Resumo em Português:
Partindo da noção de predação familiarizante, este artigo visa discutir a relação entre canibalismo e comensalidade na Amazônia, tomando-os como formas diferenciadas, mas articuladas, de consumo. Começa-se por uma análise da relação entre guerra e caça em ontologias que atribuem aos animais a condição de pessoa. Discute-se o encadeamento dos ciclos de predação de humanos e animais por meio das concepções de doença e de resguardo. Argumenta-se que a comensalidade é um vetor de identificação que opera sobre um objeto, a comida, que deve ser produzido enquanto tal para que os parentes não se identifiquem ao animal consumido. Analisam-se os mecanismos de dessubjetivação da presa e argumenta-se que eles se erguem sobre a partibilidade das pessoas, a qual não deve ser reduzida a um dualismo simples e global entre corpo e alma. Sugere-se uma outra leitura para esse fato e se a aplica, por fim, à antropofagia guerreira e funerária.Resumo em Inglês:
Taking the notion of familiarizing predation as a starting point, the article sets out to articulate two forms of consumption in Amazonia: cannibalism and commensality. It begins by analyzing the relationship between war and hunting in ontologies that attribute the condition of persons to animals. The interlocking of the human and animal predatory cycles is made manifest by the analysis of indigenous practices concerning illness, seclusion and food taboos. The article explores then the idea that commensality is a vector of identification for the production of kinship. As such it presupposes the transformation of the animal prey into an object, in order to block the identification of the eater with the thing consumed. The practices for de-subjectifying the prey are analyzed, bringing forth the argument that they are based on a specific conception about the partibility of the person, one which shall not be reduced to a simple and global body and soul dualism. The article offers a different rendering of this partibility, shedding new light on warfare and funerary anthropophagy in Amazonia.Resumo em Português:
A importância dos sistemas de nominação para a compreensão das sociedades e culturas ameríndias é hoje amplamente reconhecida, mas as informações sobre esse tópico concernentes aos povos Tukano do Noroeste Amazônico permanecem esparsas e dispersas. Tomando os Barasana e seus vizinhos como referência, este artigo apresenta alguns dados básicos quanto à onomástica tukano e discute similaridades entre as patrilinhagens tukano e os grupos de perfil "matrilinear" entre os Jê e os Bororo. Em ambos os casos, nomes e ornamentos estão ligados enquanto aspectos da riqueza e do espírito dos grupos. Por meio de um exame da transmissão onomástica como um dos componentes dos rituais que envolvem o nascimento, o artigo explora também a relação entre nomes, sangue, ossos e sopro como aspectos da pessoa. Finalmente, situa a onomástica tukano em um contexto comparativo mais amplo, argumentando que sua combinação de exonímia e endonímia, assim como a ausência de transmissão intervivos, a distingue das formas mais "puras" de endonímia encontradas entre os Bororo e os Kayapó.Resumo em Inglês:
The importance of systems of naming for an understanding of Amerindian society and culture is now widely recognized but information on this topic relating to the Tukanoan-speaking peoples of north-west Amazonia remains sparse and scattered. Using the Barasana and their neighbours as a point of reference, this article presents some basic data on Tukanoan onomastics and discusses points of similarity between Tukanoan patrilineages and the matrilineage-like groupings amongst the Gê and Bororo. In each case, names and ornaments are linked as aspects of corporate wealth, property and spirit. Through an examination of name transmission as one component of the rituals surrounding childbirth, the article also explores the relation between names, blood, bone and breath as aspects of personhood. Finally it sets Tukanoan onomastics in a wider comparative context, arguing that their combination of exonymy and endonymy and absence of inter-vivos name transmission sets the Tukanoans apart from the more 'pure' form of endonymy found amongst the Bororo and Kayapo.Resumo em Português:
Neste ensaio, analiso a recorrência das categorias grosseria (rudeness) e ofensa (offence) no discurso sobre a amizade de um grupo de ingleses de camadas médias em Londres. Mais do que outros sentimentos ditos positivos, a menção freqüente a essas categorias aponta para uma tensão que atravessa o discurso sobre a amizade e que problematiza o espaço das amizades no conjunto mais amplo das relações sociais. Adoto, aqui, uma abordagem pragmática dentro do campo da "antropologia das emoções". Se, em um primeiro momento, os estudos priorizavam a relativização das categorias de emoções entre as culturas, verifica-se, mais recentemente, um movimento no sentido de tomar os discursos emotivos como práticas situadas em jogos de relações sociais e negociações de poder. Com isso, a emoção deixa de ser vista como experiência interna, subjetiva, para ser analisada como prática discursiva com efeitos externos, extrapolando o chamado domínio do privado.Resumo em Inglês:
In this essay, I discuss the presence of the categories rudeness and offence in the discourse on friendship produced by a group of middle class English people resident in London. The frequent reference to these categories, rather than to the so called positive emotions, reveals the tensions regarding the negotiation of personal space which crosscut this discourse, which in turn highlight the problematic space that friendship occupies within the field of social relations. This essay draws on the analytical tools of a pragmatic approach within the area known as "anthropology of emotions", developed in the last decade in the Unites States. If at first emotion concepts were mainly studied cross-culturally, nowadays they are seen as discursive practices situated within the wider field of social relations and negotiations of power. As such, emotions cease to be treated as an internal, purely subjective experience, in order to be analysed as a discursive practice with external effects on both private and public spheres.Resumo em Português:
Este ensaio pretende examinar vários aspectos da sociocosmologia dos Ikpeng, povo ameríndio do sul da Amazônia. Através de um esforço de absorção de vários conceitos ikpeng em seu vocabulário analítico, ele explora a convergência das noções de afeto (não de relação) e de devir (não de transformação) desse povo em um plano sociopolítico composto por uma mistura de povos e espécies (não de pessoas). Nesse plano, o xamã figura como uma anomalia de espécie, posição alcançada pela sua exposição à morte múltipla, versão radicalizada da auto-intoxicação do sujeito ao longo da vida. Sustentadas por uma cosmologia animista/xamânica, tais concepções se provam incompatíveis com os modelos humanistas do sociopolítico predominantes na antropologia contemporânea. Seguir essa linha de pensamento indígena expõe também uma modelagem não-orgânica de diferença sexual intrínseca às composições transespecíficas envolvidas nos rituais ikpeng, mas cujos primeiros pontos de emergência são a iniciação xamânica dos meninos e a menstruação das meninas.Resumo em Inglês:
This essay examines various aspects of the sociocosmology of the Ikpeng, an Amerindian people of southern Amazonia. Through an attempted absorption of various Ikpeng concepts into its analytic vocabulary, it explores the convergence of the notions of affect (not relation) and becoming (not transformation) of this people on a sociopolitical plane composed by a mixture of peoples and species (not persons). On this plane, the shaman figures as a species anomaly, a position achieved via his exposure to multiple deaths, a radicalized version of the self-intoxication experienced throughout a subject's lifetime. Sustained by an animistic/shamanic cosmology, these conceptions prove incompatible with the humanistic models of sociopolitics predominant in contemporary anthropology. Following this indigenous line of thinking also exposes a non-organic modelling of sexual difference, intrinsic to the trans-species compositions involved in Ikpeng rituals, but whose first points of emergence are the shamanic initiation of boys and the menstruation of girls.Resumo em Português:
Como analisar um antigo grupo, o dos descendentes da nobreza, inventado e reinventado diversas vezes no curso de sua história, suprimido da Constituição e a seguir reabilitado de modo mais ou menos visível, e que, na França, bem como em outros países, não cessa de se desagregar? Como pensar a extrema diversidade e a unidade relativa desse conjunto, das quais é preciso também indagar se são ou não fictícias? Mais, talvez, que os recursos simbólicos comuns, o que contribui para a manutenção de uma forma de coesão é a densidade das relações e das trocas de toda sorte entre eles. Mas essa coesão tende a tornar-se cada vez mais difícil. No atual estado da pesquisa, parece que os descendentes da nobreza não podem ser analisados como um corpo nem como um grupo relativo ainda que essas interpretações mereçam atenção , e sim como um espaço, sob condição de que se examine a dinâmica e os processos que o atravessam.Resumo em Inglês:
How should one analyze the descendants of the nobility in France? This ancient group has been invented and re-invented many times along its history. The Constitution suppressed it, then later on it was quite visibly rehabilitated, and it is always becoming disaggregated, in France as well as in other countries. How should one approach both this group's extreme diversity and its relative unity, which also have to be questioned as to their fictitiousness? Maybe the dense relationships and exchanges of all sorts between the descendants of the nobility contribute to the maintenance of some form of cohesion more than the symbolic resources they have in common. But this cohesion is becoming ever more difficult. At the present moment of the research, it seems that the descendants of the nobility cannot be analyzed neither as a body nor as a relative group even though these interpretations deserve attention but rather as a space, as long as the dynamism and the processes that crosscut it are analyzed as well.Resumo em Português:
Este artigo parte da hipótese da existência de uma pluralidade de cenas sociais em que os indivíduos interagem e as ações individuais adquirem sentido. A cada cena social correspondem racionalidades práticas diferentes. O exame das práticas de mensuração e contabilidade permite distinguir essas cenas e compreender como se articulam entre si. Para mostrar a diversidade de raciocínios nativos, utiliza-se primeiro a diversidade das unidades de medida usadas por horticultores amadores. Em seguida, examinam-se os quadros rituais de diversas transações e mostra-se que o consumidor racional no sentido da teoria utilitarista pode não recorrer a nenhum cálculo explícito, pois o ethos ascético encontra-se inscrito nas rotinas corporais. Para concluir, o artigo convida a um estudo sistemático da socialização econômica e propõe três pistas para a pesquisa: a descrição da diversidade de cenas sociais, a análise dos quadros rituais das transações, e o estudo das percepções dos constrangimentos e das práticas de autocontrole nas diversas classes sociais. O artigo sugere que, dessa forma, se poderiam definir domínios de validade para as formalizações matemáticas das condutas humanas elaboradas pelos economistas.Resumo em Inglês:
This article proceeds from the hypothesis that a plurality of social scenes exist in which individuals interact and individual actions acquire meaning. Each social scene corresponds to different practical rationalities. Examining the practices involved in measuring and counting allows us to distinguish these scenes and comprehend how they are mutually interconnected. As a demonstration of the diversity of native reasoning, the article first turns to the wide variety of units of measurement used by amateur horticulturists. Next, it examines the ritual settings of various transactions and shows that the rational consumer in the sense expounded by utilitarian theory need not rely on any explicit calculation, since the ascetic ethos can be found inscribed in body routines. In conclusion, the article calls for a systematic study of economic socialization and outlines three leads for such research: description of the diversity of social scenes, analysis of the ritual settings of transactions, and study of the perceptions of constraints and the practices of self-control among the various social classes. The author suggests such an approach may enable us to define domains of validity for the mathematical formalizations of human behaviours developed by economists.Resumo em Português:
O recente livro de Mariano Plotkin sobre a "cultura psicanalítica" na Argentina suscita amplas discussões sobre o papel da psicanálise na dinâmica das diferentes sociedades nacionais no âmbito da cultura ocidental moderna. É particularmente rico para a comparação entre aquele país e o Brasil, onde também se deu uma difusão importante da psicanálise em período homólogo ao da Argentina. O fenômeno em questão mereceu de Plotkin uma análise muito complexa e minuciosa, reveladora das principais tensões constitutivas da história argentina ao longo do século XX, envolvendo as relações com a psiquiatria e a medicina, com a psicologia, com o "peronismo" e com a militância de esquerda. Sublinho a importância de sua demonstração do caráter de "linguagem social" que assumiu a "cultura psicanalítica" na sociedade argentina; assim como a da descrição do processo de difusão da psicanálise pelos meios de comunicação (que ensejou uma amplitude social de recepção maior do que a que se deu no Brasil). Enfatizo também a relevância analítica de sua demonstração da associação dessa difusão a um "cientificismo" generalizado na sociedade argentina, associado às características peculiares da "modernização" cultural desse país.Resumo em Inglês:
The recent book by Mariano Plotkin about the "psychoanalytical culture" in Argentina brings forth ample discussions about the role of psychoanalysis in the dynamics of different national societies within the scope of modern Western culture. The comparison between Argentina and Brazil is particularly rich, as also in the latter a significant diffusion of psychoanalysis took place during an homologous period. Plotkin presents a very complex and minute analysis of the phenomena in focus. His analysis reveals the main constitutive tensions of Argentine history during the XXth century, approaching the relationships with psychiatry, medicine, psychology, as well as with "Peronism" and lef-wing militancy. I emphasize the importance of his demonstration that "psychoanalytical culture" has become a "social language" in Argentine society, as well as the importance of his description of the diffusion of psychoanalysis by mass communication (which led to a wider social range of reception than in Brazil). I also emphasize the analytical relevance of his demonstration of the association between this diffusion and a generalized "scientism" of Argentine society, which is connected to the particular characteristics of that country's cultural "modernization".