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Comparações, sínteses e extensões: a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça como metadados digitais 1 1 Este artigo apresenta desdobramentos analíticos de minha pesquisa de tese (Munhoz 2022), defendida em setembro de 2022 no PPGAS/UFSCar, com financiamento da Fapesp (Processo 2017/02467-4). A pesquisa pós-doutoral que desenvolvo atualmente (Processo Fapesp 2023/13441-7) é dedicada ao exame aprofundado dos usos dainteligência artificialno Superior Tribunal de Justiça e sua relação com ademocratizaçãoda justiça. Agradeço a Jorge Villela pelas incontáveis e preciosas contribuições ao desenvolvimento da tese e à construção deste texto. Agradeço, ainda, aos servidores alocados na Secretaria de Jurisprudência do STJ, em especial a Barbara Brito de Almeida, peloacessoao arquivo da pesquisa e pela rica interlocução.

Comparisons, syntheses and extensions: the jurisprudence of the Brazilian Superior Court of Justice as digital metadata

Comparaciones, síntesis y extensiones: la jurisprudencia del de Brasil como metadatos digitales

Resumo

Este artigo contribui para os debates acerca dos conceitos de acesso e de democratização do sistema de justiça por meio da atenção a circuitos técnico-burocráticos ainda pouco inspecionados pela antropologia interessada no direito: os que, depois de promulgadas as sentenças, se encarregam de sua organização e divulgação em ferramentas de busca digitais. Pelo exame de documentos institucionais do Superior Tribunal de Justiça (STJ), descrevo a jurisprudência não como o resultado direto dos julgamentos de tribunais superiores, mas como o produto de um complexo trabalho técnico-documental, realizado por analistas humanos e aplicativos computacionais, que recorre a comparações, sínteses e extensões de documentos abrigados em uma volumosa base de dados. Demonstro como a gestão desta base e a confecção de “representações digitais” das sentenças promulgadas intrincam-se ao conceito de uniformização, central às atividades do Tribunal. Argumento, enfim, que o apelo democrático do STJ, a despeito das numerosas cancelas que cerceiam suas entradas, ancora-se contemporaneamente na disponibilização cuidadosa de seus enunciados a todos os usuários que tenham acesso à internet.

Palavras-chave:
Jurisprudência; Acesso; Base de dados; Superior Tribunal de Justiça; Big data

Abstract

This article contributes to the debates about the concepts of access and democratization of the justice system through attention to technical-bureaucratic circuits still little inspected by the anthropology interested in law: those that, after the sentences have been promulgated, are in charge of their organization and disclosure in digital search engines. By examining institutional documents from the Superior Court of Justice (STJ), I describe jurisprudence not as the direct result of judgments by superior courts but as the product of complex technical-documentary work carried out by human analysts and computational applications, which uses comparisons, syntheses and extensions of documents housed in a voluminous database. I demonstrate how the management of this database and the making of “digital representations” of the enacted sentences are intricate with the concept of standardization, central to the Court activities. Finally, I argue that the democratic appeal of the STJ, despite the numerous barriers restricting its entrances, is contemporarily anchored in the careful availability of its statements to all users who have access to the internet.

Keywords:
Jurisprudence; Access; Data base; Superior Court of Justice; Big data

Resumen

Este artículo contribuye a los debates sobre los conceptos de acceso y democratización del sistema de justicia a través de la atención a los circuitos técnico-burocráticos aún poco inspeccionados por la antropología interesada en el derecho: quienes, luego de dictadas las sentencias, se encargan de su organización y divulgación en buscadores digitales. Al examinar documentos institucionales del Superior Tribunal de Justicia (STJ), describo la jurisprudencia no como el resultado directo de sentencias de tribunales superiores, sino como el producto de un complejo trabajo técnico-documental, realizado por analistas humanos y aplicaciones computacionales, que utiliza a comparaciones, síntesis y ampliaciones de documentos alojados en una voluminosa base de datos. Demuestro cómo el manejo de esta base de datos y la elaboración de “representaciones digitales” de las sentencias dictadas están intrincados con el concepto de estandarización, que es central en las actividades de la Corte. Finalmente, argumento que el atractivo democrático del STJ, a pesar de las numerosas barreras que restringen sus entradas, está anclado contemporáneamente en la cuidadosa disponibilidad de sus declaraciones a todos los usuarios que tienen acceso a internet.

Palabras clave:
Jurisprudencia; Acceso; Base de datos; Tribunal Superior de Justicia; Big data

Modos de fazer: a jurisprudência do “Tribunal Cidadão”

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), “Tribunal da Cidadania”, foi fundado em 1989 por determinação constitucional (Brasil 1988BRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, seção 1, p. 1, Brasília, DF, 5/10/1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm . Acesso em 20/02/2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Con...
: arts. 92, 104 e 105) como um dos órgãos máximos do sistema de justiça brasileiro. Substituiu, juntamente com os Tribunais Regionais Federais (TRFs), o antigo Tribunal Federal de Recursos (TFR), que centralizava os circuitos de apelações processuais no Brasil. Encarregado de uniformizar a interpretação da legislação federal a partir, principalmente, dos recursos processuais que o interpelam, o STJ justifica sua alcunha pela potencial influência de suas decisões “em todos os aspectos das vidas cotidianas” dos brasileiros, mesmo daqueles, a princípio, distantes de seus arbítrios.2 2 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Historia. Acesso em 20/02/2023.

Desde a origem, o STJ apelou à especialização como um dos caminhos para que sua ambição de democratização do sistema de justiça nacional pudesse se concretizar. A disposição dos 33 ministros em três seções voltadas exclusivamente ao direito público, privado ou penal almeja agilizar a análise dos processos e contribuir para a padronização de seus resultados. Há, ainda, mecanismos previstos no regimento interno do Tribunal que impelem à uniformização dos posicionamentos dos magistrados, intimando-os a dirimirem suas divergências em enunciados colegiados consensuais (Brasil 2021BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. 2021. Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça / organizado pelo Gabinete do Ministro Diretor da Revista. Brasília, DF: STJ.: art. 127).3 3 É verdade que muitas etnografias se dedicaram a demonstrar como os uníssonos criados pelo direito (em especial, mas não exclusivamente, nos tribunais) são fundamentalmente provisórios, abertos a negociações, dependentes de interpretações que se assomam até o limite do que pode ser considerado incompatível, paradoxal. Os tribunais são equipados com diversos instrumentos técnicos, sejam eles processuais, administrativos ou tecnológicos, que funcionam como “meios para determinados fins”, tal como os descreve Annelise Riles (2004). Os enunciados, em trânsito, bem como os papéis, em circulação, constroem a verdade jurídica que não poderia ser absolutamente impensada de antemão nem, tampouco, incontornavelmente presumível de partida. Um dispositivo - seja ele uma sentença no caso das primeiras instâncias ou um Acórdão, em alguns dos casos de cortes superiores - é sedimentação provisória e, ao mesmo tempo, absoluta. É à cristalização sob a forma de um dispositivo que se prestam os instrumentos técnicos variados; ela é o meio - materializado - para os fins reguladores econômicos e sociais aos quais se dedica o direito (Riles 2004). Finalmente, argumenta-se que a possibilidade de circulação digital dos processos favorece a melhor comunicação entre seus setores, agiliza os trâmites administrativos e aperfeiçoa sua prestação jurisdicional.4 4 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2014/2014-10-06_10-02_Peticao-eletronica-obrigatoria-comemora-um-ano-com-bons-resultados.aspx. Acesso em 20/02/2023.

Além do zelo pelos fluxos e pelas velocidades dos processos no interior do STJ, a democratização que apregoa também exige uma atenção permanente ao funcionamento de seus portões de entrada. Cancelas legais excluem do campo de visualização e de intervenção do STJ todos os processos que não tratem da legislação federal infraconstitucional (Brasil 1988BRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, seção 1, p. 1, Brasília, DF, 5/10/1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm . Acesso em 20/02/2022.
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: art. 105) e todos os que exijam a reavaliação das evidências fenomênicas (Brasil 1990BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. 1990. Súmula n° 7. A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Diário de Justiça, Brasília, DF.). Também devem ser barrados os processos que reclamem a dispendiosa revisão de teses jurídicas já enfrentadas e sedimentadas pelo Tribunal.5 5 Exemplos dessas barreiras, erigidas pelo novo Código de Processo Civil em nome da celeridade do sistema judicial, são as Súmulas e os precedentes vinculantes (subdivididos em Incidentes de Assunção de Competência e Recursos Repetitivos) (Brasil 2015: art. 926, 927, 928). Trata-se de um conjunto de inovações que determinam a observância obrigatória de alguns enunciados do STJ por qualquer tribunal em todo o país. Quando, sob a forma de Súmulas ou precedentes vinculantes, os enunciados do STJ não apenas orientaram futuros posicionamentos que tratem de questões jurídicas semelhantes, mas os conduzem imperativamente. Um processo pode ser barrado antes mesmo de ser apreciado pelos ministros do STJ caso exija a reafirmação de teses jurídicas já sedimentadas sob essas modalidades enunciativas. Funcionam, portanto, como importantes sintetizadores e aceleradores processuais. Como corte superior que é, o STJ deve limitar sua atenção às questões de direito, ou seja, àquilo que, do conflito analisado, extrapola os interesses particulares dos recorrentes e recorridos, importando a toda a comunidade jurídica. O Tribunal argumenta que, ao garantir que rígidas barreiras deem passagem apenas a casos inéditos e potencialmente desindividualizáveis, seus enunciados podem reverberar com maior eficácia, tornando-se expansíveis e replicáveis em todo o sistema de justiça brasileiro. Para ser democrático, portanto, o STJ precisa, em alguma medida, fazer-se inacessível.

A bibliografia antropológica interessada nas instituições do sistema de justiça, atenta às barreiras que conformam o direito,6 6 Embora o artigo proponha deslocar o tema do acesso examinando-o pelos portões de saída do Tribunal, é preciso enfatizar que a condução e a manutenção de um processo aos Tribunais Superiores são extremamente exclusivistas. Às barreiras processuais que descrevo brevemente neste artigo somam-se outras, muito poderosas, que delimitam o acesso diferencial ao sistema de justiça. Um corpus importante de trabalhos clássicos e etnografias contemporâneas dedica-se a examinar como relações étnicas, de classe e de gênero impactam decisivamente as possibilidades de apelo ao modo judicial de resolução de conflitos (Donzelot 1986; Bourdieu 1996; Farge e Foucault 1982; Herzfeld 2016; Kant de Lima 1999; Zarias 2008; Freire 2015; Vianna & Facundo 2015). também se dedicou vastamente à materialidade e às operações técnicas que tornam possíveis as enunciações jurídicas e judiciais, em suas mais variadas manifestações (Corrêa 1975CORRÊA, Mariza. 1975. Os atos e os autos: representações jurídicas de papéis sexuais. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas., 1983CORRÊA, Mariza. 1983. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal.; Riles 2000RILES, Annelise. 2000. The network inside out. Ann Arbor: University of Michigan Press .; Digiovanni 2003DIGIOVANNI, Rosangela. 2003. Rasuras nos álbuns de família. Um estudo sobre separações conjugais em processos jurídicos. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade de Campinas.; Becker 2008BECKER, Simone. 2008. Dormientibus non socurrit jus! O Direito não socorre os que dormem. Um olhar antropológico sobre ritos processuais judiciais (envolvendo o pátrio poder/poder familiar) e a produção de suas verdades. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.; Bevilaqua 2010BEVILAQUA, Ciméa. 2010. “Sobre a fabricação contextual de pessoas e coisas: as técnicas jurídicas e o estatuto do ser humano após a morte”. Mana, 16 (1):7-29., 2019BEVILAQUA, Ciméa. 2019. “Pessoas não humanas: Sandra, Cecília e a emergência de novas formas de existência jurídica”. Mana , 25 (10):28-71.; Schritzmeyer 2012SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome., 2020SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2020. “Na dúvida, foi moralmente condenada ao invés de legalmente absolvida: etnografia de um julgamento pelo Tribunal do Júri de São Paulo, Brasil”. Revista de Antropologia, 63 (3):1-28.; Rifiotis 2011RIFIOTIS, Theophilos. 2011. “Parricidio: padres y hijos em el tribunal de justicia de Florianopolis (Santa Catarina, Brasil)”. In: T. Rifiotis & N. Castelnuevo (orgs.), Antropología, violência y justicia. Buenos Aires: Editora Antropofagia.; Ferreira 2015FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. 2015. Pessoas desaparecidas. Uma etnografia para muitas ausências. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Andrade 2018ANDRADE, Fabiana de. 2018. “Enquadrar narrativas, produzir crimes. Noções de família no fazer policial de uma delegacia de defesa da mulher”. In: A. C. Marques & N. Leal (orgs.), Alquimias do Parentesco: casas, gentes, papéis, territórios. Rio de Janeiro: Gramma/Terceiro Nome.; Lowenkron 2012, 2013LOWENKRON, Laura. 2013. “Da materialidade dos corpos à materialidade do crime: à materialização da pornografia infantil em investigações policiais”. Mana , 19:505-528.; Nadai 2017NADAI, Larissa. 2017. “Entre histórias e ‘históricos’: o boletim de ocorrência como técnica de enquadramento de crimes de estupro e atentado violento ao pudor”. Insurgência: Revista de Direitos e Movimentos Sociais, 3:343-381.; Angelo e Cardoso de Oliveira 2021ANGELO, Jordi Othon & CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. 2021. “Entre Documentos, Inquirições e Inspeções: A Trama da Produção de Provas em Processos de Aposentadoria Rural nos Juizados Especiais Federais”.Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, 51:162-187.). Os procedimentos que transliteram testemunhos em relatórios, inquéritos em processos, processos em sentenças sempre envolvem cuidadosos jogos de metáforas, transportes de sentidos (Latour 2019LATOUR, Bruno. 2019. A Fabricação do Direito. Um estudo de etnologia jurídica. São Paulo: Editora Unesp.; Lewandowski 2017 a LEWANDOWSKI, Andressa. 2017a. O Direito em última instância: uma etnografia do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris.), práticas de experimentação e criatividade controladas (Lewandowski 2017bLEWANDOWSKI, Andressa. 2017b. “O medo do precedente: as técnicas de decisão no STF”.Campos, 18 (1-2):155-172.), mas também significativas compactações. Como descreve Annelise Riles (2006RILES, Annelise (org.). 2006. Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: The University of Chicago Press. ), é preciso submeter o mundo, sua vastidão e sua heterogeneidade, ao hermetismo da forma-documento e aos protocolos que o delineiam. No caso do STJ, os processos que conseguem ser admitidos, superando seus abundantes dispositivos excludentes, passam por uma série de comparações que os convertem em Acórdãos, manifestações das decisões colegiadas ministeriais. Ele só pode se posicionar agindo no interior de um campo específico de comparabilidade, que envolve o cotejo das petições que recebe, queixosas de sentenças promulgadas em instâncias inferiores, com a legislação infraconstitucional e a jurisprudência já consolidada.

Neste artigo, no entanto, desvio-me para abordar os já bastante percorridos temas do acesso e da comparação a partir de uma entrada original. Argumento que, no STJ, as exigências contraditórias que, por um lado, atrelam a possibilidade de funcionamento do Tribunal às suas barreiras excludentes e, por outro, elegem o acesso como um dos principais índices da democratização do sistema de justiça se resolvem em um setor técnico-administrativo distante dos portões de admissão e dos gabinetes do STJ: no setor encarregado de armazenar, organizar e disponibilizar digitalmente o que diz o Tribunal. Pelo exame de um vasto arquivo documental, inspeciono o conceito de democratização não a partir do que o STJ se autoriza a absorver, mas do que se empenha em expelir: a sua jurisprudência, uniforme, apta a influenciar, qualificada a convencer e a acelerar os circuitos do próprio STJ e de outros tribunais brasileiros. Desse modo, assim como Tone Walford e Vanessa Perin nos artigos que compõem este dossiê, reclamo ser preciso e rentável nos voltarmos aos processos que antecedem e que tornam possível que dados sejam desenraizados, tenham multiplicadas as suas potencialidades e possam, enfim, ser postos em circulação.

Voltando-me aos circuitos que tornam os enunciados do STJ acessíveis, também desloco o tema da comparação. As últimas seções do artigo são dedicadas ao tratamento técnico-documental realizado conjuntamente por analistas humanos e aplicativos computacionais na Secretaria de Jurisprudência (SJR). Para garantir aos usuários com acesso à internet a possibilidade de manejo autônomo da jurisprudência e, assim, assegurar que ela se preste às comparações que impactem “todos os aspectos cotidianos” das vidas dos brasileiros, dilatando-se para além dos conflitos particulares que dão origem a um Acórdão, é imprescindível que outro campo de comparabilidade seja delineado por ações humanas e maquínicas, que recorrem a cancelas excludentes, mas também promovem vinculações originais entre documentos e trechos de documentos confeccionados e postos em circulação digitalmente.

O desejo de influência, constitutivo do STJ, não pode se efetivar exclusivamente pela subordinação de relações que povoam o “mundo dos fatos” à forma muito particular das teses jurídicas. A este procedimento fundamental, acrescentam-se e articulam-se outros, em “uma cascata de inscrições cada vez mais simplificadas [...] muito facilitada por seu tratamento homogêneo como unidades binárias em e por computadores” (Latour 1986LATOUR, Bruno. 1986. “Visualization and Cognition: thinking with eyed and hands”. In: Kuklick, Henrika (ed.), Knowledge and Society. Studies in the Sociology of Culture Pasta and Present: A Research Annual/1986. Jai Press, 6:1-40.:16-17). O que o STJ diz só se torna, de fato, jurisprudência se submetido a transformações digitais que garantem que a mobilidade que qualifica os processos (Bevilaqua 2020BEVILAQUA, Ciméa. 2020. “Burocracia, criatividade e discernimento: lições de uma cafeteira desaparecida”. Revista de Antropologia, 63 (3):1-21.) não cesse tão logo promulgadas as sentenças.

Demonstro como a paixão da SJR pelo acesso impele a sintetizar quantidades cada vez mais volumosas de dados em “representações gráficas digitais”, que recebem o nome de Espelhos do Acórdão. São estas representações, que se fazem ver no site do STJ quando buscamos por jurisprudência, e são elas que tornam possíveis, inclusive, as comparações conduzidas pelos ministros na confecção de suas futuras sentenças. Sustento, enfim, que sem nos voltarmos a estes modos específicos da gestão dos dados nos portões de saída do Tribunal, às comparações, sínteses e extensões que aspiram torná-lo democrático, não poderemos compreender, afinal, como opera o sistema de justiça brasileiro.

Modos de pesquisar: do balcão à página “Jurisprudência do STJ”

Criada no final de 1994 a partir de uma subsecretaria vinculada à antiga Secretaria de Informática do STJ, a SJR organiza-se, desde sua origem, em duas frentes de atividades fundamentais: análise e pesquisa. O significado de pesquisa e os métodos de análise transformaram-se significativamente ao longo dos anos, como veremos a seguir. Não obstante, é a partir dessa dupla função que a SJR tem descrito nos últimos trinta anos suas atribuições “coadjuvantes” na prestação jurisdicional brasileira (Brasil 2001BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2001. Relatório Anual de Atividades - 2000. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:6). Ela reúne cerca de 60 funcionários - todos eles bacharéis em direito e cada um com ao menos um computador - para que, “munid[os] das informações jurisprudenciais proferidas pela Corte e devidamente publicadas”, realizem sua “análise temática, armazenamento e organização em base de dados”, facilitando “a recuperação e a divulgação de tais julgados (Brasil 2020BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2020. Relatório Anual 2019. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:3).

Contemporaneamente, os objetivos que justificam sua existência manifestam-se efetivamente na alimentação da página “Jurisprudência do STJ”, abrigada no site do Tribunal, que será descrita nas seções a seguir. Mas antes da consolidação das buscas digitais pela internet, a Secretaria de Jurisprudência encarregava-se de atender, em um balcão, às demandas individuais de ministros, advogados e cidadãos interessados em consultar o que entendia o STJ a respeito de determinado tema já enfrentado pelo Tribunal. Com a expertise exclusiva que a autorizava a manejar os arquivos de Acórdãos e a selecionar o que pudesse haver de relevante à cada demanda, a Seção de Pesquisa da Secretaria era descrita nos Relatórios da década de 1990 como “o espelho da SJR”, encarregada de “apresenta[r] aos usuários o produto final de todo o trabalho realizado” (Brasil 1997BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1997. Relatório Anual de Atividades - 1996. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:23). Sublinho: a Seção era, ela mesma, “espelho”, e tornava visível o “produto” da SJR.

Em 1990, a equipe locada nesta Seção realizava cerca de 15 pesquisas presenciais diariamente (Brasil 1991BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Análise de Jurisprudência. 1991. Relatório das Atividades de 1990. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça.:5), número que se manteve em crescimento contínuo, mas discreto, ao longo de toda a década.7 7 A média diária de pesquisas passou de 31 (Brasil 1992:9) a 73 (Brasil 1997:38) em cinco anos. Ao longo de 1997, houve um total de 16.885 solicitações de pesquisas à SJR (Brasil 1998:33). Em 1998, no entanto, as solicitações e os envios de pesquisas por fax já eram descritos como alternativa mais eficaz e democrática no atendimento a usuários de outras regiões do país e do exterior (Brasil 1999BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1999. Relatório Anual de Atividades - 1998. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:17). Neste mesmo ano, o relatório anual das atividades desenvolvidas pela SJR registrava pela primeira vez, e enaltecia enfaticamente, as estatísticas a respeito do uso de e-mails na comunicação entre usuários e pesquisadores da SJR (Brasil 1999BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1999. Relatório Anual de Atividades - 1998. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:20). Os atendimentos às solicitações de pesquisa em menos de 24 horas, com considerável “agilidade e precisão”, anunciavam uma nova era, de efetiva “democratização do serviço de pesquisa de jurisprudência” (Brasil 2000BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2000. Relatório Anual de Atividades - 1999. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:4). A partir desse momento, tornou-se frequente, ano a ano, o registro de crescimentos “vertiginosos” nas solicitações de usuários digitais (Brasil 2001BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2001. Relatório Anual de Atividades - 2000. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:27). Em 2000, por exemplo, foram computadas 5.920 demandas respondidas por e-mail. Embora entusiástico, o relatório da SJR alertava que o número limitado de analistas já não era suficiente para responder à significativa mudança na escala das pesquisas. Alegava que a qualidade do serviço precisaria ser garantida, entre outras coisas, pela “melhoria constante dos Sistemas de Informática” (Brasil 2002BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2002. Relatório Anual de Atividades - 2001. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:6).

Em 2006, registrou-se pela primeira vez uma queda significativa das solicitações de pesquisa tanto no balcão quanto pelo e-mail da SJR. O Relatório daquele ano avaliou esses números como “resultados negativos”, mas, ao mesmo tempo, admitiu tratar-se de uma resposta esperada às mudanças promovidas pela própria Secretaria. Desde o início dos anos 2000, treinamentos de pesquisas digitais oferecidos aos gabinetes e, principalmente, o aprimoramento da página de buscas no site do STJ (Brasil 2007BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2007. Relatório Anual de Atividades - 2006. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:27), até então bastante rudimentar, apresentavam-se como parte da nova pedagogia de autonomização dos usuários. Aos poucos, o trabalho dos experts dos arquivos desdobrou-se na SJR: caberia a eles conhecer suficientemente a base para compactá-la e torná-la funcional, mas, simultaneamente, deveriam se empenhar em tornar os usuários capazes de acessar e manejar, por si mesmos, a jurisprudência do Tribunal.

Foram pouco mais de dez anos entre a inauguração de um serviço de pesquisa que dispensava a presença física do usuário no Superior Tribunal de Justiça e o encerramento completo dos atendimentos customizados, fossem eles os realizados no balcão, por fax ou por e-mail. Em 2010, a presidência do Tribunal determinou a extinção definitiva do atendimento direto aos usuários externos, suspendendo toda a possibilidade de comunicação com os analistas da SJR. O acesso aos “espelhos” e aos “produtos” da SJR passou a vindicar, obrigatoriamente, a mediação de uma interface digital. Em setembro de 2011, até mesmo a ferramenta “Fale Conosco”, disponível na página de pesquisa por jurisprudência, restringiu-se ao recebimento de sugestões e ao esclarecimento de dúvidas. Acessando-a, os usuários passaram a encontrar, em destaque, o alerta de que “pesquisas de jurisprudência deve[riam] ser realizadas exclusivamente na página de Jurisprudência na internet” (Brasil 2012BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2012. Relatório de Gestão 2011. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:18) (Figura 1).

Figura 1 -
A página Jurisprudência do STJ

Já em 2017, o manual que orientava o trabalho da SJR (Brasil 2017b:62) determinava enfaticamente que

[...] o servidor, em caso de solicitações externas, deverá, com urbanidade e educação, informar que não atendemos ao público externo e, caso haja interesse do solicitante, orientá-lo a realizar a pesquisa na página de jurisprudência do tribunal [...]. Atenção: trata-se de orientação superficial sobre como realizar a pesquisa na página do Tribunal fazendo uso dos operadores. O servidor acha-se terminantemente proibido de, a pretexto de orientar, acabar realizando a pesquisa (Brasil 2017bBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. 2017b. Manual do Analista. Seção de Jurisprudência Temática (STEMA). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:62).

Atendimentos esporádicos aos gabinetes e a outros setores do STJ têm sido descritos, desde então, como “atividades extraordinárias”, as únicas pesquisas customizadas ainda assentidas. Quando estive no STJ, em 2018, pude apreender muito rapidamente o alcance deste impedimento. Conversava com a responsável pela Secretaria a respeito da página de pesquisa e dos filtros que poderiam ser mais efetivos em minhas buscas, ainda muito tateantes. Depois de me apresentar pacientemente todas as funcionalidades dos sites, bem como os tutoriais de pesquisa e os materiais que descreviam os Espelhos do Acórdão, esclareceu-me que poderia me explicar tudo o que fosse preciso, quantas vezes fossem necessárias, mas redigir um “critério de pesquisa” exclusivamente para mim, com a garantia técnica de que tudo o que eu tinha a intenção de resgatar me seria oferecido pela ferramenta de buscas, já não era mais possível.

A democratização do acesso à jurisprudência já não está, portanto, implicada no contato (mesmo que digitalmente mediado) entre dois indivíduos localizáveis e cognoscíveis. O usuário, aos poucos, tornou-se intangível. Uma abstração decorrente de comportamentos estatisticamente presumíveis em um ambiente virtual. Os analistas, por outro lado, foram delegados a uma nova tarefa elementar: não mais a de triarem e organizarem cuidadosamente, caso a caso, a jurisprudência que deveria ser disponibilizada aos requisitantes, mas a de formatarem adequadamente toda a jurisprudência do STJ em uma base digital que pudesse ser manejada sem intercorrências por usuários autônomos, leigos e distantes. Construí-la de modo a assegurar, de antemão, resultados “precisos” e “ágeis”. Mais do que isso, tornaram-se responsáveis por garantir que a autonomia dos usuários não se coloque como um obstáculo às ambições uniformizadoras do STJ.

O balcão, destronado pelo telefone, pelo fax e pelo e-mail, finalmente foi abolido pela ferramenta digital de pesquisa. Tornou-se completamente obsoleto. A barreira que estabelece as distâncias e hierarquiza as posições da burocracia estatal, muito bem descrita por Cornelia Vismann (2008VISMANN, Cornelia. 2008. Files. Law and Media Technology. Stanford, California: Stanford University Press. ) para outros períodos da história, ofuscou ainda mais os secretários da jurisprudência sob a promessa de que as informações por eles manejadas e disponibilizadas fossem, elas sim, refulgidas. A barreira que estabelece as distâncias e hierarquiza as posições da burocracia estatal ofuscou ainda mais os secretários da jurisprudência sob a promessa de que as informações por eles manejadas e disponibilizadas fossem, elas sim, refulgidas.

Modos de organizar: a mineração das teses jurídicas

A primeira década dos anos 2000, que transformou intensamente as rotinas de pesquisa da SJR, também foi um período de importante inflexão nos procedimentos de análise da jurisprudência. Ao longo da década de 1990, as projeções da SJR apontavam uma “tendência natural” de que a entrada de processos no STJ diminuiria com o passar dos anos, pela consolidação de um repertório sólido de precedentes uniformes, capaz de dispensar os ministros da reavaliação de muitas questões de direito (Brasil 1996BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1996. Relatório Anual de Atividades - 1995. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:25). Na virada do século, no entanto, o equívoco desta suposição já era amplamente reconhecido. Novas questões não paravam de interpelar o Tribunal, resultantes das “mudanças sociais” cada vez mais aceleradas. Por outro lado, as cancelas processuais que deveriam impedir a passagem das redundâncias não pareciam suficientes para controlar a avalanche de recursos “emperrando as engrenagens da Corte”. Em 2002, com o aumento de 83,5% na promulgação de Acórdãos considerados inéditos, a Secretaria documentou oficialmente que sua capacidade de análise havia sido suplantada. Não se tratou de um crescimento isolado, no entanto. Os temas dos excessos e das insuficiências continuaram centrais nos relatórios da SJR por toda a década, justificando as mudanças organizacionais e tecnológicas às quais a Secretaria precisou se submeter. De um lado, portanto, o acréscimo das solicitações por pesquisas remotas de jurisprudência, advindas eletronicamente de todas as regiões do país; de outro, a ampliação das exigências de análise, para uma disponibilização ordenada e eficiente do entendimento do Tribunal.

Como resposta ao volume crescente de dados demandantes de análise e disponibilização à pesquisa, a SJR passou a apostar no “estudo comparado”, “sistêmico e objetivo” dos Acórdãos promulgados. Para que pudesse oferecer aos usuários resultados “rápidos” e “confortáveis” (Brasil 2004BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2004. Relatório Anual de Atividades - 2003. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:7), considerou necessário apelar a uma definição cada vez mais representativa de jurisprudência: não o conjunto das decisões avulsas (embora todas elas permaneçam, de fato, disponíveis aos usuários na base), mas o resultado de um tratamento técnico-documental que, simultaneamente, contrai e estende os Acórdãos a partir de variados procedimentos de mineração e comparação.

Para que sejam considerados válidos e possam impor seus efeitos legais, cada um dos Acórdãos promulgados pelo STJ deve apresentar-se sob a forma de um documento oficial que recebe o nome de Inteiro Teor do Acórdão. As seções que o estruturam, todas elas redigidas digitalmente nos gabinetes ministeriais, são obrigatórias: uma Ementa, que resume brevemente todo o documento; o Relatório, registro sintético das etapas processuais, da sentença original e das queixas que ensejaram o recurso; o Voto (ou Votos, em casos de decisões não unânimes) do ministro relator do caso, em que devem ser justificados os posicionamentos adotados; e o Dispositivo (que também recebe o nome de Acórdão), no qual se expressa e se decreta, em um único parágrafo, a resolução colegiada (Brasil 2015BRASIL. 1988. 2015. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, p.1, col. 2, Brasília, DF, 17/03/2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em 02/08/2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, art. 489).

A padronização dos Acórdãos se limita a estas poucas exigências formais. Como detalha a etnografia de Andressa Lewandoswki (2017aLEWANDOWSKI, Andressa. 2017a. O Direito em última instância: uma etnografia do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris.), ainda que a respeito do Supremo Tribunal Federal (STF), o estilo de escrita dos ministros varia enormemente, como também a extensão de cada um dos documentos que se avolumam na base de dados. O aumento da velocidade com que os Acórdãos chegavam para análise na SJR exigiu o desenvolvimento de “uma nova metodologia”, que legitimaria os analistas a isolarem, desta massa de dados heterogêneos e pulsantes, determinações suficientemente desindividualizadas a respeito da interpretação da lei. Para a mineração das teses jurídicas, deveriam ser capazes de identificar nos Acórdãos: 1. a questão jurídica debatida, liberada das minúcias do “caso concreto”; 2. o que houvesse de “suficientemente generalizante” no contexto fático apresentado no processo recursal; 3. os fundamentos que justificavam o posicionamento do(s) ministro(s), excluídos o “histórico dos autos ou lição[ões] doutrinária[s] constante[s] na motivação do voto do ministro”, bem como as “declarações ditas incidentalmente no voto apenas a título ilustrativo ou explicativo” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .); e 4. o entendimento, ou posicionamento final do(s) ministro(s) em face da questão submetida ao Tribunal. O rigor técnico da análise, sempre obediente a esta fórmula, permitiria que a SJR compactasse os Acórdãos em enunciados suficientemente protocolares e, assim, passíveis de comparação.

Nos anos que se seguiram, a SJR dedicou-se a aprimorar seu método e a garantir a diminuição da “perda de informação” na base de jurisprudência. Com os Acórdãos reduzidos a teses jurídicas, restava estabelecer de que modo elas poderiam ser eficazmente expostas aos usuários nas pesquisas por jurisprudência cada vez mais digitalizadas. Em 2007, uma “nova filosofia de trabalho” da SJR passou a sustentar que toda a base estivesse organizada a partir das teses rigorosamente identificadas no tratamento técnico-documental. Que ela fosse

[...] mais condensada, melhor [sic] sistematizada e adequada à pesquisa de jurisprudência, apresentada com uma linguagem documentária capaz de oferecer a recuperação ágil e precisa da informação, facilitando o acesso aos documentos que espelham o entendimento sobre determinada matéria, retratando a importância da jurisprudência no STJ no cumprimento de sua função uniformizadora (Brasil 2008BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 2008. Relatório de Gestão - 2007. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .: s.p.).

Para isso, os analistas deveriam se incumbir, além de minerar teses e compactar decisões, de identificar as redundâncias da base, “limpando-a” de todos os seus excessos. Deveriam elidir os casos excessivamente semelhantes que, por brechas processuais, fadaram os ministros ao retrabalho. Elegeriam Acórdãos “representativos” das teses relevantes, levando-se em consideração seu ineditismo e sua atualidade. Estes Acórdãos, então, submetidos a intervenções técnicas adicionais, transformar-se-iam em novas representações” de si mesmos: documentos digitais chamados de Espelhos do Acórdão, que descrevo na seção a seguir.

Propiciando o acesso a uma base enxuta, destacando tudo e apenas aquilo que merecesse reverberar dentro do próprio Tribunal, na análise de casos futuros, bem como em outros tribunais brasileiros, a Secretaria de Jurisprudência julgava ser capaz de contribuir definitivamente para o fim dos casuísmos no Superior Tribunal de Justiça. Mostraria aos usuários que no exame de determinada questão jurídica, levando-se em consideração determinado contexto fático, o STJ, ancorado em determinados fundamentos, sempre assume o mesmo entendimento. Tomava para si a tarefa meticulosa de tornar amplamente visível o produto de um Tribunal uniforme e uniformizador: uma jurisprudência forte, capaz de persuadir.

Modos de compactar: a filtragem dos Acórdãos representativos de teses relevantes

Em 2018, quando iniciei esta pesquisa, cerca de 2.200 Acórdãos eram promulgados semanalmente no Superior Tribunal de Justiça. Eles se tornavam passíveis de resgate pelos usuários da página “Jurisprudência do STJ” três semanas depois de publicados no Diário de Justiça Eletrônico (DJe). Como acompanhamos acima, a garantia desse acesso rápido ao entendimento ordenado do Tribunal depende de um processo de “limpeza”, a partir do qual Acórdãos “representativos” de teses relevantes ganham destaque, enquanto as redundâncias são rigidamente obscurecidas. Na SJR, esse processo é chamado de Encaixe. Pela classificação e comparação veloz de dados digitais, ele filtra os Acórdãos, distribuindo-os entre Principais e Similares.

Uma das oito seções da Secretaria de Jurisprudência, até 2018 composta por sete analistas, encarregava-se exclusivamente dessa atividade primordial de filtragem, sem a qual o tratamento técnico-documental não pode prosseguir. O material de que dispunha era exíguo: apenas a página de rosto das sentenças promulgadas, que inclui um cabeçalho com as informações processuais e a Ementa do Acórdão. Embora a redação das Ementas não respeite as padronizações almejadas pela SJR, seria inviável que a equipe pudesse examinar, um a um, o Inteiro Teor dos milhares de Acórdãos promulgados a cada semana. Para tornar acessível em tempo hábil a jurisprudência, assumia, apenas nesta etapa, esses resumos heterogêneos como sínteses fiéis do que foi discutido e decidido em julgamento. A eleição dos Principais, etapa absolutamente fundamental à disponibilização da jurisprudência, se dava exclusivamente a partir da comparação das teses jurídicas registradas pelos ministros e mineradas pelos analistas nestas Ementas.

Mas a redução do campo de comparabilidade às Ementas não garantia, por si só, a viabilização da filtragem. Ela dependia, na mesma medida, do recurso a numerosas ferramentas digitais, como os aplicativos Gestão de Publicações, Gestão de Tabelas, Controle de Distribuição, e Produção e Inclusão de Acórdãos em Lote, todos parte do sistema computacional desenvolvido pelo STJ, batizado como Sistema Justiça (Figura 2).

Figura 2 -
Folha de rosto de um Acórdão

Até 2018, a filtragem dos Principais iniciava-se no aplicativo Gestão de Publicações. Por procedimentos significativamente automatizados, o aplicativo gerava cópias dos Acórdãos publicados no DJe e as transportava a um índice digital de acesso exclusivo da SJR, onde poderiam ser manejadas pelos analistas. Neste translado inicial dos dados, os analistas limitavam-se a supervisionar e a responder a possíveis alertas do aplicativo nos casos em que inconsistências (como erros de digitação nos dados processuais dos documentos) pudessem tornar os Acórdãos ilegíveis pelo computador, inviabilizando seu resgate e tratamento. O aplicativo Gestão de Publicações também “separava” automaticamente alguns Acórdãos que invariavelmente deveriam ser classificados como Principais por sua “incontestável relevância para a comunidade jurídica”.

A seguir, passava-se à “distribuição” dos Acórdãos restantes, que reclamavam procedimentos comparativos mais cuidadosos para que pudessem ser classificados. O aplicativo Controle de Distribuição e Produção oferecia ao coordenador da equipe a listagem total dos Acórdãos a serem examinados em determinado período, e permitia que eles fossem atribuídos a algum dos funcionários já elencados no sistema. Então, de suas mesas e por suas telas, os analistas podiam acessar o conjunto de documentos a eles delegados por meio do aplicativo Inclusão de Acórdãos em Lote. A partir daí, tinha início o chamado Procedimento de Triagem.

Na Triagem, eram agrupados os “documentos idênticos ou semelhantes”, de modo que pudessem ser “trabalhados em lote” pelos analistas (Brasil 2017aBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017a. Manual do Analista. Seção de Sucessivos e Principais (SESUP). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:64). Essa comparação era realizada pelo próprio aplicativo, que aproximava automaticamente os Acórdãos realmente “idênticos” (com exceção, por óbvio, de seus números de identificação processual e nomes dos requerentes e requeridos) que estivessem incluídos na base, e os destacava na tela dos analistas. Mas era necessário que os documentos não destacados automaticamente fossem avaliados um a um. Não se podia delegar todo o procedimento da comparação aos computadores. Eles não compreendiam os caracteres embaralhados, os espaçamentos exagerados e, principalmente, as nuances e as flexibilizações ao protocolo. Era preciso gerenciar e, corriqueiramente, era necessário intervir, inspecionando a qualidade dos lotes e corrigindo os possíveis equívocos nas distribuições realizadas pela máquina.

Para a aceleração desta fase dos trabalhos e viabilização das subsequentes, outros Acórdãos além dos realmente “idênticos” precisavam ser examinados e agrupados pelos analistas no aplicativo Inclusão de Acórdãos em Lote (Brasil 2017aBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017a. Manual do Analista. Seção de Sucessivos e Principais (SESUP). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:70). Eram considerados agrupáveis os documentos de uma mesma classe processual que tivessem sido promulgados por um mesmo relator, em um mesmo órgão julgador, que tivessem a “mesma” Ementa e o “mesmo resultado do julgamento”. Mas, embora o manual que orientava essas atividades enfatizasse a “rigidez” dos critérios órgão julgador e relator (Brasil 2017aBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017a. Manual do Analista. Seção de Sucessivos e Principais (SESUP). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:64), as classes processuais, as Ementas e até o resultado do julgamento admitiam “flexibilização”, exigindo avaliação humana cautelosa antes de que a equivalência fosse decretada. Os analistas estavam autorizados, por exemplo, a “encaixar” Acórdãos “com redações ligeiramente diferentes, desde que a diferença [fosse] sutil e não prejudi[casse] o entendimento da tese nem o resgate da informação” (Brasil 2017aBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017a. Manual do Analista. Seção de Sucessivos e Principais (SESUP). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:65).

O aplicativo dispunha de ferramentas de pesquisa e tornava possível, da indistinção do volumoso arquivo, a triagem de documentos que citassem determinadas expressões em suas Ementas. Concluída essa primeira etapa de aproximações maquínicas, os analistas abriam em suas telas, aos pares, os arquivos de documentos potencialmente agrupáveis, para que a identificação das repetições fosse validada por cuidadosa leitura humana. Lendo uma a uma as Ementas dos Acórdãos triados pela máquina, os analistas podiam classificá-los como Principais, desde que o aplicativo comprovasse que as teses expressas nestes documentos fossem inéditas na base de dados. Por outro lado, caso as teses examinadas já estivessem representadas na base por outros Acórdãos Principais, os comandos Topo de Pilha e Empilhar do aplicativo vinculariam os Similares recém-promulgados àqueles documentos, apartando-os do restante dos Acórdãos em análise.

Ao final das filtragens realizadas na primeira seção da SJR, o volume dos Acórdãos que mereceriam destaque na base disponibilizada aos usuários reduzia-se a apenas 30% do total das sentenças promulgadas. Uma base significativamente compactada, sob a justificativa de que as redundâncias excessivas enunciadas pelo Tribunal não contribuiriam aos propósitos de tornar a jurisprudência acessível. Apenas pelo agrupamento comparativo de documentos é que a uniformidade que qualifica o Tribunal poderia se impor.

Ao longo de minha pesquisa, o STJ passou a investir e a propagandear assiduamente a implementação da Inteligência Artificial (IA) em várias de suas rotinas técnico-administrativas (Munhoz 2022MUNHOZ, Sara. 2022. A paixão do acesso: uma etnografia das ferramentas digitais e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos. ). Embora eu não me dedique, neste artigo, a estas transformações muito recentes, destaco que um dos principais investimentos da SJR tem se voltado à automatização completa destas primeiras filtragens. Até 2019, a escolha dos Principais já era a etapa mais veloz dos trabalhos da Secretaria. As urgências aceleratórias, como vimos, obrigavam os analistas a limitarem suas atenções às Ementas, uma escolha técnico-política considerada, por eles mesmos, arriscada.

Assim como descrevem Soares e Ferreira neste dossiê, na impossibilidade de se uniformizarem enunciados e ações humanas, a padronização tecnológica dos procedimentos emerge como o caminho viável e seguro à precisão e à eficiência. Muito mais veloz em suas capacidades comparativas, a computação cognitiva poderia ler o Inteiro Teor de todos os Acórdãos e os agruparia com maior precisão. Ela não se limitaria a encontrar documentos idênticos, ou a reagir aos comandos de busca redigidos, um a um, pelos analistas, mas, ao contrário, seria capaz de determinar muito rapidamente quais os Acórdãos suficientemente semelhantes, respondendo a protocolos e treinamentos estabelecidos de antemão. Capaz de transitar pela multiplicidade dos enunciados ministeriais e de identificar padrões a partir de comparações probabilísticas, liberaria grande parte da equipe para “atividades mais pensantes”, ligadas a estratégias criativas de recomendação e divulgação das teses do STJ aos usuários.

Ainda que não se possa desconsiderar o otimismo com o qual têm sido propagandeadas essas iniciativas, o protagonismo dos computadores na análise dos Acórdãos e na consolidação de uma base de jurisprudência antecede as promessas de autonomia cognitiva das máquinas. Mesmo antes da IA, o grande volume de dados produzidos pelo STJ já tornava absolutamente inviável o manejo das informações jurisprudenciais senão em/com aplicativos computacionais. Ademais, já há muito tempo não existem Acórdãos - essas materializações da linguagem-comando do Superior Tribunal de Justiça - senão como documentos forjados, desde sua origem, em um ambiente absolutamente digital.

A feitura da jurisprudência se dá, portanto, nos interstícios e nos acoplamentos de um trabalho que ancora seu valor em certo humanismo e na complexa organização dos maquinismos computacionais. Ela é feita por “sistemas homens-máquinas”, para usar expressão de Maurizio Lazzarato (2014LAZZARATO, Maurizio. 2014. Signos, Máquinas, Subjetividades. São Paulo: Edições SESC / n-1 edições.). Na interação de numerosos elementos humanos e não humanos, todos os componentes do trabalho se expressam em termos de informação já não mais exclusivamente antropomórfica, senão elaborada pela lógica das entradas e saídas, dos inputs e outputs (Lazzarato 2014LAZZARATO, Maurizio. 2014. Signos, Máquinas, Subjetividades. São Paulo: Edições SESC / n-1 edições.:31-32). Como procurei demonstrar, para que analistas possam sintetizar Acórdãos em teses e compará-los para a eleição dos documentos mais “representativos”, os aplicativos devem funcionar como arquivistas confiáveis e eficientes, capazes de manejar com presteza as bases, disponibilizando, nas telas dos computadores, os documentos que deverão ser examinados. Mas, simultaneamente, a própria SJR deve auxiliar a equipe responsável pela confecção dos aplicativos, orientando-a a respeito das ferramentas que poderiam ser funcionais no tratamento técnico-documental e criando os protocolos que traduzam, em uma linguagem algorítmica, as necessidades documentárias estipuladas de antemão pela expertise humana. Sem os comandos (mesmo que muito simples e protocolares) dos analistas, os aplicativos não podem desempenhar suas tarefas comparativas e mineradoras. Sem estas ferramentas, por sua vez, os Acórdãos permanecem inacessíveis, mantidos aquém de seus propósitos jurisprudenciais.

Depois destas filtragens iniciais, o trabalho sobre os documentos Similares se encerra. Embora não excluídos, permanecem apenas muito palidamente na base tornada acessível aos usuários. Os Principais, no entanto, seguem seus caminhos, sempre pelos computadores, às próximas etapas do tratamento técnico-documental. Nelas, transformam-se em Espelhos do Acórdão, “representações” digitais do entendimento do Tribunal capazes de estender e desindividualizar o alcance das decisões ministeriais. À confecção dos Espelhos e aos seus potenciais de divulgação e recomendação da jurisprudência dedico a seção a seguir.

Modos de estender: os Espelhos do Acórdão

Um Espelho do Acórdão é definido nos manuais da Secretaria de Jurisprudência como um “documento-padrão” exclusivamente digital (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:12), como “um relatório analítico” dos Acórdãos Principais (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:44), ou ainda como a “representação gráfica dos temas jurídicos discutidos no inteiro teor do acórdão” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:12). Ele almeja ser uma versão simultaneamente mais sintética, ordenada, dinâmica e extensiva dos herméticos documentos em PDF disponibilizados no Diário de Justiça Eletrônico. Diferentemente dos Acórdãos, seus Espelhos oferecem “pontos de acesso, indica[m] o conteúdo do[s] texto[s], seleciona[m] os assuntos relevantes e atua[m] como uma ferramenta de pesquisa, transmitindo dados essenciais de maneira técnica e adequada ao resgate” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:14). Funcionam como a “ponte” que conduz à jurisprudência do STJ (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:35). Quando um usuário utiliza a ferramenta de buscas disponibilizada no site do Tribunal, os termos por ele elencados para comandar o resgate dos precedentes não são minerados do arquivo promulgado pelos ministros, mas das informações reunidas e reorganizadas sob este novo layout pela SJR. A jurisprudência do STJ, esse conjunto uniforme das teses jurídicas sustentadas, só é acessível sob a forma de Espelhos.

Atualmente, os Espelhos organizam-se em até 13 seções, também chamadas de Campos. Os sete primeiros deles limitam-se a dispor ordenadamente as informações processuais do Inteiro Teor do Acórdão. Desde a entrada dos processos no Tribunal, estas informações são abrigadas no Sistema Justiça como “dados estruturados”, ou seja, dados cuja disposição e finalidade na base são definidas de antemão, o que favorece enormemente seu resgate e manejo. Graças a esta estética particular, o preenchimento dos primeiros Campos do Espelho pode ser totalmente automatizado. Sua “alimentação” adequada torna possível a especificação das buscas na página “Jurisprudência do STJ”, permitindo que os usuários filtrem os resultados, por exemplo, pelos números dos processos, pelo ministro relator do caso, pela data de julgamento, ou mesmo por termos que tenham sido mencionados nas Ementas. Os Campos subsequentes, por sua vez, precisam ser alimentados pelos analistas no aplicativo Manutenção ACOR, a partir dos “dados não estruturados” esparramados nos Relatórios e, principalmente, nos Votos dos Acórdãos. Esses Campos foram concebidos como ferramentas extensoras, capazes de vincular os Acórdãos em exame a outros que com eles se relacionem. Viabilizam a criação de índices e indexações alternativas a partir da inclusão de informações consideradas relevantes pela equipe da SJR, que só podem ser recolhidas da cuidadosa leitura técnica do Inteiro Teor de cada Principal.8 8 O protagonismo das ferramentas de busca para a construção do que, afinal, pode ser visto em um ambiente virtual é também abordado por Carolina Parreiras, neste mesmo dossiê, ao discutir etnograficamente possíveis conexões entre pornografia e Big Data e o modo como comportamentos e definições podem ser maquinicamente fixados por meio de categorias indexadoras como, por exemplo, as hashtags.

A confecção de um Espelho envolve uma etapa preliminar à alimentação dos Campos, em que os analistas cotejam o texto da Ementa com o Inteiro Teor do documento em análise. Embora os enunciados dos ministros jamais possam ser refutados, a SJR justifica essa ousada comparação na especificidade do trabalho técnico que realiza, cuja missão institucional, valerá relembrar, é a de tornar digitalmente acessível o entendimento do Tribunal. Sua tarefa, nesta etapa, é averiguar se a Ementa sintetiza adequadamente o que foi discutido ao longo da sentença, ou seja, se, pela leitura exclusiva desses pequenos textos, os usuários poderiam ter acesso, por si sós, aos quatro elementos que conformam a(s) tese(s) jurídica(s) sustentada(s) na decisão. Em caso afirmativo, o Espelho limita-se a oferecer, de modo ordenado, as informações processuais nos primeiros Campos, incluindo, adicionalmente, apenas o hyperlink que conduz os usuários à íntegra da decisão em PDF, tal como publicada no Diário de Justiça Eletrônico. Por outro lado, quando a leitura indica que a síntese ministerial não asseguraria o resgate das informações jurisprudenciais pelos usuários na ferramenta de buscas, as intervenções técnico-documentais devem ser mais incisivas e a confecção do Espelho, mais minuciosa.

Embora a alimentação dos Campos do Espelho já envolva o exame de um número muito menor de Acórdãos do que a filtragem dos Principais, ela também não dispensa o uso de dois aplicativos computacionais, que permitem que os analistas editem, destaquem e anotem os documentos, auxiliando-os em suas tarefas comparativas, além de viabilizarem a rotulagem e a distribuição dos Acórdãos em diferentes grupos abrigados na base, o que dita o fluxo das etapas do tratamento. Como o preenchimento dos Campos não automatizados é facultativo, essa distribuição leva em conta a quantidade de informações que deverão ser incluídas no Espelho para “maximizar a transmissão das informações aos pesquisadores da base de dados” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:118).

O manual que abriga os protocolos da confecção dos Espelhos, orientando o manejo dos aplicativos e as técnicas documentárias dos analistas, enfatiza que os Campos devem abrigar apenas os “dados essenciais”, que de fato tenham “relação com os elementos da tese efetivamente discutida no acórdão” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:118). A ressalva atinente à seleção criteriosa do mínimo de inclusões necessárias é o que faz do trabalho técnico um “trabalho pensante”, altamente especializado. Cada um dos Campos deve oferecer pontos de acesso específicos, funcionando como multiplicadores dos caminhos que levam ao Acórdão selecionado para espelhar a tese, ao mesmo tempo em que também indicam aproximações possíveis entre documentos variados.

O Campo Jurisprudência Citada, por exemplo, disponibiliza aos usuários hyperlinks que os direcionam aos precedentes mobilizados pelos ministros na fundamentação de seus votos (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:235). Esses hyperlinks são dispostos em listagens subdivididas em “temas” que “espelhem” as teses sustentadas no Acórdão (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:130). Para que o Campo se preste à sua função, cabe aos analistas tornar tão uniforme quanto possível a sua própria linguagem. A escolha e a redação dos “temas” obedecem a protocolos bastante rígidos, com regras explícitas a respeito dos usos da pontuação, das notações e das expressões autorizadas. Ao mesmo tempo, para que os hyperlinks funcionem, os dados processuais dos Acórdãos citados devem ser adequadamente incluídos no aplicativo. Ao selecionar as opções pré-formatadas na ferramenta (que elencam os possíveis tribunais de origem do recurso processual, o estado da federação de onde foi encaminhado, as siglas das classes processuais etc.) e preencher, atentos aos padrões de notação, a caixa que abriga o número do processo, os analistas comandam ao aplicativo a abertura de uma nova passagem, que propicia o fluxo direto, por um clique, entre diferentes documentos. Desse modo, escancaram - enquanto também reforçam - vinculações existentes, mas antes excessivamente acanhadas, entre os abundantes Acórdãos (Figura 3).

Figura 3 -
O Espelho de um Acórdão

O preenchimento do Campo Notas, por sua vez, organiza os Espelhos em “catálogos temáticos”, que podem ser consultados no site de buscas por jurisprudência (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:170). Os usuários têm a opção de filtragem de Espelhos a partir de “hipóteses de incidência [...] estabelecidas por mensagens padronizadas” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:39). Aqueles que preveem as hipóteses e estabelecem as mensagens padronizadas são os analistas da SJR, autorizados a decidir o que consideram ser de “interesse para a sociedade em geral” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:170).9 9 Até o início de 2023, quando finalizada a redação deste artigo, havia 21 notas cadastradas na página “Jurisprudência do STJ”, entre elas, “Casos Notórios” (que tiveram “grande repercussão na mídia ou representam uma decisão relevante no âmbito do Tribunal” [Brasil 2017c:171]), “Dano moral e estético”, “Dano moral coletivo”, “Quantidade de droga apreendida” (que resgata os Acórdãos em que se discute a distinção entre tráfico e uso próprio de drogas e dosimetria da pena, por exemplo (Brasil 2017c:177)), “Princípio da insignificância”, “Penhorabilidade ou impenhorabilidade de bens”, além de Acórdãos julgados sob o rito dos Recursos Repetitivos (RR) ou classificados como Incidentes de Assunção de Competência (IAC). A vinculação de um Acórdão a uma das “hipóteses” existentes também é realizada no aplicativo Manutenção ACOR. Nele, os analistas podem selecionar um dos textos pré-formatados que especificam abreviadamente a relação do Acórdão em exame com o índice em que foi incluído, poupando-os de redações individualizadas. Além disso, no aplicativo também são gerados os hyperlinks que conduzem os usuários a outros Acórdãos considerados “semelhantes”.

O Campo Palavras de Resgate indexa grupos de Acórdãos recorrendo a um vocabulário controlado que cataloga de modo rigoroso as sinonímias de expressões utilizadas pelos ministros em suas sentenças. Com a ajuda dos aplicativos, os analistas aprimoram as possibilidades de que os Espelhos sejam encontrados, substituindo a heterogeneidade estilística dos ministros pelos sinônimos pré-cadastrados. Com este mesmo intuito, eles também podem incluir termos mais específicos dos que os originalmente utilizados nos Acórdãos (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:191). Ainda que este seja um dos Campos de mais simples preenchimento - bastando a inclusão dos termos indexadores, separados por vírgulas, em uma caixa em branco disponibilizada no aplicativo -, ele não dispensa os analistas de um exercício imaginativo. É preciso antever as expressões que os usuários mobilizarão em suas buscas. É também necessário configurar as vinculações entre documentos a partir de relações potenciais de generalização e especificidade.

Por fim, o Campo Referências Legislativas destaca em hyperlinks todos os atos normativos utilizados na fundamentação dos votos. A padronização nas citações cria um recurso específico para a pesquisa, mas é a “análise de sua pertinência” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:135) que possibilita a recuperação eficaz das informações jurisprudenciais. Nem todas as referências citadas pelos ministros devem, de imediato, ganhar destaque. Os excessos abarrotam a base e comprometem a visibilidade efetiva das teses. Se, por um lado, “legislações implícitas” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:136), que não constem expressamente nos Acórdãos, possam ser incluídas a critério dos analistas, por outro, eles também estão autorizados a manter fora do Campo as explicitamente citadas, caso considerem que elas não estejam diretamente implicadas na sustentação da(s) tese(s) jurídicas(s). O aplicativo disponibiliza alguns subcampos de preenchimento automatizado, mas a tarefa também é humana. É preciso que os dispositivos alfanuméricos, as pontuações e a grafia das alíneas respeitem a padronização convencionada, para que o sistema seja capaz de recuperar as informações com precisão no momento da pesquisa dos usuários.

Nos manuais que instruem os trabalhos da Secretaria de Jurisprudência, são recorrentemente mencionadas as acelerações que os aplicativos tornam possíveis, as etapas permitem ser puladas, as facilitações e as viabilizações que só a máquina pode ofertar. Mas esses mesmos documentos estão repletos de exigências, ainda que sutis, de que os analistas “considerem”, “escolham”, “esteja(m) atento(s)” ao que pode haver de disperso, confuso e indiscriminado ao longo dos Votos, ao que haja de excessivo ou insuficiente nas Ementas, ao que pode ser impertinente incluir, ao que, enfim, não se pode simplesmente automatizar. É a relação simbiótica entre analistas e aplicativos que gera Espelhos, forma sob a qual a jurisprudência do STJ pode ser, enfim, representada e divulgada no site do Tribunal. “O sistema cria automaticamente”, ele “gera”, “apresenta”; em alguns casos, ainda “faz a crítica e questiona o analista” (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:195). Mas, ao mesmo tempo, é o domínio e a aplicação adequada do “raciocínio” ou da “técnica metodológica de alimentação”, é a avaliação da “pertinência” das informações inseridas que tornam realizáveis os objetivos específicos de cada um dos Campos, imaginados e criados no próprio STJ ao longo das últimas décadas.

Nos manuais e nos relatórios que examinei ao longo de minha pesquisa, é recorrente a concepção de que tudo sempre está no Acórdão. O analista seleciona, ordena, destaca, mas não altera. O que há de ousado e criativo nos planos da SJR, em suas ambições de democratização, tem o entendimento como limite e como farol. Assim como no caso etnografado por Tone Walford, os Acórdãos, descomedidamente despejados nas bases de dados, têm muito “ruído” (Walford 2013WALFORD, Tone. 2013. Transforming Data: An Ethnography of Scientific Data from the Brazilian Amazon. Tese de Anthropology of Science/STS, University of Copenhagen.:49), mas o intenso trabalho de “limpeza” que exigem não significa de modo algum, aos olhos dos analistas, manipulação (Walford 2013WALFORD, Tone. 2013. Transforming Data: An Ethnography of Scientific Data from the Brazilian Amazon. Tese de Anthropology of Science/STS, University of Copenhagen.:140). Aqueles que promulgam e determinam são as ministras e os ministros. Ainda mais precisamente, é o Tribunal. Neste sentido, o tratamento técnico-documental é trabalho de lapidação, capaz de antecipar e acentuar o que pode ter valor.

Desta forma, os enunciados do STJ tal como disponibilizados pela SJR deixam de ser “fotografias de si mesmos” (Gitelman 2014GITELMAN, Lisa. 2014. Paper Knowledge. Toward a Media History of Documents. Durham and London: Duke University Press.:114), limitados à fixidez imposta pela forma PDF. São hipertextos, documentos multiplicam as “ocasiões de sentido” (Lévy 2011LÉVI, Pierre. 2011. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34.:43) dos usuários, desterritorializações que fazem com que um texto jamais seja duas vezes exatamente o mesmo (Lévy 2011LÉVI, Pierre. 2011. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34.:48). Ao recomporem e complementarem os Acórdãos Principais, habilitando-os aos trânsitos performativos característicos da hipertextualidade, os analistas “socializam os dados” (Walford 2013WALFORD, Tone. 2013. Transforming Data: An Ethnography of Scientific Data from the Brazilian Amazon. Tese de Anthropology of Science/STS, University of Copenhagen.:143), ordenando e multiplicando, pelo recurso a variadas ferramentas de resgate (hyperlinks, termos indexados vinculados ao vocabulário controlado, softwares capazes de resgatar sinônimos e diferentes formas de grafias), suas possibilidades de relação com outros documentos e, consequentemente, com os próprios usuários. Entendendo como a base de dados se organiza, estando cientes dos comandos que a tornam manejável e tendo participado, ainda que indiretamente, da construção dos aplicativos, consideram-se capazes de prever o que os usuários poderiam desejar ver, que tipos de entendimentos poderiam ser de seu “especial interesse” (Brasil 2017dBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. 2017d. Manual do Analista. Seção de Informativo de Jurisprudência (SIJUR). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:33). E, ao mesmo tempo, que informações, feitas acessíveis, democratizadas, poderiam contribuir para amenizar o problema mais geral do Tribunal: os excessos, as repetições, o trabalho pouco “pensante” e muito dispendioso de reafirmar insistentemente posicionamentos já uniformizados.

Modos de visualizar: a jurisprudência acessível do Tribunal democrático

Assim como circuitos técnico-administrativos tornam possível o trânsito dos processos e o assentamento das decisões,10 10 Pastas dos processos, desgastadas e volumosas, adornadas com etiquetas, carimbos e post-its, reunidas por elásticos, foram cuidadosamente acompanhadas por Bruno Latour (2019), Andressa Lewandowski (2017a) e Ciméa Bevilaqua (2020), mas também protagonizam a importante etnografia de Annelise Riles (2000), bem como pesquisas dedicadas às instituições carcerárias e socioeducativas (Reed 2006; Munhoz 2013a, 2017), à burocracia estatal (Bevilaqua 2008; Perin 2022), às atuações de instituições não governamentais (Morawska 2014) e às lutas de movimentos sociais variados que, para que possam reclamar seu direito à existência, precisam manejar cuidadosamente as linguagens das reuniões e dos relatórios (Mourthé 2015; Mantovanelli 2020; Ramos 2020; Araújo 2022; Marcurio 2022). Também se tornaram personagens corriqueiros em muitas destas narrativas os carrinhos que transportam essas pastas, os armários que as abrigam, os funcionários que as encaminham, as salas que as empilham. Em alguma medida, etnografar o sistema de justiça e os grupos ou as instituições que com ele se relacionam tem implicado, desde há muitos anos, na descrição de certa arquitetura, com os trânsitos que viabiliza e os ritmos que promove. procurei demonstrar que outros circuitos, ainda bastante negligenciados pela bibliografia especializada, colocam em trânsito os Acórdãos e assentam a jurisprudência, fazendo com que informações originalmente encerradas em sentenças dispersas tenham valor para outros além daqueles aos quais se endereçam diretamente. Para examinar o desejo de democratização do Superior Tribunal de Justiça, voltei minha atenção ao manejo dos dados abrigados em uma base de Acórdãos, que são tecnicamente transformados, por analistas e aplicativos, em informações jurisprudenciais relevantes.

Ao descrever, tão minuciosamente quanto possível, as atividades ordinárias, muito elementares, realizadas em uma Secretaria a princípio distante dos lugares em que as decisões do STJ são efetivamente tomadas, sustentei que a democratização do Superior Tribunal de Justiça, absolutamente imbricada ao conceito de acessibilidade, se constrói em ao menos duas vias, correlacionadas, interdependentes, em constante retroalimentação. Ela opera ciberneticamente nas entradas e nas saídas do Tribunal.

Este artigo sugere que sejam incluídos na descrição e na análise etnográfica das práticas da justiça outros atributos do acesso para além dos relacionados às possibilidades de ingresso ou admissão nos tribunais. Demonstrei que, nos dias de hoje, o acesso envolve a comunicação mediada por ferramentas digitais entre indivíduos geograficamente distantes, e ainda, em especial, as relações entre pessoas e aplicativos que modelam conjuntamente bases de dados, distribuem nelas as informações, formatam o que pode ser visto e o que permanecerá às sombras na indistinção dos excessos. Pelo conceito de acesso emaranham-se cidadãos e usuários, cada vez mais submetidos a sistemas digitais de divulgação e recomendação.

Como afirmou Cornelia Vismann, a história dos arquivos carrega em si uma pré-história dos computadores. As técnicas administrativas que os precederam e que aos poucos foram moldando o Estado, na mesma medida em que ele as moldava, estão agora inscritas de forma nada metafórica na própria arquitetura das máquinas digitais: uma unidade central de processamento, com protocolos e registros abundantes, como nos dias da poderosa chancelaria siciliana do século XIII (Vismann 2008VISMANN, Cornelia. 2008. Files. Law and Media Technology. Stanford, California: Stanford University Press. :164). Os computadores colonizaram a justiça enquanto também foram por ela colonizados. É nesta arquitetura, nessa economia visual particular, nesse espaço-tempo específico de exposição que nos faz ver, ou que não nos permite mais ver (Virilio 2011VIRILIO, Paulo. “A imagem virtual mental e instrumental”. In: A. Parente (org.), Imagem-Máquina. A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34. ), que a jurisprudência se faz.

As atividades técnicas que descrevi ao longo do artigo respondem a um problema de legibilidade e de simplificação, nos termos de James Scott (1998SCOTT, James C. 1998. Seeing like a State. How certain schemes to Improve the human condition have failed. New Haven and London: Yale University Press, Veritas paperback edition. ): de como servidores públicos e aplicativos computacionais tomam relações e práticas extremamente complexas, absolutamente heterogêneas e indóceis, e criam uma grade-padrão por meio da qual podem armazenar e monitorar, controlar e divulgar enunciados. Se, tal como aparecem nos Acórdãos, essas relações e práticas já são o resultado de procedimentos que as domesticam, submetendo-as apenas ao que pode ser lido sob a forma de teses jurídicas, descrevi ainda outros “processos técnicos de produção de uniformidade” (Bevilaqua 2016BEVILAQUA, Ciméa. 2016. “A unidade do estado como processo técnico”. In: C. Fonseca; F. Rohden; P. S. Machado & H. S. Paim (orgs.), Antropologia da Ciência: desafios etnográficos e dobras reflexivas. Porto Alegre: Editora Meridional Ltda.:150), indispensáveis para que os enunciados se apresentem sob um “padrão comum necessário para a visão sinóptica” da qual dependem as instituições estatais (Scott 1998SCOTT, James C. 1998. Seeing like a State. How certain schemes to Improve the human condition have failed. New Haven and London: Yale University Press, Veritas paperback edition. :2). A uniformidade promovida pelo STJ só pode se dar por Espelhos.

Argumento enfim que, ao transformar, por comparações, sínteses e extensões, arquivos abundantes e herméticos em hipertextos, a SJR altera a própria conceituação de jurisprudência. Quando Acórdãos são dados que se avolumam em bases digitais, suplantando a capacidade humana de análise e ordenamento, a jurisprudência é, necessariamente, informação sobre informação. Ela é metadado. A organização digital dos Acórdãos os torna “centros de processos criativos” (Manovich 2000MANOVICH, Lev. 2000. “Database as a genre of new media”. AI and Society, 14:176-183.:182, tradução minha) e o cuidadoso tratamento técnico-documental da SJR faz da dispersão, narrativa (Dourish & Gómez Cruz 2018DOURISH, Paul & GÓMEZ CRUZ, Edgar. 2018. “Datafication and data fiction: narrating data and narrating with data”. Big Data and Society, jul-dez 2018:1-10.). Não há jurisprudência no Brasil contemporâneo - e não há, portanto, o sistema de justiça nacional tal como o conhecemos - sem que sentenças já promulgadas sejam lidas, recortadas, aproximadas, contrastadas e transformadas em/por um sistema computacional manejado por analistas e aplicativos em uma Secretaria técnico-administrativa do STJ. A jurisprudência se apresenta como tal, e se torna apta a impor seus efeitos de realidade na medida em que, obediente à lógica que caracteriza os Big Data, passa por cuidadosos processos técnicos de despessoalização (Parreiras, neste dossiê). Assim, a uniformização do entendimento, que democratiza a justiça brasileira, está absolutamente atrelada à estética das bases de dados, aos manejos específicos que ela viabiliza e à sua disponibilização controlada para todos (e apenas aqueles) que tenham acesso à internet.

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  • RILES, Annelise. “Property as Legal Knowledge: means and ends”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 10 (4):775-795.
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  • SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri São Paulo: Terceiro Nome.
  • SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2020. “Na dúvida, foi moralmente condenada ao invés de legalmente absolvida: etnografia de um julgamento pelo Tribunal do Júri de São Paulo, Brasil”. Revista de Antropologia, 63 (3):1-28.
  • SCOTT, James C. 1998. Seeing like a State. How certain schemes to Improve the human condition have failed New Haven and London: Yale University Press, Veritas paperback edition.
  • VIANNA, Adriana & FACUNDO, Ángela. 2015. “Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre ‘moradores de favelas’ e ‘refugiados’”. Ciência e Cultura, 67 (2):46-50.
  • VIRILIO, Paulo. “A imagem virtual mental e instrumental”. In: A. Parente (org.), Imagem-Máquina. A era das tecnologias do virtual Rio de Janeiro: Editora 34.
  • VISMANN, Cornelia. 2008. Files. Law and Media Technology Stanford, California: Stanford University Press.
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  • ZARIAS, Alexandre. 2008. Das leis ao avesso. Desigualdade social, direito de família e intervenção judicial Tese de Doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo.

Notas

  • 1
    Este artigo apresenta desdobramentos analíticos de minha pesquisa de tese (Munhoz 2022MUNHOZ, Sara. 2022. A paixão do acesso: uma etnografia das ferramentas digitais e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos. ), defendida em setembro de 2022 no PPGAS/UFSCar, com financiamento da Fapesp (Processo 2017/02467-4). A pesquisa pós-doutoral que desenvolvo atualmente (Processo Fapesp 2023/13441-7) é dedicada ao exame aprofundado dos usos dainteligência artificialno Superior Tribunal de Justiça e sua relação com ademocratizaçãoda justiça. Agradeço a Jorge Villela pelas incontáveis e preciosas contribuições ao desenvolvimento da tese e à construção deste texto. Agradeço, ainda, aos servidores alocados na Secretaria de Jurisprudência do STJ, em especial a Barbara Brito de Almeida, peloacessoao arquivo da pesquisa e pela rica interlocução.
  • 2
    Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Historia. Acesso em 20/02/2023.
  • 3
    É verdade que muitas etnografias se dedicaram a demonstrar como os uníssonos criados pelo direito (em especial, mas não exclusivamente, nos tribunais) são fundamentalmente provisórios, abertos a negociações, dependentes de interpretações que se assomam até o limite do que pode ser considerado incompatível, paradoxal. Os tribunais são equipados com diversos instrumentos técnicos, sejam eles processuais, administrativos ou tecnológicos, que funcionam como “meios para determinados fins”, tal como os descreve Annelise Riles (2004RILES, Annelise. “Property as Legal Knowledge: means and ends”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 10 (4):775-795.). Os enunciados, em trânsito, bem como os papéis, em circulação, constroem a verdade jurídica que não poderia ser absolutamente impensada de antemão nem, tampouco, incontornavelmente presumível de partida. Um dispositivo - seja ele uma sentença no caso das primeiras instâncias ou um Acórdão, em alguns dos casos de cortes superiores - é sedimentação provisória e, ao mesmo tempo, absoluta. É à cristalização sob a forma de um dispositivo que se prestam os instrumentos técnicos variados; ela é o meio - materializado - para os fins reguladores econômicos e sociais aos quais se dedica o direito (Riles 2004RILES, Annelise. “Property as Legal Knowledge: means and ends”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 10 (4):775-795.).
  • 4
    Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2014/2014-10-06_10-02_Peticao-eletronica-obrigatoria-comemora-um-ano-com-bons-resultados.aspx. Acesso em 20/02/2023.
  • 5
    Exemplos dessas barreiras, erigidas pelo novo Código de Processo Civil em nome da celeridade do sistema judicial, são as Súmulas e os precedentes vinculantes (subdivididos em Incidentes de Assunção de Competência e Recursos Repetitivos) (Brasil 2015BRASIL. 1988. 2015. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, p.1, col. 2, Brasília, DF, 17/03/2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em 02/08/2022.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    : art. 926, 927, 928). Trata-se de um conjunto de inovações que determinam a observância obrigatória de alguns enunciados do STJ por qualquer tribunal em todo o país. Quando, sob a forma de Súmulas ou precedentes vinculantes, os enunciados do STJ não apenas orientaram futuros posicionamentos que tratem de questões jurídicas semelhantes, mas os conduzem imperativamente. Um processo pode ser barrado antes mesmo de ser apreciado pelos ministros do STJ caso exija a reafirmação de teses jurídicassedimentadas sob essas modalidades enunciativas. Funcionam, portanto, como importantes sintetizadores e aceleradores processuais.
  • 6
    Embora o artigo proponha deslocar o tema do acesso examinando-o pelos portões de saída do Tribunal, é preciso enfatizar que a condução e a manutenção de um processo aos Tribunais Superiores são extremamente exclusivistas. Às barreiras processuais que descrevo brevemente neste artigo somam-se outras, muito poderosas, que delimitam o acesso diferencial ao sistema de justiça. Um corpus importante de trabalhos clássicos e etnografias contemporâneas dedica-se a examinar como relações étnicas, de classe e de gênero impactam decisivamente as possibilidades de apelo ao modo judicial de resolução de conflitos (Donzelot 1986DONZELOT, Jacques. 1986. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal.; Bourdieu 1996BOURDIEU, Pierre. 1996. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus.; Farge e Foucault 1982FARGE, Arlete & FOUCAULT, Michel. 1982. Le désordre des familles. Paris: Gallimard/Julliard.; Herzfeld 2016HERZFELD, Michael. 2016. A produção social da indiferença: explorando as raízes simbólicas da burocracia ocidental. Petrópolis: Vozes.; Kant de Lima 1999KANT DE LIMA, Roberto. 1999. “Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público”. Revista de Sociologia e Política, 13:23-38.; Zarias 2008ZARIAS, Alexandre. 2008. Das leis ao avesso. Desigualdade social, direito de família e intervenção judicial. Tese de Doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo.; Freire 2015FREIRE, Lucas de M. 2015. A máquina da cidadania: uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional.; Vianna & Facundo 2015VIANNA, Adriana & FACUNDO, Ángela. 2015. “Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre ‘moradores de favelas’ e ‘refugiados’”. Ciência e Cultura, 67 (2):46-50.).
  • 7
    A média diária de pesquisas passou de 31 (Brasil 1992BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1992. Relatório das Atividades de 1991. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:9) a 73 (Brasil 1997BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1997. Relatório Anual de Atividades - 1996. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:38) em cinco anos. Ao longo de 1997, houve um total de 16.885 solicitações de pesquisas à SJR (Brasil 1998BRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. 1998. Relatório Anual de Atividades - 1997. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:33).
  • 8
    O protagonismo das ferramentas de busca para a construção do que, afinal, pode ser visto em um ambiente virtual é também abordado por Carolina Parreiras, neste mesmo dossiê, ao discutir etnograficamente possíveis conexões entre pornografia e Big Data e o modo como comportamentos e definições podem ser maquinicamente fixados por meio de categorias indexadoras como, por exemplo, as hashtags.
  • 9
    Até o início de 2023, quando finalizada a redação deste artigo, havia 21 notas cadastradas na página “Jurisprudência do STJ”, entre elas, “Casos Notórios” (que tiveram “grande repercussão na mídia ou representam uma decisão relevante no âmbito do Tribunal” [Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:171]), “Dano moral e estético”, “Dano moral coletivo”, “Quantidade de droga apreendida” (que resgata os Acórdãos em que se discute a distinção entre tráfico e uso próprio de drogas e dosimetria da pena, por exemplo (Brasil 2017cBRASIL. 1988. Superior Tribunal de Justiça. Subsecretaria de Jurisprudência. Coordenadoria de Classificação e Análise de Jurisprudência. 2017c. Manual do Analista. Seção de Seleção e Classificação (SCLAS). Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça .:177)), “Princípio da insignificância”, “Penhorabilidade ou impenhorabilidade de bens”, além de Acórdãos julgados sob o rito dos Recursos Repetitivos (RR) ou classificados como Incidentes de Assunção de Competência (IAC).
  • 10
    Pastas dos processos, desgastadas e volumosas, adornadas com etiquetas, carimbos e post-its, reunidas por elásticos, foram cuidadosamente acompanhadas por Bruno Latour (2019LATOUR, Bruno. 2019. A Fabricação do Direito. Um estudo de etnologia jurídica. São Paulo: Editora Unesp.), Andressa Lewandowski (2017aLEWANDOWSKI, Andressa. 2017a. O Direito em última instância: uma etnografia do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris.) e Ciméa Bevilaqua (2020BEVILAQUA, Ciméa. 2020. “Burocracia, criatividade e discernimento: lições de uma cafeteira desaparecida”. Revista de Antropologia, 63 (3):1-21.), mas também protagonizam a importante etnografia de Annelise Riles (2000RILES, Annelise. 2000. The network inside out. Ann Arbor: University of Michigan Press .), bem como pesquisas dedicadas às instituições carcerárias e socioeducativas (Reed 2006REED, Adam. 2006. “Documents Unfolding”. In: A. Riles (org.), Documents. Artifacts of modern knowledge. Ann Arbor: University of Michigan Press.; Munhoz 2013aMUNHOZ, Sara. 2013. “A elaboração dos documentos na medida”. R@U - Revista de Antropologia da UFSCar, 5 (2):70-81., 2017MUNHOZ, Sara. 2017. O governo dos meninos: liberdade tutelada e medidas socioeducativas. São Carlos: EDUFSCar.), à burocracia estatal (Bevilaqua 2008BEVILAQUA, Ciméa. 2008. Consumidores e seus direitos: um estudo sobre conflitos no mercado de consumo. São Paulo: Humanitas.; Perin 2022PERIN, Vanessa P. 2022. “A política dos documentos: notas sobre a resistência ao programa ProSavana no norte de Moçambique”. In: C. Morawska (org.), Engajamentos Coletivos nas Fronteiras do Capitalismo. São Carlos: EDUFSCar .), às atuações de instituições não governamentais (Morawska 2014MORAWSKA, Catarina. 2014. “A Trilha de Papéis da Usina Hidrelétrica de Belo Monte: tecnologias de cálculo e a obliteração da perspectiva dos povos impactados”. Revista Anthropológicas, ano 18, 25 (2):22-40. ) e às lutas de movimentos sociais variados que, para que possam reclamar seu direito à existência, precisam manejar cuidadosamente as linguagens das reuniões e dos relatórios (Mourthé 2015MOURTHÉ, Pedro Henrique. 2015. Entre documentos e as retomadas: movimentos da luta pelo território em Brejo dos Crioulos (MG). Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.; Mantovanelli 2020MANTOVANELLI, Thaís. 2020. “’Quanto vale a vida?’ Os Mēbengôkre-Xikrin do Bacajá e os Juruna da Volta Grande do Xingu contra a engenharia de cálculo e setores técnico-empresariais da hidrelétrica de Belo Monte”. In: J. Villela & S. Vieira (orgs.), Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária.; Ramos 2020RAMOS, Gustavo Moreira. 2020. Contradualismos no Opará: lideranças Tuxá no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos. ; Araújo 2022ARAÚJO, Paula Affonso. 2022. “É na terra e no mar que tá nossa subsistência”: resistência caiçara na Baía dos Castelhanos, Ilhabela. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.; Marcurio 2022MARCURIO, Gabriela de Paula. 2022. Tempo da reparação: luta e memória da comunidade atingida de Paracatu de Baixo, Mariana/MG. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos. ). Também se tornaram personagens corriqueiros em muitas destas narrativas os carrinhos que transportam essas pastas, os armários que as abrigam, os funcionários que as encaminham, as salas que as empilham. Em alguma medida, etnografar o sistema de justiça e os grupos ou as instituições que com ele se relacionam tem implicado, desde há muitos anos, na descrição de certa arquitetura, com os trânsitos que viabiliza e os ritmos que promove.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Adjunto:

John Comeford

Editor Associado:

Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2023
  • Aceito
    03 Jun 2024
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