Open-access DINÂMICA URBANA DE ESPAÇOS EM CRISE: PORTO PRÍNCIPE/HAITI

Resumo

Esse artigo aborda as diversas facetas de crises que se espacializam no meio urbano. O texto desse artigo, à luz da dinâmica que rege o espaço geográfico, se debruça sobre as crises urbanas e lança um olhar focal sobre o caso do Haiti, avaliando as repercussões das crises que se entrecruzam (crise política, luta armada, intervenção externa, bruscos fenômenos naturais - terremoto e furacões -, dentre outros) no espaço urbano de Porto Príncipe, sua capital. Para a produção desse artigo, a pesquisa se desenvolveu em duas frentes: recorreu-se às fontes bibliográficas acerca do Haiti e da própria temática em foco; e fez-se entrevistas diretas com militares que participaram, representando o Exército Brasileiro, da Missão de Paz da ONU no Haiti. Analisa-se a relação entre a produção material do espaço e a sua ocupação e uso social, trazendo elementos para entender a profunda fragmentação que há na cidade gerando uma dinâmica interna absolutamente dicotômica entre uma pequena elite e a imensa população que vive em espaços de exceção. Mais que apresentar uma miríade de informações e dados sobre o paupérrimo país antilhano, esse artigo, a partir de uma realidade concreta, lança "flechas" interpretativas sustentado na análise da configuração territorial e, assim, estimula o debate que, para além da perspectiva local, tende a encontrar reflexo em vários outros lugares do mundo.

Palavras-chave: Crise; Espaço urbano; Haiti; Porto Príncipe; MINUSTAH

Resumen

Este artículo aborda las diversas facetas de la crisis que se materializó en el espacio urbano. El texto de este artículo, a la luz de las dinámicas que rigen el espacio geográfico, se centra en las crisis urbanas y echa un vistazo al caso focal de Haití, evaluar el impacto de las crisis que se cruzan (crisis política, los conflictos armados, la intervención externa, los desastres naturales repentinos - terremotos y huracanes - entre otros) en el área urbana de Puerto Príncipe, la capital. Para la producción de este artículo, la investigación se ha desarrollado en dos frentes: se recurrió a las fuentes bibliográficas sobre Haití y su propio enfoque temático; y hubo entrevistas directas con los soldados que tomaron parte, en representación del Ejército de Brasil, la Misión de Mantenimiento de la Paz de la ONU en Haití. Este artículo análisis la relación entre la producción de material de espacio y su ocupación y uso social de proporcionar elementos para comprender la profunda fragmentación que hay en la ciudad generando un absolutamente dicotómicas dinámica interna entre una élite y la gran población que vive en los espacios de excepción. En lugar de presentar una gran cantidad de información y datos sobre el empobrecido país antillano, en este artículo, a partir de una realidad concreta, lanza "flechas" de interpretaciones sostenidas en el análisis de la configuración territorial y por lo tanto estimula el debate, más allá de la perspectiva local tiende a reflejarse en muchos otros lugares del mundo.

Palabras Clave: Crisis; El espacio urbano; Haití; Puerto Príncipe; MINUSTAH

ABSTRACT

This paper addresses the different facets of the crisis that take place in the Urban space. The discussing of this article, considering the dynamics that leads the geographical area, focus its attention on urban crisis and puts its eyes on Haiti case. Evaluating the repercussions of the crisis that interwoven themselves (political crisis, armed struggle, external intervention, sudden natural disasters - earthquakes and hurricanes) in the Urban space of Port Prince, its capital. In order to produce this paper the research was conducted in two ways: consulted the bibliographical resources on Haiti and on the theme on focus itself; and it was done direct interviews with militaries that took part, representing Brazilian Army, in the United Nations Mission in Haiti. This article analyses the relation between documental production of the space and its occupation and social use, bringing elements to understand the deep fragmentation that exist in the city, which generates a internal dynamics completely dichotomous between the small elite and the huge population that lives in places of exception. More than present a myriad of information and data about the very poor Antillean country, this paper, considering a concrete reality, suggests some nuances of interpretations based on the analysis of the territorial configuration, and, thus, encourages discussions that, beyond the local perspective, try to find out a reflect in many other places in the world.

Key words: Crisis; Urban Space; Haiti; Port Prince; MINUSTAH

INTRODUÇÃO

O Haiti nos é apresentado pela mídia sob duas perspectivas: ou como mais um destino turístico na paisagem caribenha ou como um "país exemplo" dos piores indicadores socioeconômicos do mundo afora. Mais recentemente, precisamente nas duas últimas décadas, fruto de conflitos internos pela sucessão do poder e de violentos eventos naturais, o segundo caso tem enublecido o primeiro.

A realidade de pobreza e exclusão, especialmente para os moradores das grandes cidades de países periféricos (mas também em guetos de cidades de países centrais), está presente na paisagem do cotidiano, o que Davis (2006) chama de "planeta favela".

É possível verificar espaços segregados, de baixa renda, com péssimas condições infraestruturais em diversos cantos do mundo, entretanto, nada parece tão chocante quanto a realidade concreta da vida que corre na principal cidade e capital haitiana: Porto Príncipe.

Se a nossa contemporaneidade é marcada por crises e elas se assentam, fundamentalmente, no espaço urbano, parece-nos que no Haiti há uma vetorização de mais de um condicionante das crises dos nossos tempos produzindo uma organização e dinâmica territorial completamente peculiar e perversa.

Ou seja, é nesse cenário de crises que possuem um alcance global, visto que repercutem diferentemente e com maior ou menor intensidade em todos os países, que surgiu o estímulo para pensar na dinâmica de um espaço urbano que representa no imaginário global (pela veiculação midiática) a carência e exclusão, os conflitos e a própria crise.

Objetiva-se, então, no texto desse artigo, tendo como foco a organização do espaço geográfico, analisar a dinâmica territorial do Haiti, notadamente da sua capital, Porto Príncipe, num contexto em que variadas instâncias de problemas "tocam" num mesmo lugar (crise política, luta armada, intervenção externa, bruscos fenômenos naturais - terremoto e furacões -, dentre outros).

Entendendo o espaço como uma totalidade, acompanhando o pensamento de Lefebvre (1979), busca-se enfim desvendar como que se dá a vida na esfera concreta do acontecer cotidiano dos cidadãos haitianos em Porto Príncipe. Como que as relações entre o Global e Local se transformam em espaço concreto e estratégias de subversão das variadas crises que tomam aquele país e cidade.

Para a construção deste texto, além da pesquisa bibliográfica, foi fundamental o desenvolvimento de entrevistas com representantes, em vários níveis, do Exército Brasileiro que participaram da Missão de Paz da ONU no Haiti. Fruto desse rico produto de coleta primária, estrutura-se o escrito que segue em duas seções: (1) Uma contemporaneidade de crises, onde se pretende situar espaço-temporalmente o contexto das crises dos nossos tempos; (2) A territorialização da crise no Haiti: A leitura empírica do Espaço banal, onde se desenvolve uma avaliação preliminar da organização territorial e desdobramentos históricos mais recentes (mormente após a ocupação do país pelas forças de paz da ONU - a MINUSTAH MINUSTAH, United Nation Stabilization Mission in Haiti)), uma estratégia fundamental para entender a região antes de se debruçar sobre os processos que se dão na cidade capital; Essa segunda seção se fragmenta em duas subseções: (2.1) Ocupação e uso do território na nossa contemporaneidade: a presença da ONU e (2.2) Marcas gerais da configuração territorial do Haiti, onde se faz uma breve historicização das relações territoriais no país caribenho, desde a sua independência até, e especialmente, o início do século XXI com a ostensiva presença das forças de paz da ONU, busca-se também apresentar elementos da configuração territorial da principal cidade do Haiti, avaliando criticamente a relação entre a produção material do espaço e a sua ocupação e uso social, trazendo elementos para entender a profunda fragmentação que há na cidade gerando uma dinâmica interna absolutamente dicotômica entre uma pequena elite e a imensa população que vive em espaços de exceção.

Nesse texto, limitado pela dimensão de um artigo e pela breve pesquisa de campo, pretende-se apresentar à discussão subtemas como a importância das doações e remessas de capitais para espaços periféricos (por outro lado, a evasão de jovens emigrantes); o papel das ONGs no assistencialismo e/ou oportunismo frente à profunda exclusão; as mazelas do capital que, mesmo em cenários de intensa crise, encontra meios de se reproduzir (feiras locais e mercados para a população de alta renda, venda de "importados", turismo - produto: mar do Caribe -, serviços, produção interna, abastecimento e infra-estrutura para os dois circuitos da economia - superior e inferior - de uma cidade segregada).

Assim, ressalva-se, desde já, que não se pretende apresentar uma miríade de informações e dados sobre o paupérrimo país antilhano, mas a partir da sua realidade concreta lançar "flechas" interpretativas sustentado na análise da configuração territorial e, assim, estimular o debate que, para além da perspectiva local, tende a encontrar reflexo aqui e em vários outros lugares do mundo.

UMA CONTEMPORANEIDADE EM CRISE

Formação de territórios do tráfico no Rio de Janeiro que confrontam o "poder legal"; mais de 60% de habitações subnormais (com algum tipo de carência ou legalidade - déficit habitacional qualitativo) em Salvador (ANDRADE; BRANDÃO, 2009); formação de gangues de jovens desocupados em Lisboa; aflição de pais de pós-adolescentes de classe média em pequenas cidades dos EUA por conta da falta de oportunidades de empregos; ampliação do número de homicídios a policiais em São Paulo (com números de óbitos similares a áreas em guerra); choques entre forças opositoras no Cairo; ampliação de movimentos xenófobos em cidades alemãs e francesas; contínuo temor de ataques terroristas em Jerusalém; bruscas limitações à liberdade individual em Nanquim; carências infraestruturais de toda ordem em cidades como Cabul e Porto Príncipe; denúncia de esquemas de corrupção em órgãos públicos em Brasília.

Essas informações tem algo em comum. São problemas que acontecem nas cidades.

O mundo tornou-se urbano! Medida a imensa diversidade do que se considera urbano (inclusive com variação de metodologia entre os países), é fato que a maior parte dos mais de sete bilhões de humanos residem em aglomerações que chegam aos milhões de pessoas. Esse ajuntamento demográfico, por conta do choque de interesses, é um inevitável espaço de conflitos. Como alerta Tuan (2005, p.251): "a cidade [...é] uma complexa sociedade de pessoas heterogêneas vivendo perto umas das outras. [...] a heterogeneidade é também uma condição que incentiva o conflito".

A cidade que, originalmente, era o espaço da proteção contra a barbárie e da convivência pública, passa a ser também o espaço das tensões e do medo. Marcelo Lopes de Souza (2006) lembra essa dicotomia no título do seu livro: "A Prisão e a Ágora". O espaço onde vivem os humanos é também a sua prisão. Nas cidades, especialmente nas grandes, vivemos aprisionados nos nossos castelos (quartos, casas, carros, escritórios, condomínios fechados, parques e clubes privativos, etc.), "protegidos" do outro, minimizando as possibilidades de convivência com o diferente. Souza (2006, p.20) insiste que "o que predomina, o que prevalece é o medo - sempre um inimigo da liberdade. Em que se vão transformando tantas e tantas grandes cidades de hoje, convertidas em verdadeiras 'fobópoles'(gr. phóbos=medo), em cidades do medo?"

Essa instigante questão aponta para a clara ideia de que se vive em espaços urbanos "doentes". Vive-se em crise! Nesse sentido, Topalov (1991) lembra que a "crise" esteve sempre presente desde que se pensou em racionalizar o espaço urbano, ou seja, apesar do uso da mesma terminologia, a composição de variáveis e especificidades produziu ao longo dos últimos séculos "diversas" crises urbanas. A contemporaneidade não foge a este ritual.

Pode-se afirmar que tanto é uma crise do urbano em confronto com a sua matriz grega (HABERMAS, 1984), como é também uma diversidade de crises nas cidades; as peculiaridades que marcam cada lugar definem a dimensão, as características e as formas de enfrentamento dos problemas que aqui, ali e acolá se espacializam.

É sobre essa cidade em crise que se debruça Ermínia Maricato para apresentar questões fundamentais de difícil enfrentamento:

Que fazer com a cidade ilegal e violenta? E com as áreas ambientalmente frágeis, ocupadas pela moradia pobre? Quais seriam as soluções, a curto e médio prazo, para as tragédias decorrentes de enchentes, desmoronamentos, incêndios e epidemias? Como enfrentar o mercado imobiliário altamente especulativo e excludente? Como combinar a ocupação do solo urbano e o sistema viário com as unidades de gestão baseadas em bacias e sub-bacias hidrográficas? Como implementar a função social da propriedade? Como fazer, objetivamente, o controle do uso do solo (um dos setores mais corruptos das gestões municipais) protegendo áreas ambientalmente frágeis e assegurando a ampliação da oferta de moradias sociais? Como convencer a sociedade e governos das prioridades demandadas pelos problemas de drenagem e saneamento? Que fazer com o comércio informal que ocupa os espaços públicos? Como garantir alguns padrões mínimos de habitabilidade em favelas já urbanizadas? Quais são esses padrões mínimos para o conforto domiciliar, a circulação viária e de pedestres, as áreas públicas, a coleta do lixo, o saneamento e sua manutenção? Como fomentar o engajamento social para a resolução de problemas que ultrapassem as reivindicações pontuais? (MARICATO, 2001, p.49)

Certamente essas questões elencadas por Maricato têm reflexo em diversas cidades pelo mundo afora, especialmente no meio urbano de países periféricos onde as mazelas do capital fragmentam ainda mais bruscamente os espaços produzindo paisagens reveladoras da segregação e exclusão urbanas.

Tratando dos problemas que abundam em cidades periféricas da América Latina, Kovarick (1979) desnaturaliza a crise, afirmando que na verdade não há desordem, mas uma perversa lógica na organização do espaço social que produz como resultado, mas também como um dinâmico processo em curso, a espoliação urbana.

Talvez a faceta mais perversa desse espaço urbano espoliado seja a desumanização das relações (SANTOS, 2000, p.46 e 85). Um morador de rua, um pedinte no semáforo, um transeunte que passa mal ou notícias de homicídios e outras barbáries em bairros periféricos, emocionam o tempo da próxima buzina ou da preocupação seguinte na trôpega e insensível vida nas grandes cidades.

O sociólogo alemão Georg Simmel, no início do século XX, ensina que é fundamental para entender essa desvinculação das sentimentalidades nas relações sociais urbanas, relacioná-la ao domínio econômico que a envolve. Ainda, que

a racionalidade dos fenômenos não é comensurável com o principio pecuniário. O dinheiro se refere unicamente ao que é comum a tudo: ele pergunta pelo valor de troca, reduz toda qualidade e individualidade a questão: quanto? Todas as relações emocionais íntimas entre pessoas são fundadas em sua individualidade, ao passo que, nas relações racionais, trabalha-se com o homem como um número, como um elemento que é em si mesmo indiferente. Apenas a realização objetiva, mensurável é de interesse. (SIMMEL, 1976, p.13)

A lógica do capital que envolve e absorve todas as relações nessas metrópoles, gerando a sua própria atratividade como nó de diversas redes em variadas escalas, também determina as relações entre os homens que aí habitam, não "permitindo" sentimentalidade e um nível de envolvimento que não são compatíveis com o domínio do dinheiro. O autor chega a tratar das relações anônimas que se dão nesse espaço. A esse respeito podemos atualizar com exemplos de "sexo virtual" e "casamentos pela internet". Essa temática também estimula o debate acerca da invisibilidade do cidadão no espaço público que outrora se configurava, conforme Habermas, como o espaço da visibilidade e da relação política entre os habitantes e, na atualidade (desde Simmel, final do século XIX) é engolfado por uma esfera social que limita as individualidades a espaços restritos, transformando os espaços públicos em espaços da massa. O que significa um pedinte ou um menor abandonado, além do "risco", para a população apressada de uma movimentada rua da metrópole?

Segundo o Simmel (1976, p.16), a racionalidade do dinheiro "torna-se o denominador comum de todos os valores: arranca irreparavelmente a essência das coisas, sua individualidade, seu valor específico e sua incomparabilidade".

Tratando da sua experiência de vida e dos seus trabalhos como antropólogo e sociólogo urbano, o paulista Flávio Pierucci (2003) estuda a cidade como campo de união física das diferenças, ou ao menos de evidência dessas diferenças. Racismos, movimentos xenófobos, segregação (tentativa) socioespacial são exemplos cotidianos, nas mais variadas escalas, dessas experiências de contatos sociais entre os diferentes no meio urbano. O autor resgata Simmel para tratar do modo de vida urbano onde há grande aproximação física, porém sem envolvimento social. A crença da invisibilidade na multidão. Pierucci afirma que a indiferença ao outro só se dá quando não há conflito na relação territorial. Por outro lado, se um domínio territorial (hábitos, crenças, espaços, etc.) é questionado a tensão se instaura e a "culpa" recai sobre o diferente, o outro. Se as diferenças que originaram a crise estão na esfera dos valores individuais ou de grupos, o problema se agrava, pois não há termo pacífico entre valores diferentes.

Em outras palavras, não dá para desvincular o cenário de crises diversas que vivemos e noticiamos ao sistema capitalista que alcança a sua fase mais avançada se realizando globalmente pela expansão da produção e consumo e, principalmente, pela onipresença do capital financeiro (ANDRADE, 2010). O ser humano é embrutecido e seu papel de cidadão dá lugar ao de consumidor (SANTOS, 2000, p.49). Um contexto ideal para a explosão de conflitos de toda ordem, notadamente em espaços de grande densidade demográfica onde, conforme Pierucci (2003), se chocam interesses territoriais de indivíduos ou grupos.

A TERRITORIALIZAÇÃO DA CRISE NO HAITI: A LEITURA EMPÍRICA DO ESPAÇO BANAL

O debate sobre a crise, sob o risco de se tornar retórico, carece de rebatimento no território. Nesse sentido, avalia-se ao longo dessa seção, o caso concreto da crise que se assenta no Haiti, notadamente na sua capital e principal centro urbano, Porto Príncipe.

Em um breve exercício de retrospectivo, é possível verificar na história recente do Haiti uma série de nuanças que sinalizaram a atual condição do país caribenho.

O Haiti conquistou sua independência política em 1804, tornando-se a primeira nação oriunda de uma revolução engendrada por negros escravos. A continuidade dos conflitos, a falta de apoio econômico das nações europeias e EUA na pós-independência, a conturbada transição da lavoura canavieira (sustentada no escravagismo) para a subsistência (JAMES, 2012, p.346) produziram um efeito catastrófico a médio prazo fazendo com que, ao final do século XIX, o Haiti orbitasse na forte área de influência que os Estados Unidos da América exercia (e, em larga escala, continua a exercer) junto aos países caribenhos (JAMES, 2010, p.362-363).

Constituía-se assim um cenário perverso onde uma pequena elite local, alinhada com os interesses internacionais, organizava e usava o território em função das demandas externas. A "ordem" era mantida a partir da força e do estabelecimento de um discurso competente que justificava tal uso.

Cyril James (2010, p.359) esclarece essa dicotômica realidade presente nos países caribenhos quando afirma que

Assim como tinha sido desde os primeiros dias da escravidão, o poder financeiro e o seu mecanismo estão hoje em dia inteiramente controlados pelas organizações metropolitanas e seus agentes. Uma população tão ocidentalizada necessita de certas mercadorias, como potes, panelas, pratos, colheres, facas, papel, lápis, canetas, tecido, bicicletas, ônibus para o transporte público, automóveis e todos os elementos básicos da civilização, os quais não são produzidos nas ilhas, sem se esquecer dos Mercedes-Benzes, dos Bentleys, dos Jaguares e dos Lincolns. Nesse tipo de comércio, os elementos dominantes são os produtores e os bancos estrangeiros. A característica mais reveladora e também a mais antiga desse comércio continua sendo a importação em massa de comida, inclusive a de legumes frescos. As poucas indústrias de importância, tais como a do petróleo e da bauxita, estão totalmente nas mãos de firmas estrangeiras; e os políticos locais lideram uma competição feroz entre si para oferecer incentivos a firmas semelhantes para que estas estabeleçam novas indústrias ali e não em outro lugar.

O contexto hodierno de crise extrema não pode ser compreendido sem essa breve avaliação do percurso histórico e o entendimento das últimas sucessões políticas desde a metade do século XX.

Sumariamente, conforme informações em Williams (1984), Eakin (2007), James (2010) e ONU (23 mar 2014), pode-se afirmar que a temerária situação socioeconômica e a unívoca fragilidade das instituições políticas e do próprio Estado (forças de proteção – polícia e militar –, judiciário, etc.) são resultados diretos de uma sequência de governos que se sucederam no poder propugnando interesses pessoais ou de pequenos grupos, o que Williams (1984, p.509) chama de “mulatto élite”, e dessa forma criando um espaço absolutamente fragmentado e desigual, campo frutífero para as profundas crises que o território haitiano enfrenta no alvorecer do século XXI.

Aliadas aos vínculos antigos e perniciosos entre uma pequena elite nacional e grupos de interesses internacionais no uso do território haitiano, as ditaduras do século XX deixaram marcas indeléveis na história recente do país.

Em 1957, François Duvalier (Papa Doc), foi eleito presidente e impôs imediatamente um regime totalitário sustentado na força dos Tontons Macoutes (força de defesa do seu grupo político) e da forte repressão a qualquer ideia contrária aos seus desmandos. Até a sua morte em 1971 e após, com a permanência do seu filho (Jean-Claude - Baby Doc) no poder até1986, quando foi exilado, foram 29 anos de controle político, espoliação das mais básicas condições sociais e uso extremo dos recursos internos visando o beneficiamento de pequenos grupos e de companhias internacionais.

A chegada de Jean-Bertrand Aristide ao poder e a realização de eleições livres em 1990 não aplacaram a turbulência política interna. Aristide foi deposto militarmente em 1991, inaugurando uma nova crise político-representativa e econômica (em grande escala devido às fortes sanções que sofria internacionalmente). Em 1994, sob os auspícios dos EUA, Aristide é reposto ao poder e consegue realizar uma nova eleição em 1996, quando René Préval chega ao poder, mantendo-se até 2001. Numa nova eleição, Aristide reassume a presidência, entretanto, com forte conflito interno (diversos grupos com domínios territoriais no país e na sua principal cidade), ele não consegue finalizar o mandato e é exilado no início de 2004.

Esse foi o cenário que determinou a instalação da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti): uma forte instabilidade política com prenúncio de uma guerra civil num estado anárquico e brutal com o território haitiano deveras fragmentado por diferentes forças políticas que controlavam parte da população de forma coercitiva. Os índices socioeconômicos(EAKIN, 2007, p.367) revelavam a extrema pobreza que tomava o primeiro país independente da América Latina.

OCUPAÇÃO E USO DO TERRITÓRIO NA NOSSA CONTEMPORANEIDADE: A PRESENÇA DA ONU NO HAITI

"Pela primeira vez na História do Haiti, um presidente eleito democraticamente - René Préval - chegou ao fim de seu mandato e, após eleições nacionais - não sem desafios - entregou o poder a um candidato da oposição [anunciado em abril de 2011], o atual presidente Michel [Joseph] Martelly, de modo relativamente pacífico" (ONU, 25jun2013).

Este anúncio na página oficial das Nações Unidas comemora algo de exitoso da missão para o estabelecimento da paz no Haiti. A presença da ONU, na história recente, é bastante freqüente naquele território. Entretanto, após 2004, com o estabelecimento da MINUSTAH as fases de prevenção de conflito e manutenção da paz efetivamente foram alcançadas. Nesta última década, a história do Haiti e a presença das forças da ONU possuem um vínculo inarredável.

A Missão parte do pressuposto da ação com neutralidade a partir do consentimento do(s) representante(s) legal(is) do país, entretanto encontrou, em 2004, um país completamente fragmentado territorialmente e com um Estado pouco representativo, como foi relatado nas entrevistas supra indicadas. Havia o apanágio de, inicialmente, construir um ambiente seguro e estável para que o Estado se impusesse de forma que a paulatina saída das forças da ONU permitisse a condução autônoma do país. Nesse sentido, começou com forte presença militar e pequena ação civil com uma tendência projetiva de inversão dessas diferentes perspectivas de intervenção.

Em linhas gerais, encontrou-se, em 2004, as cidades sob comando de forças rebeldes e, com a instalação da MINUSTAH, conseguiu-se a mínima estabilização para a consecução da eleição presidencial, em 2006 (René Préval assumiu a presidência). Entre 2006 e 2007, adquiriu-se controle militar sobre Porto Príncipe, capital e principal nucleação urbana do país. Em 2008, houve registros de tumultos pelo alto custo de vida e acontecem sucessivamente três furacões com acionamento de decorrentes operações humanitárias. Em 2010, quando já se estabelecia um cronograma de saída das tropas militares, aconteceu um violento terremoto - intensidade de 7,0 na escala Ritcher, porém com epicentro a apenas 25km da capital - com impressionante saldo de destruição das estruturas físicas (mais de 1.500.000 desabrigados) e óbito de mais de 250.000 haitianos. A partir daí, além da retomada da paz (abalada pela destruição de equipamentos como as cadeias e documentação do Judiciário) a perspectiva de saída esteve vinculada à reconstrução material e política institucional do Haiti.

A observação da variação do efetivo militar, majoritariamente brasileiros, ratifica a progressão dos acontecimentos nos últimos anos, visto que os maiores efetivos estavam sempre vinculados a momentos de maior tensão: Em 2010, antes do terremoto, contavam 6.940 militares. Após o terremoto, somando com a nova unidade criada fundamentalmente para atender as demandas da catástrofe (BRABAT 2), eram 8.940. A partir de então houve contínua redução do efetivo para 7.340, em 2012 e 6.270 em 2013. Confirmando a perspectiva de durabilidade da ação da MINUSTAH ampliando a ação política e de direitos humanos e reduzindo o componente militar e de polícia.

Os dados sobre a violência no Haiti são imprecisos porém aterradores, entretanto, por conta da presença militar da ONU, acredita-se que há no Haiti menos crimes que na maioria dos países caribenhos. O problema então reside na dificuldade de transição da presença ostensiva de intervenção e estabelecimento de um Estado de direito respeitado por todos os grupos internos.

O treinamento e aumento do efetivo da Polícia Nacional do Haiti, com previsão para um total de 13.000 indivíduos ao final de 2016, após eleições presidenciais, poderia significar um alento ao controle da paz, entretanto, como relatam Donadío e Rial (2013, p.153), "La Polícia Nacional Civil cuenta com uns 10.000 miembros y no tiene um grado adecuado de profesionalidad, no goza de confianza entre la población, y está afectada por prácticas de corrupción constantes".

O problema da corrupção envolve outras esferas do poder público. Há uma evidente dificuldade de alcançar uma composição democrática que mantenha, minimamente, a governabilidade, devido à forte oposição entre grupos historicamente hostis.

A desestruturação e funcionamento do poder Judiciário é emblemático e exemplar para o entendimento das dificuldades de plena autonomia do país. Apesar de progressos recentes, como a instalação de tribunais no interior do país, a quantidade de juízes e a carga horária de trabalho é absolutamente insuficiente para julgar os processos delituosos, assim, existe uma quantidade muito grande de detentos que aguardam julgamento, muito acima de qualquer parâmetro esperado, além disso, parte dos documentos formais (processos, petições, arquivos, bibliotecas, etc.) "sumiu" no breve tempo de duração do terremoto de 2010. Um verdadeiro caos institucional a ser recuperado. Um imenso re-trabalho em um espaço em crise com profundo déficit de ação pública.

A falta de educação, inexistência de coleta de lixo, o problema crítico de saneamento, especialmente na Grande Porto Príncipe (ajuntamento demográfico, muito maior que a capacidade de infraestrutura construída) completam o cenário de absoluta pobreza e ausência do Estado. Os pesquisadores Marcela Donadío e Juan Rial complementam afirmando que

El Estado es débil, carece de control efectivo sobre todo el territorio, aguas territoriales y espacio aéreo. Sigue existiendo un número alto de desplazados (369.000) a agosto de 2012 de acuerdo con la OIM), así como gente viviendo precariamente, especialmente em el ámbito urbano. (DONADÍO e RIAL, 2013, p.106).

Com o risco de discurso tautológico ou parcial, acrescenta-se aos vetores da crise haitiana a imensa pobreza que se assoma ao território. Donadío e Rial (2013, p.147) apresentam dados desoladores, com base em contagens das últimas décadas do século XX, como um PIB per capita de 663 dólares anuais; uma concentração de renda absolutamente perversa com uma “classe alta” 2% da população que controla 44% do PIB e uma “classe média” de apenas 5% da população, sendo essas duas formadas predominantemente por povos imigrantes (norte-americanos, árabes, etc.), caracterizando também uma nuança étnica na distribuição da renda, com a massa de pobres formada por negros autóctones.

Em entrevista, o General Goulart é enfático ao afirmar que "O Haiti não tem condições por si só de superar os problemas socioeconômicos", havendo uma necessidade premente de ação conjunta de política e polícia a fim de alcançar a estabilização da paz e a construção de forças institucionais que possibilitem uma maior alcance de ações públicas com fins sociais. Esse quadro revela a realização contundente do que Francisco de Oliveira (2003) chamou de "apartheid social".

MARCAS GERAIS DA CONFIGURAÇÃO TERRITORIAL DO HAITI

A MINUSTAH tem o seu mandato cobrindo o território haitiano como um todo (componente de assuntos civis, apoio logístico, policial e militar, estão distribuídos no país), como os problemas se asseveram em Porto Príncipe, aí está o maior efetivo e preocupação com segurança, funcionamento da lei e da ordem, direitos humanos e instalação das instituições de governo.

No relato das entrevistas, infere-se que, nas cidades do interior, a qualidade de vida é melhor, apesar da maior disponibilidade de serviços na capital, o adensamento demográfico e a falta de saneamento faz com que a dimensão dos problemas na principal nodalidade urbana seja muito superior à capacidade de atender à demanda. A noção de “vida melhor” todavia, é imprecisa na fala dos entrevistados. A vivência deles na missão que atua em todo o país, se dá em mais de 95% no âmbito da capital pela centralidade política, assim, o próprio conhecimento empírico do “interior” é bastante escasso devido ao pequeno contato presencial. Acredita-se então que a noção melhor qualidade de vida esteja ligado à ausência de conflito armado e vida de subsistência em áreas de baixa densidade. Tudo indica que os indicadores socioeconômicos do interior do país acompanham os péssimos índices da capital. As pequenas cidades são administráveis, verdadeiras vilas de subsistência de atividades rurais, são muito menos adensadas que a capital e os problemas mais facilmente controlados, inclusive o da violência.

Marcelo José Lopes de Souza (2006, p.29) é educativo quando afirma que "além de ser uma expressão da sociedade (tão contraditória quanto a própria sociedade que o produziu), o espaço, organizado assim ou assado, é requisito para que certas relações sociais possam florescer, prosperar", ou seja, buscar as peculiaridades da configuração territorial do Haiti, notadamente de Porto Príncipe, é uma estratégia para entender a própria dinâmica social que se apodera daquele país.

Nessa busca, alguns elementos saltam aos olhos, apesar da diversidade e complexidade de um espaço urbano disperso e desigual que se estende por um largo território e conta com um povoamento de mais de dois milhões de habitantes. Ou seja, a tentativa de iluminar alguns aspectos da configuração territorial local significa correr riscos de ausências e parcialidade de informações em um espaço bastante heterogêneo.

A fragmentação do tecido sociopolítico-espacial apontado por Souza (2006, Cap.11) como um dos elementos perverso da contemporaneidade urbana das grandes cidades de países periféricos, também se apresenta em Porto Príncipe, entretanto com características ainda mais agressivas, considerando o já mencionado abismo social entre a pequena elite e a imensa massa de pobres urbanos.

Porto Príncipe é a principal porta de entrada e saída do país (porto marítimo e aeroporto internacional) e nesse conjunto urbano, como é de se esperar num espaço organizado pela lógica do capital, destarte todos os vetores de crise que apontam para aquele território, há uma vida que corre cotidianamente e também há circulação de dinheiro, nesse sentido, mesmo no "mar de pobreza" que a paisagem banal apresenta aos olhos, existem manchas de alta renda ocupadas pelos proprietários dos meios de produção, agentes externos (diplomatas, embaixadores, representantes de ONGs e outras instituições de alcance global, etc.). Um dos exemplos mais conhecidos é o bairro, mais alto e distante do porto, de "Petion Ville", um enclave segregado com hotéis e supermercados voltados para um público de alta renda no "coração" da capital haitiana.

É a paisagem urbana que se comunica apresentando, num dos países mais pobres do mundo a produção material e rotina cotidiana de poucos ricos, alguns menos pobres e os paupérrimos. Cerca de 80% da população em condições de pobreza e boa porcentagem desses em situação de extrema miséria dependendo de ações assistencialistas para sobreviver.

David Harvey alerta para as restrições que o espaço pode criar à reprodução do capital, este geógrafo escreveu que

há, acredito uma maneira muito melhor de pensar a formação de crises. A análise da circulação do capital aponta para vários limites e barreiras potenciais. A escassez de capital-dinheiro, os problemas trabalhistas, as desproporcionalidades entre os setores, os limites naturais, as mudanças tecnológicas organizacionais desequilibradas (incluindo a concorrência versus o monopólio), a indisciplina no processo de trabalho e a falta de demanda efetiva encabeçam a lista. (HARVEY, 2011, p.99).

Mesmo observando vários elementos desses que o Harvey indica como presentes no espaço urbano de Porto Príncipe, a lógica do capitalismo se impõe no espaço de exceção e consegue se reproduzir na pobreza, colhendo migalhas e estabelecendo a sua (des)ordem na desigual estratificação socioespacial que produz e se reproduz.

Pensando desta forma, o espaço haitiano é campo fértil para estratégia de reprodução de atividades vinculadas ao capital, mesmo que produzido em outros territórios. A ação das ONGs, as remessas de doações de imigrantes haitianos e o próprio papel de "ponte" em redes mundiais de comercialização de narcóticos, exemplificam esse fluxo de mercadorias e dinheiro que se territorializa no Haiti, fundamentalmente, por conta da sua imersão nas várias ordens de crises.

À guisa de exemplo, apesar de números imprecisos, os registros de "fuga" de haitianos em busca de melhores condições de vida no Brasil, no Canadá, nos Estados Unidos e, principalmente na vizinha República Dominicana (DONADIO; RIAL, 2013, p. 14200, são reveladores sobre uma verdadeira comunidade de imigrantes que, de forma direta, através de remessas de recursos, mantém vínculos com o país de origem.

É difícil precisar valores, mas a imensa diáspora do paupérrimo país caribenho acaba por se transformar em uma importante fonte de recursos para o Haiti e dispensa mão de obra barata e subserviente nos destinos receptores. Harvey, tratando das repercussões em escala global da crise mundial, aborda esse tema quando escreve que

México, Equador, Haiti e Kerala, na Índia, que dependiam fortemente das remessas dos trabalhadores de outros lugares, de repente viram os rendimentos familiares secarem na medida em que os empregos na construção civil no exterior eram perdidos e empregadas domésticas, demitidas. Desnutrição e mortes por fome aumentaram muitos nesses países mais pobres, desmentindo a ideia de que populações marginalizadas não são de alguma forma afetadas por crises financeiras no mundo capitalista avançado [...] As populações excedentes não estão mais ancoradas em um lugar, assim como não está o capital. Elas fluem para todos os lugares em busca de oportunidades ou emprego, apesar das barreiras à migração por vezes colocadas pelos Estados-nação. [...] A desnutrição e a fome devastam o Haiti na medida em que as remessas dos EUA secam porque as trabalhadoras domésticas em Nova York e na Flórida estão perdendo o emprego. (HARVEY, 2011, p.39, 122 e.123).

Um outro elemento, que possui uma vestimenta humanitária, mas que guarda algum engodo no seu interior são as ações das ONGs e as contribuições internacionais. Sobre esse tema há algumas variáveis que merecem ser pontuadas:

.A ajuda humanitária é fundamental para a reprodução da vida no Haiti, notadamente após as catástrofes naturais (furacões e terremotos). O Haiti não prescinde dessa ajuda assistencialista nessa fase aguda da crise e, a MINUSTAH verificou, com preocupação, que houve diminuição da contribuição de países por conta da crise econômica internacional. Ressalva-se que a missão da ONU não age no tocante ao desenvolvimento econômico e apenas coordena agências e organizações por meio dos clusters vinculados à OCHA (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs). De tal forma que a saída da força de paz não significa a ausência dessa coordenação por mais alguns anos no Haiti.

.Entre a chegada dos recursos e distribuição para a população que dele necessita, há um fosso político e institucional que permite pensar em desvio, corrupção e beneficiamento ilícito de grupos favorecidos. Essa dificuldade de representação do Estado, ainda que eleito legitimamente, parece algo evidente no Haiti. Donadío e Rial (2013, p.147), comentam que para além do plano de desenvolvimento e das intervenções, é necessário um governo capaz de exercer controle e executar os projetos.

Considerando a corrupção como algo real, muitos países e instituições direcionam recursos por meio das Organizações Não Governamentais, vislumbrando aí a possibilidade de alcance real dos objetivos humanitários. Esse Estado sob suspeita de corrupção e favorecimentos se soma ao Estado Normado, em relação ao qual Santos (2005) alerta.

Outra vertente da análise diz respeito à sustentação de organizações e empregos em países centrais sob o rótulo de ajuda humanitária, inclusive, sob as bases da paisagem da crise, utiliza-se da imagem do Haiti para captação de recursos e estímulo ao "turismo humanitário".

Além da MINUSTAH que representa o efetivo de funcionários da ONU presentes no Haiti, abundam ONGs, desde as maiores como a Oxfam, Médicos sem Fronteiras e Viva Rio até uma significativa quantidade de outras menores com ações que variam de orientações educacionais (dança, capoeira, educação ambiental) a cuidados médicos em assentamentos pós-terremoto.

Não se pretende aqui demonizar a fundamental ação humanitária que essas organizações oferecem às áreas sensíveis, a exemplo do paupérrimo espaço urbano de Porto Príncipe, mas no rol das ONGs que lá atuam, há, certamente, oportunismo num espaço com pouca regulação e imerso no mundo do capital onde as repercussões de ordem econômica no envio e sustentação dessas organizações a partir dos seus núcleos nos países sedes abre uma imensa possibilidade de desvios de intenções e usos perniciosos.

.A última ponderação diz respeito a habitual ressalva que se faz em análises acerca de medidas assistenciais: a dependência que se vincula a essas ações e inércia decorrente na população assistida. Qual a função real das políticas assistencialistas? Em que medida elas devem permanecer nos espaços assistidos? São questões de difícil encaminhamento, mais a mais, como orienta Souza (2006, p. 299), a "resolução" do problema imediato (fome, habitação, educação, saneamento, alcance da paz, etc.), ainda que fundamental, não basta para a inserção cidadã e autônoma do indivíduo. Essas ações, como alertam Donadío e Rial (2013, p.150), por vezes não levam em conta as especificidades do espaço banal, visto que os responsáveis "van con sus ideas y agendas y desconocen el microcosmos de la pobreza real local y sus reacciones".

Em outros termos, há de se relativizar as ações humanitárias que incidem sobre o Haiti, mormente na sua capital, Porto Príncipe, visto que, para além da edificante proposta de auxílio a quem necessita, há uma série de nuanças entre a doação, implantação e relações que se estabelecem entre organismos e instituições doadoras e grupos receptores, além do que, imerso no ceticismo do capital, recorre-se a Harvey (2011, p.122) para lembrar que "mesmo nas favelas da autoconstrução de moradias, o ferro ondulado, as caixas de embalagem e as lonas foram primeiro produzidos como mercadorias".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar na urbanização em espaços em crise, notadamente na realidade empírica do Haiti, é se defrontar com vários tentáculos e possibilidades analíticas, é cotejar com o espaço banal para além da crise da urbanização contemporânea, especialmente (mas não somente) se vinculada ao mundo periférico. No caso do Haiti, o "Planeta Favela" (DAVIS, 2016) se revela em toda a sua brutalidade e, entretanto, é exatamente nesse espaço de severa exclusão e restrição de condições mínimas de cidadania que o capital consegue se reproduzir revelando toda a perversidade da financeiração global.

Reflete-se no desdobrar do cotidiano uma multiplicidade de situações que derivam do encontro entre a "cidade econômica" e a "cidade social" (SANTOS, 2005). Onde aquela se impõe a esta no rastro de estratégias argumentativas apoiadas em discursos que tratam de ajuda humanitária, reconstrução material do território, manutenção da paz, combate (e exercício) da corrupção e de atividades ilícitas como a sustentação de redes de narcotráfico, dentre outras.

De forma dicotômica é possível pensar que formalmente, não faltam planos e boas intenções/sugestões para o trato com a crise haitiana, notadamente com a crise no espaço urbano de Porto Príncipe, entretanto a lógica que movimenta a cidade, as relações de poder assimétrica entre os agentes de produção do espaço, geram um resultado conflitivo e desigual, com pequena esperança de subversão.

É necessário fundamentar-se na perspectiva local de enfrentamento dos problemas, sem o localismo ingênuo "como estratégia de resistência contra a globalização capitalista" (SOUZA, 2006, p.577) e todas as repercussões das escalas supralocais na produção do espaço haitiano, mas pensando em estratégias de subverter a (des)ordem vigente com forças internas.

A guisa de conclusão, especulando acerca de espaços de esperança e acompanhando as considerações de Santos (2000) quando alinhavava elementos do que chamou de "Período Popular", é possível pensar em alternativas subversivas à crise a partir dos pobres urbanos: eles apresentam formas de subversão da lógica do capital para sobreviver (informalidade, transportes e rádios alternativas, feirinha Bombagai, etc.), formas que, inclusive, se dão a partir da interdependência nas relações inter-pessoais, diferindo, em muito, da classe média (praticamente inexistente no Haiti) e alta urbana que está decisivamente cooptada, principalmente como consumidores preferenciais, pelo poder do dinheiro.

Yi-Fu Tuan (2005. p.270) alerta que "os pobres e oprimidos sofriam quase sempre em silêncio; ou, se eles choravam de dor, seu choro era em grande parte ignorado e não documentado, se não fosse acompanhado de uma ação desesperada". Essa impessoalidade e desumanização em relação às péssimas condições de reprodução da vida de um imenso número de pessoas apontam para as ditas estratégias de subversão implantadas pelos próprios excluídos, mesmo que seja pressionando agendas políticas. É o espaço dos pobres concentrados como nunca antes em espaços de exclusão que o Santos (2000) vê como um princípio de esperança.

A dimensão do texto de um artigo limita o aprofundamento de análises para uma temática dessa monta, ainda mais se conjugarmos à ausência de números estatísticos precisos e atuais além da dificuldade de consecução de uma pesquisa direta no espaço em foco. Essas ranhuras ao texto não são fundamentalmente óbices à realização do escrito, mais que isso, estimulam o pensar e a continuidade da pesquisa, primeiro pela relevância temática, depois, pela possibilidade de, a partir das leituras feitas sobre o espaço de Porto Príncipe e do Haiti, vislumbrar aproximações e distanciamentos com outras experiências espaciais onde repercutem, numa perspectiva "glocalizada" (SOUZA, 2006, p.573), os vetores de crises contemporâneas.

Insiste-se entretanto na premência de pensar na realidade empírica dos excluídos, mormente, como no nosso caso, no Haiti, visto que a "paisagem do medo" (TUAN, 2005) que assombra o imaginário dos indivíduos que a vêem à distância, é o espaço da vida de milhares de haitianos, que nos seus embates cotidianos, enfrentam a perversidade do presente que resulta de jogos assimétricos de poder entre os agentes que produzem aquele espaço de exclusão, mas também espaços de possibilidades e reprodução do capital.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2016
  • Aceito
    27 Maio 2016
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