Open-access NEGOCIANDO LIMITES, MANEJANDO EXCESSOS: VIVÊNCIAS COTIDIANAS DE UM GRUPO DE FISICULTURISTAS

NEGOTIATING LIMITS, MANAGING EXCESSES: DAILY EXPERIENCES OF A GROUP OF BODYBUILDERS

NEGOCIANDO LÍMITES, MANEJANDO EXCESOS: EXPERIENCIAS COTIDIANAS DE UN GRUPO DE CULTURISTAS

Resumo:

O estudo buscou compreender as vivências corporais cotidianas de um grupo de atletas de fisiculturismo das cidades de Petrolina/PE e Juazeiro/BA. Foram entrevistados 10 fisiculturistas, nove homens e uma mulher. Também foi utilizada, como recurso complementar, a observação participante, adotada durante uma competição de fisiculturismo realizada em Petrolina. As informações encontradas indicaram que a preparação corporal desses sujeitos se organiza em duas etapas: o Bulking/Off e o Cutting/Pre-contest. Cada uma delas é marcada por lógicas específicas, sendo estruturadas a partir dos elementos essenciais ao trabalho corporal desses indivíduos: os hábitos alimentares e a prática regular de exercícios físicos. Destacamos, ainda, os comportamentos adotados no dia de competição, quando a lógica que norteia a preparação física dos atletas é novamente modificada.

Palavras-chave: Musculação; Corpo humano; Dieta; Exercício Físico

Abstract:

The study sought to understand the daily bodily experiences of a group of bodybuilding athletes from the Brazilian cities of Petrolina, PE, and Juazeiro, BA. Ten bodybuilders were interviewed, nine males and one female. Participant observation also was used as a complementary resource in a bodybuilding competition held in Petrolina. The findings indicated that the bodily preparation of these individuals is organized in two stages: Bulking/Off and Cutting/Pre-contest. Each one of them is marked by specific logics and is based on the elements that are essential to these individuals’ bodily work: eating habits and regular physical exercise. We also highlight the behaviors adopted on competition day, when the logic that guides the athletes’ physical preparation changes again.

Keywords: Bodybuilding; Human Body; Diet; Exercise

Resumen:

El estudio buscó comprender las experiencias corporales cotidianas de un grupo de atletas de culturismo de las ciudades de Petrolina-PE y Juazeiro-BA. Para esto, se entrevistaron 10 culturistas, nueve hombres y una mujer. También se utilizó, como recurso complementario, la observación participante, que se había adoptado durante una competición de culturismo celebrada en Petrolina-PE. Las informaciones encontradas indican que la preparación corporal de estos sujetos se organiza en dos etapas: la fase de Bulking/Off y la fase de Cutting/Pre-contest. Cada una de ellas es marcada por lógicas específicas y está estructurada en base a los elementos esenciales del trabajo corporal de estos individuos: hábitos alimenticios y la práctica regular de ejercicios físicos. También destacamos los comportamientos adoptados en el día de la competición, cuando la lógica que guía la preparación física de los atletas se modifica nuevamente.

Palabras clave: Culturismo; Cuerpo humano; Dieta; Ejercício

1 INTRODUÇÃO

Fisiculturismo é, em termos gerais, a tradução da expressão bodybuilding. Trata-se de uma modalidade esportiva marcada pela valorização estética do corpo, através da qual seus praticantes buscam obter o máximo de hipertrofia muscular possível, tomando volume, simetria e definição da musculatura (JAEGER, 2009) como parâmetros para o aperfeiçoamento do trabalho corporal. Suas primeiras manifestações aconteceram ao final do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos, associadas ao levantamento de peso, e foram marcadas pelo esforço de seus adeptos em pregar um modo de viver pautado no equilíbrio, na disciplina e controle em relação ao corpo e à vida de uma maneira geral (COURTINE, 1995; ESTEVÃO; BAGRICHEVSKY, 2004).

Também ao final do século XIX, quando os valores da sociedade industrial se estabelecem em meio a reconfigurações sociais, econômicas, estéticas e políticas, vê-se uma transformação dos códigos comportamentais que será fundamental para o fisiculturismo, visto que, neste cenário, o individualismo afirma-se como modelo subjetivo. No âmago dos processos civilizatórios que demarcam essa nova ordem social (ELIAS, 1994) tem-se a figura do sujeito que, imbuído de racionalidade, torna-se responsável pela gestão da própria vida. Assim, na monitoração de suas tarefas diárias, o corpo e suas pulsões tornam-se um dos principais focos do autocontrole. A demarcação do tempo de trabalho que, diante das novas lógicas capitalistas, passa a nortear o sentido da existência, coloca a corporeidade como aspecto decisivo da eficácia e produtividade laboral. Logo, os novos arranjos tiveram como base esse disciplinamento corporal que invade o cotidiano das pessoas, preenchendo o tempo de não-trabalho e ocupando amplamente os períodos dedicados ao lazer (COURTINE, 1995).

Ao retomar as trajetórias do bodybuilding na sociedade norte-americana, o autor também pontua as marcas do puritanismo sobre os modos de perceber e utilizar-se do corpo. Sob a égide do ascetismo religioso que passa a reconhecer na própria existência mundana a possibilidade de assegurar a salvação individual (COURTINE, 1995), firma-se uma valorização do trabalho para o qual o domínio das questões do corpo será fundamental. Nesse caminho, as práticas corporais, inclusive as esportivas, passam a retratar a possibilidade desse investimento racional sobre o corpo, visando a otimizar as capacidades do sujeito. Aquele que destinava o tempo de não-trabalho aos tratos corporais aproximava-se da redenção espiritual - essa a premissa evocada pela “Cristandade Muscular”1 - concepção que, além das alterações no estilo de vida, buscava promover hábitos de ordem e disciplina essenciais ao bom funcionamento de uma sociedade industrial (COURTINE, 1995).

É desse modo que o pensamento puritano torna-se responsável pela inclusão do cuidado corporal ao conjunto das obrigações morais, colocando-o como um compromisso cristão na esteira do desenvolvimento de uma sociedade industrial e burocrática pautada na disciplina, na pureza e na ordem. Esse também foi o contexto em que os seguidores da “cultura do músculo” e adeptos do fisiculturismo iniciaram a difusão de novas formas de racionalização do corpo (COURTINE, 1995). Suas abordagens implicavam na assimilação desses ideais de ordem e pureza na realização dos cuidados corporais. Eles pregavam a adesão de novas rotinas alimentares, enfatizando o consumo de produtos naturais em detrimento dos processados, e regularidade na prática de exercícios físicos2.

Conforme a sociedade se desenvolvia, novas informações sobre os cuidados corporais eram produzidas. Os bodybuilders/fisiculturistas também se apropriavam desses saberes e, com isso, incorporavam novas estratégias de manipulação corporal, dentre elas: variações dietéticas e a utilização de fármacos potencializadores do crescimento muscular (COURTINE, 1995).

Dessa forma, vai se estabelecendo um processo de autodisciplinamento corporal atrelado à identidade fisiculturista que gira em torno do controle da dieta, da prática regular de exercícios físicos e, para parte deles, da manipulação de substâncias estimulantes do desenvolvimento muscular. Considerando as bases morais do fisiculturismo, entendemos que, para além da influência dessas perspectivas religiosas, os sentidos de sua prática estiveram intrinsecamente ligados aos novos jogos civilizatórios e as realocações do corpo no imaginário social. Nesse sentido, os ideais de higiene, ordem, e eficiência passam a exigir uma racionalização da vida que considerava, primeiramente, a dimensão corporal. Assim, ao mesmo tempo em que se via liberado das significações tradicionais, o corpo passa a ser alvo de um novo tipo de controle.

Portanto, na tentativa de compreender as racionalizações que orientam a produção corporal de um grupo de atletas de fisiculturismo, percebemos que suas vivências cotidianas envolvem uma série de interditos e excessos, sobretudo relacionados à alimentação, aos treinos e aos processos de hormonização que marcam o contexto do fisiculturismo e colocam, constantemente, os atletas à mercê de julgamentos das pessoas alheias a esta realidade. Machado (2015) descreve esses processos como ferramentas potencializadoras de um enhancement3 (aprimoramento) corporal. Segundo o autor, “o preconceito não está diretamente atrelado ao corpo hipertrofiado, mas aos meios utilizados para atingir a tal hipertrofia muscular” (MACHADO, 2015, p. 66). Meios esses que envolvem, também, a administração de esteroides anabolizantes (hormônios sintéticos).

Assim, reconhecemos, inicialmente, que o cotidiano desses atletas é marcado por projetos reflexivos específicos que nos levam à noção de reflexividade4 proposta por Giddens (2002). Ao passo que esse autor nos fala de uma configuração social marcadamente orientada pelo planejamento individual da vida, pelo qual a pessoa se vê na tomada de decisões a partir da mediação de saberes especializados, entendemos, a partir do contato com os fisiculturistas entrevistados, que eles mobilizam sua produção estética apropriando-se das referências disponibilizadas acerca do corpo e da saúde. Justamente nesse processo de negociação entre os saberes oficiais, os conhecimentos adquiridos pela própria experiência de fisiculturista e as orientações dos seus treinadores, possuidores do saber perito5, percebemos que, em cada fase de preparação para as competições, os atletas estabelecem sentidos de interdição e excesso que tomam parte central nos seus modos de operacionalização do corpo.

Essas fases de preparação, denominadas de Bulking/Off e Cutting/Pré-contest, são marcadas por lógicas distintas que orientam, sobretudo, o consumo alimentar e a rotina de treinos dos fisiculturistas. A fase de Bulking tem como principal característica o consumo calórico excedente e um maior volume de treino visando ao aumento do peso e da massa muscular, remetendo, assim, à ideia de um “excesso” que será útil ao seus resultados. Já o Cutting caracteriza-se pela forte restrição no consumo alimentar e de água. Por esse motivo, a intensidade dos treinos também sofre alterações. Em todos esses processos, apontam a necessidade de um manejo extremamente rigoroso e um cálculo preciso para que não haja riscos ao resultado final. Destacamos, ainda, as atitudes adotadas no dia da competição, quando se assume uma configuração nos modos de gerir o corpo própria para aquele momento. Dessa forma, este estudo buscou compreender as vivências corporais cotidianas de um grupo de atletas de fisiculturismo das cidades de Petrolina-PE e Juazeiro-BA.

2 METODOLOGIA6

Trata-se de um estudo qualitativo e de campo na medida em que se situa no plano das interações sociais e da própria subjetividade humana, centrando-se nos sentidos e significados pessoais e culturais que orientam as práticas corporais cotidianas de um grupo de atletas de fisiculturismo.

Foram empregadas, como técnicas de investigação e coleta de informações, a entrevista semiestruturada e a observação participante. A utilização da entrevista semiestruturada se deu por se tratar de um instrumento capaz de possibilitar o contato direto do pesquisador com o colaborador, permitindo a obtenção detalhada dos elementos que compõem a rotina de hábitos corporais dos entrevistados. Realizamos 10 entrevistas que foram registradas com o auxílio de um aplicativo para Smartphone - gravador de voz. As entrevistas aconteceram em locais escolhidos pelos próprios participantes: local de trabalho7 (4), shoppings (2), campi universitários (2), casa de um familiar do interlocutor (1) e na orla do Rio São Francisco em Juazeiro-BA (1). A escolha dos locais ficou a cargo dos voluntários, pois, desse modo, puderam indicar ambientes onde estariam mais confortáveis para realização das entrevistas. As 10 entrevistas aconteceram entre os meses de Abril e Junho do ano de 2019.

Para escolha dos entrevistados utilizamos os seguintes critérios de seleção: homens e mulheres atletas de fisiculturismo, federados e não federados, com idade igual ou superior a 18 anos, residentes das cidades de Petrolina-PE e/ou Juazeiro-BA, com no mínimo um ano de vivência no esporte e que tivessem disputado pelo menos uma competição da modalidade. O recrutamento dos participantes se deu através do contato via redes sociais (Instagram e WhatsApp). Além disso, também utilizamos como estratégia de recrutamento a técnica da bola de neve que trata-se de um tipo de amostra não probabilística baseada na utilização de cadeias de referência (VINUTO, 2014). Ou seja, partimos de informantes-chaves (os primeiros atletas entrevistados) para localizar outros atletas que viriam a compor o grupo de entrevistados do estudo.

O grupo de entrevistados foi composto por 10 atletas, nove homens e uma mulher. A presença de uma única mulher reflete a dificuldade em agendar entrevistas com as atletas, mesmo sendo possível perceber, por meio das redes sociais, a existência de uma boa quantidade de mulheres atletas nas cidades em que a pesquisa foi desenvolvida. Houve tentativa de contato com seis fisiculturistas mulheres, mas apenas a referida participante nos retornou e demonstrou interesse em colaborar, trazendo significativa contribuição no que diz respeito ao teor das informações fornecidas. Na Tabela 01 segue um breve perfil dos voluntários do estudo:

Tabela 1 -
Perfil dos entrevistados.

Já a observação participante, desenvolvida após a realização das entrevistas, possibilitou perceber a dinâmica em torno da exposição corporal dos atletas no momento da competição - algo destacado por eles e que serviu como aspecto norteador para essa etapa da coleta de informações. Foi utilizado um diário de campo digital - aplicativo de anotações para Smartphones. A opção por esta ferramenta se deu pela sua praticidade em relação ao diário de campo convencional (caderno e caneta). Contudo, ressaltamos que a escolha pela versão digital não comprometeu a apropriação das premissas fundamentais do diário de campo.

A observação aconteceu no Troféu Anilha de Ouro, campeonato de fisiculturismo realizado no dia 28 de setembro de 2019, na cidade de Petrolina-PE, mas que contou com a participação de atletas de outras cidades e estados. Ao todo, nove homens e sete mulheres estiveram disputando a competição. Dentre os homens, apenas dois atletas eram residentes das cidades de Petrolina-PE e Juazeiro-BA, e um deles, inclusive, compôs a amostra deste estudo. Já entre as mulheres, apenas uma das participantes residia em uma das cidades que formavam o lócus do estudo. Durante a realização das entrevistas, houve tentativa de contato com esta atleta, porém não obtivemos resposta. Vale frisar que, embora o estudo não tenha na questão de gênero a sua perspectiva teórica basilar, reconhecemos que a realidade a que ele dedicou-se é marcada pelas significações culturalmente elaboradas acerca das masculinidades e feminilidades.

3 A MARCA DO EXCESSO: A FASE DE BULKING/OFF

Como já mencionado, o bulking é marcado pelos constantes excessos na rotina dos atletas. O termo, que em tradução literal significa “volumoso”, refere-se à etapa anterior ao que os entrevistados chamam de pré-competição. Consiste no período8 em que eles elevam a ingestão calórica para além dos níveis recomendados, visando ao aumento do peso e da massa muscular. “A gente quando tá em Off, que é aquela fase em que a gente consome bastantes calorias, a gente exagera mesmo nos carboidratos pra ganhar peso e pra poder ganhar mais músculos” (F02, 33 anos).

Chama atenção o papel assumido pela alimentação no manejo corporal desenvolvido por esses sujeitos. A própria organização das fases de preparação se dá em função da regulação da dieta e das significações atribuídas ao consumo que eles realizam:

Sempre antes das competições eu faço a minha bulking. É a chamada bulking limpa, que se resume em comidas com grandes valores calóricos, limpos, com um superávit calórico na minha dieta. [...] Antes [da competição], [dieta] calórica, o bulking. Aí no lugar de fazer uma refeição do lixo por semana, eu chego a fazer três. Porque eu preciso ganhar peso sem ganhar muita gordura, mesmo sabendo que ganha (F06, 28 anos).

Percebemos, nas falas, a existência de dois tipos de bulking/off: o limpo e o sujo. Ambos seguem o mesmo raciocínio, tendo como objetivo o aumento do peso e da massa muscular. Todavia, enquanto no bulking limpo a dieta continua restrita a determinados alimentos e a quantidade de refeições tende a aumentar, no bulking sujo a dieta é livre e eles podem consumir diversos alimentos em quantidades elevadas, até aqueles que aqui são definidos como lixo e remetem à ideia de sujeira/impureza.

O paralelo entre limpo e sujo, aqui, refere-se, necessariamente, a alimentos que estimulam a produção corporal dos sujeitos, os ditos “limpos”, e àqueles que podem, na mesma medida, colocar em risco o desenvolvimento muscular dos atletas, os considerados “sujos”. Percebemos, dessa forma, indícios de como a perspectiva puritana, nos termos de Courtine (1995), permeia a prática do fisiculturismo, principalmente no que diz respeito à definição do regime alimentar. Uma comida considerada limpa, pura, neste contexto, remete a alimentos com baixo teor de gordura, proteínas leves (peixe, frango, ovo entre outras carnes magras), legumes (principalmente batata, batata doce e mandioca), verduras e alguns produtos industrializados, mas considerados integrais (arroz e pães, por exemplo). São alimentos mencionados pelos entrevistados que, dentro da lógica que rege a manipulação corporal desses sujeitos, podem proporcionar benefícios.

Em contrapartida, a refeição do “lixo” ou “suja” ganha esse nome por ser composta por comidas que, em outras ocasiões, teriam enorme potencial para prejudicar a produção estética desses sujeitos. Os alimentos mencionados pelos entrevistados e que aqui são considerados “lixo” e/ou “sujos” foram hambúrguer, pizza, sorvete, chocolate, batata frita, etc. Consistem em alimentos com alto valor calórico, porém, com baixo teor nutricional. O consumo desses produtos se dá em função do rápido aumento de peso. Por mais que sejam considerados alimentos não saudáveis, se tornam úteis para os indivíduos envolvidos com a produção corporal em questão.

Contudo, prevalece, entre os fisiculturistas, uma lógica específica que permite a manipulação desses alimentos ao ponto de o seu consumo tornar-se favorável ao processo de hipertrofia muscular. Eles se apropriam das referências de um “saber oficial” sobre saúde e corpo, mobilizando, no entanto, processos reflexivos que atendam aos sentidos de suas práticas. Essas situações remetem a Giddens (2002), quando o autor descreve o modo como as referências externas são assimiladas e incorporadas aos processos de reflexividade inerentes aos sujeitos contemporâneos. Nessa direção, para realizar a ingestão dessas refeições, os atletas buscam assimilar conhecimentos das áreas da nutrição e da medicina, por exemplo, para melhor compreenderem os efeitos do consumo daquele determinado alimento em seu organismo e, assim, adapta-los aos seus intentos. Realizam, a seu modo, um processo de racionalização pelo qual articulam esses conhecimentos com os saberes adquiridos ao longo do cotidiano de fisiculturista, assumindo e buscando gerenciar os riscos que circundam essas dinâmicas. A partir dessas reflexões e cientes das consequências, eles convertem algo que outrora seria considerado negativo em um recurso vantajoso para sua produção corporal.

Com isso, nota-se que a grande questão em torno do que é considerado “sujo” é exatamente a capacidade de se utilizar racionalmente desses produtos e alimentos. Essa racionalização resulta de uma dinâmica de autorreflexividade na qual o controle do corpo é colocado como primordial no processo de construção identitária, bem como considera Giddens (2002) ao se referir ao manejo do corpo na contemporaneidade. Para o autor, manter o controle regular e efetivo do corpo constitui uma ferramenta essencial na constituição e manutenção de um perfil identitário pela pessoa. Dessa forma, recorrer à utilização de elementos “sujos” e, ainda assim, desempenhar a produção estética de maneira que não escape às premissas do estilo de vida do fisiculturista, emana uma sensação de segurança e domínio das necessidades do corpo, reafirmando a posição desse indivíduo enquanto atleta e pertencente ao universo do fisiculturismo. Cabe destacar, ainda, que neste manejo corporal, termo referenciado por Giddens (2002), os atletas negociam o tempo todo com a própria saúde na relação com a comida - ora limpa, ora suja. Isso não deixa de expressar uma forma de racionalização do risco, que o fazem sob a segurança depositada nas informações que acessam e na própria experiência adquirida.

Esta relação entre limpo e sujo na rotina dos sujeitos investigados nos remete às associações simbólicas feitas por Douglas (1991) entre ordem e pureza, desordem e sujeira, sugerindo sua relação direta com a ordem social e entendendo-as como metáforas sobre a organização/desorganização da sociedade. Nesse sentido, as significações que nossos interlocutores atribuem em suas definições do que é proibido/permitido nas distintas fases de seus ciclos de produção corporal podem também ser pensadas enquanto metáforas sobre as estruturas que definem o pertencimento à cultura fisiculturista.

O sentido de sujeira/impureza está diretamente relacionado à manifestação da condição carnal do indivíduo, bem como ao seu consumo alimentar, e pode expressar um risco à ordem das representações do corpo. Ou seja, transmite um significado de desordem representada pela condição corporal dos atletas. No entanto, a apropriação dos saberes peritos (GIDDENS, 2002) e a sua aplicação de acordo com os interesses dos fisiculturistas podem possibilitar a manipulação dessas impurezas em função do estabelecimento daquilo que é entendido como normal e puro no contexto da modalidade: um corpo em que se destacam volume, simetria e definição muscular.

Desse modo, o bulking/off trata-se de uma etapa da produção corporal onde se manipula um consumo alimentar excessivo para que os atletas possam estabelecer uma condição física nos parâmetros da modalidade. Todavia, o consumo dos ditos alimentos sujos não consiste numa estratégia utilizada por todos os entrevistados. Dentre os interlocutores, há aqueles que preferem manter-se fieis ao desenvolvimento corporal “limpo” e realizam seus excessos apenas com alimentos considerados saudáveis:

Quando chega em época de competição, fica um pouco mais restrito. [...] Mas a alimentação é a mesma: arroz, macaxeira, brócolis, alguns outros legumes; e de proteína: frango, ovo, carne e peixe. Só isso. E o que muda basicamente da época de preparação para o dia a dia, são as quantidades. Quando tá perto da competição restringe bastante as quantidades (F10, 24 anos).

As extrapolações características dessa fase afetam, também, a rotina de treinos dos atletas, que é guiada pelo seu consumo alimentar:

A musculação, no bulking, o volume aumenta. O volume que eu digo é a intensidade, porque eu quero ganhar peso, então eu boto mais peso, trabalho mais pesado. [...] No off, a dieta acompanha o treino, ou seja, eu taco o pau no treino e empurro comida (F03, 32 anos).

Assim, o superávit calórico proveniente da fase de bulking/off acompanha o aumento da intensidade nos treinos. Essa situação surge como mais um recurso atribuído ao off para que os atletas consigam alcançar os objetivos de sua produção estética. Existe, portanto, um processo de compensação para que a elevada ingestão alimentar não seja convertida apenas em gordura corporal, mesmo cientes de que nessa fase de excessos há, também, ganhos significativos em termos de adiposidade, até para aqueles que preferem manter um consumo alimentar “limpo”.

Dessa forma, toda a rotina dos fisiculturistas sofre alterações. A duração e a intensidade do treino são mobilizadas de acordo com o consumo calórico e os intervalos de descanso se ajustam às características do treinamento e ao cotidiano dos atletas. Ou seja, direta ou indiretamente, a alimentação é o principal fio condutor da preparação física desses indivíduos, como será possível notar, também, na fase seguinte. O manejo do corpo é constante, dentro da perspectiva de reflexividade de Giddens (1991). De forma marcante, a relação com a comida lhes impõe a necessidade de estar sob o controle o tempo todo. Isso é importante, inclusive para que consigam articular as contradições da própria dieta. Assim, em função de um projeto reflexivo do eu (GIDDENS, 2002), esses atletas assumem um estilo de vida em que o gerenciamento de paradoxos assume um lugar central.

4 “É HORA DE RESTRINGIR”: O CUTTING/PRE-CONTEST

Quando há a transição da fase de bulking para a fase que os atletas denominam de cutting/pre-contest, o período pré-competição10, a dinâmica em torno da manipulação corporal é alterada: os excessos são abandonados e uma lógica restritiva passa a guiar seus processos cotidianos. Dessa forma, os objetivos também se alteram. Enquanto no bulking a intenção é aumentar o peso e o volume muscular com treinos extremamente intensos e dietas altamente calóricas, no cutting a meta consiste em restringir o consumo alimentar e diminuir e intensidade dos treinos para tornar o corpo apto à competição.

Outro ponto a destacar é o fato de que, a todo tempo, os atletas incorporam atitudes contrárias àquelas que são disseminadas pelos discursos oficiais sobre saúde, dieta e os cuidados corporais. Antes, no bulking, prevalece a ingestão alimentar em excesso que soa como descontrolada aos olhos de quem não está inserido no universo do fisiculturismo, justamente pela normalização de um consumo alimentar regrado, disseminada pelos respectivos saberes peritos. Depois, no cutting, instaura-se um intenso regime restritivo que afeta a alimentação, os treinos e até o consumo de água. A hidratação fica limitada visando reduzir a retenção líquida do corpo para melhorar a definição muscular. Nesta perspectiva, os atletas precisam dominar esses contrassensos (discursos oficiais “versus” aplicação prática em sua produção corporal) para poderem utilizá-los em função do seu resultado final:

Quando a gente tá em Pré-contest a gente começa a restringir mais essa ingestão de calorias. É aí é onde começamos a depredar o corpo pra ele ganhar um aspecto mais bonito e mais seco. Até a questão da pele, da vascularização, essas coisas... A gente reduz a água também porque fazemos a hiper-hidratação faltando uma semana pra competição. Fazemos a hiper e depois vai baixando até o dia da competição, onde zera totalmente a ingestão de líquidos. Cinco dias antes, já tiramos o sódio. Retiramos o sal dos alimentos e começamos a comer as comidas sem sal (F02, 33 anos).

Eles passam a consumir quantidades mínimas visando eliminar o máximo possível de gordura corporal para que a definição muscular fique bem exposta na competição. Na última semana de preparação, período que os atletas chamam de finalização, eles manipulam, também, a quantidade de sódio consumido por influenciar diretamente na retenção líquida e, consequentemente, no volume e na definição muscular. É nesta última fase que também ocorre o processo de desidratação, com a redução gradual da quantidade de água ingerida até o dia da competição. Essas informações se mostram de muita relevância, pois elucidam como eles, constantemente, negociam com o funcionamento fisiológico do corpo para alcançarem suas pretensões.

Novamente percebemos a incidência dos processos reflexivos (GIDDENS, 2002) no cotidiano dos sujeitos pesquisados. A transição de uma fase para outra acarreta na assimilação de novas concepções de dieta e de comportamento que irão refletir na sua rotina e no modo como se relacionam com as outras pessoas, principalmente pelo esforço emocional que é exigido nessa etapa:

Ah, é estressante. É estressante, a gente se estressa. É muito estressante. Porque assim, a dieta já tá ali super rígida. Você acaba ficando sem água, vai diminuindo. [...] Realmente é muito estressante, é só pra quem gosta de verdade. Se você não amar, não adianta. A gente passa mal (F01, 36 anos).

Olha, é estressante. Bem estressante. Começa a diminuir a ingestão de água, você começa a ficar mais fraco por causa da quantidade de carboidratos que já tá bem reduzida. O nível de gordura já está bem mais baixo, então não tem mais de onde puxar muita energia. A alimentação fica mais regrada ainda. Não chega a ficar zero carbo, mas ficam muito baixas as quantidades. É sacrificante. Os treinos eles não podem ficar tão intensos porque você já não tem mais tanta energia, mas ficam intensos na medida do possível (F10, 24 anos).

O estresse, como podemos perceber, passa a fazer parte da rotina dos sujeitos nessa nova etapa de seu condicionamento corporal. Isso não significa que ele não esteja presente em outras fases, mas aqui os atletas demarcam explicitamente essa sobrecarga emocional. Percebemos, portanto, que o controle das emoções também toma parte nesse processo de racionalização corporal, remetendo às proposições de Elias (1994). É preciso gerenciar o comportamento emocional para não colocar em risco o capital simbólico do corpo.

A principal queixa gira em torno da redução no consumo de água e de carboidratos, ainda mais por este último ser a principal fonte energética para os treinos e demais atividades cotidianas. Assim, a intensidade dos treinamentos acompanha o consumo alimentar. Com uma dieta restrita e com baixa ingestão de carboidratos, os treinos sofrem alterações para que não ocorra um desgaste além do necessário: “No cutting, o treino acompanha a dieta: eu restrinjo a dieta e o treino tem que ser de acordo com isso, porque se eu botar um treino muito pesado eu vou me lesionar, certo?” (F03, 32 anos).

Percebemos, também, que essa tática de equiparar a intensidade dos treinos ao consumo calórico se configura, além de um método para se alcançar os resultados esperados, uma estratégia de prevenção de riscos na medida em que um desgaste físico acima da reserva energética acumulada pode resultar graves lesões para os atletas. Prevalece, ao modo das observações de Giddens (2002), um planejamento reflexivamente organizado da rotina de cuidados corporais, baseado na alimentação, que abrange, também, a diligência em relação aos riscos que podem prejudicar a produção estética desses sujeitos.

Ainda em relação aos perigos, outra situação, no cutting, em que eles se intensificam, são os processos de hormonização. Conforme a competição se aproxima, os atletas precisam potencializar sua produção corporal para alcançar os resultados pretendidos. Contudo, cabe frisar que a hormonização não é unanimidade entre os participantes. Alguns relataram não se valer desse tipo de recurso em sua construção corporal.

A utilização de substâncias ergogênicas, no entanto, se mostra um recurso viável para boa parte dos entrevistados, desde que empregada da maneira menos prejudicial possível ao seu organismo. Os fármacos utilizados variam desde versões sintéticas da testosterona (hormônio sexual masculino e potencial esteroide anabolizante) até o consumo de substâncias diuréticas para acelerar os processos de desidratação.

Já usei enantato de testosterona, propionato de testosterona, cipionato de testosterona, estanozolol oleoso, masteron e clembuterol. De testosterona em preparação, eu uso em torno de 600mg por semana. Estanozolol usava também 600mg por semana. Sempre usando alguns inibidores, tipo anastrozol, para o estradiol não subir. Caso sentisse algum colateral no mamilo, alguma coceira ou parecido, eu tomava tamoxifeno pra cortar o efeito e usava um exemestano pra diminuir o estradiol. O estanozolol nunca deu colateral (F05, 19 anos).

Apesar do risco que o uso dessas substâncias representa ao organismo, eles demonstram possuir vasto conhecimento dos efeitos da sua aplicação no corpo humano. Conhecimento esse adquirido a partir de suas próprias experiências com a produção corporal e, também, por meio das trocas no estabelecimento de relações com seus treinadores, os detentores do saber perito, nos termos de Giddens (2002). Essa situação também foi verificada no estudo de Machado (2015), no qual os entrevistados da pesquisa apresentaram, em comum, a existência de um perito responsável pelas transformações corporais, o Coach, que assume a figura do mestre ao orientar o processo de construção estética dos atletas de fisiculturismo ao fornecer os subsídios teóricos necessários para tal.

Dessa forma, a utilização dos hormônios sintéticos é realizada com plena consciência das consequências e, apesar de ser temerária, eles argumentam que, havendo controle e desempenhando os acompanhamentos necessários11, os riscos podem ser amenizados. Percebemos, também, a existência de limites e regras próprias no emprego desses recursos na produção corporal em questão. Para toda droga consumida, há uma substância que combate as consequências negativas. Constitui mais uma estratégia de prevenção de riscos, marcada por uma lógica de redução de danos, baseada na apropriação dos saberes especializados (medicina e farmacologia).

Resguardados por essas estratégias de aferição dos riscos, a utilização dessas drogas é abordada, em algumas entrevistas, com certa naturalidade e considerada essencial à prática do fisiculturismo, principalmente para aqueles que almejam conquistas maiores na modalidade.

Sendo bem sincero, competir sem é difícil ganhar. Não é impossível, mas difícil. Hoje, você chega natural e vai competir com um bocado de cara hormonizado, fazendo uso de várias coisas. É complicado você chegar de cara e ganhar. Se você tá com pretensão de ganhar, você tem que ter o acompanhamento, ver como que pode fazer aquilo, ver como que aquilo se adapta ao seu corpo, etc. Não é você chegar na loucura e fazer uso disso e daquilo, porque mais pra frente vai prejudicar sua saúde (F08, 26 anos).

Dentre os que relataram fazer uso, é possível perceber padrões de normalidade em relação às substâncias, ou seja, eles estabelecem suas próprias regras e limites em torno da utilização. Além disso, relatam que seguir na modalidade como “natural” só é viável até certo ponto, visto que outros competidores acabam potencializando suas “arquiteturas corporais” (JAEGER, 2009) com a aplicação dos hormônios.

Bom, impossível se pensar no fisiculturismo hoje sem hormônios, impossível. Eu digo por experiência própria. Eu não consigo. Eu tenho força hoje. Por quê? Consequência do treino que já tenho. Porém, o estímulo, o poder que a testosterona dá é totalmente diferente. Não se chega em um físico competitivo sem hormônios. Não se chega! Você não tem condições de aproveitar os nutrientes suficientes, de metaboliza-los... De ter uma síntese proteica que atenda a demanda necessária para esses tecidos e nem o rompimento de fibras tão grande quando se está fazendo o uso de anabolizantes por conta do aumento da potência (F07, 32 anos).

Assim, no cutting, os excessos se configuram por esse rompimento do “natural” quando eles recorrem à artificialidade dos ergogênicos para potencializar o desempenho nos treinos e o crescimento muscular. Esse recurso, que no contexto social mais amplo é uma interdição, aqui se torna algo negociável. Dessa forma, como destacam Estevão e Bagrichevsky (2004), essas substâncias possuem uma relação axiomática com o fisiculturismo: a sua utilização é fundamental para aflorar a competitividade na modalidade.

Nesta etapa, os atletas se aproveitam do volume muscular conseguido por meio das exacerbações realizadas e tentam diminuir a gordura corporal acumulada. Para tanto, recorrem a estratégias pautadas em interdições e excessos. Tudo isso acontece para que os atletas cheguem à competição em condições de fazer uma boa apresentação. Contudo, a preparação não se dá por encerrada ao final do cutting. Durante o dia de competição, os atletas continuam a gerenciar uma série de atitudes ainda em função da sua produção corporal. A lógica é novamente alterada e práticas que em momentos anteriores eram consideradas inadequadas, passam a ser incorporadas e se tornam essenciais no processo finalização.

5 OS ÚLTIMOS RETOQUES: O DIA DA COMPETIÇÃO

No dia da competição, antes de subirem ao palco para se apresentarem, os atletas passam por uma série de procedimentos cosméticos para que a sua musculatura esteja mais destacada durante a exibição. São realizados processos estéticos na pele, no rosto, no cabelo e nas unhas:

A gente precisa pintar o corpo. Quando a gente já tá pronto pra subir no palco, tem a pintura e a esfoliação do corpo antes, pra quando subir a gente mostrar mais os cortes, os detalhes do corpo. Lá vai ter uma lâmpada especial que se você não usar aquela tinta, os árbitros não vão ver todo o detalhamento do corpo (F02, 33 anos).

Existe todo um ritual para validar a apresentação estética desses indivíduos. A pintura do corpo demanda, ainda, outros tratamentos antes de ser realizada: depilação e esfoliação. Os atletas relatam a importância de se apresentarem sem pelos corporais aparentes, pois estes podem ocultar a definição e a forma do músculo. Assim, a remoção dos pelos configura a marca de um excesso que pode comprometer sua apresentação.

A maquiagem também constitui um recurso:

No dia da competição, véi, é tanta coisa que você tem que fazer... tem que terminar de tirar os pelos, ficar bem lisinho. Tem que ajeitar cabelo, fazer maquiagem antes de subir (F10, 24 anos).

Essa categoria Men’s Physique tem toda uma... Uma viadagemzinha [risos]. Tem que ajeitar sobrancelha, cabelo, se maquiar (F04, 33 anos).

Nesta segunda fala, há uma dinâmica em que o atleta recorre a artifícios que, em outras situações de sua vida, configurariam um “interdito” para seu padrão de masculinidade. Os cuidados cosméticos fogem ao universo masculino e, para ele, apropriar-se desses hábitos remete a uma condição que ele julga dissonante e interditada pela ótica heteronormativa. Estabelece-se, portanto, uma problemática de gênero que, aqui, é entendido como um conceito que remete às diversas formas de construções sociais, culturais, discursivas e linguísticas relacionadas aos processos que atuam na diferenciação de homens e mulheres - processos esses em que se incluem corpos carregados de sexo, sexualidade e gênero (MEYER, 2003). Dessa forma, esses procedimentos cosméticos, que no entendimento comum são associados à figura da mulher e, portanto, configuram um marcador social para o gênero feminino, parece trazer ao entrevistado acima (F04) certa inquietação, dada a sua preocupação em explicitar a motivação do atleta em adotar um recurso que se opõe a um ideal de virilidade mas que é fundamental para o meio do fisiculturismo. Dito de outro modo, se coloca a necessidade de negociar com elementos que, num contexto cultural mais amplo, soa como um “excedente” dos limites impostos pelas representações hegemônicas de masculinidade e suas performatividades - ainda mais quando associados ao corpo musculoso do fisiculturista que ainda representa, “em muitos espaços e lugares sociais, uma prerrogativa de masculinidade” (JAEGER, 2009, p. 22).

As vestimentas também possuem uma normalização específica. Entre os homens, elas variam conforme a categoria: na Men’s Physique, bermuda até o joelho; na Classic Physique, sunga média; e na Bodybuilding Classic, uma sunga menor, permitindo a visualização da musculatura na região da pelve. Esses aspectos se mostram importantes pois constituem códigos de apresentação específicos dentro do fisiculturismo. Constituem-se sentidos de interdição para definir o que pode e o que não pode ser visto.

Nas categorias femininas, esses procedimentos estéticos também são percebidos, e são ainda mais destacados, principalmente a maquiagem e a estilística das roupas. As vestes seguem uma série de regras visando padronizar a apresentação visual das atletas.

São todos trabalhados com pedras [brilhosas] e tem que tá de acordo com a federação. Por isso existe a pesagem. A gente vai um dia antes e leva o biquíni, o salto, que tem que ser 10cm de altura atrás e que ser 1cm na frente, não pode passar. A calcinha não pode tá toda dentro da bunda, tem que ser de acordo com o que é exigido. Colocar dentro da bunda é desclassificação (F01, 36 anos).

Souza (2018), Grimm (2017), Lima (2017) e Jaeger (2009) argumentam que a associação das roupas femininas a adereços como pedras brilhosas e a utilização de maquiagens destacadas servem para aproximar as competidoras do padrão hegemônico de feminilidade presente na sociedade. Isso ocorre em razão do desenvolvimento muscular feminino ser estigmatizado por se distanciar dos padrões corporais disseminado para as mulheres.

Esse conjunto de práticas corresponde ao que Jaeger (2009) chama de cosmetologização corporal. Apesar de ser um fenômeno facilmente observável nas categorias do fisiculturismo feminino, é possível percebê-lo, também, nas categorias masculinas (maquiagem, esfoliação e depilação), fazendo com que esse processo de cosmetologia do corpo seja mais um aspecto notável no fisiculturismo.

O dia da competição é marcado, também, por mudanças no consumo alimentar. Os atletas ficam em extrema desidratação e voltam a fazer uso de alimentos “lixos” para que o corpo forneça uma resposta instantânea, aumentando o volume muscular:

Quando é no dia da competição a gente faz o carbup, que é quando a gente joga uma bomba de sódio no corpo, pra que o musculo absorva e fique grande, denso e seco ao mesmo tempo. Além disso, pra aquela água que fica na pele saia e vá pra dentro do músculo, pra ele ficar com um aspecto mais volumoso e definido (F02, 33 anos).

Há, novamente, uma inversão na lógica que orienta a dieta desses indivíduos. Enquanto na fase de cutting a ingestão desses alimentos era considerada uma transgressão, no dia da competição ela passa a ser tratada como um recurso imediato para o aprimoramento estético. O consumo de sódio também ressurge como estratégia para “encher” o músculo. Aqui, a retenção líquida é manipulada a favor da produção corporal para que a musculatura aparente estar mais avolumada.

Faltando duas a três horas pra competição aí entra a batata frita, que é o sódio, e o que eu quiser comer de sujo, geralmente hambúrguer que é fácil de levar. Dois, três, cinco hambúrgueres, porque sou bom de boca. Como, mas não como muito pra não estufar a barriga... Depende... Isso tudo sem água, nada de água. Porque o sódio vai puxar a água e vai puxar de onde? Da pele! Então eu vou deixar a pele cada vez mais fina pra eu subir com a pele mais seca possível (F06, 28 anos).

É interessante notar, nessas passagens, como os entrevistados se apropriam dos saberes peritos mesmo em seus momentos finais de preparação. Parece que sempre há algo em que eles podem melhorar. O corpo é colocado como um esboço a ser aprimorado. Isso remete a concepção do Corpo Rascunho de Le Breton (2003). Os indivíduos estão, a todo momento, utilizando de estratégias para transformarem sua condição física. Prevalece uma maleabilidade plástica do corpo. Aspectos orgânicos e fisiológicos são manipulados em função da estética. Assim, no contexto do fisiculturismo, o indivíduo que melhor desempenhar esse rígido controle corporal e transmitir isso durante sua apresentação, fatalmente será consagrado o vencedor.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo permitiu compreender as vivências cotidianas de um grupo de atletas de fisiculturismo e o modo como eles organizam sua rotina em função dos elementos essenciais à sua produção corporal: os hábitos alimentares e a prática regular de exercícios físicos. Tal organização exige desses corpos uma maleabilidade plástica imprescindível. É necessário que eles desenvolvam uma capacidade de adaptação à condições adversas em espaços de tempo não muito longos. Ora precisam adequar-se ao consumo de grandes quantidades calóricas e à realização de treinos demasiadamente intensos, ora são obrigados a adaptarem-se a um consumo alimentar restrito e uma ingestão de água cada vez menor.

Destaca-se, também, a constância com a qual eles incluem elementos “sujos” em sua rotina como sendo algo necessário - alimentos “lixos” e, para alguns, os ergogênicos. Percebemos que a grande questão, nesses casos, gira em torno da capacidade de gerenciar esses produtos que, convencionalmente, são interpretados como prejudiciais. Prevalece uma retórica argumentativa a favor do uso racional desses elementos, apropriando-se de saberes oficiais e utilizando-os conforme seus interesses e suas necessidades seguindo, também, uma lógica de controle dos riscos e redução de danos (ao corpo e à saúde como um todo). É essa a reflexividade que orienta a produção corporal desses indivíduos que mesclam os saberes oficiais com as informações provenientes de sua experiência enquanto atleta. Portanto, mais do que se alternarem em suas rotinas, os interditos e excessos compõem, na mesma medida, o núcleo dos elementos acerca dos quais os atletas buscam reconhecer o êxito de seus projetos reflexivos.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL, Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo Seres Humanos. Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016. Disponível em: Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/reso510.pdf Acesso em: 08 nov. 2018.
    » http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/reso510.pdf
  • COURTINE, Jean-Jacques. Os stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 81-114.
  • DIAS, Cléber. A igreja, o estado e a bola: história do esporte entre os índios do Brasil central. Pensar a Prática, v. 15, n. 1, p. 148-175, jan./mar. 2012.
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  • GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2002.
  • GRIMM, Gabriela Cássia. Hardcore ladies: o fisiculturismo de mulheres. 152f. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Programa de Pós-Graduação em Antropologia - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
  • JAEGER, Angelita Alice. Mulheres atletas da potencialização muscular e a construção de arquiteturas corporais no fisiculturismo. 237f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano). Escola de Educação Física - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
  • LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.
  • LIMA, Marília da Silva. “Foco, Força, Fé”: uma etnografia sobre o fisiculturismo feminino em Salvador-BA. 221f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
  • MACHADO, Eduardo Pinto. De aprendiz a coach: o aprendizado sobre o uso de anabolizantes entre estudantes de Educação Física. 115f. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano) - Escola de Educação Física. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
  • MEYER, Dagmar. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana (org.). Corpo, gênero e sexualidade. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 9-27.
  • ROSE, Nikolas. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.
  • SCHWARZENEGGER, Arnold. Enciclopédia do fisiculturismo e musculação. 2. ed. São Paulo: Artmed, 2007
  • SOUZA, Andreza Conceição. “Ela Tá Focada, Sabe Onde Quer Chegar”: estudo qualitativo sobre a produção de corpos aprimorados de mulheres fisiculturistas e fitness no município do Rio de Janeiro. 135f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
  • VINUTO, Juliana. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, v. 22, n. 44, p. 203-220, ago./dez. 2014.
  • 1
    Movimento que despontou no início do século XIX, na Inglaterra, e ressurgiu na segunda metade do mesmo século, nos Estados Unidos. A doutrina argumentava que o fortalecimento corporal moralizava os costumes e consolidava o caráter. Dessa forma, a moralidade cristã acreditava em um desenvolvimento harmonioso entre corpo, mente e espírito (DIAS, 2012).
  • 2
    Ver Schwarzenegger (2007).
  • 3
    Trata-se de um processo que consiste na aplicação de tecnologias visando a melhora no desempenho corporal. A realização desse aprimoramento corporal ocorre tanto em nível molecular, com as alterações genéticas, como em níveis maiores, influenciando a atividade de células, órgãos e tecidos (ROSE, 2013).
  • 4
    Fala-se em projeto reflexivo na medida em que os indivíduos assimilam informações provenientes das referências externas e negociam conforme seus interesses e necessidades para melhor se adequarem as exigências que são feitas (GIDDENS, 2002). Essa reflexividade, neste estudo, refere-se ao modo como os atletas se apropriam e utilizam os saberes e conhecimentos produzidos sobre o corpo e aplicam conforme as peculiaridades que cercam a eles e a modalidade. Trata-se de um processo intrínseco à construção identitária desses sujeitos na medida em que envolve seus corpos e, obviamente, seus projetos subjetivos particulares.
  • 5
    Por sistemas peritos, Giddens (1991, p. 30) se refere “[...] a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”. Ou seja, são chamados de peritos aqueles profissionais capazes de transmitir os conhecimentos que estruturam a nossa atividade cotidiana. No caso dos fisiculturistas, os médicos, os treinadores e os nutricionistas constituem os peritos fundamentais para o desenvolvimento de sua prática.
  • 6
    O estudo foi realizado mediante análise e aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas da Universidade Federal do Vale do São Francisco - CEDEP/UNIVASF (CAAE: 03727118.4.0000.5196) - obedecendo, dessa forma, aos critérios estabelecidos pela Resolução n. 510/2016 (BRASIL, 2016).
  • 7
    O local de trabalho, neste caso, constitui academias de musculação, nas quais foram realizadas três entrevistas, e uma loja de suplementos, onde aconteceu uma entrevista.
  • 8
    Três a quatro meses antes da competição.
  • 10
    Quatro a seis semanas antes do campeonato.
  • 11
    Esses acompanhamentos constituem-se a partir da realização periódica de exames médicos para verificação da condição hormonal e da orientação de pessoas com experiência na utilização dessas substâncias - geralmente, os próprios treinadores.

NOTAS EDITORIAIS

  • DECLARAÇÃO DE APROVAÇÃO EM COMITÊ DE PESQUISA
    O estudo foi realizado mediante análise e aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas da Universidade Federal do Vale do São Francisco - CEDEP/UNIVASF (CAAE: 03727118.4.0000.5196) - obedecendo, dessa forma, aos critérios estabelecidos pela Resolução n. 510/2016. A autoria declarou ter contemplado todos os procedimentos éticos que constam na normativas abaixo: BRASIL, Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo Seres Humanos. Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/reso510.pdf
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
  • EDITORES DE SEÇÃO:
    Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira* *Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2020
  • Aceito
    01 Jun 2020
  • Publicado
    29 Jul 2020
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