Resumo
O Parque Nacional da Serra da Capivara desponta como estudo de caso para pesquisas do Quaternário e de geomorfologia no nordeste semiárido brasileiro. Trabalhos anteriores no vale da Serra Branca, uma das principais unidades geomorfológicas do parque, revelam o predomínio de espessos depósitos coluviais, sugerindo flutuações climáticas episódicas com aumento da umidade no semiárido desde o Pleistoceno Superior. Este estudo está focado na aplicação da estratigrafia GPR à investigação de depósitos quaternários nos três quilômetros de largura do médio-curso do vale da Serra Branca. Dados GPR e RTK de alta resolução e datações LOE sugerem evolução geomorfológica mais complexa do que a vislumbrada anteriormente. Resultados indicam bacias de primeira ordem com incisões erosivas soterradas por depósitos de leques aluviais datados do Holoceno Médio a Inferior. Paleo-canal de 300 metros de largura, preenchido por aluviões, ocorre suspenso a 14 metros acima do fundo do vale atual, documentando a incisão do vale desde Último Máximo Glacial. Os dados GPR e RTK possibilitam mapear rochas truncadas; depósitos coluviais e aluviais; pedimentos; divisores rebaixados; canal fluvial relictual, e o fundo do vale atual. Os resultados apontam para clima mais úmido do que o atual durante o último estágio glacial global.
Palavras-chave: Semiárido; GPR; Estratigrafia; Morfogênese; Quaternário; Serra da Capivara
Résumé
Le Parc National de la Serra da Capivara se distingue comme étude de cas pour des recherches du Quaternaire et de géomorphologie dans le nordeste semi-aride Brésilien. Études préalables dans la vallée de la Serra Branca démontrent la prédominance sur cette unité géomorphologique d´épais dépôts colluviaux, liés à des épisodes climatiques plus humides dans le semi-aride dès le Pléistocène Supérieur. Cette étude vise l’application de la stratigraphie GPR aux dépôts quaternaires de la moyenne vallée de la Serra Branca, large de trois kilomètres. Données GPR et RTK d’haute résolution et datations LOE suggèrent une évolution géomorphologique plus complexe que celle envisagée préalablement. Les vallées de premier ordre sont entaillées par des ravins, ensevelis sous des cônes alluviaux datés de l’Holocène Moyen a Inférieur. Un paleo-chenal alluvial, large de 300 mètres, se trouve perché de 14 mètres sur le fond de vallée actuelle, enregistrant la dissection de la vallée dès le Dernier Maximum Glacial. Les données GPR et RTK permettent de cartographier surfaces tronquées ; dépôts colluviaux et alluviaux ; pédiments ; lignes de faîte aplanies ; un chenal fluvial relictuel, et le talweg actuel. Les résultats suggèrent un climat plus humide qu’aujourd’hui durant le dernier cycle glacial global.
Mots-clés: Semi-aride; GPR; Stratigraphie; Morphogenèse; Quaternaire; Serra da Capivara
Abstract
The Serra da Capivara National Park is an optimal case study for Quaternary and geomorphology studies in the semiarid region of northeastern Brazil. Previous research in the Serra Branca valley, which is one of the park’s main geomorphological units, reveals the predominance of thick colluvial deposits, suggesting episodic fluctuations towards wetter semiarid climates since the Upper Pleistocene. This study focuses on the application of GPR stratigraphy to Quaternary deposits along the three kilometers-wide middle reach of the Serra Branca valley. High-resolution GPR and RTK data and OSL dating suggest a more complex geomorphic evolution than previously envisioned. Results indicate the existence of gullied first-order watersheds that lie buried under small alluvial fan deposits since at least the Early to Middle Holocene. A 300 meters-wide alluvium filled paleo-channel is found, hanging about 14 meters higher than the present valley bottom and recording the incision of the valley since the Last Glacial Maximum. GPR and RTK data enable mapping truncated rock surfaces; colluvial and alluvial deposits; pediments; worn down watersheds; a relict fluvial channel, and the present valley bottom. Results suggest that the local climate during the last global glacial stage was wetter than today.
Keywords: Semiarid; GPR; Stratigraphy; Morphogenesis; Quaternary; Serra da Capivara
INTRODUÇÃO
O Parque Nacional da Serra da Capivara (PNSC) exibe paisagens de grande beleza cênica no bioma Caatinga, e é conhecido internacionalmente por seus sítios arqueológicos de elevado interesse científico. Do ponto de vista geomorfológico, o PNSC é definido por planaltos areníticos com rede hidrográfica de baixa densidade, formando vales consequentes que aparentam forte controle estrutural. Nas proximidades das bordas de planaltos ou de frentes de cuesta, os vales formam canhões e gargantas profundas (boqueirões) de origem obsequente, que são emoldurados por pilares, arcos e cavidades típicos de relevos ruiniformes esculpidos em rochas sedimentares.
Produtos de mapeamentos geomorfológicos no PNSC dividem o parque em duas unidades geomorfológicas: a) planaltos areníticos, e b) cuestas (PELLERIN, 1984); e em três unidades morfoestruturais: a) Vale da Serra Branca; b) Reverso da Cuesta; c) Patamares Estruturais (SANTOS, 2007). Segundo Pellerin (1984), os planaltos areníticos situam-se a oeste do PNSC e constituem chapadas de reverso de cuesta, com relevo regular e topos monoclinais de baixa declividade e baixa dissecação. Os planaltos são cortados por vales orientados na direção S-N, com fundo plano, profundamente encaixados e dominados diretamente por cornijas de arenitos. Rumo ao norte, as chapadas de reverso de cuesta passam a formas mais tabulares, seguidas por morros residuais isolados sobre patamares estruturais. Na extremidade nordeste do parque os vales desenvolvem fundos largos e chatos e as vertentes apresentam ravinas do tipo bad-lands.
Neste trabalho damos destaque à unidade morfoestrutural Vale da Serra Branca, que é caracterizada, segundo Santos (2007), como vale consequente, encaixado, de orientação S-N, possuindo fundo plano. O vale está localizado na borda oeste do PNSC, onde ocorre apoiado sobre arenitos e conglomerados do Grupo Canindé (CPRM, 2009). Em função das características gerais do relevo, o Vale da Serra Branca possui níveis de base locais que variam de 520 metros acima do nível do mar, nas cabeceiras, a aproximadamente 400 metros de altitude no talvegue principal, a jusante, revelando amplitude de dissecação de aproximadamente 120 metros, ao longo de 45 Km de extensão.
Os fluxos de chuva produzidos no vale estão integrados à sub-bacia do rio Piauí-Canindé, que pertence à bacia do rio Parnaíba. O rio Piauí, assim como os outros afluentes da margem direita do rio Parnaíba, tem regime torrencial com escoamento temporário, restrito à estação chuvosa (PELLERIN, 1984). O Vale da Serra Branca não possui canais com margens claramente definidas na maior parte da sua extensão; fato que dificulta a identificação precisa das linhas de escoamento in situ. As principais linhas de drenagem são arreicas, e podem ser mapeadas pela identificação de áreas de vegetação mais verdejante na caatinga, após breves períodos de chuva, formando zonas alongadas e descontínuas de baixos topográficos com subsolo mais úmido, que apontam para as áreas com maior probabilidade de formação de fluxos intermitentes (DUNNE e BLACK, 1970; MONTGOMERY e DIETRICH, 1988). Somente nas proximidades da desembocadura do vale, ao norte, essas zonas de solo úmido apresentam melhor definição linear. Em função da raridade de fluxos canalizados, o transporte de sedimentos ao longo do vale ocorre segundo padrão similar ao anastomosado. Porém, sem calhas bem definidas: os sedimentos são transferidos pelas zonas de escoamento intermitente, atravessando a vegetação da caatinga nos baixos topográficos, e formando praias descontínuas de areias cujo padrão deposicional reproduz o caráter difuso e esporádico do escoamento, impedindo a formação de estruturas sedimentares aparentes (PETTIJOHN et al., 1987)
Iniciativas anteriores de pesquisa caracterizaram depósitos de tálus e de colúvios grossos nas proximidades das cornijas que emolduram o vale. Esses depósitos, e mantos de intemperismo associados, são remobilizados para jusante, formando mantos coluviais e leques colúvio-aluvionares que podem coalescer, dando origem a feições em rampa e em pedimentos que tendem a se orientar na direção do fundo do vale (SANTOS, 2007). Os depósitos quaternários são compostos por camadas alternadas de areias amareladas e de concentrações de fragmentos de arenitos, ou de areias amareladas e cascalhos, caracterizados por estrutura maciça, e com espessura que varia entre 3,20 e 12,00 metros (SANTOS; BARRETO; SUGUIO, 2012). Os sedimentos aluviais que compõem o fundo chato do vale não foram estudados anteriormente. Suas espessuras totais são desconhecidas, assim como suas relações com os depósitos coluviais e com as principais feições geomorfológicas do vale (leques, rampas, pedimentos, interflúvios, e morros testemunhos).
Pelas descrições feitas, o vale da Serra Branca pode ser caracterizado como superfície topográfica rebaixada, de baixa declividade e aspecto aplainado, emoldurada por cornijas de arenitos, compondo imagem geral que é bastante próxima da descrição original associada aos conceitos de pedimento (GILBERT, 1877) de pediplano (KING,1953). No Brasil, os trabalhos de Bigarella e colaboradores inauguraram várias abordagens que foram aplicadas a estudos de caso associados à caracterização de pedimentos e pediplanos (BIGARELLA; MOUSINHO; SILVA, 1965). Resta estabelecido, porém, que essas formas de relevo são comuns em paisagens sob a influência de climas árido e semiárido (TWIDALE, 1983; TWIDALE; BOURNE, 2013).
No que toca o semiárido brasileiro, são raros os trabalhos que demonstrem associação entre depósitos quaternários e formas de relevo consideradas como típicas dos regimes climáticos áridos e semiáridos, como pedimentos, pediplanos, leques aluviais, etc. Nesse contexto, o PNSC desponta como estudo de caso geomorfológico no bioma Caatinga, revelando registro sedimentológico que demonstra a permanência de sistemas semiáridos, com flutuações úmidas entre o Pleistoceno Superior e o Holoceno (SANTOS; BARRETO; SUGUIO, 2012). Essa demonstração é corroborada por registros palinológicos, isotópicos e paleontológicos do semiárido brasileiro que se adaptam mal ao paradigma de aridez que é associado aos efeitos das glaciações globais no Brasil (OLIVEIRA et al., 2014).
Este trabalho resulta de projetos de pesquisa que incorporam a aplicação do georadar (GPR) à prospecção da estratigrafia rasa de depósitos quaternários no PNSC. Os resultados apresentados foram obtidos em setores do médio curso do vale da Serra Branca, onde foram identificadas coberturas sedimentares e superfícies de truncamento quaternárias ao longo de interflúvios rebaixados, de pedimentos, e de fundos de vale que, associadas a métodos de datação radiogênica, permitem: a) identificar e caracterizar estruturas subterrâneas ao longo do vale; b) calcular taxas de erosão e de sedimentação nos setores estudados do vale; c) formular hipóteses evolutivas associadas a processos de dissecação e de planação, com base nos registros estratigráfico, geofísico e geocronológico.
Diferentemente do que predomina em sítios de morfologia similar em áreas desérticas, cuja evolução geomorfológica é expressa em escalas de dezenas e de centenas de milhares de anos (104 a 105 anos), o médio curso do vale da Serra Branca possui evidências abundantes de episódios erosivos e deposicionais relativamente mais curtos e recentes, que revelam a adaptação da rede de drenagem e das formas de relevo local a eventos do Pleistoceno Superior e do Holoceno, envolvendo episódios em escalas temporais da ordem de milhares a dezenas de milhares de anos (103 a 104 anos).
ÁREA DE ESTUDO
O Parque Nacional da Serra da Capivara (PNSC) foi criado em 1979, e está localizado no sudeste do Estado do Piauí, abarcando parte dos municípios de Brejo do Piauí, João Costa, São Raimundo Nonato e Coronel José Dias. O parque ocupa território de 129.953 ha, com perímetro de 214.235,37 metros de área protegida (Figura 1), e foi classificado pela UNESCO em 1991 (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como Patrimônio Cultural da Humanidade (PROCHOROFF; BRILHA, 2015).
O clima predominante na área do PNSC é do tipo BShw: semiárido, quente, com chuvas de verão. A temperatura média anual é de 28º C e a estação chuvosa dura de outubro a abril, embora caracterizada por irregularidade interanual. A média anual das precipitações é de 689 mm, com desvio padrão de 200 mm. A classe modal da precipitação pluviométrica situa-se entre 600 e 700 mm por ano (EMPERAIRE, 1980). A cobertura vegetal local é formada pela caatinga, com associações vegetais típicas do clima semiárido nordestino, se apresentando no PNSC segundo as seguintes categorias: caatinga arbustiva alta e densa; formações arbóreas; caatinga arbórea média e densa; caatinga arbustiva baixa e a caatinga arbustiva e arbórea.
O relevo do parque é o típico de borda de bacia sedimentar soerguida, onde as formas de relevo estão relacionadas com a atitude monoclinal de rochas sedimentares. Relevo e vegetação locais se desenvolvem sobre substrato dominado pela porção marginal da Bacia Sedimentar do Parnaíba, que abrange parte do Nordeste e Norte do Brasil. Trata-se de bacia sedimentar de idade principalmente paleozóica, embora depósitos mesozoicos também ocupem áreas consideráveis (MESNER; WOOLDRIDGE, 1964).
Na área do PNSC e entorno ocorrem rochas que pertencem aos grupos Casa Nova, Serra Grande e Canindé, atribuídos respectivamente aos períodos Criogeniano (Neoproterózoico), Siluriano e Devoniano. A descrição estratigráfica desses grupos pode ser encontrada, por exemplo, na coluna estratigráfica de Góes e Feijó (1994). O Grupo Casa Nova é composto pela Formação Barra Bonita e pela Suíte Intrusiva Serra da Aldeia. Ocorrendo no limite sudeste do parque, a Formação Barra Bonita é caracterizada predominantemente por rochas metamórficas do Neoproterózoico, como micaxistos, gnaisses, filitos e metacalcários (BARBOSA, 2012). O Grupo Serra Grande é constituído, segundo Cunha (1986), pelas formações Ipu, Tianguá e Jaicós, que estão associadas à primeira transgressão marinha identificada na Bacia do Parnaíba. O Grupo Canindé é composto pelas formações, Itaim, Pimenteiras, Cabeças, Longá e Poti (GÓES; FEIJÓ, 1994). Essas rochas foram depositadas durante fase de subsidência e estão associadas à maior transgressão marinha registrada na Bacia do Parnaíba (VAZ et al., 2007).
No interior do PNSC afloram, além de rochas da Formação Barra Bonita (Grupo Casa Nova), limitadas às proximidades do limite sudeste do parque, rochas das Formações Ipu (Grupo Serra Grande), Itaim, Pimenteiras e Cabeças (Grupo Canindé). A Formação Ipu é constituída por arenitos, conglomerados, arenitos conglomeráticos e diamictitos, que foram depositados no início do Siluriano, em ambiente fluvial entrelaçado com influência periglacial (VAZ et al., 2007). A Formação Itaim é caracterizada por arenitos finos de cor clara e por folhelhos de cor cinza, depositados em ambientes deltaicos plataformais, com influências de marés e tempestades. A formação é datada do Mesodevoniano (GÓES; FEIJÓ, 1994), e ocorre sobreposta à Formação Ipu em discordância angular (BARROS et al., 2011). Porém, não há mapeamentos de detalhe que comprovem a presença da Formação Itaim (Grupo Canindé) ou que tragam informação precisa sobre as formações do Grupo Serra Grande no parque.
A Formação Pimenteiras é constituída por camadas espessas de folhelho cinza-escuro a preto, alternadas com arenitos e com siltitos associados a nódulos de minerais ferruginosos. Essas rochas são interpretadas por Della Fávera (1990) como produtos de depósitos em ambiente de plataforma nerítico, dominado por ondas de tempestade. Essa formação aflora seguindo a linha do front da cuesta, sendo caracterizada pela exposição da sua porção inferior, ondem ocorrem arenitos finos micáceos e, localmente, arenitos conglomeráticos e calcíferos com estratificação plano-paralela (BARROS et al., 2011).
Especificamente na área de estudo, no vale da Serra Branca, estão mapeadas rochas que pertencem à Formação Cabeças (Grupo Canindé) (CPRM, 2009), constituída por arenitos, de coloração creme-amarronzada, de granulometria média a grossa, intercalados por siltitos e folhelhos, estratificados, de cor arroxeada, associados a ambiente marinho plataformal (DELLA FÁVERA, 1990). Ocorrem ainda diamictitos glaciogênicos para o topo, associados à discordância neodevoniana que marca a passagem entre os arenitos da Formação Cabeças e os folhelhos plataformais da Formação Longá (FERRAZ; CÓRDOBA; SOUZA, 2017). Depósitos detrito-lateríticos cenozoicos completam a estratigrafia local.
Os depósitos mesozoicos da Bacia do Parnaíba não são conhecidos na área de estudo. Já os depósitos cenozoicos da bacia foram estudados por Pellerin (1984), que diferenciou quatro unidades no PNSC e circunvizinhanças, das quais apenas uma ocorre dentro do parque, sendo denominada pelo autor de “Formações superficiais compostas por alteritos e solos”. Santos, Barreto e Suguio (2012) verificam que a idade dessas formações superficiais é holocênica, tal como revelado por datações por luminescência opticamente estimulada (LOE).
MATERIAIS E MÉTODOS
A metodologia deste trabalho foi desenvolvida pela aplicação de dados de georadar ao estudo de depósitos quaternários em ambientes continentais (Oliveira et al. 2012). Os dados utilizados resultam da aplicação de sistema de aquisição da GSSI (Geophysical Survey Systems Inc.), configurado com antenas blindadas monoestáticas de frequência central de 200 MHz. A aquisição de dados é realizada pela técnica de reflexão com afastamento constante, gerando sinal GPR que é pós-processado segundo fluxograma de pós-processamento padrão, focado no aumento da relação sinal/ruído através da aplicação de filtros de frequência de passa-banda alta e de passa-banda baixa; de filtros espaciais para remoção de ruídos de fundo; da adição de ganhos temporais, e da imposição de correção geométrica através de migração e correção topográfica. Esses procedimentos são executados nos softwares RADAN 7.0® e ReflexW 3®.
Os resultados preliminares do levantamento GPR possibilitam a seleção de locais para prospecção do subsolo através de sondagens com trado manual e através da abertura de trincheiras de profundidade variável. Sobretudo nas trincheiras, são observadas as principais características dos sedimentos recentes sobrepostos às rochas locais. As profundidades dos contatos entre camadas de sedimentos associados a mudanças texturais notáveis, e dos contatos entre sedimentos recentes e rochas sedimentares são cuidadosamente registradas, com o intuito de fornecer dados de afloramento para a interpretação GPR.
Os dados GPR, expressos através de perfis de reflexão (radargramas) são cotejados com os dados de afloramento, permitindo o cálculo de constantes dielétricas para a transformação dos valores de tempo duplo de propagação dos pulsos eletromagnéticos (EM) em velocidades médias de propagação no meio. O procedimento possibilita a interpretação dos radargramas em termos de profundidade de prospecção, com base na associação entre variações do sinal GPR e variações de caráter estratigráfico e sedimentológico.
Os valores calculados para a permissividade dielétrica (constante dielétrica) do subsolo variam, de acordo com as áreas estudadas, mas ficam definidos entre 7,86 e 2,88 farad (F) por metro, para efeito dos perfis de prospecção aqui apresentados. Com base nesses valores, as velocidades médias calculadas para a propagação das ondas EM no subsolo são de 0,10 a 0,17 m.ns-1, respectivamente. Considerando as frequências de retorno dominantes nos perfis GPR estudados, assim como as velocidades de propagação obtidas, os dados processados possuem resolução vertical entre 5 e 9 cm, com alcance espacial entre 4 e 10 metros de profundidade, de acordo com o sítio estudado.
A interpretação dos dados GPR é fundamentada nos parâmetros acima mencionados, tendo como base os princípios da estratigrafia de radar, que direciona o foco de análise para a distribuição espacial, continuidade lateral e magnitude de refletores GPR. Esses refletores são causados pela passagem de pulsos EM entre meios com características físicas distintas. No caso da aplicação estratigráfica, os refletores são associados à passagem dos pulsos EM entre camadas sedimentares fisicamente distintas. A geometria de refletores com maior continuidade espacial permite definir a geometria externa de camadas sedimentares, e a configuração espacial e terminações dos refletores de menor expressão permitem avaliar a qualidade, a estrutura interna e as relações estruturais entre diferentes camadas.
Visando a obtenção de referencial plano-altimétrico de precisão, foi executado levantamento topográfico pela técnica RTK (Real Time Kinematic) através de GNSS da marca Trimble R6, composto por um receptor GPS que permanece fixo em determinado ponto de coordenadas conhecidas, ou previamente materializadas em campo, formando base para o levantamento. Outro receptor GPS é movimentado sobre o terreno (rover), fornecendo o posicionamento relativo de pontos da linha de caminhamento em tempo real. Os dados de posicionamento global foram obtidos no modo temporal, gerando pontos espaçados a intervalos de 3 segundos de caminhamento contínuo. Esses dados são pós-processados para correção geodésica, e para a transformação de coordenadas UTM em coordenadas lineares, gerando perfis topográficos associados ao levantamento GPR. Esses dados plano-altimétricos são aplicados à correção topográfica dos dados GPR, permitindo apreciação mais realística da geometria dos refletores de radar e da sua associação com a estratigrafia e com o relevo.
Para o estabelecimento da sequência temporal dos depósitos sedimentares estudados, foram coletadas amostras para análises diversas e para datação por Luminescência Opticamente Estimulada (LOE). As datações foram realizadas na empresa “Datação, Comércio e Prestação de Serviços Ltda”, pelo método SAR (15 alíquotas).
RESULTADOS E DISCUSSÕES
A Figura 2 apresenta a localização dos sítios estudados, juntamente com alguns aspectos gerais do relevo e da superfície do terreno na área pesquisada. As linhas de caminhamento e de prospecção GPR selecionadas para o trabalho também estão indicadas. Essas linhas correspondem a aproximadamente 4.000 metros de dados de georadar (GPR) e de RTK, associados à dados de afloramento em locais específicos. Devido à extensão significativa e à pouca profundidade atingida pelos perfis de reflexão (radargramas), segmentos específicos desses perfis foram selecionados para ilustrar as principais características geofísicas, estruturais e estratigráficas dos sítios estudados, em escalas com exagero vertical variável.
Detalhamento da área de estudo. Os pontos numerados referem aos segmentos das linhas de prospecção GPR selecionados para ilustração (traços amarelos). A ordem dessa numeração corresponde à ordem de apresentação dos resultados no trabalho.
Padrões de reflexão GPR, estrutura do subsolo e depósitos quaternários recentes
Na área estudada, os dados de georadar apresentam padrão de reflexão que permite diferenciar dois tipos de materiais. Observamos materiais associados a refletores geofísicos de baixa magnitude relativa, com fraca organização espacial (continuidade lateral e orientação), e materiais com refletores de forte magnitude relativa e bem organizados espacialmente (Figura 3). Os primeiros estão associados a coberturas quaternárias formadas por sedimentos inconsolidados, e os segundos estão principalmente associados às rochas sedimentares locais. Em casos específicos, como nas proximidades de eixos topográficos de drenagem (Figura 3), os sedimentos quaternários podem apresentar refletores de maior magnitude e maior organização espacial, indicando também maior organização dos depósitos em camadas com propriedades físicas distintas.
Radargrama obtido com antena GPR de 200 MHz, cruzando o eixo do talvegue do vale da Serra Branca (linha GPR 1 na Figura 2). Ilustração sem exagero vertical. As letras A e C indicam exemplos típicos do padrão de reflexão de sedimentos recentes neste estudo, enquanto o setor associado à letra B indica o padrão de reflexão de rochas sedimentares, tanto próximas da superfície quanto em profundidade. Os números brancos indicam definição genérica de unidades estratigráficas para as rochas paleozoicas locais. Notar: i) truncamento pela superfície de estruturas geológicas no setor B, onde ocorre afloramento de rocha com megamarcas de ondulações; ii) estrutura acanalada assimétrica, sob o setor C; iii) localização do fundo do talvegue, onde ocorre outro afloramento de rocha; iv) trincheira de prospecção, confirmando estimativa de profundidade dos sedimentos recentes com base na velocidade de propagação de pulsos GPR.
Em geral, as coberturas sedimentares quaternárias na área estudada ocorrem em discordância sobre as rochas sedimentares paleozoicas, nas quais os refletores bem definidos e de forte magnitude apresentam terminações em supra recobrimento (toplap) (Figura 3). Essas discordâncias caracterizam superfícies de truncamento quaternárias que ocorrem em vários setores do relevo, e estão predominantemente associadas a afloramentos rochosos e a coberturas superficiais pouco espessas (20 e 200 cm de profundidade).
Além dessa distinção do padrão de reflexão GPR entre os materiais do subsolo, é possível classificar os depósitos quaternários em dois grupos, segundo à velocidade de propagação dos pulsos EM no meio. O primeiro grupo é definido por materiais que induzem velocidades médias de propagação em torno de 0,10 m.ns-1. Trata-se de coberturas superficiais de espessura variável, formadas predominantemente por areias médias a finas, apresentando estrutura maciça e pedogênese incipiente. O segundo grupo, é composto por materiais que apresentam velocidades médias de propagação próximas de 0,17 m.ns-1, e que estão associados a coberturas de espessura igualmente variável, formadas por areias grossas de estrutura maciça, que ocorrem intercaladas com leitos de cascalho fino (grânulos e seixos) com alguma estratificação local. Em função dessas velocidades, o levantamento de dados GPR alcança maiores profundidades no caso das areias grossas com cascalho.
Essa relação entre velocidades de propagação de pulsos EM e textura dos sedimentos quaternários pode ser justificada pelo fato de que materiais de textura mais fina tendem a apresentar maior retenção de umidade gravimétrica, sobretudo em função de percentuais maiores da fração lama nos sedimentos, provocando aumento do valor da permissividade dielétrica dos materiais. Esse aumento da permissividade dielétrica implica, necessariamente, a diminuição da velocidade de propagação das ondas de rádio no meio. Por outro lado, no ambiente específico estudado, com taxas relativamente elevadas de evapotranspiração ao longo do ano, areias grossas tendem a apresentar taxas de infiltração e de evaporação elevadas, compondo ambiente que não é propício à retenção de umidade no solo. Como consequência, esses materiais apresentam constantes dielétricas mais baixas e velocidades de propagação de pulsos EM mais elevadas (Figura 4).
Relações constitutivas do meio para efeito de prospecção GPR, com foco na influência do teor de umidade (() dos materiais sobre a permissividade dielétrica relativa (() e a velocidade de propagação de pulsos EM (metros por nano-segundos).
Ficam definidos, portanto, dois grupos de cobertura quaternária na área estudada, no que toca às relações constituintes do meio: a) areias médias a finas, com baixa velocidade relativa de propagação de pulsos GPR; b) areias grossas e cascalhos, com alta velocidade relativa de propagação de pulsos GPR. A estrutura maciça que predomina nesses depósitos pode ser atribuída a causas distintas, que requerem investigação mais aprofundada (PETTIJOHN, 1987), como: resiliência temporal do padrão de transporte e de deposição difusa que predomina atualmente no vale da Serra Branca; deposição rápida, associada a fluxos densos; efeitos da pedogênese sobre os depósitos.
A principal distinção que nós desejamos salientar, porém, é de caráter estratigráfico, e está associada à oposição, dominante nos dados obtidos, entre refletores bem organizados nas rochas sedimentares paleozoicas e refletores mal organizados nas coberturas quaternárias. No que toca a essas coberturas, aquelas que são formadas por sedimentos mais grossos, contendo cascalhos, apresentam melhor organização do padrão espacial de reflexão GPR, em função dos efeitos associados à sua textura mais variável.
Datações desses depósitos possibilitam cálculo de taxas de sedimentação (Quadro 1). Os depósitos datados estão relacionados a alguns ambientes geomorfológicos do vale, permitindo associação entre ambientes proximais e distais e taxas de sedimentação. Em ambiente proximal as taxas são mais elevadas em anfiteatro rampeado do que em rampa de sopé de cornija. Fato que pode ser atribuído ao aporte aluvial proporcionado pela maior captação de chuvas em sítios com morfologia em bacia. Em ambientes distais, as taxas mais elevadas ocorrem no baixo vale da Serra Branca, próximo ao seu exutório, novamente associadas a depósitos de aluviões. Depósitos em superfície de planação apresentam as menores taxas de sedimentação registradas. O Quadro 1 indica também permissividades dielétricas e velocidades de pulsos GPR nos materiais datados.
Amostras datadas e taxas de sedimentação associadas a características ambientais e geofísicas dos materiais analisados.
As datações disponíveis indicam que os depósitos proximais, associados aos sítios adjacentes às cornijas que emolduram o vale da Serra Branca (RC e AR), se acumularam durante o Holoceno Médio, ou subestágio Nortegripiano (COHEN et al. 2018; WALKER et al., 2012), enquanto os depósitos distais (BV e GE) foram assentados no Holoceno Inferior e no Pleistoceno Superior, respectivamente nas proximidades do exutório do vale, e ao longo de superfície de planação.
O referencial geocronológico associado ao caráter proximal ou distal dos depósitos sugere que a evolução geomorfológica do vale estaria ocorrendo por processo de pedimentação associado à regressão lateral das cornijas que o emolduram, justificando as idades mais recentes dos depósitos proximais. Essa hipótese evolutiva poderá ser cotejada com os resultados que seguem.
Superfícies de truncamento e depósitos holocênicos em sopé de cornija
Uma das linhas de prospecção GPR foi materializada ao longo de trilha que percorre paralelamente base de cornija irregular com orientação geral SW-NE (radargramas 2 e 3, na Figura 2). Essa linha possui 970 metros; se afasta da escarpa ao atravessar reentrâncias erosivas que formam anfiteatros em rampa (MEIS; MONTEIRO, 1979), e se aproxima da escarpa ao tangenciar seus esporões. Os fundos dos anfiteatros apresentam cobertura vegetal mais densa do que a cobertura vegetal adjacente, no vale, onde podem ser observadas áreas de exposição de areias e de rochas em imagens aéreas e orbitais (Figura 2). Resultados relacionados a dois desses anfiteatros são apresentados a seguir.
O perfil topográfico da linha de caminhamento indica perda gradual de altitude para NE ao longo de aproximadamente 366 metros, até onde se encontra o primeiro anfiteatro em rampa estudado (Figura 5). O perfil ganha altitude em seguida ao se aproximar dos esporões, entre os quais se situa o eixo de outro anfiteatro, há aproximadamente 300 metros do anfiteatro anterior. O terreno ganha mais altitude para NE, bordejando a cornija para jusante (NNE). Esse ganho de altitude para jusante, contrariando o declive esperado do vale, é consequência da abertura de grande reentrância na frente da escarpa, no interior da qual se encontram os anfiteatros estudados (Figura 2). Como essa reentrância aparenta ter resultado do recuo lateral da cornija, deixando superfícies geomorfológicas gradativamente mais elevadas na direção da frente da escarpa, a linha de caminhamento ganha altitude no setor. A configuração geral do terreno no local é a de uma superfície mais elevada a WNW que perde gradualmente altitude para ESE, no sentido do fundo do vale, acusando declive ortogonal ao mergulho geral das rochas paleozoicas, para NNE (Figura 6). Essa configuração corrobora a hipótese, sugerida pelos resultados geocronológicos, de morfogênese associada à produção de superfícies de planação na área.
Perfil topográfico associado à linha de prospecção GPR no limite ocidental do vale da Serra Branca. Notar, em preto e em tamanho reduzido, abaixo do perfil ilustrado, o mesmo perfil, sem exagero vertical, permitindo apreciação mais realística do relevo. Os segmentos marcados por tracejados no perfil indicam os setores que são contemplados pelos radargramas das Figuras 7 e 9. Estão indicados nesta figura, em vermelho, alguns pontos de referência que serão ressaltados nos radargramas correspondentes mais abaixo.
Aspecto da porção ocidental do vale da Serra Branca, com visada geral para NNE, onde pode-se observar longa superfície suavemente inclinada para ESE (direita), que se estende a perder de vista. Notar aspecto verdejante da Caatinga, ao final da estação chuvosa.
Radargrama obtido com antena GPR de 200 MHz, atravessando parcialmente anfiteatro de dissecação de frente de cornija, ao longo de 243,5 metros, entre 298 e 441,5 metros da origem do perfil topográfico (Figura 5). O retângulo tracejado vermelho indica o setor ilustrado na Figura 8. Notar o exagero vertical das figuras.
Ilustração, sem exagero vertical, de parte do radargrama da Figura 7.B, centrada na estrutura assimétrica de corte e preenchimento. Os principais refletores dentro da estrutura estão ressaltados em amarelo. O encarte abaixo do radargrama destaca a distribuição dos principais refletores, e ilustra a aplicação do método GPR para a caracterização de unidades aloestratigráficas, cuja ordem deposicional está indicada em vermelho.
Radargrama obtido com antenas GPR de 200 MHz ao longo de trecho do segundo anfiteatro de dissecação prospectado. Notar que o radargrama não possui exagero vertical e não foi submetido à correção topográfica.
A Figura 7 ilustra radargrama que abarca 243,5 metros dessa linha de caminhamento. O radargrama foi dividido em duas partes para efeito da ilustração (Figura 7 A e B). A Figura 7. A exibe padrão de reflexão GPR característico do que foi definido neste estudo, com refletores de forte magnitude associados às rochas sedimentares, em profundidade, e zonas de menor intensidade de reflexão associadas às formações superficiais. Os refletores nas rochas apresentam distribuição geral ondulada, com mergulhos suaves para NE, paralelos à superfície do terreno ao longo dos primeiros 35 metros do radargrama. O sentido de mergulho desses refletores é invertido para SE a partir daí, até aproximadamente 90 metros da origem, onde ocorrem alguns refletores de alta magnitude que estão situados muito próximos da superfície, em local que coincide com o eixo geométrico do primeiro anfiteatro (Figuras 2, 5 e 7.A). A mudança de sentido de mergulho dos refletores basais ao longo de 55 metros confere à zona associada às formações superficiais geometria lenticular, que é também reforçada pela diminuição da espessura dos depósitos para NE. Os 30 metros restantes da Figura 7.A, entre 90 e 120 metros da origem, apresentam refletor relativamente contínuo, próximo à superfície, indicando o contato relativamente raso entre depósitos superficiais e o embasamento.
A Figura 7.Bdá continuidade ao radargrama, onde verificamos espessamento dos sedimentos quaternários a partir de 140 metros da origem. A cobertura de sedimentos ganha espessura até atingir a profundidade de 4,7 metros, a 160 metros da origem do radargrama, perdendo profundidade em seguida no sentido NE, e delineando feição subterrânea acanalada. Os depósitos que preenchem a borda NE dessa feição estão dispostos em discordância sobre os refletores de alta magnitude associados aos arenitos. Nesse local, a estrutura coincide em superfície com pequeno ressalto topográfico que marca a passagem para os afloramentos rochosos que dominam o resto do setor estudado (Figura 7.B). A partir desse ponto, depósitos recentes de pouca espessura ocorrem intercalados com afloramentos de rocha cujos refletores GPR terminam sistematicamente em padrão de truncamento erosivo sob a superfície topográfica. Onde há depósitos, ficam definidos contatos em supra recobrimento (toplap). O conjunto das feições aponta para a ocorrência de superfície de truncamento holocênica (Quadro 1), parcialmente dissecada e colmatada, que está exumada no terço NE do radargrama (Figura 7.B).
A Figura 8 ilustra a estrutura acanalada sem exagero vertical, onde ressaltamos suas principais características. Sondagem manual realizada a 4,5 metros do eixo da feição indica passagem entre areias holocênicas e embasamento paleozoico a 204 cm de profundidade, confirmando os dados de radar e caracterizando a feição como estrutura de corte e preenchimento. Uma camada de areias e cascalho fino foi identificada pela sondagem entre 172 cm e 202 cm de profundidade, sobreposta às rochas paleozoicas.
A estrutura de reflexão (Figura 8) permite dividir o material de preenchimento da incisão erosiva em três unidades: 1) unidade inferior, com refletores GPR que se distribuem paralelamente ao canal da incisão, formando camada de acreção vertical de 105 cm de espessura; 2) unidade intermediária, sigmoidal, com alguns refletores de igual geometria que tendem a se dispor em recobrimento retrativo (offlap), formando camada de acreção vertical e lateral com 181 cm de espessura, associada ao aporte crescente de sedimentos, com acumulação de cascalhos; 3) unidade superior, apresentando padrão de reflexão semitransparente, com refletores descontínuos paralelos a cruzados, associados a areias médias a grossas, maciças, compondo camada de 187 cm de espessura. A distribuição dos refletores GPR ilustra a maior organização estrutural dos depósitos mais profundos, relativamente protegidos dos efeitos da pedogênese, nas unidades 2 e 3. A interpretação desses depósitos depende ainda de análise detalhada dos sedimentos, assim como da obtenção de dados geocronológicos complementares.
O conjunto da estrutura sugere acumulação de sedimentos associada à migração lateral de fluxos deposicionais para NE, conforme à assimetria da incisão erosiva e ao recobrimento retrativo (offlap) que é sugerido pela geometria dos refletores GPR na unidade intermediária (Figura 8). Os resultados apontam para estrutura de corte e preenchimento com 37 metros de largura e 4,7 metros de profundidade, associada à incisão erosiva do embasamento ao longo do paleo-eixo de drenagem de um anfiteatro. Os depósitos de preenchimento da incisão aparentam ter sido transportados em sistema similar ao de leques aluviais, com três unidades alo-estratigráficas individualizadas pela estratigrafia GPR. Padrão de reflexão similar, também associado a estruturas de corte e preenchimento e a superfícies de truncamento, pode ser observado no radargrama perpendicular ao segundo anfiteatro estudado (Figura 9 e Figura 5).
Trincheira aberta a 95 metros do eixo da primeira estrutura de corte e preenchimento, no sentido SW do radargrama, em local próximo ao eixo topográfico do anfiteatro (Figura 7.A), revela padrão deposicional com alguma organização dos refletores nas formações superficiais, também em profundidades intermediárias. A trincheira atingiu três metros de profundidade, sem alcançar o substrato rochoso. Transições entre camadas de areias grossas maciças e cascalhos são registradas a 210 cm e 230 cm abaixo da superfície, definindo camada de cascalho de aproximadamente 20 cm de espessura. Essas profundidades e espessuras são equivalentes às verificadas na borda da paleo-incisão erosiva discutida acima. Os sedimentos coletados nessa trincheira foram datados como de idade holocênica (Quadro 1, amostras 1 e 2).
Considerando as semelhanças entre depósitos e feições GPR nos dois anfiteatros investigados, e observando que os depósitos datados não atingem o contato entre coberturas superficiais e rochas, o início da sedimentação nas estruturas de corte e preenchimento mapeadas nos anfiteatros deve ter ocorrido em idade mais remota do que a do Holoceno Médio. Nós não podemos afirmar que as paleo-incisões identificadas nos anfiteatros tenham idades semelhantes entre si, nem que sejam significativamente mais remotas do que as idades obtidas na trincheira de prospecção. Porém, a possibilidade de que elas tenham se desenvolvido em idades mais remotas fica desde já postulada, orientando iniciativas futuras de pesquisa.
Ao longo da linha de caminhamento, portanto, o levantamento GPR permite mapear estruturas subterrâneas que estão geneticamente associadas à formação e à evolução dos anfiteatros de dissecação das escarpas que bordejam o vale (Figura 2). O conjunto geomorfológico-estratigráfico indica a ocorrência de anfiteatros rampeados em sistema de lobos colúvio-aluvionares, e representa evidência de processos de dissecação do substrato rochoso, localmente canalizados nos paleo-eixos de drenagem. Esses eixos de escoamento estão preservados como estruturas de corte e preenchimento soterradas, cujos sedimentos geram refletores geofísicos que indicam colmatação do terreno através de acreção vertical e lateral, apresentando organização estrutural notável. Nos anfiteatros, os depósitos ocorrem limitados espacialmente por superfícies rochosas truncadas, que podem ser caracterizadas como pedimentos detríticos dissecados. As estruturas sedimentares indicadas pelo sinal GPR não se adequam à generalização segundo a qual os depósitos proximais no PNSC seriam exclusivamente coluviais (OLIVEIRA et al., 2014). Essa generalização está fundamentada na observação de que os depósitos registrados apresentam fração arenosa predominante maciça. O que é perfeitamente justificável em casos onde as areias compõem a matriz de depósitos rudáceos. Porém, depósitos majoritariamente arenosos são raramente maciços, e necessitam de exame sedimentológico fino que confirme ausência, ou presença, de estruturas primárias (PETTIJOHN et al., 1987; FERREIRA; OLIVEIRA, 2006). Depósitos proximais aluvionares estão presentes na área, ocorrendo em alguns casos confinados no interior de paleo-incisões erosivas, provavelmente associados ao escoamento canalizado de fluxos de chuva (Figura 8).
A estrutura do subsolo nesse setor do vale reforça a hipótese que foi avançada na seção anterior com base em evidências geocronológicas, sugerindo que a evolução do fundo do vale da Serra Branca vem ocorrendo como consequência da associação entre dissecação do substrato rochoso; recuo das escarpas que emolduram o vale, e formação de superfícies de truncamento quaternárias parcialmente soterradas, caracterizando processo evolutivo clássico de produção de superfícies de planação controladas por variação do nível de base.
Inversão de talvegue pleistocênico e taxas de dissecação do Vale da Serra Branca.
A Figura 10 ilustra perfil altimétrico obtido ao longo de alto topográfico que se estende linearmente com direção WSW-ENE, e que apresenta características de interflúvio rebaixado pela erosão. O perfil altimétrico está associado a 3.090 metros de linhas de prospecção GPR, atravessando toda a porção ocidental do vale da Serra Branca, desde o início da grande reentrância acima abordada, cruzando o eixo principal do talvegue, e se estendendo sobre a superfície geomorfológica da margem oriental do vale (Figura 2, linha GPR 4). O perfil cruza a vertente norte do interflúvio rebaixado, perpendicularmente à sua linha de maior declive. O realce em preto na linha do perfil, próximo à borda WNW do talvegue principal, indica a posição da zona GPR de baixa reflexão ilustrada na Figura 11. Quando visualizado da borda leste do vale, o interflúvio rebaixado no qual se encontra a feição GPR assume geometria geral em glacis de erosão (Figura 12).
Perfil topográfico perpendicular à vertente norte de interflúvio rebaixado. As linhas horizontais tracejadas vermelhas indicam o desnível de 14 a 19 metros entre o fundo do talvegue atual e os compartimentos adjacentes. O encarte situado abaixo do perfil topográfico corresponde à porção do perfil delimitada pelo retângulo vermelho, próximo do talvegue atual do vale, ilustrando o relevo sem exagero vertical. Notar posição de feição GPR identificada no compartimento topográfico a WNW do talvegue.
Radargrama obtido com antenas GPR de 200 MHz, ilustrando feição de baixa reflexão associada a canal suspenso de aproximadamente 300 metros de largura. As duas barras amarelas verticais estreitas apontam para locais de sondagens manuais. A barra vertical larga, posicionada abaixo da superfície, indica a profundidade atingida por trincheira de prospecção. Tracejados vermelhos no fundo da feição indicam intepretação associada à localização de lentes de cascalho. O retângulo vermelho próximo da borda ESE da feição refere ao radargrama da Figura 14. Notar o forte exagero vertical da ilustração.
Aspecto de divisor rebaixado (esquerda) e de pedimento (direita) próximo à escarpa Oeste do vale. Os realces em amarelo indicam a configuração geral em glacis do relevo residual que bordeja o talvegue principal do vale da Serra Branca na área estudada. Os tracejados e branco delimitam as margens do paleocanal suspenso na área ilustrada. A seta preta indica a linha de cumeada do divisor rebaixado.
Camada de cascalhos clasto-suportados polimolidais com lentes de seixos, no fundo de trincheira de prospecção. Notar direção da exposição e imbricação aparente dos seixos no local.
Parte do radargrama da Figura 12, ilustrada sem exagero vertical e submetida à correção topográfica. Os refletores ressaltados em amarelo indicam depósitos de cascalho observados em campo. Os refletores marcados em vermelho indicam a transição para rochas paleozoicas. Notar a inversão do sentido de mergulho dos refletores entre as areias sobrepostas a cascalhos e embasamento; em infra recobrimento (downlap), nas proximidades e no interior da zona da trincheira, e em recobrimento expansivo (onlap) próximo da borda ESE da feição acanalada.
A aproximadamente 2.270 m da origem da linha de caminhamento, observa-se nos radargramas zona de baixa reflexão subterrânea que se estende por 315 metros para ESE, e que delineia larga feição acanalada, de fundo ondulado, atingindo entre 3,5 a 7,0 metros de profundidade (Figura 11). Seguindo a relação geral estabelecida para este estudo entre refletores e materiais do subsolo, essa zona está associada a sedimentos quaternários pouco reflexivos, sobrepostos a sedimentos e rochas que geram refletores GPR de alta magnitude relativa em profundidade, sobretudo na periferia da feição GPR. Ao contrário dos radargramas anteriores, porém, o radargrama nesse setor se torna transparente em profundidades maiores, evidenciando praticamente ausência de sinal GPR. Esse fato indica forte atenuação do sinal GPR na zona, provavelmente causada pela dispersão matricial de óxiidróxidos e/ou argilominerais em profundidade. A coincidência espacial entre a zona de atenuação de pulsos EM e a configuração acanalada assumida pela feição subterrânea é notável.
Trincheira aberta próxima à borda ESE da feição confirma a relação entre padrões de reflexão e materiais do subsolo, revelando pacote de aproximadamente 3,6 metros de areias finas a médias, maciças, sobrepostas a camada com 40 centímetros de espessura de cascalhos clasto-suportados polimodais, depositados sobre arenitos alterados (Figura 13). Os seixos de maior calibre (entre 5 a 10 cm), são bem arredondados e predominantemente oblatos, apresentando imbricação média de 7º que é consistente com sentido de deposição para NNE, acompanhando o declive geral da vertente (penetrando para a direita no plano da Figura 13). Datações LOE de areias sobrepostas e sotopostas aos cascalhos indicam idades de 23,8 ka e de 83,5 ka, respectivamente (Quadro 1, amostras 4 e 5). A Figura 14 ilustra a estrutura de reflexão de detalhe, ressaltando a passagem entre areias e cascalhos pleistocênicos e rochas sedimentares adjacentes, nas proximidades dos locais de prospecção por escavação.
O contraste entre o padrão de reflexão dos materiais de preenchimento da feição acanalada e o padrão dos arenitos subjacentes e adjacentes à borda ESE da feição é evidente, sobretudo no entorno das transições entre sedimentos e embasamento (Figura 14). Esse padrão se reproduz ao longo dos 315 metros da feição GPR, onde pode-se observar refletores nas proximidades do fundo do paleo-canal cuja configuração ondulada reproduz a geometria lenticular dos depósitos de cascalho encontrados no fundo da trincheira de prospecção (Figuras 12, 13 e 14).
Em função disso, as demais feições lenticulares observadas no radargrama da Figura 11 são interpretadas como lentes de cascalho similares, distribuídas ao longo de canal pleistocênico. O padrão dos refletores ao longo de todo o paleo-canal sugere distribuição grano-decrescente para o topo dos sedimentos, tal como indicado pela concentração das lentes de cascalho na porção inferior do depósito e pela ocorrência de zonas de reflexão de alta magnitude gradualmente mais esparsas para o topo do depósito (Figura 11). Como pode ser observado pela localização dessa feição no perfil topográfico da Figura 10, o canal pleistocênico está posicionado entre 14 e 19 metros acima do fundo do talvegue atual do vale, indicando a ocorrência de canal suspenso, e evidenciando processo de inversão do relevo local.
As idades obtidas pelas datações LOE (Quadro 1) e as diferenças altimétricas observadas entre o depósito do canal pleistocênico e o eixo do talvegue atual indicam que o paleo-canal esteve ativo e adaptado ao nível de base local durante o interestadial do Estágio Isotópico Marinho (EIM) 5a, há
83.500 anos. O processo de inversão do relevo teve início, portanto, pelo menos a partir do EIM 2 (há 23.860 anos), associado ao Último Máximo Glacial (UMG), por processo de avulsão do canal e adaptação do talvegue à sua posição atual. Como o talvegue atual não possui canal fluvial claramente definido, a configuração geral do canal pleistocênico; suas dimensões, e os depósitos que o preenchem sugerem a presença de fluxos de chuva mais volumosos, mais frequentes e mais competentes do que os atuais, capazes de esculpir canal de drenagem bem definido, provavelmente de tipo entrelaçado, e de produzir depósitos rudáceos clasto-suportados (NICHOLS, 1999).
Considerando toda a duração do UMG, já que a camada de cascalho datada está sotoposta a 3,5 metros de areias, a inversão de relevo foi processada sob taxa média de dissecação linear de 0,74 metros por 1.000 anos, ou 0,74 mm.ano-1. Essa taxa de dissecação é aproximadamente duas ordens de grandeza inferior a taxas de dissecação fluvial obtidas sob clima temperado úmido, como na Europa, por exemplo (SKARPICH et al. 2013), e é entre uma e duas ordens de grandeza superior a taxas de erosão calculadas em ambiente desértico (BIERMANN e CAFEE, 2001). A taxa é teoricamente consistente, portanto, haja vista o clima semiárido da área de estudo. O processo de dissecação e de inversão do relevo ocorreu associado ao abandono do paleo-canal, por avulsão, preservando feição acanalada relictual com mais de 300 metros de largura sob a vertente suavemente inclinada de interflúvio rebaixado, configurando calha larga e rasa, típica de canais entrelaçados (DÍEZ-HERRERO et al., 2009). Atualmente, não existe canal inciso com bordas claramente definidas (MONTGOMERY e DIETRICH, 1988) nos setores mais profundos do talvegue do vale da Serra Branca. No Pleistoceno Superior, os sedimentos foram transferidos por fluxos competentes confinados em calha fluvial.
Já com essa interpretação em mente, verificamos posteriormente, durante o processo de georefereciamento de dados de campo para a produção de documentação cartográfica, que a trincheira estudada se posiciona precisamente nas proximidades de lineamento que está situado na borda de feição superficial acanalada que é claramente visível na imagem orbital utilizada para a confecção da Figura 2.
Interpretado, inicialmente, como crista residual no interior do talvegue do vale da Serra Branca, esse lineamento revelou estar associado a afloramentos de arenitos muito alterados, suspensos em relação ao talvegue atual, majoritariamente cobertos por depósitos residuais de areias e de cascalhos bem arredondados de calibre semelhante ao dos cascalhos verificados na trincheira de prospecção (Figura 13). A distribuição espacial linear dessas cascalheiras marca ao longo do vale a posição da borda do patamar erosivo que foi constituído pelo processo de avulsão e dissecação que gerou o talvegue atual do vale, deixando o paleo-canal pleistocênico suspenso, como revelado pela prospecção GPR. As cascalheiras expostas indicam a posição de prováveis barras laterais do canal pleistocênico entrelaçado. A coincidência entre a posição e as dimensões da feição GPR pleistocênica e as da feição acanalada superficial visível na imagem orbital é conclusiva (Figura 2). A feição na imagem orbital é um paleo-canal suspenso de aproximadamente 300 metros de largura e 3.300 metros de comprimento, no setor estudado.
A Figura 2 indica ainda que tanto o talvegue atual, situado a ESE da cascalheira, quanto o canal suspenso, mapeados, constituem setor do vale onde a vegetação da Caatinga estava verdejante no momento da aquisição da imagem orbital. Essa peculiaridade associada à Caatinga pode ser explicada, muito provavelmente, pelas diferenças de retenção de umidade dos sedimentos que recobrem o relevo local. Nas áreas onde prevalece a ocorrência de areias médias a finas, como no material de preenchimento do paleo-canal suspenso e no de cobertura do talvegue atual do vale, a textura mais fina dos sedimentos de topo possibilita maior retenção de umidade, induzindo a vegetação local a permanecer verdejante durante mais tempo do que a vegetação do entorno, disposta sobre as superfícies de planação, ou sobre as cascalheiras.
Observando o perfil altimétrico da Figura 10, cabe ressaltar a simetria do fundo do talvegue atual, na porção inferior do perfil, onde podemos observar a forma atual do talvegue, em “U” largo, aplainado, margeado por superfícies que tendem a perder inclinação ao ganhar altitude, configurando dois compartimentos topográficos adjacentes ao talvegue do vale da Serra Branca que desenvolvem perfil clássico em pedimentos, apoiando interpretação que permite mapear no setor estudado as bordas dos patamares erosivos que foram esculpidos pelo processo de incisão do talvegue atual, desde o UMG pelo menos.
É interessante reafirmar a consistência dos resultados obtidos, lembrando a distinção feita inicialmente entre textura das coberturas superficiais e relações constitutivas do meio de interesse para a aplicação GPR (Figura 4). As diferenças físicas verificadas entre os sedimentos induzem diferenças de permissividade dielétrica dos materiais; diferenças de velocidade de propagação de pulsos EM; diferenças hipotéticas de capacidade de retenção de umidade do solo, e diferenças de textura do terreno em imagem orbital, possibilitando a identificação e o mapeamento de depósitos e de formas de relevo atuais e pretéritas. A feição acanalada que pode ser observada na imagem orbital, corrobora a interpretação feita neste trabalho com base nos padrões de reflexão GPR, ilustrando o potencial de aplicação da metodologia GPR para o mapeamento geológico e geomorfológico.
A Figura 15 apresenta interpretação geológico-geomorfológica do setor estudado, através do mapeamento das principais unidades identificadas por evidências geofísicas, geocronológicas e geomorfológicas. Como sugerido pelo conjunto das descrições feitas anteriormente, podemos observar
Mapa geológico-geomorfológico do setor estudado. 1) Planalto arenítico; 2) Cornijas; 3) NQpd: superfícies de planação de idade indefinida, neogênica-quaternária; 4) QPa: aluviões quaternárias do Pleistoceno Superior, preservadas em paleo-canal suspenso; 5) QHca: depósitos colúvio-aluvionares holocênicos, em anfiteatros e talvegues.
que a borda Leste da área estudada apresenta maior fragmentação da superfície de planação. Essa configuração se explica pela migração lateral do talvegue atual, em relação ao talvegue pleistocênico, se aproximando das cornijas da borda oriental do vale da Serra Branca, e possibilitando maior conexão entre os processos de erosão e de sedimentação no setor (OLIVEIRA; MEIS, 1985; OLIVEIRA, 1990). O inverso ocorre com os anfiteatros estudados na borda Oeste do vale, que estão conectados ao talvegue atual através de superfície de transferência longa e delgada, que atravessa o talvegue pleistocênico suspenso antes de se conectar à linha de drenagem principal. Estão mapeados ainda depósitos de amplo anfiteatro, estudado preliminarmente, que aparentam estar desconectados do talvegue principal do vale. Esse anfiteatro coincide com a grande reentrância estudada mais acima, onde as superfícies pedimentares ganham altitude para NE em relação aos anfiteatros estudados.
É bastante provável que o processo de dissecação da superfície de planação que levou à inversão do relevo aqui ilustrada tenha ocorrido através da adaptação dos fluxos de escoamento intermitente ao longo de linha de falha que está mapeada nas proximidades da borda oriental do vale (Figura 15) (CPRM, 2009), forçando a avulsão para sentido Leste, e causando o abandono do canal pleistocênico. Trabalhos futuros poderão esclarecer como essa adaptação ocorreu, se de forma passiva, associada à erosão diferencial, ou induzida, associada a eventual ajuste de caráter neotectônico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora este trabalho utilize métodos relativamente recentes de mapeamento do subsolo e de datação de sedimentos, ele chegou a resultados que remetem à abordagem original da geomorfologia brasileira de meados do século passado, e que esteve focada na observação das relações entre formas de relevo e depósitos correlativos (BIGARELLA; ANDRADE, 1965; BIGARELLA; MOUSINHO, 1965; BIGARELLA; MOUSINHO; SILVA, 1965; MEIS; MOURA, 1984). No caso estudado, essas relações se impõem pelas evidências acumuladas, fornecendo matéria para reflexão sobre a relação entre teorias e modelos geomorfológicos clássicos e fatos geológicos (PEULVAST; CLAUDINO SALES, 2003). Os resultados obtidos apresentam cenário geomorfológico consistente com esses modelos, demonstrando a evolução e a distribuição espacial de depósitos quaternários e de pedimentos controlados por ajustes de nível de base local. É difícil oferecer alternativas razoáveis para as interpretações do trabalho que resultam da associação entre estrutura superficial (relevo), estrutura do subsolo (depósitos e rochas) e geocronologia.
Em outro contexto, e em outro continente, Larson et al. (2016) apresentam resultados geocronológicos que também demonstram a existência de fases de dissecação de pedimentos controladas por flutuações do nível de base no deserto de Sonora (EUA). Embora desconhecendo as propostas originais do professor Bigarella, os autores desenvolvem o conceito de “superfície pedimentar relictual” (op. Cit., p.1199), e o aplicam à caracterização e à datação de superfícies geomorfológicas escalonadas. Ora, o desenvolvimento e o uso desse conceito pelos autores equivalem a uma reinvenção independente dos modelos clássicos da geomorfologia brasileira, ilustrando a atualização de interpretações clássicas que é possibilitada pela aplicação de novos métodos, e demonstrando que novos métodos não implicam, necessariamente, novos conceitos.
Apesar da ressurgência desses modelos e conceitos, porém, no caso do nordeste brasileiro permanece o desafio da busca de indicadores sedimentológicos e estratigráficos que permitam avaliar, sem ambiguidades, as implicações paleoclimáticas dessas abordagens clássicas. No caso estudado, a posição; as dimensões, e os depósitos do canal pleistocênico suspenso no vale da Serra Branca sugerem a ocorrência de clima semiárido local mais úmido do que o clima atual, que aparenta ter persistido por
53.000 a 65.000 anos durante a última glaciação global, incluindo o Último Máximo Glacial. Embora as evidências de fluxos turbulentos associados a esse canal relictual sejam bastante consistentes, contrariando o binômio morfoclimático frio-seco/quente-úmido, os dados disponíveis no momento não permitem marcar de forma definitiva essa distinção em relação aos modelos clássicos da geomorfologia brasileira. Dados complementares ainda são necessários.
De todo modo, os resultados obtidos neste trabalho indicam que o vale da Serra Branca deve ser caracterizado como pediplano parcialmente dissecado, cujos remanescentes constituem superfícies pedimentares que bordejam o talvegue atual do vale. Essa caracterização coincide com todas as descrições geomorfológicas do vale feitas por trabalhos anteriores, onde a planura do fundo do vale é ressaltada, juntamente com a farta referência aos seus pedimentos, cornijas, etc.
Esperamos que este estudo seja o primeiro de uma série focada na definição das relações espaciais e temporais entre depósitos coluviais e aluviais e as principais feições geomorfológicas presentes no pediplano da Serra Branca. O trabalho caracterizou estruturas subterrâneas que permitem a formulação de hipóteses de evolução geomorfológica e a medição de taxas de sedimentação e de incisão linear que são compatíveis com o contexto climático local e regional. Igualmente, os resultados obtidos possibilitam o mapeamento detalhado de formas de relevo e de aluviões quaternários que não haviam sido identificados anteriormente, atualizando a associação entre relevo e depósitos correlativos na área de estudo.
A aplicação da metodologia GPR ao estudo de depósitos quaternários e ao mapeamento geológico e geomorfológico permite ressaltar a definição de características físicas fundamentais dos materiais e das superfícies estudadas, estabelecendo relações robustas entre depósitos, rochas, formas de relevo, aspectos da vegetação, textura de imagens orbitais e percepção da paisagem, cuja convergência possibilita a definição da ordem espacial e interpretativa que fundamenta qualquer mapeamento.
Finalmente, os resultados obtidos levaram à formulação de hipóteses e de questões que ficam abertas para iniciativas futuras de pesquisa na área. A leitura geomorfológica provocada pelo uso do GPR e pela precisão do georreferenciamento requer aprofundamento, através do detalhamento do mapeamento; da caracterização sedimentológica fina dos depósitos coluviais e aluviais, e da obtenção de novas datações, como as de exposição de rochas e de sedimentos que estão em curso, mas que precisarão ser complementadas por novos projetos. A área de estudo necessita, igualmente, de mapeamento estrutural detalhado que possibilite maior compreensão das relações entre processos de erosão diferencial e determinação geotectônica.
AGRADECIMENTOS
Ficam registrados nossos agradecimentos ao geólogo Reginaldo Lemos, pela ampla participação na aquisição e processamento de dados, pela revisão da bibliografia geológica e pela participação na discussão geral dos resultados. Agradecemos igualmente ao ICMbio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade); à FUNDHAM (Fundação Museu do Homem Americano); à UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco), e à ACTUR Serra da Capivara pelas autorizações de pesquisa e pelo generoso suporte em campo. Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) agradecemos pelo apoio aos projetos de pesquisa, financiados através dos processos nº 563307/2010-2; nº 476467/2013-6, e nº 459779/2014-1.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
9 Dez 2019 -
Data do Fascículo
Dez 2019
Histórico
-
Recebido
12 Ago 2019 -
Aceito
11 Out 2019 -
Publicado
15 Nov 2019