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ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.

Na contemporaneidade, as possibilidades da vida e as potencialidades de ação econômica encontram-se cada vez mais na ponta dos dedos. Atualmente, basta o toque em um aparelho eletrônico ligado à internet para que seja possível comprar, vender, produzir, trocar e realizar todo tipo de serviço e transação imaginável. Entretanto, para que essas “maravilhas” (aspas minhas) do mundo moderno se desdobrem diante dos nossos olhos, novas formas de elaboração das forças produtivas são criadas, produzindo novos arranjos no mundo do trabalho. Tais arranjos geram uma série de questionamentos sociológicos para com os seus efeitos, muitas vezes danosos, do que se convencionou chamar de “capitalismo de plataforma” (:62ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.). É nisso que se desdobra a coletânea organizada pelo professor Ricardo Antunes, que traz 19 artigos de importantes pesquisadores brasileiros e estrangeiros em uma parceria entre a Unicamp e o Ministério Público do Trabalho (MPT). Os artigos dessa obra revelam uma nova dimensão do mundo do trabalho precarizado, cujo objetivo é trazer uma melhor compreensão dos múltiplos significados do universo laborativo nas plataformas digitais nos mais distintos setores produtivos.

Aqui, o termo “uberização”, uma derivação do nome da plataforma de transportes Uber, é empregado como um processo no qual as relações de trabalho são cada vez mais individualizadas e invisibilizadas, sendo o assalariamento e a exploração cada vez mais encobertos. Apresentado como uma espécie de generalização e espraiamento de características estruturantes da vida de trabalhadores da periferia, que transitam em uma trajetória de instabilidade e ausência de identidade profissional, permeados por insegurança e pela falta de redes convencionais de proteção. Esta é uma tendência em curso implementada por corporações globais e que se intensificou com o advento da pandemia de SARS CoV-2, que assolou o mundo nos anos 2019/2020, estando ainda em curso. Facilitada pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), a expansão dos aplicativos desenvolve e amplia de modo exponencial o infoproletariado ou ciberproletariado (Antunes & Braga 2009ANTUNES, Ricardo & BRAGA, Ruy (orgs). 2009. Infoproletráios: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo .).

O termo “indústria 4.0”, muito utilizado aqui, aponta para a ampliação dos processos produtivos cada vez mais automatizados e robotizados em toda a cadeia de valor controlada digitalmente, o que, segundo os autores Ricardo Antunes (cap. 1) e Rafael Grohmann (cap. 6), vem produzindo um vilipêndio em relação ao trabalho, destruindo a separação entre o tempo de vida dentro e fora dele, originando uma “escravidão digital” (Antunes 2018ANTUNES, Ricardo. 2018. O privilégio da servidão: o novo proletariado se serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.). Tal separação é evidenciada no papel dos “parceiros” que trabalham com/para estas plataformas, tendendo a permanecer longas horas do dia “on-line” para adquirir uma renda, muitas vezes insuficiente ou abaixo das condições mínimas para a sobrevivência. A noção de “parceria” aqui empregada utiliza-se largamente de tecnologias, algoritmos e inteligência artificial, canalizados para o lucro das empresas com um caráter onipresente e automático de supervisão e controle disciplinar dos trabalhadores detalhadamente explorado por Jamie Woodcook (cap. 2). As parcerias, como novas modalidades de trabalho digital, passam ao largo das regulações contratuais, transformando o “trabalho assalariado em prestações de serviços” (:11ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.). Tal forma poderia ser entendida outrora a partir do conceito de “informalidade”, mas este foi historicamente esvaziado para indicar processos mais gerais de “flexibilização”, “terceirização” e “desregulamentação”, e vem sendo recorrentemente substituído pelos termos empregabilidade, ou mais ainda, empreendedorismo, como novos modos de exploração capitalista (Silva 2002SILVA, Luiz Antônio Machado da. 2002. “Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho)”. Caderno CRH, Salvador, n. 37:81-109, jul./dez.).

A categoria “empreendedorismo” aqui é exemplar, pois trata-se de uma forma oculta de trabalho assalariado apresentada como “independente e autônoma” (:23ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.), uma vez que impõe ao trabalhador uma autoimagem de proprietário e proletário de si mesmo. Ele detém um grau de liberdade (por mais que ilusória) para a realização da função, sendo também ele quem assume os riscos e os custos da realização do serviço prestado. Ideologicamente acionada, a categoria mencionada acima atua aqui com o intuito de, por um lado, mascarar as contradições de classes produzidas pelo capital, por outro, explicita e coloca em evidência suas diferenças. O trabalhador converte-se assim em um “quase-burguês” (:16ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.) que “autoexplora” seu próprio trabalho.

O ambiente de trabalho moderno, com ênfase no curto prazo, não permite que as pessoas desenvolvam narrativas coerentes para suas vidas, reforçam os autores Tonelo (cap. 9) e Filgueiras e Cavalcante (cap. 11). Realçado pela “força dos laços fracos” (Granovetter 1973GRANOVETTER, Mark. 1973. “Strength of the weak ties”. American Journal of Sociology, 78:1360-1380. ), as formas passageiras de associação se apresentam mais úteis que as ligações de longo prazo, sobretudo nas qualidades de produção de relações sociais duráveis e sustentáveis. Tal argumento vai ao encontro da expressão “capitalismo flexível” (Sennet 1998SENNET, Richard. 1998. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. São Paulo: Ed. Record.) no que diz respeito à imposição feita aos trabalhadores para que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças de curto prazo, assumam riscos e dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais. Esta dinâmica entre o trabalho e a vida pessoal não pode ser programada ou adequada, impondo o constante receio de uma falta de disciplina ética. Assim, é possível assimilar na obra a inexistência atual de longo prazo, pois a redução do trabalhador a um fator de produção utilizado na exata medida das demandas do capital coloca-o inteiramente disponível ao trabalho, mesmo que nem sempre remunerado para isso.

As empresas se apresentam como mediadoras da oferta e da procura, embora sejam elas que detêm os meios de controle sobre o gerenciamento, a distribuição e a definição de valores pagos pelos serviços prestados. Aqui, a própria categoria de “trabalho” pode ser expressa a partir de seu contraponto, o “não trabalho”, haja vista que ambas possuem, segundo o antropólogo Mariano Perelman (2014PERELMAN, Mariano. 2014. “Vivendo el trabajo. Transformaciones sociales cirujeo yventa ambulante”. Trabajo y Sociedad, n. 23:45-65.), definições historicamente carregadas de sentidos objetivos e subjetivos que são valorados independente da tarefa em si. Enquanto algumas atividades são mais legitimamente consolidadas como tal, outras, muitas delas exploradas pelo capitalismo de plataforma, encontram-se em uma zona cinzenta entre o trabalho e o não trabalho. A forma como são vistas impacta os modos como as pessoas se relacionam (consigo mesmas, umas com as outras e com as instituições) e como vivem e expressam suas conformidades e desconformidades referentes aos seus modos de vida.

A noção de “precariado”, ou precariedade, conceito elaborado por diversos autores das mais variadas correntes de pensamento, é empregado aqui por Graham e Anwar (cap. 3), Filgueiras e Antunes (cap.4) tal como na sociologia do trabalho, tanto no sentido das condições de trabalho quanto na experiência subjetiva de insegurança vividas por empresas e por trabalhadores. Se, por um lado, as empresas forçam os trabalhadores à precariedade, elas também operam precariamente como plataformas enxutas. Com isso, o modelo imprime duas ilusões inter-relacionadas. A primeira é a ilusão do controle por parte das empresas, que dependem inteiramente da coleta de dados para a determinação da força de trabalho; a segunda é a ilusão da liberdade por parte dos “parceiros”, que têm suas rotinas inteiramente gerenciadas por parte das plataformas, mas sem o “espetáculo da autoridade” (:44ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.), muitas vezes personificada na figura do chefe. As pressuposições aqui são de que o “precariado” seria o surgimento de uma nova classe social (Standing 2011STANDING, Guy. 2011. The precariat: the new dangerous class. Londres: Bloomsbury Academic.), distinta do assalariado, inserido em atividades desprovidas de direitos, estabilidade e garantias de renda, não sendo algo estático, mas um processo (:77ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.) que ora amplia, ora reduz a capacidade de resistência, revolta e organização.

Notadamente, os autores reforçam que é inegável apontar para a importância do papel da tecnologia na elaboração da “natureza do trabalho digital” (:48ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.). A ligação entre o tempo e a distância foi, assim, quase inteiramente rompida, permitindo que a questão geograficamente localizada do trabalho fosse superada. Tal superação insere uma condição de concorrência entre os trabalhadores de todo o mundo, diminuindo cada vez mais o seu poder de barganha.

Apesar de conclusões não muito esperançosas, os autores que contribuem nesta obra, tal como Ludimila Abílio (cap.7) e Marco Gonsales (cap.8), buscam finalizar com uma nota positiva, explorando as novas formas de associação, sindicalização e organização de trabalhadores que visam contra-atacar as narrativas empresariais e os vilipêndios aos direitos adquiridos pela nova regulação trabalhista. As disputas pela “inovação” movem-se para o campo político e de marcos regulatórios legais que possuem um centro de gravidade ainda desfavorável às demandas e às exigências dos trabalhadores. A assimetria de forças evidenciada entre o capital e o trabalho não é parte de um processo inexorável, mas resultante de constantes disputas na assimilação desta narrativa, cuja designação entre organização da produção e do trabalho no capitalismo atual é respondida criticamente.

O livro fecha com uma série de capítulos que abordam estudos de caso, pesquisas qualitativas e análises etnográficas que contêm discussões e diálogos diretos, tais como: direito ambiental (Schinestsck, cap. 5); direito do trabalho (Praun & Antunes, cap. 12); cadeia de automação (Pinto, cap. 13; Festi, cap. 10); trabalho digital e educação (Previtali & Fagiani, cap. 14); o trabalho digital nos bancos (Nogueira, cap. 15); saúde de trabalhadores (Nogueira, cap. 16); “walmartização” (Lemos, cap. 17); transnacionalização (Aguiar, cap. 18) e ciberativismo e sindicalismo (Roque, cap. 19), evidenciando a multiplicidade de abordagens e formas com as quais o capitalismo de plataforma tem se inserido nos processos produtivos atuais. Assim, a obra, além de ser uma referência aos pesquisadores do tema, se torna uma leitura essencial e obrigatória para quem se interessa em explorar as questões mais atuais e originais referentes a este universo. É, sem dívida, uma leitura de peso que contribui de maneira veemente para a consolidação dos debates das ciências sociais contemporâneas.

Referências bibliográficas

  • ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp.
  • ANTUNES, Ricardo. 2018. O privilégio da servidão: o novo proletariado se serviços na era digital São Paulo: Boitempo.
  • ANTUNES, Ricardo & BRAGA, Ruy (orgs). 2009. Infoproletráios: degradação real do trabalho virtual São Paulo: Boitempo .
  • GRANOVETTER, Mark. 1973. “Strength of the weak ties”. American Journal of Sociology, 78:1360-1380.
  • PERELMAN, Mariano. 2014. “Vivendo el trabajo. Transformaciones sociales cirujeo yventa ambulante”. Trabajo y Sociedad, n. 23:45-65.
  • SENNET, Richard. 1998. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo São Paulo: Ed. Record.
  • SILVA, Luiz Antônio Machado da. 2002. “Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho)”. Caderno CRH, Salvador, n. 37:81-109, jul./dez.
  • STANDING, Guy. 2011. The precariat: the new dangerous class Londres: Bloomsbury Academic.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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