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CULTURA INDÍGENA KAINGANG E O CUIDADO AMBIENTAL: ABORDAGENS NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

KAINGANG INDIGENOUS CULTURE AND ENVIRONMENTAL CARE: APPROACHES IN PHYSICAL EDUCATION CLASSES

CULTURA INDÍGENA KAINGANG Y CUIDADO AMBIENTAL: ENFOQUES EN CLASES DE EDUCACIÓN FÍSICA

Resumo

O estudo busca analisar as diferentes percepções das práticas pedagógicas de uma professora indígena e de uma professora não indígena, além de investigar as opiniões dos estudantes em relação à incorporação da cultura indígena Kaingang e da conscientização ambiental nas aulas de Educação Física. A metodologia adotada enfocou as experiências e narrativas de duas professoras atuantes em escolas indígenas, bem como envolveu a aplicação de questionários aos estudantes. Os resultados revelaram que a professora indígena introduz a cultura Kaingang por meio de atividades como jogos indígenas, o enfoque no meio ambiente é realizado através de trilhas e atividades relacionadas. Os estudantes enfatizaram a importância de incorporar a cultura indígena e a conscientização ambiental nas aulas. Assim, este estudo se propôs a trazer novas perspectivas às práticas pedagógicas, destacando a interação entre seres humanos e o ambiente natural como uma reflexão relevante para a Educação Física escolar.

Palavras-chave
Educação Ambiental; Escola Indígena; Educação Física escolar

Abstract

The study seeks to analyze the different perceptions of the pedagogical practices of an indigenous teacher and a non-indigenous teacher, in addition to investigating students' opinions regarding the incorporation of Kaingang indigenous culture and environmental awareness in Physical Education classes. The methodology adopted focused on the experiences and narratives of two teachers working in indigenous schools, as well as involving the application of questionnaires to students. The results revealed that the indigenous teacher introduces the Kaingang culture through activities such as indigenous games, and the focus on the environment is carried out through trails and related activities. Students emphasized the importance of incorporating indigenous culture and environmental awareness into classes. Thus, this study aimed to bring new perspectives to pedagogical practices, highlighting the interaction between human beings and the natural environment as a relevant reflection for school Physical Education.

Keywords
Environmental Education; Indigenous School; School Physical Education

Resumen

El estudio busca analizar las diferentes percepciones sobre las prácticas pedagógicas de una maestra indígena y una maestra no indígena, además de investigar las opiniones de los estudiantes respecto de la incorporación de la cultura indígena Kaingang y la conciencia ambiental en las clases de Educación Física. La metodología adoptada se centró en las experiencias y narrativas de dos docentes que trabajan en escuelas indígenas, además de involucrar la aplicación de cuestionarios a los estudiantes. Los resultados revelaron que el maestra indígena introduce la cultura Kaingang a través de actividades como juegos indígenas, y el enfoque en el medio ambiente lo realiza a través de senderos y actividades afines. Los estudiantes enfatizaron la importancia de incorporar la cultura indígena y la conciencia ambiental en las clases. Así, este estudio se propuso aportar nuevas perspectivas a las prácticas pedagógicas, destacando la interacción entre los seres humanos y el medio natural como una reflexión relevante para la Educación Física escolar.

Palabras clave
Educación Ambiental; Escuela Indígena; Educación Física Escolar

1 INTRODUÇÃO

Diante de um cenário global em constante mudança, urge a necessidade de uma reavaliação profunda da interação humana com a natureza não humana. A reflexão sobre os custos da cultura do capital e do consumo revela-se cada vez mais crucial. A pesquisa sobre culturas indígenas emerge como um caminho essencial para a transformação de valores e paradigmas de desenvolvimento econômico. Tais culturas sinalizam uma prática de resgate dos saberes tradicionais, fundamentando a construção de um futuro renovado em harmonia, onde o bem-viver entre seres humanos e não humanos prevaleça.

No âmbito do zelo pelo meio ambiente, para os povos indígenas, a natureza transcende o papel de mera fonte de subsistência. Ela representa a base da vida social, intrinsecamente ligada a sistemas de crenças e conhecimentos, estabelecendo uma conexão histórica (Sousa; Cabral, 2015SOUSA, Maria Goreti da Silva; CABRAL, Carmen Lúcia de Oliveira. A narrativa como opção metodológica de pesquisa e formação de professores. Horizontes, v. 33, n. 2, p. 149-158, jul./dez., 2015. DOI: https://doi.org/10.24933/horizontes.v33i2.149
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). Portanto, a relação entre povos indígenas e natureza engloba não apenas o espaço físico, mas também o ambiente, o estilo de vida, a cultura e todas as formas de interconexão (Sousa; Cabral, 2015SOUSA, Maria Goreti da Silva; CABRAL, Carmen Lúcia de Oliveira. A narrativa como opção metodológica de pesquisa e formação de professores. Horizontes, v. 33, n. 2, p. 149-158, jul./dez., 2015. DOI: https://doi.org/10.24933/horizontes.v33i2.149
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). Diferentemente das abordagens capitalistas, a relação dos indígenas com o ambiente não implica em exploração, mas sim em reciprocidade, constituindo uma dualidade entre corpo e alma, corpo e espírito (CIDR, 1989CENTRO DE INFORMAÇÃO DIOCESE DE RORAIMA - CIDR Índios de Roraima: Makuxí, Taurepang, Ingarikó, Wapixana. Boa Vista: Diocese de Roraima, 1989. Coleção Histórico-Antropológica, n. 1.).

A disciplina de Educação Física, por meio de suas diversas manifestações corporais, desempenha um papel crucial na produção e perpetuação das culturas, sendo responsável por explorar a cultura do movimento no contexto escolar. Através de jogos, esportes, brincadeiras, lutas, ginásticas, danças e atividades de aventura, essa disciplina oferece aos alunos variadas vivências a partir do movimento humano. Desse modo, contribui para a formação de indivíduos capazes de analisar suas práticas, compreendendo seus limites e potencialidades corporais, e movimentando-se com intenções diversas.

É digno de nota que o corpo, sendo o instrumento primordial e natural do ser humano na sociedade, expressa a cultura em suas ações corporais mais íntimas (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 399-422.). Assim, o corpo é moldado socioculturalmente através da assimilação de códigos e normas culturais, tornando-se uma manifestação da cultura e um veículo de outras experiências socioculturais, refletidas na noção de corporalidade (Maluf, 2001MALUF, Sônia Weidner. Corpo e corporalidade nas culturas contemporâneas: abordagens antropológicas. Esboços: histórias em contextos globais, v. 9, n. 9, p. 87-101, jan., 2001. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/563. Acesso em: 13 maio 2024.
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).

Considerando a escola como um espaço de aprendizagem não apenas dos conhecimentos fundamentais, mas também dos traços culturais, como danças, artesanato, culinária e medicina indígena - vital para a sobrevivência - é imperativo que a cultura indígena seja incorporada às discussões sobre educação, universidade e, especialmente, Educação Física. A cultura indígena deve ser reconhecida em meio a outras culturas tidas como hegemônicas.

Segundo Buitrago e Fraga (2020)BUITRAGO, Edwin Alexander Canon; FRAGA, Alex Branco. As práticas corporais indígenas no ensino da educação física: um estudo de revisão da literatura brasileira e colombiana. Licere, v. 23, n. 3, p. 709–726, 2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2447-6218.2020.25082
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, o termo PCI, Práticas Corporais Indígenas, foi adotado, a partir do entendimento de que expressões como “dança”, “jogos”, “rituais”, “lutas”, “esportes”, entre outras, podem evocar uma percepção de algo pertencente ao passado, estigmatizado e desconectado do presente.

Entretanto, cabe ressaltar que o termo PCI não é utilizado com a mesma frequência em outros países quanto o é no Brasil, conforme observado por Buitrago e Fraga (2020)BUITRAGO, Edwin Alexander Canon; FRAGA, Alex Branco. As práticas corporais indígenas no ensino da educação física: um estudo de revisão da literatura brasileira e colombiana. Licere, v. 23, n. 3, p. 709–726, 2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2447-6218.2020.25082
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, provavelmente devido à escassez de tradição de pesquisa acadêmica nesses países nessa área específica.

A Resolução nº 5 de 22 de junho de 2012 estabelece as diretrizes curriculares nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, destacando o papel da educação na promoção das relações interétnicas, na manutenção da diversidade cultural e no reconhecimento das diferentes abordagens pedagógicas (Brasil, 2012BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Resolução CNE/CEB 5/2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Brasília, 22 de junho de 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11074-rceb005-12-pdf&category_slug=junho-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 13 maio 2024.
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). Essa resolução reafirma o direito dos povos indígenas a uma educação embasada na pluralidade cultural.

No entanto, mesmo que a legislação e os documentos oficiais estabeleçam diretrizes nesse sentido, observa-se uma sub-representação da cultura indígena e da relação desses povos com o meio ambiente na educação básica e no ensino superior. Mesmo em um contexto como a Escola Estadual de Ensino Fundamental Fág Mág, situada na comunidade indígena Ligeiro, município Charrua-RS, a relação dos povos indígenas com a cultura e o meio ambiente é abordada apenas superficialmente, principalmente na educação física.

Compreender a temática indígena é um desafio contínuo em várias áreas do conhecimento, inclusive na Educação Física, que oferece um amplo espaço para a ressignificação das práticas corporais indígenas. Este processo não apenas diversifica as oportunidades de aprendizado, mas também contribui para mitigar as desigualdades sociais. Segundo Pereira (2021)PEREIRA, Arliene Stephanie Menezes. Práticas corporais indígenas: jogos, brincadeiras e lutas para implementação da lei 11.645/08 na Educação Física escolar. Fortaleza: Aliás, 2021., a Educação Física incita uma reflexão sobre os elementos das práticas corporais indígenas, fomentando a adoção de posturas e valores suscetíveis de debate em sala de aula.

A proposta de ensino das práticas corporais indígenas não só é pedagogicamente decolonial, mas também contra hegemônica, como enfatizado pelo autor. Esta abordagem parte do ponto de vista do pensamento-outro e visa combater a negação da existência das culturas indígenas. Assim, a Educação Física torna-se um espaço privilegiado para o reconhecimento e valorização desses saberes.

Dentro deste contexto, é crucial que a Educação Física escolar se distancie dos modelos coloniais e eurocêntricos de educação. Pereira (2021) destaca que a disciplina deve ser orientada pela diversidade, reconhecendo os povos indígenas como parte integral do contexto educacional brasileiro, assim como dos saberes específicos da cultura corporal de movimento.

Portanto, descolonizar os conteúdos em Educação Física é uma maneira de reconhecer e valorizar a temática étnico-racial. As práticas pedagógicas propostas não devem ser aplicadas apenas para as minorias étnico-raciais, mas sim como um esforço conjunto de toda a comunidade educacional em prol da transformação e da justiça social.

A transição dos jovens indígenas do ensino fundamental para o médio também é um ponto de impacto. Enquanto as escolas de ensino fundamental, que oferecem ensino nos territórios indígenas, asseguram a educação bilíngue na língua materna do grupo através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação da Educação Nacional (Brasil, 1996BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 13 maio 2024.
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), as escolas de educação básica, onde o ensino médio é ministrado, estão fora desses territórios. A língua, que antes conectava a escola aos indígenas, é agora reduzida a uma celebração no Dia do Índio.

Histórico, as línguas indígenas representavam uma parte intrínseca da vida cotidiana das comunidades, servindo como um vínculo vital com sua identidade cultural e seu meio ambiente (Menezes; Faustino; Novak, 2019MENEZES, Maria Christine Berdusco; FAUSTINO, Rosângela Célia; NOVAK, Maria Simone Jacomini. Alfabetização e aprendizagem da língua materna como língua estrangeira em escolas indígenas no Paraná. Línguas & Letras, v. 20, n. 46, 2019. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/22047. Acesso em: 17 de maio. 2024.
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). No entanto, com o advento da colonização e a imposição cultural, essas línguas foram frequentemente marginalizadas e até mesmo suprimidas. Idealmente, as escolas localizadas em áreas próximas a comunidades indígenas deveriam assumir um papel ativo na preservação e promoção das línguas indígenas. Conforme preconizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 13 maio 2024.
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), o ensino da língua materna das comunidades indígenas deveria ser integrado ao currículo escolar. No entanto, há uma realidade em que a língua indígena é relegada a um evento esporádico, limitando-se a ser celebrada apenas em ocasiões específicas, como o Dia do Índio, em 19 de abril.

Essa redução do uso e valorização da língua indígena no contexto escolar representa não apenas um apagamento significativo, mas também uma violação dos direitos e identidade dos povos indígenas e evidencia a lógica do poder. Ao relegar a língua indígena a um papel secundário, a escola não apenas falha em reconhecer a riqueza e diferença cultural desses povos, mas também perpetua um ciclo de marginalização e perda em relação à relevância para a identidade e bem-estar das comunidades indígenas.

Dentre as iniciativas educacionais, merecem destaque os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, bem como o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI), que se dedicam à questão indígena e ambiental. Assim, vão além de um mero ensino em sala de aula, promovendo eventos, exposições, palestras e projetos educativos que transcendem as paredes da academia. Através dessas iniciativas, os estudantes são incentivados a mergulhar profundamente na compreensão das culturas indígenas, visando compreender suas perspectivas sobre o meio ambiente e sua relação com ele.

No ambiente universitário, durante o percurso educacional no curso de Educação Física, a cultura Kaingang foi tangenciada por meio de eventos como a Amostra de Dança e o Anima Campus Uruguaiana. Entretanto, a cultura Kaingang não foi profundamente explorada, sugerindo que sua abordagem foi possivelmente influenciada pela presença do pesquisador no curso. Por outro lado, em relação à educação ambiental, a participação em práticas promovidas pelo Grupo de Estudos Movimento e Ambiente (GEMA) proporcionou experiências enriquecedoras, evidenciando possibilidades para tratar o tema na escola.

Diante desse contexto e impulsionada pelo desejo de incorporar novas abordagens culturais e ambientais na educação, a presente pesquisa foi concebida. O objetivo central consiste em analisar as diferentes percepções das práticas pedagógicas de uma professora indígena e de uma professora não indígena, além de investigar as opiniões dos estudantes em relação à incorporação da cultura indígena Kaingang e da conscientização ambiental nas aulas de Educação Física.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

Esta pesquisa é embasada em uma abordagem qualitativa do tipo narrativa, fundamentada na análise interpretativa das vivências de professores responsáveis pela disciplina de Educação Física em Escolas Indígenas, interligada às percepções dos estudantes sobre a abordagem da cultura indígena Kaingang e da preservação ambiental durante as aulas.

O estudo contou com a participação de duas professoras que atuam em escolas indígenas no estado do Rio Grande do Sul. A primeira docente, designada como P1 no contexto da pesquisa, possui licenciatura em educação física e leciona na Escola Indígena de Ensino Médio localizada na comunidade de Ligeiro, município de Charrua/RS. A segunda professora, identificada como P2 no estudo, pertence ao povo indígena Kaingang, detém formação em magistério e é responsável pela disciplina de educação física na Escola Indígena de Ensino Médio situada na comunidade de Ventarra Alta, município de Erebango/RS. Apesar de não possuir formação específica em educação física, P2 assume a função de professora de educação física na escola. A escolha de entrevistar P2 decorreu da ausência de retorno por parte dos professores indígenas de educação física convidados a participar do estudo. Além disso, o estudo envolveu estudantes do 6º ao 9º ano matriculados em uma Escola Indígena na comunidade de Ventarra Alta. A decisão de aplicar o questionário a esses alunos se deu em virtude da presença do pesquisador na comunidade de Ventarra Alta.

Para a produção dos dados, o pesquisador iniciou o processo entrando em contato com as professoras via aplicativo WhatsApp. As professoras foram convidadas a participar do estudo por meio de uma entrevista narrativa, na qual compartilharam suas trajetórias de vida, motivações para cursar educação física (pergunta exclusiva para P1) e experiências no ensino em escolas indígenas, além de suas abordagens pedagógicas nas aulas de educação física.

Conforme mencionado por Jovchelovitch e Bauer (2010)JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin W. Entrevista narrativa. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George (org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 90-113., a entrevista narrativa, conceituada por Schütze1 1 SCHÜTZE, Fritz. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: WELLER Wivian; PFAFF Nicolle (org). Metodologias de pesquisa qualitativa na educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2010. , encoraja os entrevistados a relatar momentos significativos de suas vidas, convertendo esse ato de narração e audição de histórias em um método eficaz para atingir os objetivos da pesquisa. Com base nesse conceito, a entrevista narrativa foi conduzida seguindo um roteiro predefinido de perguntas. Em virtude do contexto de pandemia, o contato foi estabelecido por meio do aplicativo WhatsApp, e as entrevistas foram agendadas e realizadas através de trocas de áudios. As gravações das entrevistas foram registradas no aplicativo e, posteriormente, transcritas.

A obtenção das percepções dos estudantes se deu por meio da aplicação de um questionário. O questionário foi elaborado especificamente para este estudo, consistindo em perguntas abertas e fechadas com o objetivo de identificar aspectos pessoais como idade, gênero, local de residência, membros familiares com quem convivem, assim como uma breve descrição de suas experiências na educação básica e suas percepções em relação à abordagem da cultura Kaingang e da conservação ambiental nas aulas de educação física. Os questionários foram impressos e entregues a 15 estudantes, os quais responderam em suas residências. Posteriormente, os questionários foram coletados na data combinada, tendo sido obtido o retorno de 10 questionários.

O método de seleção dos/as estudantes participantes neste estudo foi conduzido através de uma abordagem não probabilística, especificamente utilizando o método de conveniência. Inicialmente, um grupo de 15 estudantes foi identificado como potenciais participantes, com a seleção baseada na disponibilidade desses/as alunos/as nas dependências da escola durante o período de coleta de dados.

Após a identificação dos/as participantes, os questionários foram impressos e entregues a esses/as 15 estudantes selecionados/as. Os/as alunos/as foram então convidados/as a responderem aos questionários em suas residências, fornecendo-lhes a oportunidade de preencherem os formulários em um ambiente confortável e familiar. Posteriormente, na data combinada, os questionários foram coletados, resultando no retorno de 10 questionários preenchidos.

É importante ressaltar que não foram estabelecidos critérios explícitos de inclusão ou exclusão para os/as participantes, e todos os/as estudantes presentes na escola durante o período de coleta de dados parecem ter sido elegíveis para participar. Além disso, devido ao ambiente da escola estar localizado em uma terra indígena e o advento do contexto de pandemia, o número total de estudantes pode ser limitado, o que pode influenciar a disponibilidade e seleção dos/as participantes.

A seleção dos/as estudantes foi baseada principalmente em seu livre consentimento para participar da pesquisa, uma vez que eles/as responderam aos questionários voluntariamente.

No tocante aos aspectos éticos, este estudo observou tais princípios em consonância com as Resoluções nº 466/12 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil que regulam as pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. A participação das professoras e estudantes ocorreu mediante aceitação voluntária e após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os participantes tiveram suas identidades preservadas, sendo identificados no estudo por meio de siglas e números, e as escolas não foram identificadas.

3 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

Os resultados serão apresentados em duas seções distintas. Na primeira seção, serão expostas as narrativas de duas professoras, identificadas como P1 e P2. P1 representa uma professora não indígena, enquanto P2 representa uma professora indígena.

A Escola Estadual de Ensino Fundamental Fág Mág, localizada na comunidade indígena Ligeiro, município de Charrua, no estado do Rio Grande do Sul, foi o cenário onde as narrativas dessas professoras foram coletadas.

Na segunda seção, será abordada a percepção dos estudantes do 6º ao 9º ano em relação à educação física, cultura indígena e cuidado ambiental. Este estudo visa fornecer uma compreensão mais completa e detalhada das questões abordadas, destacando as diferentes perspectivas e experiências dos participantes.

3.1 "A NATUREZA, ELA FAZ PARTE DA NOSSA VIDA, DESDE O INÍCIO NÉ": PROFESSORAS, SUAS TRAJETÓRIAS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Diante da análise dos resultados que emergiram, iniciamos narrando as histórias das duas professoras entrevistadas, identificadas como P1 (professora não indígena) e P2 (professora indígena).

P1, uma professora não indígena de 38 anos, natural de Charrua/RS e atualmente residindo em Sananduva/RS, é formada em Educação Física e acumula uma década de experiência como professora. Ela leciona em outra escola indígena, situada na comunidade de Ligeiro. Além disso, também trabalha em uma instituição de grande porte que, no passado, contava com mais de 400 alunos em dois turnos, manhã e tarde. Há dois anos, essa escola introduziu a modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e há um ano passou a oferecer o ensino médio. Essas mudanças fizeram com que a escola funcionasse atualmente nos três turnos, contando com professores tanto indígenas quanto não indígenas.

A professora não indígena (P1) compartilha sua jornada educacional, tendo cursado o ensino fundamental em Tapejara, frequentando uma escola ligada à Congregação de Notre Dame. O ensino médio foi realizado na mesma cidade, pois em Charrua, sua cidade de residência, não havia essa oferta educacional. Após concluir o ensino médio, ingressou no curso de Educação Física na Universidade de Passo Fundo (UPF). Durante a graduação, enfrentou uma agenda intensa, com aulas todas as sextas-feiras à noite e aos sábados em tempo integral. No período de férias de janeiro, as aulas se estendiam por todos os dias, manhã, tarde e noite, e nas férias de julho, além de Sananduva, também tinha aulas na UPF, demandando deslocamento entre as duas cidades. Após a graduação, a professora prosseguiu com uma pós-graduação na área de saúde e qualidade de vida.

Após completar a graduação, a professora não indígena se candidatou a um contrato emergencial no estado e foi convocada em menos de um ano. Inicialmente, trabalhou em uma escola de ensino fundamental e médio no município de Charrua/RS, onde permaneceu por quatro anos antes de ser designada para assumir as turmas de Educação Física em uma escola indígena.

Para as professoras, os temas trabalhados nas aulas de educação física são de extrema importância, pois estão intrinsecamente ligados à saúde. Como afirma a professora (P1), “quando temos uma boa qualidade de vida, todo o nosso entorno se beneficia. Mas para alcançar uma boa qualidade de vida, é essencial que tenhamos um ambiente saudável. Onde praticamos atividade física, esse ambiente deve ser acolhedor e limpo, para que nos sintamos bem e contribuamos para que os outros também se sintam bem. Questões ambientais são abordadas praticamente todos os dias nas aulas de educação física.”

Além disso, a professora não indígena considera a educação física uma cadeira interdisciplinar, capaz de abranger diversas culturas. Ela enfatiza a importância de trabalhar a língua indígena, africana e questões ambientais, destacando o legado e os aprendizados deixados por essas culturas na história do Brasil.

A professora indígena (P2), por sua vez, tem 37 anos e pertence ao povo indígena Kaingang. Ela reside no município de Erebango, na comunidade de Ventarra Alta, e possui formação em magistério. A professora é responsável pela disciplina de educação física na Escola Indígena localizada em Ventarra Alta, onde leciona há três anos. Ela destaca que a maioria dos funcionários da escola são indígenas e que a instituição conta com professores qualificados em questões indígenas.

O interesse da professora indígena em lecionar na escola nativa surgiu durante seu curso de magistério, devido à sua identidade indígena. Ela considera fundamental abordar a cultura indígena Kaingang nas aulas de educação física como uma forma de revitalizar, resgatar e trazer a realidade da comunidade para os alunos. A professora também valoriza a educação ambiental nas aulas de educação física, pois a natureza está intrinsecamente ligada à vida humana, de acordo com a cosmovisão Kaingang.

A cultura indígena é abordada nas aulas de educação física pela professora indígena por meio de jogos tradicionais, como arco e flecha, lançamento de lança e corrida com tora, conectando os alunos à história e às práticas dos povos indígenas. A educação ambiental é incorporada por meio de trilhas, onde a professora destaca a importância da preservação ambiental e faz comparações entre o passado e o presente, considerando o impacto dos não indígenas nas terras indígenas.

Ao analisar as narrativas das professoras, torna-se perceptível que a integração da cultura nas aulas de Educação Física vai além da mera posse de formação específica nessa disciplina, como exemplificado pelo caso da professora indígena (P2). Ademais, é crucial que os educadores reconheçam a importância desse tema, especialmente ao lecionarem em contextos escolares indígenas. Enquanto a formação da professora não indígena (P1), que abrange graduação e pós-graduação, a habilitou a compreender a relação da Educação Física com a saúde e a qualidade de vida, ela também demonstra um comprometimento em valorizar e integrar a cultura indígena em suas práticas pedagógicas. Esses exemplos ressaltam a relevância de uma abordagem sensível à diversidade cultural e à interculturalidade no ensino da Educação Física, independentemente da formação acadêmica dos professores.

Fica evidente que a inclusão da cultura nas aulas de Educação Física não se limita à detenção de uma formação específica nessa disciplina, como evidenciado pelo exemplo da professora indígena (P2). Esta observação destaca a flexibilidade e a adaptabilidade dos professores em incorporar elementos culturais em suas práticas pedagógicas, independentemente de sua educação formal. A decisão de compreender suas formações acadêmicas vem ao encontro de algo percebido e salientado por Buitrago e Fraga (2020)BUITRAGO, Edwin Alexander Canon; FRAGA, Alex Branco. As práticas corporais indígenas no ensino da educação física: um estudo de revisão da literatura brasileira e colombiana. Licere, v. 23, n. 3, p. 709–726, 2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2447-6218.2020.25082
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. Segundo os autores, chama a atenção a disparidade no volume de textos existentes no Brasil dedicados à aplicação de conteúdos em ambiente escolar, quer seja indígena ou regular; e o baixo volume de materiais direcionados ao processo de formação inicial de professores da área (Buitrago; Fraga, 2020BUITRAGO, Edwin Alexander Canon; FRAGA, Alex Branco. As práticas corporais indígenas no ensino da educação física: um estudo de revisão da literatura brasileira e colombiana. Licere, v. 23, n. 3, p. 709–726, 2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2447-6218.2020.25082
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).

No entanto, é fundamental ampliar essa reflexão para além da capacidade dos professores em transmitir os legados culturais. Deve-se questionar também a própria estrutura e conteúdo da Educação Física enquanto área de conhecimento e formação de professores. A ausência de reconhecimento das cosmovisões e legados indígenas dentro do currículo e das práticas pedagógicas da Educação Física evidencia uma lacuna profunda e preocupante.

Nesse sentido, a proposta aqui é aprofundar este argumento, evidenciando como a Educação Física, como campo acadêmico e profissional, negligencia as ricas tradições e conhecimentos dos povos indígenas, especialmente dos Kaingang. Isso não apenas priva os alunos indígenas de uma educação que respeite e valorize sua identidade cultural, mas também perpetua um sistema educacional que reproduz desigualdades e marginaliza grupos minoritários.

Portanto, é necessário repensar não apenas a formação de professores de Educação Física, mas também a própria estrutura curricular e os paradigmas pedagógicos dessa disciplina. É preciso promover uma abordagem mais inclusiva e intercultural, que reconheça e valorize os saberes e práticas culturais dos povos indígenas, integrando-os de forma significativa ao ensino e aprendizagem da Educação Física, em consonância com os princípios da educação intercultural e da valorização da diversidade.

Trabalhar a cultura indígena Kaingang nas aulas de educação física é considerado essencial, pois ajuda os estudantes a compreenderem a história do Brasil, a cultura indígena e a importância de preservar essa riqueza cultural. As aulas de educação física permitem o resgate cultural por meio de danças típicas, jogos indígenas, artesanato e comidas tradicionais, além de promover a conscientização sobre a medicina indígena.

A abordagem da educação ambiental nas aulas de educação física é considerada crucial por ambas as professoras. A professora não indígena (P1) associa o cuidado ambiental à limpeza do espaço, buscando manter um ambiente acolhedor para a prática de atividades físicas. A professora indígena (P2) destaca que a natureza faz parte intrínseca da vida humana desde o nascimento e enfatiza a importância de compreender o impacto dos não indígenas nas terras indígenas.

O dualismo Kaingang, que engloba todo o cosmo e inclui elementos classificatórios, é uma parte fundamental da cosmovisão indígena (Silva, 2002SILVA, Sergio Baptista da. Dualismo e cosmologia Kaingang: o Xamã e o domínio da floresta. Horizontes Antropológicos, v. 8, n. 18, p. 189-209, dezembro de 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/YPFRvPpqwtFFpGT9pNqttMm/?lang=pt Acesso em: 13 maio 2024.
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). Esse dualismo é representado pelos dois grandes irmãos guerreiros, Kamé e Kairu, cujas características definem a qual das metades tribais uma pessoa pertence. Essa divisão influencia não apenas os casamentos, mas também a herança da metade paterna.

No que diz respeito à relação com a terra, os Kaingang, como outros povos indígenas, têm uma conexão profunda com o ambiente, incluindo a floresta e as áreas de subsistência para caça e pesca. A terra é vista através de uma lente simbólica e cosmogônica, moldando a relação dos Kaingang com o meio ambiente.

Consideramos que o trabalho de educação ambiental na escola é fundamental tanto para a sociedade quanto para a educação. A incorporação desse tema nas aulas de educação física não é uma tarefa difícil, pois é possível integrá-lo às práticas corporais de aventura, atividades de lazer e esportivas praticadas na natureza, enfatizando a valorização desta e a relação entre os seres humanos e o meio ambiente.

3.2 "SIM, PORQUE NÓS SOMOS INDÍGENAS": ESTUDANTES E SUAS PERCEPÇÕES

No estudo, participaram 10 estudantes do 6º ao 9º ano de uma Escola Indígena. Todos eles residem na comunidade de Ventarra Alta, próxima ao município de Erebango/RS, onde cerca de 212 moradores compõem essa comunidade. A faixa etária dos estudantes variou entre 11 e 17 anos, sendo que 8 deles se identificam como do gênero feminino, conforme apresentado no quadro 1. Essa predominância de meninas no estudo pode ser explicada pela dimensão reduzida da escola, refletindo uma tendência nacional identificada pelo IBGE e PNAD, que apontam uma presença maior de meninas nas escolas desde 2009, e pelo fato de muitos meninos já terem deixado a comunidade devido a conflitos ou a necessidade de se inserir no mercado de trabalho.

Quadro 1
Perfil dos estudantes participantes da pesquisa.

A instituição de ensino a que esses estudantes pertencem é caracterizada principalmente por professores e funcionários indígenas. Trata-se de uma escola de porte reduzido, que atende a múltiplos níveis de ensino, sendo também notável a ausência de uma quadra de esportes. No que se refere à trajetória escolar anterior, 7 estudantes relataram ter estudado em escolas indígenas, 2 frequentaram escolas não indígenas por alguns anos e outros estudaram tanto em escolas indígenas como não indígenas nos anos anteriores. Apenas 1 estudante mencionou ter estudado exclusivamente em escola não indígena nos anos anteriores, com o estudante 6 destacando: “Só esse ano estudei em uma área indígena”.

Dos estudantes que responderam aos questionários, 9 afirmaram participar das aulas de educação física e manifestaram seu apreço por essa disciplina. Entre as atividades realizadas, a estudante 2 mencionou a prática de vôlei, futebol e outros jogos, enquanto a estudante 7 enfatizou seu gosto pelas aulas por considerar que aprender sobre exercícios é benéfico para a saúde.

Em relação às atividades relacionadas à cultura indígena Kaingang nas aulas de educação física, 2 estudantes relataram vivenciá-las, participando de atividades como a “gincana dos jogos indígenas” (estudante 2) e a “dança indígena” (estudante 8). Por outro lado, a estudante 4 mencionou a ausência de tais atividades em anos anteriores, enfatizando que as aulas de educação física eram ministradas exclusivamente em português. Isso ressalta a forte associação dos estudantes entre a cultura indígena e a língua Kaingang.

Vale destacar que a dança indígena é um componente importante das aulas de educação física, visto que desempenha um papel fundamental na luta contra a invisibilidade histórica dos indígenas. Os movimentos da dança expressam rituais e demonstram o espírito guerreiro da comunidade Kaingang, além de promover a união e o fortalecimento da comunidade, servindo como uma forma de defesa de sua cultura.

No que diz respeito à abordagem da educação ambiental nas aulas de educação física, 6 estudantes relataram que essa temática não é tratada nessa disciplina, com a estudante 4 explicando que isso ocorre devido à ênfase em atividades esportivas tradicionais, como futebol e pular corda. Por outro lado, a estudante 1 e o estudante 6 afirmaram que a educação ambiental é abordada nas aulas, com a primeira destacando que a educação física está ligada ao cuidado ambiental e o segundo mencionando atividades como desenhar árvores e a importância de não jogar lixo no pátio.

As percepções dos estudantes sobre a importância de estudar a cultura indígena Kaingang e o cuidado ambiental na escola estão detalhadas nos quadros 2 e 3.

Quadro 2
Percepção dos estudantes acerca da importância de estudar a cultura indígena Kaingang na escola.
Quadro 3
Percepção dos estudantes acerca da importância de estudar o cuidado ambiental na escola.

Entre as respostas, todos os estudantes mencionaram que é importante abordar a cultura Kaingang na escola. Destacamos as respostas das estudantes 1, 3 e 4, que consideram relevante estudar a cultura Kaingang para aprenderem a falar a língua Kaingang. Aprender a falar e escrever a língua Kaingang é uma maneira de preservar a cultura Kaingang e dar-lhe valor. Além disso, a resposta do estudante 9, ao afirmar “sim, porque nós somos indígenas”, expressa de forma concisa e significativa a importância de estudar a cultura na escola. Isso enfatiza a necessidade de abordar a cultura Kaingang não apenas na educação física, mas em todas as outras disciplinas, reforçando assim a relevância desse trabalho.

No contexto da escola indígena, destaca-se a escolarização dos Kaingang. Neste sentido, Crespo defende o ensino bilíngue nas escolas indígenas como uma forma de valorizar a cultura materna e manter uma educação diferenciada. Como afirmou Crespo em seu relato, "o português é uma segunda língua, nossos alunos precisam aprender primeiramente em Kaingang (oral e escrito). O bilinguismo somente faz sentido quando se aprende a falar e valorizar a nossa cultura" (Crespo, 2015CRESPO, Benjamin Perokag. As práticas de ensino Bilíngue na Escola Estadual Indígena de Fundamental Davi Rygjo Fernandes. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura co ênfase em Gestão Ambiental) - Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2015.).

No Projeto Pedagógico da escola indígena em questão, formulado para orientar o ensino, fica estabelecido que todas as disciplinas devem adotar uma abordagem de ensino bilíngue e intercultural. Isso inclui o ensino da língua Kaingang, que agora também é incorporado a outras disciplinas, como a matemática, com o propósito de fortalecer a cultura Kaingang. Esse enfoque reflete o compromisso da escola com a preservação da língua e cultura Kaingang.

Nesse contexto, a preocupação com o meio ambiente assume uma importância crucial, sendo associada tanto à proteção do planeta e da vida dos animais quanto à manutenção da limpeza do ambiente local. Assim como a cultura, a conscientização ambiental também é reconhecida por todos como uma temática relevante a ser abordada na escola.

Torna-se evidente, portanto, a necessidade de incorporar a relação dos indígenas com a natureza como um componente fundamental do papel do professor. Isso nos leva a refletir sobre os fundamentos dessas relações, que historicamente foram estabelecidos e perpetuados na sociedade contemporânea. Além disso, é importante considerar como essas relações se manifestam em nossas interações sociais atuais.

É fundamental ampliar a compreensão de que a educação ambiental vai além da simples limpeza do ambiente físico. Como professores, desempenhamos um papel essencial na promoção dessa conscientização, contribuindo para a formação de alunos conscientes e responsáveis em relação ao meio ambiente e à cultura indígena. Portanto, a integração desses elementos no ensino contribui não apenas para a valorização da cultura Kaingang, mas também para o desenvolvimento de uma educação mais consciente e sustentável.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos elementos apresentados, a Educação Física emerge como uma ferramenta crucial para o resgate e valorização dos saberes tradicionais indígenas e para a conscientização ambiental. Por meio de suas práticas pedagógicas, a disciplina não só oferece um ambiente propício para o reconhecimento e ressignificação das culturas indígenas, mas também desempenha um papel significativo no resgate e preservação dos valores e conhecimentos ancestrais.

Nesse contexto, é relevante destacar o comprometimento demonstrado pelas professoras entrevistadas, em especial a Professora Indígena (P2), cuja prática pedagógica está centralizada nas atividades corporais indígenas, como os jogos e competições Kaingang, e na promoção da conscientização ambiental por meio de trilhas educacionais. O engajamento da P2 em incorporar aspectos da cultura e do meio ambiente em suas aulas contribui significativamente para a valorização dos saberes e do modo de vida Kaingang.

Além disso, é fundamental destacar a importância das perspectivas dos estudantes, como os participantes da Escola Indígena na comunidade de Ventarra Alta. Suas respostas revelaram a valorização da cultura indígena Kaingang e a conscientização ambiental como aspectos cruciais na escola. O reconhecimento da língua Kaingang como parte integrante da identidade indígena e a conscientização ambiental demonstram a relevância desses temas para os estudantes.

Ao explorar as práticas corporais indígenas, a Educação Física não apenas amplia a diversidade de aprendizado, mas também promove a justiça social e contribui para a redução das desigualdades. É essencial que a disciplina se afaste de abordagens coloniais e eurocêntricas de ensino, reconhecendo plenamente os povos indígenas como parte integral do panorama educacional brasileiro.

Além disso, a integração substancial da língua e cultura indígenas ao currículo escolar é crucial, não relegando-as a eventos pontuais, mas sim incorporando-as como elementos fundamentais do processo educacional. A marginalização das línguas indígenas não apenas representa um apagamento cultural, mas também constitui uma violação dos direitos e identidade dos povos indígenas.

Iniciativas educacionais, como os Institutos Federais de Educação e o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, desempenham um papel crucial na promoção da cultura indígena e conscientização ambiental. Estas vão além das salas de aula, promovendo eventos e projetos educativos que enriquecem o conhecimento e a compreensão das culturas indígenas e sua interação com o meio ambiente.

Portanto, é inegável o potencial transformador da Educação Física na promoção do resgate dos valores e saberes tradicionais indígenas, bem como na conscientização ambiental. Ao reconhecer e integrar esses aspectos em suas práticas pedagógicas, os professores não só contribuem para uma educação mais inclusiva e intercultural, mas também para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e sustentável, em harmonia com a natureza e as diversas comunidades.

Assim, a Educação Física não apenas se estabelece como uma disciplina vital no contexto educacional, mas também como um agente de transformação social e ambiental. Suas práticas vão além do simples exercício físico, tornando-se uma plataforma para o resgate e valorização das ricas tradições e conhecimentos dos povos indígenas, bem como para o desenvolvimento de uma consciência ambiental que é essencial para garantir a sustentabilidade do nosso planeta. Essa abordagem representa uma jornada de reconexão com o passado e com as sabedorias ancestrais, enquanto moldamos um futuro mais consciente e responsável em relação ao nosso planeta.

  • 1
    SCHÜTZE, Fritz. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: WELLER Wivian; PFAFF Nicolle (org). Metodologias de pesquisa qualitativa na educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2010.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • ÉTICA DE PESQUISA

    A pesquisa seguiu os protocolos vigentes nas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil.
  • COMO REFERENCIAR

    SILVEIRA, Adir; SILVA, Tatiane Motta da Costa e; SILVA, Renata Colbeich da; NORONHA, Diego de Matos; CUNHA, Álvaro Luís Ávila da. Cultura indígena Kaingang e o cuidado ambiental: abordagens nas aulas de educação física. Movimento, v. 30, e30007. jan./dez. 2024. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.135518

REFERÊNCIAS

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    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
  • BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Resolução CNE/CEB 5/2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Brasília, 22 de junho de 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11074-rceb005-12-pdf&category_slug=junho-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 13 maio 2024.
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  • BUITRAGO, Edwin Alexander Canon; FRAGA, Alex Branco. As práticas corporais indígenas no ensino da educação física: um estudo de revisão da literatura brasileira e colombiana. Licere, v. 23, n. 3, p. 709–726, 2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2447-6218.2020.25082
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  • CENTRO DE INFORMAÇÃO DIOCESE DE RORAIMA - CIDR Índios de Roraima: Makuxí, Taurepang, Ingarikó, Wapixana. Boa Vista: Diocese de Roraima, 1989. Coleção Histórico-Antropológica, n. 1.
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    » https://doi.org/10.24933/horizontes.v33i2.149

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2023
  • Aceito
    25 Abr 2024
  • Publicado
    19 Jun 2024
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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