Congresso Nacional”. Estudos Sociedade e Agricultura, 29 (2):461-502.:473-474), esses parlamentares buscam “apropriar-se de temas de seu interesse, de questões da conjuntura”, bem como “antecipar-se” ao assumirem “novos temas, sob a justificativa de formalização das frentes com vistas ao aprimoramento do Poder Legislativo, para então determinar o que deveria ou não ser objeto de debate”. Além de incorporar as críticas que lhes são dirigidas visando a possíveis contraofensivas, esta atuação faculta uma ressignificação discursiva, o que confere maior plasticidade e capacidade persuasiva aos seus argumentos.
São paradigmáticos, neste sentido, os posicionamentos de algumas lideranças do setor acerca dos crimes ambientais. Conforme João Martins (2021MARTINS, João. 2021. “Entrevista Sistema CNA/Senar”, em 08 dez. 2021. Disponível em: https://youtu.be/YGGvTquCeFs . Acesso em 29/03/2022.
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), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA Brasil, “nós entendemos que o desmatamento e as queimadas ilegais é (sic) problema de polícia”; para Geraldo Borges (2021BORGES, Geraldo. 2021. “Entrevista Correio Braziliense”, em 26 nov. 2021. Disponível em: https://youtu.be/645dqmtgt8w . Acesso em 25/03/2022.
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), presidente da Abraleite, o “produtor não desmata, quem faz qualquer tipo de queimada ou desmatamento ilegal na Amazônia não é o produtor. São pessoas que precisam ser combatidas, são pessoas que estão trabalhando na ilegalidade”; Evandro Gussi (2021GUSSI, Evandro. 2021. “Entrevista Canal Pensamento Corporativo”, em 11 ago. 2021. Disponível em: https://youtu.be/KiyL1yfkzrc . Acesso em 28/03/2022.
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), presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia - Unica, é taxativo: quando alguém vir “uma queimada num canavial, acione as autoridades, porque é acidente ou ato criminoso”. Diante de falas como essas, situadas para além da atuação político-partidária e abrangendo de instituições tradicionais, como a CNA Brasil, a instituições voltadas ao setor industrial, como a Unica, é provável que o impacto de uma acusação como a de João Pedro Stédile (2021b STÉDILE, João P. 2021b. “Entrevista Poder360”, em 02 nov. 2021. Disponível em: https://youtu.be/lRNKqlGhqnc . Acesso em 08/03/2022.
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), do MST, segundo o qual o agronegócio “é insustentável do ponto de vista ambiental”, seja facilmente relativizada, se não desacreditada.
Entre suas estratégias simbólicas mais eficazes está a ressignificação da imagística cultural em benefício próprio, o que faz com que a autopromoção e a estigmatização sejam duas faces de uma mesma moeda. É o que se pode perceber de maneira explícita na reportagem citada por Regina Bruno (1997BRUNO, Regina. 1997. Senhores da terra, senhores da guerra: a nova face política das elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária/UFRRJ.:91), que se ateve ao argumento principal, isto é, a defesa do setor como economicamente produtivo. Datada de 1987 e sugestivamente intitulada “Caipira não conhece agricultura”, a matéria disserta sobre os “males da reforma agrária no Brasil”, segundo opinião do economista Márcio Henrique de Castro, coordenador de uma pesquisa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDS. De acordo com Castro (1987CASTRO, Márcio H. 1987. “Caipira não conhece agricultura”. Jornal do Brasil, 04 out., p. 17.:17), o “homem do campo brasileiro não é um agricultor. Ele é, na verdade, um trabalhador rural: uma ótima mão de obra, mas incapaz de gerenciar uma terra própria. A maioria dos nossos lavradores não tem um padrão cultural para cuidar da terra”. Em resumo, o homem do campo, que não é um agricultor (pessoa economicamente ativa), mas trabalhador rural ou lavrador (pessoas economicamente passivas), é alguém que não se pode chamar de empreendedor e, como tal, não pode ser objeto de investimento, sobretudo econômico.
O “caipira” do título é estratégico precisamente porque representa a personificação de alguém “lento, simplório, atrasado, sinônimo de um passado agrário a ser superado”, como argumentam Kleeb e Favareto (2019KLEEB, Suzana & FAVARETO, Arilson. 2019. “Metamorfoses do simbólico no Brasil Rural. As transformações do início do século XXI vistas por meio de um personagem clássico da formação do Brasil, o caipira”. Estudos sociológicos, 24 (47):83-107.:89). Como fenômeno cultural que conta com a ordem social a seu favor, é fácil para seus intelectuais orgânicos, mediante o competente domínio das possibilidades oferecidas por aquilo que Pierre Bourdieu (2008BOURDIEU, Pierre. 2008. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer? Trad. Sérgio Miceli et al. 2ª ed. 1° reimpr. São Paulo: EdUSP.) chamou de o mercado linguístico, mobilizá-la para desacreditar publicamente seus adversários como anacrônicos e idealistas. É o que fica evidente em afirmações como as de Xico Graziano (2018GRAZIANO, Xico. 2018. “Opinião - Poder 360”, em 04 jul. 2018. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/o-esquerdismo-verde-e-retrogrado-e-obscurantista-diz-xico-graziano/ . Acesso em 28/07/2022.
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), segundo o qual aqueles que “defendem um modelo de produção agrária tipo o campesinato europeu de meados do século 20” e “imaginam, no Brasil, ser possível alimentar 210 milhões de pessoas com hortas domésticas e lavouras capinadas com enxada, pragas combatidas com calda de fumo, colheitas feitas à mão”, dentre outras práticas, representam uma verdadeira “volta ao passado”, opinião que é corroborada pelo diretor técnico da Associação Brasileira dos Produtores de Milho - Abramilho, Daniel Rosa (2022ROSA, Daniel Felipe Marra e. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 01 nov. 2022.), para quem “essa visão do campesinato, do pequeno agricultor com a enxada na mão, tomando um sol [risos], isso é subsistência, pobreza, isso não dá”.
De fato, é comum entre os pequenos agricultores, como notaram com certa desaprovação Valadão, Souza e Freitas (2022VALADÃO, William B; SOUZA, Junia M. M. & FREITAS, Alair F. 2022. “‘Camponês’ ou ‘agricultor familiar’: como os agricultores participantes do PNAE em Viçosa-MG se reconhecem”. Revista Grifos, 31 (57):1-25.), a não identificação com a categoria camponês por associá-la à subsistência e à pobreza, exatamente conforme pressupõe a imagística cultural mobilizada pelo agronegócio, embora não tenham dificuldade em se identificar como agricultores familiares, conforme a categoria e a imagística oficial e socialmente aprovadas. Esta recusa à imagística típica dos movimentos sociais, focados na tríade agroecologia, campesinato e reforma agrária popular, não deve ser entendida como uma adesão espontânea à agricultura empresarial. Ocorre que, como outras manifestações econômicas, no sentido exposto por Marshall Sahlins (2003SAHLINS, Marshall D. 2003. Cultura e razão prática. Trad. Sérgio T. Niemayer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar .), o agronegócio está sujeito às injunções culturais de sua sociedade e época. Isto significa que, afora a mobilização de uma cultura interiorizada pelo indivíduo, o agronegócio opera em correspondência com o modo de produção vigente; logo, a autopromoção e a estigmatização atuam sobre expectativas previamente formadas e vivenciadas no nível da doxa. É o que fica explícito na declaração de Daniel Rosa, da Abramilho, acerca dos motivos que levam o pequeno e médio agricultor a recusarem a categoria camponês ao mesmo tempo em que se predispõem a se identificar como produtores rurais, dado que “o médio produtor, ele, como todos, inclusive na cidade”, “quer ter um empreendimento que dê lucro, que dê retorno”, o que equivale a ser socialmente aprovado.5 5 Esta racionalidade econômico-produtiva, vivenciada como uma ética, no sentido de Max Weber (2007), não é recente e tampouco exclusiva do agronegócio, haja vista que Francisco Dias Martins, ainda no início do século XX, já preconizava no seu ABC do Agricultor que convinha ao agricultor “ter o tempo todo ocupado em coisas úteis” (1921: 261), bem como que “a agricultura é para se ganhar dinheiro” (1921: 320, grifos no original). Pode-se chegar à mesma conclusão via negação, a exemplo do que fazem os representantes do MST (2023) ao declararem que “os nossos inimigos no campo, eles são comuns no mundo inteiro, ou seja, a luta contra o agronegócio é uma luta do mundo inteiro porque é um modelo instaurado em todos os países do mundo”, o que é o mesmo que afirmar que se opor ao agronegócio equivale, em certa medida, a se opor ao modo de produção capitalista, do qual, de resto, o agronegócio é apenas um, dentre tantos fenômenos equivalentes.
Embora as representações sociais nem sempre correspondam à realidade objetiva, não é possível ignorá-las em razão do efeito que exercem sobre a constituição cultural de um grupo, classe ou sociedade. É por este motivo que mesmo que Plínio Simas (2022SIMAS, Plínio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Palmeira das Missões, 25 out. 2022.), dirigente do MPA-RS, afirme objetivamente que “não somos aquele camponês que achamos que tem que voltar para o cabo da enxada, que não tem tecnologias”, mas aquele que quer uma “tecnologia acessível à pequena propriedade”, o seu posicionamento continua como que maculado pela ordem social à que ele se opõe (a própria modernização tecnológica e produtiva do camponês é o que o transforma em agricultor familiar). A mesma interpretação pode ser encontrada junto ao dirigente da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária do Rio Grande do Sul - Unicafes-RS, Gervásio Plucinski (2022PLUCINSKI, Gervásio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Porto Alegre, 24 out. 2022.), segundo o qual o “agricultor, ele prefere hoje ser chamado de agro do que de agricultor familiar”, tanto que em “algumas regiões o pessoal, vai falar, eles já têm dificuldade de falar de agricultura familiar, eles já falam ‘não, nós do agro, aqui, nós do agro e tal’”. Com uma opinião semelhante à de Daniel Rosa, Plucinski (2022ROSA, Daniel Felipe Marra e. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 01 nov. 2022.) acredita que essa situação tenha a ver com uma perspectiva que ultrapassa o meio rural, “eu acho que não é só na agricultura, você tem isso como concepção de sociedade”, uma vez que se o indivíduo “avança um pouco no econômico”, logo ele “quer esquecer um pouco aquele grupo a que ele pertenceu ou em que estava antes, enfim, quer se enxergar num outro grupo”, neste caso, o do agronegócio.
Há, no entanto, quem veja no Estado o fomentador direto ou indireto destas disposições. Este é o caso de Décio Sieb, assessor de política agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - Contag, instituição voltada à representação dos trabalhadores rurais, embora fortemente vinculada aos movimentos sociais do campo. Contrapondo-se às decisões políticas que beneficiavam o agronegócio em detrimento dos pequenos agricultores, cujo estopim pode ser encontrado na declaração da ex-ministra e atual senadora Tereza Cristina (2019CRISTINA, Tereza. 2019. “Discurso por ocasião da cerimônia de transmissão de cargo”, em 06 jan. 2019. Disponível em: https://youtu.be/nOt9-K48w3c . Acesso em 21/06/2022.
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), que em seu discurso de posse junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa afirmou estar convicta de “que a agricultura empresarial e a pequena agricultura são o mesmo negócio”, Décio Sieb (2022SIEB, Décio Lauri. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 26 out. 2022.) frisou a arbitrariedade deste posicionamento, uma vez que “não dá para tratar todo mundo igual”, “com as mesmas políticas, tem que ter políticas diferenciadas em relação ao agronegócio, aos grandes, e dentro da própria agricultura familiar”. Ronaldo Ramos (2022RAMOS, Ronaldo. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 26 out. 2022.), também ele assessor de política agrícola da Contag, tem a mesma opinião, acrescentando que há ocasiões em que o corpo técnico-burocrático do Estado pode atuar diretamente, ainda que não seja este o objetivo, na promoção do agronegócio concomitantemente à desqualificação de algumas pautas dos movimentos sociais, a exemplo de quando incentivam o uso de sementes geneticamente modificadas ao invés de sementes naturais (ditas “crioulas”), porque mais rentáveis, ou seja, economicamente produtivas. Por conseguinte, seja para não se ver estigmatizado, no sentido de Elias e Scotson (2000ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. 2000. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) e Goffman (2008GOFFMAN, Erving. 2008. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. Márcia B. M. L. Nunes. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC.), seja para se distinguir em relação aos seus pares, o pequeno agricultor tende a aderir ao discurso hegemônico, isto é, ao discurso focado na figura do produtor rural produtivo.
O Estado e suas categorias
De acordo com Maria Mendonça (2015MENDONÇA, Maria L. 2015. “O papel da agricultura nas relações internacionais e a construção do conceito de agronegócio”. Contexto Internacional, 37 (2):375-402.) e Caio Pompeia (2020POMPEIA, Caio. 2020. “Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 35 (104):1-17.), a palavra agronegócio deriva da sua homóloga inglesa agribusiness, surgida nos Estados Unidos na década de 1950. No Brasil, porém, ela somente passaria a ser usual a partir do início dos anos 1990. Três fatores contribuíram para isto: em primeiro lugar, houve uma fase de modernização da agricultura, iniciada nos anos 1960, que ficou marcada pelos reflexos da Revolução Verde; após esta fase, que de acordo com Santos (1988SANTOS, Robério F. 1988. “O crédito rural na modernização da agricultura brasileira”. Rev. Econ. Sociol. Rural , 26 (4):393-404.) foi diretamente subsidiada pelo Estado, sobretudo através da concessão de crédito rural, foram as rupturas institucionais que exerceram um papel decisivo para a consolidação da agricultura empresarial.6 6 Embora Marcello Brito (2021b), ex-presidente da Abag, afirme que o agronegócio é hoje em grande parte financiado pelo setor privado, uma análise comparada da contratação de crédito rural privado e estatal certamente permitiria avançar no debate acerca das relações entre Estado e agronegócio. Algumas reflexões neste sentido podem ser encontradas em Mitidiero Jr. e Goldfarb (2021) e Silva (2010). A primeira delas, como argumenta Sônia Mendonça (2005MENDONÇA, Sônia R. 2005. “Estado e hegemonia do agronegócio no Brasil”. História e Perspectivas, 1 (32-33):1-28.), remete à Assembleia Constituinte de 1987, momento em que organizações vinculadas aos setores dominantes do campo se viram obrigadas a realçar tanto os seus pontos de convergência como de divergência. É neste cenário de disputas que surgiria a acirrada oposição entre a União Democrática Ruralista - UDR, tradicional e conservadora instituição de classe patronal, e a Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB, vinculada aos setores empresarial e industrial. A Abag, e com ela a atual versão do agronegócio, surgiu justamente desta oposição. “Numa operação simbólica e política da maior envergadura”, argumenta Sônia Mendonça (2005MENDONÇA, Sônia R. 2005. “Estado e hegemonia do agronegócio no Brasil”. História e Perspectivas, 1 (32-33):1-28.:22), “as lideranças da OCB recriariam a própria noção de agricultura, atrelando-a àquela, bem mais ampla, de ‘agronegócio’, não mais limitada à atividade agrícola propriamente dita”.
Florestan Fernandes, ainda na década de 1960, foi um dos primeiros sociólogos brasileiros a chamar a atenção para os “processos de acumulação capitalista recém-adotados na economia agrária” (2008aFERNANDES, Florestan. 2008a. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª ed. 2ª reimpr. São Paulo: Globo.:251). De acordo com Heredia, Palmeira e Leite (2010HEREDIA, Beatriz; PALMEIRA, Moacir & LEITE, Sérgio P. 2010. “Sociedade e economia do ‘agronegócio’ no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25 (74):159-176.:159), esta mudança de perspectivas reflete um momento histórico “em que se começou a falar mais explicitamente da existência de uma ‘agricultura moderna’ ou de uma ‘agricultura capitalista’ no Brasil, de ‘empresas rurais’ (figura contraposta no Estatuto da Terra ao ‘latifúndio’) e de ‘empresários rurais’”. A legislação surgida nesse período, conforme Palmeira (1989PALMEIRA, Moacir. 1989. “Modernização, Estado e questão agrária”. Estudos Avançados, 3 (7):87-108.:95), “impôs um novo recorte da realidade” e “criou categorias normativas para uso do Estado e da sociedade”, consequentemente desencadeando a formação de uma “camisa de força” para os tribunais de justiça e os programas governamentais, mas também a abertura de espaço para atuação legal de grupos até então marginalizados. Compreender como se dá esta relação entre Estado e agronegócio pressupõe apreender as categorias jurídico-econômicas pelas quais o Estado reconhece e classifica e, portanto, hierarquiza o meio rural brasileiro.7 7 Em se tratando das categorias jurídico-econômicas, o atual cânone lexicográfico (dicionários Aurélio, Houaiss e Michaelis) não traz definições satisfatórias. As entradas para agricultor, trabalhador, produtor etc. limitam-se ao seu sentido amplo, além de não reconhecerem a partícula “rural”: assim, ao invés de se consultar empregado rural, trabalhador rural e produtor rural, encontrar-se-á apenas empregado, trabalhador e produtor etc.
Agricultor familiar
A agricultura familiar surgiu no Brasil pouco após o agronegócio, mais precisamente por volta da metade da década de 1990. A construção desta categoria, como defende Picolotto (2014PICOLOTTO, Everton L. 2014. “Os atores da construção da categoria agricultura familiar no Brasil”. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52 (s.1):S063-S084.), contou com a conjugação de três atores distintos: os intelectuais e acadêmicos, os representantes sindicais e classistas, e o próprio Estado, de onde a interpretação corrente de que a Lei da Agricultura Familiar “é uma conquista vinda deste ambiente do cooperativismo”, como defende Vanderley Ziger (2018ZIGER, Vanderley. 2018. “Modelo e Organização (bloco 3), Canal Unicafes Nacional”, 23 maio 2018. Disponível em: https://youtu.be/r_fb32GEeIA . Acesso em 07/03/2022.
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), presidente da União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária - Unicafes. De acordo com a referida lei,8
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Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, artigo terceiro, incisos I, II, III e IV, respectivamente. Esta lei foi posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017. Agricultor familiar é, dentre as categorias jurídico-econômicas, aquela que recebeu maior atenção crítica (a categoria camponês não pertence a este grupo), embora não seja necessariamente a mais difundida (produtor rural). Maiores informações sobre esta categoria podem ser consultadas em Caume (2009), Garcia Jr. (2003) e, sobretudo, Picolotto (2014, 2018).
considera-se agricultor familiar, em conjunto com o empreendedor familiar rural (seu equivalente jurídico), aquele “que pratica atividades no meio rural”, desde que atenda aos seguintes critérios: “não detenha, a qualquer título, área maior do que quatro módulos fiscais”, “utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento”, “tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento”, “tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo”, e que “dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família”.
Empregado Rural
Vinculados aos empregadores e aos empresários estão os empregados ou trabalhadores rurais, categorias equivalentes. Porém, apesar da equivalência, o empregado rural não é, em essência, o mesmo que o trabalhador rural: enquanto que o primeiro é um trabalhador, este último nem sempre é um empregado. Existe como que uma variação em termos de autonomia: por exemplo, a mesma lei que define o empregador rural estabelece que por empregado rural deve-se entender “toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário”.9 9 Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973. A Lei n° 4.214, de 2 de março de 1963 (revogada pela lei anterior) definia, no seu artigo segundo, trabalhador rural como “toda pessoa física que presta serviços a empregador rural, em propriedade rural ou prédio rústico, mediante salário pago em dinheiro ou in natura, ou parte in natura e parte em dinheiro”. Distantes em apenas um decênio, a comparação sugere que não houve alterações conceituais significativas, salvo que a categoria empregado rural é preferível à de trabalhador rural. O empregado rural possui, portanto, um vínculo efetivo com seu empregador.
Trabalhador Rural
Comparado com o empregado rural, o trabalhador rural possui maior plasticidade conceitual. É o que se pode inferir a partir da ratificação da Convenção nº 141 da Organização Internacional do Trabalho - OIT.10 10 Conforme o Decreto Legislativo nº 5, de 1993. A definição de trabalhador rural consta no artigo segundo da Convenção nº 141 da Organização Internacional do Trabalho - OIT. De acordo com o documento, a categoria trabalhadores rurais “abrange todas as pessoas dedicadas, nas regiões rurais, às tarefas agrícolas ou artesanais ou a ocupações similares ou conexas”, podendo ser assalariados ou “pessoas que trabalhem por conta própria, como arrendatários, parceiros e pequenos proprietários”. A convenção especifica ainda que a categoria aplica-se “apenas àqueles arrendatários, parceiros ou pequenos proprietários cuja principal fonte de renda seja a agricultura e que trabalhem a terra por conta própria ou exclusivamente com a ajuda de seus familiares, ou recorrendo eventualmente a trabalhadores suplentes”, desde que “não empreguem mão de obra permanente”, “não empreguem mão de obra numerosa, com caráter estacionário” e “não cultivem suas terras por meio de parceiros ou arrendatários”. Definição semelhante pode ser encontrada na já citada legislação acerca da contribuição sindical. Nela, trabalhador rural é definido como “pessoa física que presta serviço a empregador rural mediante remuneração de qualquer espécie”, e como “quem, proprietário ou não, trabalhe individualmente ou em regime de economia familiar”, como é entendido o “trabalho dos membros da mesma família, indispensável à própria subsistência”, quando exercido em “condições de mútua dependência e colaboração, ainda que com ajuda eventual de terceiros”.11 11 Decreto-lei n° 1.166, de 15 de abril de 1971, ainda em vigor. A definição encontra-se no art. 1°, inciso I, alíneas a e b, respectivamente, cuja redação foi atualizada pela Lei nº 9.701, de 17 de novembro de 1998.
Empregador Rural / Empresário Rural
Empregador e empresário rural constituem praticamente a mesma pessoa, salvo pela diferença de que o empregador rural nem sempre é um empresário, enquanto o empresário é sempre um empregador. A definição deste último remonta à legislação própria desde 1973, quando foi instituída a Lei do Trabalhador Rural, ainda em vigor. Nela, é considerado empregador rural “a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados”, podendo ser equiparado também à pessoa “física ou jurídica que, habitualmente, em caráter profissional, e por conta de terceiros, execute serviços de natureza agrária, mediante utilização do trabalho de outrem”.12 12 Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, art. 3° e 4°, respectivamente. O empregador é aquele que detém os meios de produção e que está, por isso, em condições de explorar de forma permanente ou não, diretamente ou por intermédio de terceiros, atividades agropecuárias ou outras a elas associadas. Por essa lógica, o proprietário de uma grande propriedade produtora e beneficiadora de grãos é um empregador rural, assim como o proprietário de uma empresa de aviação agrícola, uma vez que presta serviços agropecuários. Este último exemplo, contudo, se ajusta melhor ao caso do empresário rural.
O conceito de empresário rural remete a qualquer “pessoa física ou jurídica que, tendo empregado, empreende, a qualquer título, atividade econômica rural”; quem, “proprietário ou não, e mesmo sem empregado, em regime de economia familiar, explore imóvel rural que lhe absorva toda a força de trabalho e lhe garanta a subsistência e progresso social e econômico”, desde que possua “área superior a dois módulos rurais da respectiva região”; e, por fim, os “proprietários de mais de um imóvel rural, desde que a soma de suas áreas” atenda ao limite mínimo dos dois módulos rurais.13 13 Decreto-lei n° 1.166, de 15 de abril de 1971, ainda em vigor. A definição encontra-se no art. 1°, inciso II, alíneas a, b e c, respectivamente, cuja redação foi atualizada pela Lei nº 9.701, de 17 de novembro de 1998. O que difere o empresário rural do empresário urbano é basicamente o fato de que o primeiro está sujeito ao princípio de agrariedade, que dispõe sobre intempéries naturais, ciclos biológicos, fatores produtivos e reprodutivos etc.
Produtor Rural
Dentre todas as categorias mobilizadas no meio rural brasileiro, produtor rural é a mais proeminente. Parafraseando Merleau-Ponty (1991MERLEAU-PONTY, Maurice. 1991. Signos. Trad. Maria Pereira. São Paulo: Martins Fontes .:43), pode-se dizer que a conceituação do produtor rural está em toda parte, mas também em parte alguma: sua imprecisão conceitual, fundamentada em uma espécie de reconhecimento tácito, é efeito da sua plasticidade, o que permite mobilizá-la com grande eficácia simbólica, haja vista que não raro as categorias anteriores, na prática cotidiana, costumam ser amalgamadas na figura do produtor rural. Uma das suas definições mais objetivas pode ser encontrada no projeto de lei enviado ao Senado Federal, no qual se lê que produtor rural é “pessoa física ou jurídica que explora a terra, com fins econômicos ou de subsistência, por meio da agricultura, da pecuária, da silvicultura, do extrativismo sustentável, da aquicultura, além de atividades não agrícolas, respeitada a função social da terra”.14 14 Projeto de Lei do Senado n° 325, de 2006 (arquivado ao final da legislatura, em 2011). Embora arquivada, a definição parece ter se mantido válida, como transparece das definições mobilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. De acordo com o Manual do Recenseador (2017INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. 2017. Manual do Recenseador. Rio de Janeiro: IBGE.:51), produtor rural é a “pessoa física, independentemente do sexo, ou a pessoa jurídica responsável pelas decisões na utilização dos recursos” e que “exerce o controle administrativo das operações que envolvem a exploração do estabelecimento agropecuário”, detendo, portanto, a “responsabilidade econômica ou técnica da exploração”, podendo “exercer todas as funções diretamente ou indiretamente através de um encarregado ou de um administrador”. Produtor rural é todo aquele que responde pelo estabelecimento agropecuário, seja na forma de arrendatário, proprietário, posseiro etc., variando de agricultor familiar a produtor rural conforme suas características socioeconômicas e o perfil do estabelecimento.15 15 A análise histórica dos Censos Agrícolas, como eram chamados entre 1920 e 1960, evidencia que em seus primórdios a categoria usual era proprietário. É somente a partir de 1970 que o produtor passou a ser a categoria oficial, o que demonstra uma continuidade entre as categorias representativas dos setores dominantes. Considerando que estas categorias normatizam as interações entre Estado e sociedade civil, não é das menores constatações que a categoria proprietário foi precedida por outras de natureza equivalente, sendo a primeira delas senhor ou senhor de engenho e, entre os séculos XVIII e XIX, fazendeiro.
Outras categorias jurídico-econômicas
Existem ainda outras categorias oficiais de natureza jurídico-econômica, tais como aquelas relacionadas ao tamanho da propriedade (latifundiário, minifundiário), às culturas desenvolvidas (monocultor, policultor) e à relação estabelecida com a terra (arrendatário, assentado, grileiro, meeiro, posseiro etc.). No seu conjunto, porém, são pouco utilizadas no cotidiano, restringindo-se a ocasiões específicas. Ademais, há que se considerar que grande parte das categorias oficiais é culturalmente ressignificada: os empregados rurais, por exemplo, podem não se identificar como tais senão em ocasiões especiais, bem como o gerente de uma propriedade, também ele um empregado rural a serviço do seu empregador, frequentemente o produtor rural, pode se identificar como capataz, enquanto os demais empregados a seu encargo podem se identificar, ou ser identificados, como peões. Dentre essas categorias, latifundiário talvez seja uma das mais usuais entre os movimentos sociais e os críticos do agronegócio, que por vezes a mobilizam como se fosse seu sinônimo.
No entanto, como argumenta Caume (2009CAUME, David J. 2009. “Agricultura Familiar e Agronegócio: falsas antinomias”. REDES - Revista do Desenvolvimento Regional, 14 (1):26-44.:32), isto tem causado um “problema de ordem conceitual”, uma vez que o latifúndio, enquanto “base produtiva de uma economia tradicionalmente agroexportadora”, teria sido “gradativamente convertido em agricultura empresarial capitalista (base produtiva do agronegócio)”. Opinião semelhante pode ser encontrada em Meneses (2021MENESES, Valdênio F. 2021. “Olhai para ‘os ricos do campo’: o lugar das elites e classes dominantes nos Estudos Rurais do Brasil”. Revista Antropolítica, 53:140-166.:142-143), para quem esta categoria possui “vícios de origem”, o que faz com que “esse conceito sirva menos ao campo da análise e mais a um tabuleiro” de “acusação e luta política de movimentos sociais”. Há uma boa razão para esta argumentação. Como escreveu José de Souza Martins (1981MARTINS, José S. 1981. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes.), as categorias camponês e latifundiários surgiram juntas, ainda na década de 1950, fruto de uma importação teórico-ideológica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS, servindo antes como “palavras políticas” do construtos teórico-científicos. De fato, a categoria camponês não está presente na legislação brasileira, tanto é que na compilação da legislação sobre a agricultura familiar, efetuada e publicada pela Câmara dos Deputados (2016CÂMARA DOS DEPUTADOS. 2016. Legislação sobre agricultura familiar: dispositivos constitucionais, leis e decretos relacionados. Brasília: Câmara dos Deputados.), não se encontra uma única menção a esta categoria, ao passo que as categorias agricultor familiar, empreendedor familiar, pequeno produtor e produtor rural permeiam todo o documento.16 16 A análise comparada das constituições e das leis de terras (ou suas equivalentes) dos membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa - CPLP demonstra que a categoria produtor rural pode ser encontrada apenas no Brasil, assim como a categoria camponês se faz presente apenas nas legislações de Angola e Moçambique. Se o raciocínio adotado ao longo deste texto estiver correto, pode-se dizer então que é muito mais difícil oficializar a imagística camponesa no Brasil do que nestes países.
Como estas categorias normatizam as interações oficiais entre a sociedade civil e o Estado, o que pressupõe a existência de um mercado linguístico unificado, é possível presumir que toda e qualquer representação sindical, de classe ou política que não se enquadre ou que não domine os códigos necessários à interação, se veja excluída ou obrigada a transubstanciar suas pautas. É o que ocorre, por exemplo, com os movimentos sociais identificados com a imagística camponesa que, muitas vezes, se veem obrigados a se definir como agricultores familiares ou trabalhadores rurais; mas é também o caso das interações mediadas por representantes seja do Estado, seja da rede privada. O quanto esta conjuntura pode ser favorável ao agronegócio fica explícito na fala de Plínio Simas (2022SIMAS, Plínio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Palmeira das Missões, 25 out. 2022.), dirigente do MPA-RS, para quem o pequeno agricultor é coagido a se identificar com o agronegócio até mesmo nas pequenas interações cotidianas: quando “a gente chega no banco”, por exemplo, “tem uma salinha do agronegócio”, e “se você não quiser entrar naquela sala, você não tem financiamento”, então o pequeno agricultor “vai ter que se identificar com o agronegócio, se não ele não vai ter crédito”.
Mais do que uma simples variação diastrática, como diriam os linguistas, o que está em jogo aqui é não só a interação, mas a formação (ou coibição) de personalidades através desta interação. A atual hegemonia do agronegócio resulta de uma profunda convergência da racionalidade econômica tipicamente capitalista com parte importante da formação cultural e institucional brasileira, sendo fruto, portanto, de mais de “cinquenta anos de dedicação, de esforço, de trabalho no campo, de investimentos, de empreendedorismo”, como afirmou Ricardo Nicodemos (2022NICODEMOS, Ricardo. “Entrevista Agronews”, em 15 jul. 2022. Disponível em: https://youtu.be/cnT31MhbQKg . Acesso em 14/04/2023.
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), presidente da ABMRA, em uma declaração que deixa entrever o quanto o setor é herdeiro das instituições que o antecederam.
Conflitos intersetoriais e atuação política
Se a dimensão jurídica da relação do agronegócio com o Estado transmite a impressão de haver uma estabilidade oficialmente assegurada, a dimensão política desta relação descortina uma versão bem mais dinâmica e conflituosa que não necessariamente se opõe à primeira. Tomemos como exemplo o caso do Governo Jair Bolsonaro (2018-2022). Segundo a ex-ministra Tereza Cristina (2019CRISTINA, Tereza. 2019. “Discurso por ocasião da cerimônia de transmissão de cargo”, em 06 jan. 2019. Disponível em: https://youtu.be/nOt9-K48w3c . Acesso em 21/06/2022.
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), o “setor agropecuário apoiou em peso a candidatura do presidente Jair Bolsonaro” durante as eleições de 2018. A esta altura, agronegócio e bancada ruralista, forma popularizada de se referir à Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA, eram equivalentes. Dois anos mais tarde, porém, o ex-presidente da Abag, Marcello Brito (2021b BRITO, Marcello. 2021b. “Entrevista Roda Viva”, em 30 ago. 2021. Disponível em: https://youtu.be/9YjP6rLlhi0 . Acesso em 24/03/2022.
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), afirmaria que “o voto de confiança foi dado, a confiança não foi retribuída”, de onde sua conclusão de que “nós merecemos algo melhor”. Segundo Caio Pompeia (2022POMPEIA, Caio. 2022. “O agrobolsonarismo”. Revista Piauí, 184:24-27.:25), Jair Bolsonaro arquitetou sua campanha eleitoral com propostas como a redução de impostos, a supressão de dívidas e o acesso facilitado a armas de fogo, permeando-a com duras críticas aos movimentos sociais e às populações tradicionais, bem como à fiscalização e à punição por crimes ambientais, visando com isso cooptar o apoio dos “fazendeiros com papel subalterno na cena política e econômica”. Moderados e sutis por definição, os setores empresariais e industriais do agronegócio mostraram-se céticos: o extremismo, conforme Pompeia, “não foi bem recebido pela maioria dos parlamentares do núcleo da bancada ruralista”, uma vez que entendiam que tais posicionamentos “poderiam trazer riscos às corporações” (2022POMPEIA, Caio. 2022. “O agrobolsonarismo”. Revista Piauí, 184:24-27.:25). Armando Boito Jr. (2021BOITO JR., Armando. 2021. “O caminho brasileiro para o fascismo”. Caderno CRH, 34:1-23.) também defende, neste sentido, que não é na “burguesia agrária” que os beneficiários deste governo devem ser buscados, mas no bloco dos “proprietários de terra”, isto é, entre os fazendeiros que ocupam uma “posição subordinada” em relação ao “conjunto dos segmentos burgueses” acoplados ao agronegócio.
As divergências tiveram início logo após a posse presidencial. Uma das primeiras, relatadas por Pompeia (2021POMPEIA, Caio. 2021. “A reascensão da extrema direita entre representações políticas dos sistemas alimentares”. Revista Antropolítica , (53):115-139.), diz respeito à histórica disputa entre a UDR e a Abag. Embora a nomeação de Tereza Cristina para o Mapa tenha representado a vitória dos setores industriais sobre a UDR, que indicara o seu então presidente Nabhan Garcia, nem por isso estes setores deixaram de fazer parte do governo (Garcia foi nomeado para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários - Seaf/Mapa). Outras divergências ministeriais seriam motivos de novos atritos. Enquanto o Mapa e o Ministério do Meio Ambiente - MMA, à época sob comando de Ricardo Salles, operavam de acordo com a “concertação política”, conforme a interpretação de Caio Pompeia (2020POMPEIA, Caio. 2020. “Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 35 (104):1-17.), pastas estratégicas, como o Ministério da Economia - ME e o Ministério das Relações Exteriores - MRE, geravam atritos constantes, haja vista que Marcello Brito fez duras críticas aos ex-ministros Ricardo Salles (MMA) e Ernesto Araújo (MRE), o primeiro por macular a imagem do agronegócio ao permitir sua associação a uma série de crimes ambientais, o segundo por fazer do Brasil um pária internacional. No entanto, ao ser questionado se o agronegócio estava dividido, Brito (2021dBRITO, Marcello. 2021d. “Entrevista Dinheiro Rural”, em 30 nov. 2021. Disponível em: https://www.dinheirorural.com.br/a-defesa-do-agro-se-faz-nas-mesas-de-negociacao/ . Acesso em 24/03/2022.
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) prontamente replicou que “achar que o agro está rachado é bobagem”.17
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O agronegócio se viu igualmente prejudicado pela homenagem prestada pelo Governo Bolsonaro ao Dia do Agricultor (28 de julho) de 2021, ao ter divulgado, por algumas horas, a imagem de um indivíduo armado, em um claro sinal de intimidação aos movimentos sociais. A imagem e sua imagística, que representam os setores tradicionais ligados à UDR, teriam levado Marcello Brito (2021a) a afirmar que a referida homenagem “foi um desserviço à imagem do agronegócio” brasileiro. Comparado aos setores tracionais da agricultura patronal, o agronegócio é menos radical, mais moderado e, consequentemente, afeito ao diálogo e às coalizões políticas.
Embora tenha o cuidado de transmitir uma imagem favorável ao setor, os seus posicionamentos deixam transparecer que “não existe adesão irrestrita das elites do agronegócio a Bolsonaro”, como argumenta Pompeia (2022POMPEIA, Caio. 2022. “O agrobolsonarismo”. Revista Piauí, 184:24-27.:27), porquanto, apesar de “bastante conservadores”, esses “agentes dominantes do campo” atuam pragmaticamente, “costurando pactos estratégicos e procurando impor suas pautas ao governo do momento, não importa qual seja”.
A legitimação do agronegócio como um setor abrangente e homogêneo pode ser problemática para o próprio setor, pois possibilita que diferentes grupos e classes concorram entre si para impor a sua definição setorial como a definição legítima. É o que transparece na fala de Marcello Brito (2021c BRITO, Marcello. 2021c. “Entrevista Programa 4 Ases”, em 04 nov. 2021. Disponível em: https://youtu.be/yFEmzA9-KuY . Acesso em 24/03/2022.
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), que se diz “temeroso” ao ver os setores empresarial e industrial diminuídos em comparação com o setor produtivo, que se limita à exportação de commodities, muitas vezes em detrimento da indústria nacional, o que deixa transparecer, de acordo com Fabiano Escher (2020ESCHER, Fabiano. 2020. “Class dynamics of rural transformation in Brazil: a critical assessment of the current agrarian debate”. Agrarian South: Journal of Political Economy, 9 (2):1-27.), uma “dinâmica contraditória” no capitalismo brasileiro, segundo um argumento caro a Florestan Fernandes (2008a FERNANDES, Florestan. 2008a. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª ed. 2ª reimpr. São Paulo: Globo.). Ao comentar sobre os limitantes da campanha publicitária O Agro é tech, agro é pop, agro é tudo, Marcello Brito fez questão de frisar que a participação do agronegócio no Produto Interno Bruto - PIB brasileiro não é motivo de comemoração, antes o contrário: “tem gente celebrando que nós vamos representar 30% do PIB esse ano. Tá, mas é por que o agro está crescendo, a indústria está crescendo, os serviços estão crescendo”, ou “por que nossa indústria está dando ré, nosso serviço está patinando, e o agro está crescendo sozinho? O muro está ali na frente”, vaticina.18
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A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA Brasil, a fim de supervalorizar a participação do agronegócio exportador de matérias-primas no PIB, promove um cálculo paralelo ao oficial (cf. CNA Brasil, 2018). Por outro lado, Mitidiero Jr. e Goldfarb (2021) afirmam, com base nas estatísticas oficiais, que é ínfima a participação do agronegócio no total do PIB brasileiro, comparado aos setores da indústria e serviços.
Em sua opinião, o “nosso ponto fraco hoje é a indústria, e se nós não melhorarmos a indústria, a gente vai continuar com esse agro que a gente faz de conta que ele é a maior maravilha do mundo”, enquanto “o nosso status em termos de agregação de valor hoje” equivale ao “que os Estados Unidos eram há sessenta anos”.
O atual presidente da Abag, Luiz Carlos Corrêa Carvalho (2023 CARVALHO, Luiz C. C. “Entrevista Canal Rural”, em 19 abr. 2022. Disponível em: https://youtu.be/fX3p__81wMA . Acesso em 14/04/2023.
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), mantém o mesmo posicionamento institucional, pois, como afirma, se esta participação no PIB “mostra um vigor realmente muito grande do agro”, também “indica que o outro lado, industrial, de alguma forma, vem derretendo no Brasil, o que é extremamente negativo”. Ricardo Silveira (2020SILVEIRA, Ricardo S. 2020. “Entrevista Tempo On-line”, em 19 jun. 2020. Disponível em: https://youtu.be/woIwJnVulAM . Acesso em 10/03/2022.
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), presidente da Associação Brasileira da Indústria de Café - Abic, é igualmente taxativo ao afirmar que o “Brasil exporta commodities, e isso não gera renda para o país. A gente não exporta valor agregado. A gente tem que exportar é produto final, acabado, e isso, Alemanha, Suíça, Itália sabem fazer muito bem”. Segundo ele, a “bancada dos ruralistas”, bem como a “classe produtora” como um todo têm “amadurecido bastante e já enxergaram que é a única saída para a gente ter uma rentabilidade melhor, é a gente fazer isso aqui no Brasil, fazer o que a Alemanha e a Suíça fazem”. Raciocínio semelhante pode ser encontrado em Deunir Argenta (2021ARGENTA, Deunir L. 2021. “Entrevista Prazeres da Mesa”, em 22 out. 2021. Disponível em: https://www.prazeresdamesa.com.br/reportagens/entrevista-com-deunir-argenta/ . Acesso em 10/03/2022.
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), presidente da União Brasileira de Vitivinicultura - Uvibra. Segundo Argenta, “precisamos evoluir em termos de país, a fim de sermos mais fortes em torno de pautas macro, sejam elas econômicas ou políticas”, uma vez que “todas as empresas têm espaço no mercado”. João Marchesan (2016MARCHESAN, João C. 2016. “Entrevista Jornal Informaq”, em jul. 2016. Disponível em: https://jorplast.com.br/abimaqsindimaq-novo-presidente-do-conselho-da-administracao/ . Acesso em 10/03/2022.
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), presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos - Abimaq, também argumenta que a “saída para o Brasil voltar a crescer é o investimento na indústria de transformação por conta de seu maior valor agregado e pelos maiores ganhos de produtividade”, posto que o “país não vai crescer com serviços ou comércio”.
O contraste entre aqueles que defendem a exportação de matérias-primas e aqueles que são favoráveis à sua industrialização pode ser encontrado de forma paradigmática na polêmica envolvendo a Aprosoja Brasil e a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais - AbiovE, acusada pela primeira de empregar “mecanismos para tarifar ou reter parte da produção de soja no mercado interno, inibindo exportações”, segundo informou a Aprosoja em nota pública (2022ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS PRODUTORES DE SOJA - APROSOJA BRASIL. 2022. “APROSOJA Brasil critica possibilidade de taxar ou reter produção de soja”, em 23 mar. 2022. Disponível em: https://www.udop.com.br/noticia/2022/03/29/aprosoja-brasil-critica-possibilidade-de-taxar-ou-reter-producao-de-soja.html . Acesso em 23/09/2022.
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). O objetivo da Abiove, na ocasião, consistia em reter estoques de soja no Brasil para permitir seu processamento industrial, o que diminuiria o lucro daqueles que estavam interessados na sua exportação sem processamento. A Aprosoja Brasil, por sua vez, fez questão de ressaltar, ainda nesta mesma nota, que “algo semelhante já é praticado na Argentina, com as famigeradas retenciones”, entendidas pela instituição como “políticas populistas que impuseram impostos sobre as exportações e desestimularam a produção de grãos, tornando a já debilitada economia argentina ainda mais frágil”, o que teria feito com que aquele país se privasse de “reservas cambiais robustas” e visse a “desvalorização da sua moeda e a inflação explodirem a níveis recordes”, precisamente o “oposto do que ocorre no Brasil”, já que aqui “houve a desoneração tributária total das exportações de bens primários e semielaborados, favorecendo a expansão da agropecuária brasileira e consagrando o país como potência agro, energética, ambiental”.
Ao contrário da agricultura empresarial e industrial, a agricultura produtora de commodities para exportações é grande parte dependente direta do Estado que, mediante a Lei Complementar nº 87 de 13 de setembro de 1996, também chamada de Lei Kandir, isenta tais exportações de tributação. É por este motivo que Gedeão Pereira (2019PEREIRA, Gedeão S. 2019. “Entrevista Notícias Agrícolas”, em 29 ago. 2019. Disponível em: https://www.noticiasagricolas.com.br/podcasts/4032-entrevista-com-gedeao-silveira-pereira-presidente-.html . Acesso em 30/03/2022.
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), presidente da Farsul, afirma sem ressalvas que “tributar o agronegócio brasileiro” seria um desastre para o setor, o que torna “uma dificuldade quase intransponível qualquer assunto nesse sentido”. Ao que parece, Mitidiero Jr. e Goldfarb (2021MITIDIERO JR., Marco A. & GOLDFARB, Yamila. 2021. O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. ABRA/Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil.:34) tomaram este setor como parâmetro para afirmar que o “Agro brasileiro é um tiro no pé do próprio desenvolvimento capitalista brasileiro”.19
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Diferentemente do caso da soja, a produção de algodão, segundo Márcio Portocarrero (2022), diretor executivo da Abrapa, é suficiente para abastecer a indústria nacional, o que permite exportar os excedentes.
Curiosamente, é no setor o mais crítico do Estado que se encontram os seus maiores beneficiários: por exemplo, acerca de uma possível revisão da Lei Kandir, Gedeão Pereira (2019) viu “mais uma vez o Estado ineficiente, como é o Estado brasileiro, querendo penalizar justamente ainda partes e setores da economia, que é quem [sic] paga a conta”.
Essas divergências setoriais não passaram despercebidas para os seus críticos. Para o membro-fundador do MST, João Pedro Stédile (2021a STÉDILE, João P. 2021a. “Entrevista Canal Tutameia”, em 03 set. 2021. Disponível em: https://youtu.be/MiRIlYCGdss . Acesso em 09/03/2022.
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), a atual “luta de classes no campo” estaria “marcada pela disputa de três propostas para a agricultura”: a do “latifúndio improdutivo, o latifúndio atrasado, predador”, associada à agricultura patronal; a do agronegócio, caracterizada pelo “capital moderno” e pela produção de “commodities para exportação”; e a da “agricultura familiar, da agricultura camponesa, da reforma agrária, que somos nós”. Esta interpretação, contudo, não está isenta de contradições: poucos meses após ter feito essas afirmações, Stédile (2021cSTÉDILE, João P. 2021c. “Entrevista Opera Mundi”, em 08 dez. 2021. Disponível em: https://youtu.be/JRDzieSflDA . Acesso em 08/03/2022.
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) afirmaria que “o modelo do agronegócio, que é o modelo do capital”, constitui um fenômeno econômico típico do “pré-capitalismo” (a contradição é latente), uma vez que “nós somos o maior exportador mundial de soja e não [se] paga imposto”, daí “essa renda extraordinária que eles extorquem do Estado”. Como argumenta Caume (2009CAUME, David J. 2009. “Agricultura Familiar e Agronegócio: falsas antinomias”. REDES - Revista do Desenvolvimento Regional, 14 (1):26-44.), muitas vezes os movimentos sociais parecem ignorar que o latifúndio improdutivo fere a lógica produtiva inerente à agricultura empresarial, o que faz desta expressão algo anacrônica e problemática.20
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Wendell Assis (2014) como que equaciona o que argumenta Caume (2009) com o que argumentam os movimentos sociais ao usar a expressão paradoxal “moderno arcaísmo”, uma referência às práticas típicas da agricultura empresarial adotadas em propriedades altamente produtivas, mas que não alteraram sua estrutura fundiária tradicional.
Ademais, a argumentação de Stédile parece não levar em conta que esses mesmos “latifúndios” são hoje, em muitos casos, altamente produtivos, sendo precisamente isto o que explica o poder econômico e político que ele atribui indistintamente ao agronegócio como um todo, o que significa que desconsidera as divergências setoriais - exatamente como quer a imagem pública do setor. Em todo caso, e a despeito dos seus impactos, essas divergências não devem ser superestimadas, pois por mais que os “grandes proprietários de terra e empresários agroindustriais” sejam “heterogêneos e diversificados”, como defende Regina Bruno (2017BRUNO, Regina. 2017. “Agricultura empresarial, povos e comunidades tradicionais: lutas simbólicas e negação dos direitos”. Raízes, 37 (2):27-41.:39), nem por isso “suas contradições e discordâncias” chegam a ponto de constituir barreiras intransponíveis, até mesmo “porque a união de todos é condição do exercício da dominação, do poder e da reprodução de classe”.
O agronegócio é um fenômeno político permeado por elevado nível de pragmatismo, o que pressupõe a existência de canais institucionais efetivos de interação do setor com o sistema político e, consequentemente, com o Estado. Marcello Brito (2021c BRITO, Marcello. 2021c. “Entrevista Programa 4 Ases”, em 04 nov. 2021. Disponível em: https://youtu.be/yFEmzA9-KuY . Acesso em 24/03/2022.
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), por exemplo, declara com naturalidade que “lá, dentro da Abag, nós temos quem apoia o Governo Bolsonaro, nós temos quem apoiava o Governo Lula... Como dizia o governo do PT, a Abag é o centro da inteligência do agronegócio, do tucanato brasileiro”, isto porque “nós não somos partidaristas, nós somos políticos”.21
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A pouca simpatia nutrida pelo Governo Bolsonaro não se devia unicamente ao radicalismo do seu discurso, mas também ao fato de que, como lembra Caio Pompeia (2021:124), “dezenas de organizações da agropecuária e das indústrias”, reunidas no IPA, “apoiavam maciçamente uma candidatura do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)”, partido historicamente aliado à burguesia comercial e industrial. O “tucanato” a que se refere Marcello Brito é uma referência ao símbolo deste partido, o tucano.
É neste contexto que a FPA desponta como uma instituição cuja finalidade consiste em articular o agronegócio à política profissional. Conforme o presidente da Aprosoja-MG, Fábio Meirelles Filho (2018MEIRELLES FILHO Fábio S. 2018. “As boas-vindas à modernidade do campo”. Agroanalysis, 38 (5):7-10.:8), o Instituto Pensar Agropecuária - IPA funciona como “um canal interlocutor entre as entidades produtoras rurais e os parlamentares que estão envolvidos na causa”, o que o leva a concluir que o “IPA e a FPA representam, além dos anseios dos produtores rurais e da agricultura brasileira, a sociedade como um todo”. Realmente, como afirma o deputado federal Alceu Moreira (2020a MOREIRA, Alceu. 2020a. “Entrevista CONAFER”, em 01 set. 2020. Disponível em: https://conafer.org.br/arquivos/4723 . Acesso em 04/04/2022.
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), a “FPA sempre trabalha no sentido de diminuir desigualdades que possam existir entre os produtores rurais” (observe-se como opera o discurso universalizante do setor, fundamentado na figura do produtor rural), o que faz dela, nas palavras de Regina Bruno (2021BRUNO, Regina. 2021. “Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA): campo de disputa entre ruralistas e petistas no Congresso Nacional”. Estudos Sociedade e Agricultura, 29 (2):461-502.:462), “uma das mais importantes instâncias políticas de organização e de representação de interesses patronais rurais e do agronegócio no Legislativo”.
Se esses canais institucionais representam as pautas do setor como um todo, isto não isenta a atuação focada em pautas específicas. As declarações do diretor executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão - Abrapa, Márcio Portocarrero (2022PORTOCARRERO, Márcio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 07 nov. 2022.), são paradigmáticas. Segundo afirma, a Abrapa também “não faz política partidária”, portanto, “jamais vamos fazer uma nota de repúdio, uma coisa assim, por entender que os nossos sócios são livres para escolher a bandeira política de cada um, nós somos bem neutros nesse ponto”. “Por outro lado”, prossegue, “a gente joga com muita força no Instituto Pensar [IPA], que nos representa, junto com outras entidades do Agro, é lá o nosso foco”, por isso “a gente mantém a Frente Parlamentar, a FPA, e ajuda os deputados na época que eles precisam, na campanha, nos estados onde nós temos interesse, para manter essa base de apoio”. Mais interessante ainda é que, “paralelo a isso, eu tenho uma equipe, eu tenho um funcionário meu que passa, independente do IPA e da FPA, eles passam o dia todo dentro do Congresso, com a pastinha debaixo do braço com as minhas agendas, agenda do algodão”.
O que se deve reter aqui não é apenas o modus operandi dessas instituições, isto é, a forma como se organizam e atuam politicamente, mas os efeitos, sobretudo simbólicos, desta atuação. Uma vez mais, as palavras de Márcio Portocarrero (2022PORTOCARRERO, Márcio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 07 nov. 2022.) são elucidativas. Segundo afirma, “a gente planeja isso com muito cuidado”, o que se reflete no fato de que “eu tenho gente aqui especializada para trabalhar com o Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Economia e a Agricultura eu faço, eu estive lá muito tempo e tenho uma boa relação”, embora com “os outros ministérios é a gente que fala a língua deles”. A proximidade com os órgãos governamentais estratégicos para o setor é tal que permite um domínio recíproco dos mesmos códigos de linguagem, o que não ocorre em outros ministérios cuja atuação é menos diretamente impactada pelo setor (e consequentemente menos impactante). Neste caso, é possível pressupor que as linguagens política e jurídico-econômica naturalmente se confundam, uma vez que constituídas e mobilizadas pelos mesmos grupos, o que sem dúvida contribui objetivamente para a efetivação da concertação política do setor.
Ao contrário de instituições patronais como a UDR, afeitas ao extremismo ideológico, o agronegócio é pragmático e moderado, conforme transparece nas declarações de Alceu Moreira (2020b MOREIRA, Alceu. 2020b. “Entrevista”. Revista Aviação Agrícola, 3 (4):24-33.:31), para quem o Governo Bolsonaro, porque afeito ao radicalismo de direita, não “tem sustentação ideológica”, ou seja, é fruto de um “movimento de rebeldia”, não de “construção de consenso nem de convergências”, algo fundamental, no sentido de Gramsci (2001GRAMSCI, Antonio. 2001. Cadernos do cárcere. Vol. 2. Trad. Carlos N. Coutinho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ), para a hegemonia do agronegócio. Assim, como o “rio, que enche pelas duas margens e sempre volta para o leito”, prossegue Moreira, a “política também vai voltar para o leito. Então vão aprender a fazer consensos, a conversar com as pessoas sobre o que concordamos. Nós estamos encontrando de novo um país que”, não por acaso, “vai tratar das coisas de maneira mais suave, que vai ver o cidadão que discorda como alguém que contribui, não como alguém que tem que ter raiva”. Logo, “com o amadurecimento da nossa democracia, indo para o centro, vamos ter um país muito mais conciliador, mais aglutinador do que é hoje”, ou seja, um país cujo cenário político é próspero para a sociedade como um todo, e para o agronegócio em particular.22 22 Em declaração crítica ao Governo Bolsonaro e aos grupos conservadores do campo que o cercavam, Marcello Brito (2021d), ex-presidente da Abag, fez uma interessante declaração que deixa entrever de maneira clara o que pensa e como atuam os setores de ponta do agronegócio: “A defesa do agro brasileiro se faz nas mesas de negociação internacionais, e não em grupo de WhatsApp ou na internet, onde ficam xingando, esculhambando europeu, americano, chinês. Não é assim que as coisas acontecem. O mercado internacional é um local para profissionais. E o que um grupo imenso de empresas tem feito, de forma silenciosa, sob a liderança da ministra Tereza Cristina, é fazer essa defesa no palco em que ela tem que ser feita, que é o palco do consumidor.”
Porque fundamentado na imagística cultural convencional, para o agronegócio importa menos a correspondência formal entre significante e significado do que a forma como ambos são usualmente conhecidos e reconhecidos, o que explica o seu aparente realismo. Um bom exemplo de como isto se reflete no campo político pode ser encontrado nas declarações de Luiz Inácio Lula da Silva (2022SILVA, Luís I. Lula da . 2022. “Entrevista Jornal Nacional”, em 25 agosto de 2022. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/10882697/ . Acesso em 26/08/2022.
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) durante as eleições presidenciais de 2022. Com o objetivo de conquistar o apoio do setor, o então candidato, cujo Partido dos Trabalhadores é um histórico apoiador dos movimentos sociais, procurou relativizar seus vínculos ideológicos ao mesmo tempo em que procurou convencer o setor da viabilidade de sua proposta. Conforme Lula, não só “não teve nenhum governo que tratou do agronegócio como nós tratamos”, como “aquele MST de trinta anos atrás não existe mais”, uma vez que sua agenda atual diria respeito menos à ocupação de propriedades do que à produção agropecuária, “o MST está fazendo uma coisa extraordinária, está cuidando de produzir”, afirma. Político experiente, Lula faz questão de demonstrar que domina o discurso do setor, ressaltando a produtividade como fator de justificação social: “para mim, o pequeno produtor rural, o médio produtor rural têm que viver pacificamente com o grande negócio, porque o Brasil tem possibilidade de ter os dois: um produz mais internamente, o outro produz mais externamente”.23
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Atento a esta entrevista, João Paulo Rodrigues (2023), membro da diretoria do MST, não só realçou o aspecto produtivo do movimento, como afirmou que as ocupações têm como finalidade a denúncia das propriedades improdutivas, razão pela qual “o setor produtivo deste país, que respeita as leis, pode ficar tranquilo”, embora não deixe de criticar o “produtivismo” “sem gente” característico do “agro”.
A construção e a assimilação política de um discurso que se pretende hegemônico não é fruto do acaso, mas de uma estratégia comunicacional meticulosamente elaborada. Não é sem motivos, portanto, que alguém como Alceu Moreira (2020b MOREIRA, Alceu. 2020b. “Entrevista”. Revista Aviação Agrícola, 3 (4):24-33.:28-29) chame a atenção dos seus pares para o fato, prejudicial em sua opinião, de que os produtores rurais ainda “não querem considerar a comunicação e a imagem como custo de produção”. Moreira deixa entrever de forma explícita como este discurso é elaborado: se o agronegócio sofrer uma crítica internacional, “é preciso identificar se essa crítica é científica, se é jornalística ou é comercial”; se for comercial, “está cotejando o mercado”, ou seja, “estão desvalorizando nosso produto para poder vender os deles”; se for científica, “temos então que botar os cientistas para fazer o debate, contrapor isso”; se ela for jornalística, então “vamos ter que ter uma agência de publicidade para poder chegar no ouvinte, no telespectador, no leitor dos jornais”. Sua conclusão não poderia ser outra: “é preciso eficiência e eficácia para mostrar o que é verdade sobre o Brasil do ponto de vista científico, do ponto de vista jornalístico e do ponto de vista comercial” (2020bMOREIRA, Alceu. 2020b. “Entrevista”. Revista Aviação Agrícola, 3 (4):24-33.:31).
Estas representações discursivas não se limitam às suas manifestações políticas ou simbólicas; elas se materializam também em poderosas instituições sindicais, classistas e políticas. Trata-se de um discurso pragmático, tendo em vista a sociedade brasileira como um todo, embora a partir da sua própria perspectiva de sociedade (e de verdade), cujas principais características consistem 1. na existência de uma imagística própria; 2. em uma concepção normativa acerca do meio rural brasileiro; 3. em uma visão combativa de seus críticos, opositores e concorrentes; e, por fim, 4. na elaboração, inclusive científica, de um discurso passível de ser mobilizado em diferentes campos pelos defensores e adeptos da sua imagística (o que nem sempre ocorre de forma consciente). Logo, o agronegócio constitui outro exemplo de que o “tipo utilitário no sentido clássico” de que fala Marshall Sahlins pode ser ressignificado por meio de uma transubstanciação simbólica: por trás do Estado mínimo e do livre mercado, está a “vocação” para a agricultura; por trás do alto investimento tecnológico, tem-se o sincretismo religioso que apela à entidade divina por boas chuvas e colheitas; por trás do vínculo formal entre empregador e empregado, há o reconhecimento e os vínculos de afeto e amizade tendo em comum as atividades agropecuárias.
Talvez seja por isso que Capiberibe e Bonilla (2015CAPIBERIBE, Artionka & BONILLA, Oiara. 2015. “A ocupação do Congresso: contra o que lutam os índios?”. Estudos Avançados, 29 (83):293-312.:301) se sintam motivadas a afirmar que o “agronegócio, representado pela bancada ruralista, é mais do que uma simples opção produtiva, é um modelo de sociedade”. Um modelo, ou projeto, que não é, contudo, uniforme e homogêneo, como tampouco é o próprio agronegócio brasileiro; mas que é capaz de convergir em vários aspectos substanciais para sua atual hegemonia. Afinal, que o “poder das elites ruralistas e do agronegócio diretamente representadas no Congresso Nacional não é absoluto”, como afirma Regina Bruno (2021BRUNO, Regina. 2021. “Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA): campo de disputa entre ruralistas e petistas no Congresso Nacional”. Estudos Sociedade e Agricultura, 29 (2):461-502.:494), é inegável. Mas teria como ser diferente? É justamente porque a dominação não é e nem poderia ser absoluta, que o agronegócio investe tão fortemente na constituição e na reiterada mobilização de um discurso que se pretende o discurso legítimo no e acerca do meio rural brasileiro.
Referências
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» https://youtu.be/r_fb32GEeIA
Notas
-
1
Ambos os movimentos parecem convergir com Marx e Engels (1998MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. 1998. A ideologia alemã. Trad. Luis C. Castro e Costa. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes .), segundo os quais o Estado serve como instrumento político que assegura a dominação da classe burguesa.
-
2
A Farsul e a Abraleite são instituições patronais de classe, a primeira voltada à defesa e representação do produtor rural de forma geral, enquanto a segunda se limita ao setor da pecuária de leite; a ABMRA, por sua vez, é uma instituição mais fortemente vinculada à agricultura empresarial, sobretudo no que se refere à sua autopromoção e marketing. Embora diferentes, convergem em pelo menos três pontos: empregam a categoria produtor rural, defendem o ordenamento jurídico e se veem como partes constitutivas do agronegócio brasileiro.
-
3
A cooptação da classe média rural pelo agronegócio é analisada em outro texto; o mesmo se aplica aos usos, às críticas e consequências geradas pelo emprego da categoria camponês por alguns intelectuais e movimentos sociais. Estes textos, em conjunto com o estudo da racionalização da agricultura e da relação do agronegócio com o Estado formam um conjunto de análises que abrange, no nosso entender, as principais faces do setor.
-
4
O apelo à segurança jurídica é uma constante junto ao setor. Assim, ao se manifestar em relação aos protestos ocorridos junto à sede da Aprosoja Brasil em 14 de outubro de 2021, ocasião em que a instituição teria sido alvo de protestos por parte da Via Campesina, movimento popular que atua frequentemente em parceria com o MST, Fábio Meirelles Filho, ex-presidente do Instituto Pensar Agropecuária - IPA, “principal e mais influente núcleo do agronegócio”, segundo Caio Pompeia (2022POMPEIA, Caio. 2022. “O agrobolsonarismo”. Revista Piauí, 184:24-27.:27), alegou ser “indispensável a observância do regime jurídico constitucional”, uma vez que o “direito de propriedade”, supostamente ferido, constitui “cláusula pétrea da Constituição Federal” (2018POMPEIA, Caio. 2022. “O agrobolsonarismo”. Revista Piauí, 184:24-27.:9-10); posicionamento semelhante pode ser encontrado junto ao ex-ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Marco Aurélio de Mello (2009MELLO, Marco A. M. F. 2009. “Dinheiro Rural”, em 01 nov. 2009. Disponível em: https://www.dinheirorural.com.br/o-mst-nao-esta-acima-da-lei/ . Acesso em 28/07/2022.
https://www.dinheirorural.com.br/o-mst-n... ), que ao ser questionado se o MST poderia atuar “acima da lei” a fim de modificá-la via pressão social, afirmou categoricamente que “fazer justiça com as próprias mãos, ainda que legítimo o interesse, não é justificável. Precisamos coibir esses movimentos quando eles se mostrarem transgressores das normas legais”. Para uma abordagem sociológica acerca da relação entre direito, direita ideológica e classes dominantes, cf. Bourdieu (2010BOURDIEU, Pierre. 2010. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 13ª ed. Rio de Janeiro: B. Brasil.:209-254). -
5
Esta racionalidade econômico-produtiva, vivenciada como uma ética, no sentido de Max Weber (2007WEBER, Max. 2007. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José M. M. Macedo. 1ª ed. 6ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras.), não é recente e tampouco exclusiva do agronegócio, haja vista que Francisco Dias Martins, ainda no início do século XX, já preconizava no seu ABC do Agricultor que convinha ao agricultor “ter o tempo todo ocupado em coisas úteis” (1921MARTINS, Francisco D. 1921. ABC do agricultor. 4ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.: 261), bem como que “a agricultura é para se ganhar dinheiro” (1921MARTINS, Francisco D. 1921. ABC do agricultor. 4ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.: 320, grifos no original). Pode-se chegar à mesma conclusão via negação, a exemplo do que fazem os representantes do MST (2023MST. “Episódio especial Internacionalizemos a Luta” (podcast, ep. 08). Disponível em: https://youtu.be/LEC2Rt6MrMc . Acesso em 15/04/2023.
https://youtu.be/LEC2Rt6MrMc... ) ao declararem que “os nossos inimigos no campo, eles são comuns no mundo inteiro, ou seja, a luta contra o agronegócio é uma luta do mundo inteiro porque é um modelo instaurado em todos os países do mundo”, o que é o mesmo que afirmar que se opor ao agronegócio equivale, em certa medida, a se opor ao modo de produção capitalista, do qual, de resto, o agronegócio é apenas um, dentre tantos fenômenos equivalentes. -
6
Embora Marcello Brito (2021bBRITO, Marcello. 2021b. “Entrevista Roda Viva”, em 30 ago. 2021. Disponível em: https://youtu.be/9YjP6rLlhi0 . Acesso em 24/03/2022.
https://youtu.be/9YjP6rLlhi0... ), ex-presidente da Abag, afirme que o agronegócio é hoje em grande parte financiado pelo setor privado, uma análise comparada da contratação de crédito rural privado e estatal certamente permitiria avançar no debate acerca das relações entre Estado e agronegócio. Algumas reflexões neste sentido podem ser encontradas em Mitidiero Jr. e Goldfarb (2021MITIDIERO JR., Marco A. & GOLDFARB, Yamila. 2021. O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. ABRA/Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil.) e Silva (2010SILVA, José G. 2010. Os desafios das agriculturas brasileiras. In.: José G. Gasques; José E. R. Vieira Filho & Zander Navarro. A agricultura brasileira: desempenho, desafios e perspectivas: Brasília, Ipea.). -
7
Em se tratando das categorias jurídico-econômicas, o atual cânone lexicográfico (dicionários Aurélio, Houaiss e Michaelis) não traz definições satisfatórias. As entradas para agricultor, trabalhador, produtor etc. limitam-se ao seu sentido amplo, além de não reconhecerem a partícula “rural”: assim, ao invés de se consultar empregado rural, trabalhador rural e produtor rural, encontrar-se-á apenas empregado, trabalhador e produtor etc.
-
8
Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, artigo terceiro, incisos I, II, III e IV, respectivamente. Esta lei foi posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017. Agricultor familiar é, dentre as categorias jurídico-econômicas, aquela que recebeu maior atenção crítica (a categoria camponês não pertence a este grupo), embora não seja necessariamente a mais difundida (produtor rural). Maiores informações sobre esta categoria podem ser consultadas em Caume (2009CAUME, David J. 2009. “Agricultura Familiar e Agronegócio: falsas antinomias”. REDES - Revista do Desenvolvimento Regional, 14 (1):26-44.), Garcia Jr. (2003GARCIA JR., Afrânio. 2003. “A Sociologia rural no Brasil: entre escravos do passado e parceiros do futuro”. Sociologias, 5 (10):154-189.) e, sobretudo, Picolotto (2014PICOLOTTO, Everton L. 2014. “Os atores da construção da categoria agricultura familiar no Brasil”. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52 (s.1):S063-S084., 2018PICOLOTTO, Everton L. 2018. “Pluralidade sindical no campo? Agricultores familiares e assalariados rurais em um cenário de disputas”. Lua Nova, 104:201-238.).
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Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973. A Lei n° 4.214, de 2 de março de 1963 (revogada pela lei anterior) definia, no seu artigo segundo, trabalhador rural como “toda pessoa física que presta serviços a empregador rural, em propriedade rural ou prédio rústico, mediante salário pago em dinheiro ou in natura, ou parte in natura e parte em dinheiro”. Distantes em apenas um decênio, a comparação sugere que não houve alterações conceituais significativas, salvo que a categoria empregado rural é preferível à de trabalhador rural.
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Conforme o Decreto Legislativo nº 5, de 1993. A definição de trabalhador rural consta no artigo segundo da Convenção nº 141 da Organização Internacional do Trabalho - OIT.
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Decreto-lei n° 1.166, de 15 de abril de 1971, ainda em vigor. A definição encontra-se no art. 1°, inciso I, alíneas a e b, respectivamente, cuja redação foi atualizada pela Lei nº 9.701, de 17 de novembro de 1998.
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Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, art. 3° e 4°, respectivamente.
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Decreto-lei n° 1.166, de 15 de abril de 1971, ainda em vigor. A definição encontra-se no art. 1°, inciso II, alíneas a, b e c, respectivamente, cuja redação foi atualizada pela Lei nº 9.701, de 17 de novembro de 1998.
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Projeto de Lei do Senado n° 325, de 2006 (arquivado ao final da legislatura, em 2011).
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A análise histórica dos Censos Agrícolas, como eram chamados entre 1920 e 1960, evidencia que em seus primórdios a categoria usual era proprietário. É somente a partir de 1970 que o produtor passou a ser a categoria oficial, o que demonstra uma continuidade entre as categorias representativas dos setores dominantes. Considerando que estas categorias normatizam as interações entre Estado e sociedade civil, não é das menores constatações que a categoria proprietário foi precedida por outras de natureza equivalente, sendo a primeira delas senhor ou senhor de engenho e, entre os séculos XVIII e XIX, fazendeiro.
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A análise comparada das constituições e das leis de terras (ou suas equivalentes) dos membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa - CPLP demonstra que a categoria produtor rural pode ser encontrada apenas no Brasil, assim como a categoria camponês se faz presente apenas nas legislações de Angola e Moçambique. Se o raciocínio adotado ao longo deste texto estiver correto, pode-se dizer então que é muito mais difícil oficializar a imagística camponesa no Brasil do que nestes países.
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O agronegócio se viu igualmente prejudicado pela homenagem prestada pelo Governo Bolsonaro ao Dia do Agricultor (28 de julho) de 2021, ao ter divulgado, por algumas horas, a imagem de um indivíduo armado, em um claro sinal de intimidação aos movimentos sociais. A imagem e sua imagística, que representam os setores tradicionais ligados à UDR, teriam levado Marcello Brito (2021aBRITO, Marcello. 2021a. “Entrevista Jornal da CNN”, em 28 jul. 2021. Disponível em: https://youtu.be/NLrmIA4Hv_o . Acesso em 10/04/2023.
https://youtu.be/NLrmIA4Hv_o... ) a afirmar que a referida homenagem “foi um desserviço à imagem do agronegócio” brasileiro. Comparado aos setores tracionais da agricultura patronal, o agronegócio é menos radical, mais moderado e, consequentemente, afeito ao diálogo e às coalizões políticas. -
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A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA Brasil, a fim de supervalorizar a participação do agronegócio exportador de matérias-primas no PIB, promove um cálculo paralelo ao oficial (cf. CNA Brasil, 2018CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL - CNA BRASIL. 2018. O futuro é agro: 2018-2030. Brasília: CNA Brasil.). Por outro lado, Mitidiero Jr. e Goldfarb (2021MITIDIERO JR., Marco A. & GOLDFARB, Yamila. 2021. O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. ABRA/Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil.) afirmam, com base nas estatísticas oficiais, que é ínfima a participação do agronegócio no total do PIB brasileiro, comparado aos setores da indústria e serviços.
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Diferentemente do caso da soja, a produção de algodão, segundo Márcio Portocarrero (2022PORTOCARRERO, Márcio. 2022. “Entrevista concedida ao autor”. Brasília, 07 nov. 2022.), diretor executivo da Abrapa, é suficiente para abastecer a indústria nacional, o que permite exportar os excedentes.
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Wendell Assis (2014ASSIS, Wendell F. 2014. “O moderno arcaísmo nacional: investimento estrangeiro direto e expropriação territorial no agronegócio canavieiro”. Rev. Econ. Sociol. Rural, 52 (2):285-302.) como que equaciona o que argumenta Caume (2009CAUME, David J. 2009. “Agricultura Familiar e Agronegócio: falsas antinomias”. REDES - Revista do Desenvolvimento Regional, 14 (1):26-44.) com o que argumentam os movimentos sociais ao usar a expressão paradoxal “moderno arcaísmo”, uma referência às práticas típicas da agricultura empresarial adotadas em propriedades altamente produtivas, mas que não alteraram sua estrutura fundiária tradicional.
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A pouca simpatia nutrida pelo Governo Bolsonaro não se devia unicamente ao radicalismo do seu discurso, mas também ao fato de que, como lembra Caio Pompeia (2021POMPEIA, Caio. 2021. “A reascensão da extrema direita entre representações políticas dos sistemas alimentares”. Revista Antropolítica , (53):115-139.:124), “dezenas de organizações da agropecuária e das indústrias”, reunidas no IPA, “apoiavam maciçamente uma candidatura do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)”, partido historicamente aliado à burguesia comercial e industrial. O “tucanato” a que se refere Marcello Brito é uma referência ao símbolo deste partido, o tucano.
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Em declaração crítica ao Governo Bolsonaro e aos grupos conservadores do campo que o cercavam, Marcello Brito (2021dBRITO, Marcello. 2021d. “Entrevista Dinheiro Rural”, em 30 nov. 2021. Disponível em: https://www.dinheirorural.com.br/a-defesa-do-agro-se-faz-nas-mesas-de-negociacao/ . Acesso em 24/03/2022.
https://www.dinheirorural.com.br/a-defes... ), ex-presidente da Abag, fez uma interessante declaração que deixa entrever de maneira clara o que pensa e como atuam os setores de ponta do agronegócio: “A defesa do agro brasileiro se faz nas mesas de negociação internacionais, e não em grupo de WhatsApp ou na internet, onde ficam xingando, esculhambando europeu, americano, chinês. Não é assim que as coisas acontecem. O mercado internacional é um local para profissionais. E o que um grupo imenso de empresas tem feito, de forma silenciosa, sob a liderança da ministra Tereza Cristina, é fazer essa defesa no palco em que ela tem que ser feita, que é o palco do consumidor.” -
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Atento a esta entrevista, João Paulo Rodrigues (2023RODRIGUES, João Paulo. “Entrevista concedida a Reinaldo Azevedo”, em 24 abr. 2023. Disponível em: https://youtu.be/YYBYUvy5VoA . Acesso em 25/04/2023.
https://youtu.be/YYBYUvy5VoA... ), membro da diretoria do MST, não só realçou o aspecto produtivo do movimento, como afirmou que as ocupações têm como finalidade a denúncia das propriedades improdutivas, razão pela qual “o setor produtivo deste país, que respeita as leis, pode ficar tranquilo”, embora não deixe de criticar o “produtivismo” “sem gente” característico do “agro”.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
08 Jul 2022 -
Aceito
22 Set 2023