RESUMO
Há setenta anos A rosa do povo entrou para o panteão das obras-primas incontestáveis da literatura brasileira. Este artigo discute os motivos que tornaram o livro de Carlos Drummond de Andrade um modelo de engajamento político-social centrado na luta contra o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. A análise formal de vários poemas inscreve a complexidade rara dessa poesia na circunstância da guerra, da modernização brasileira, da política antiburguesa do poeta e na história do modernismo, procurando interpretar o significado histórico-social de suas irresoluções.
PALAVRAS-CHAVE: poesia brasileira; A rosa do povo; Carlos Drummond de Andrade; engajamento poético; modernismo
ABSTRACT
Seventy years ago A rosa do povo joined the pantheon of Brazilian literature undisputed masterpieces. This article discusses the reasons that made Carlos Drummond de Andrade’s book a model of political and social commitment focused on the fight against Nazi-fascism in World War II. A formal analysis of several poems inscribes the rare complexity of such poetry in the circumstances of war, of Brazilian modernization, the poet’s anti-bourgeois politics and the history of modernism, trying to interpret the historical and social significance of his irresolutions.
KEYWORDS: Brazilian poetry; A rosa do povo; Carlos Drummond de Andrade; poetic commitment; modernism
Como entender hoje A rosa do povo? Um livro cujo engajamento político-social parece ter envelhecido menos que as aspirações ideológicas do tempo que o viu nascer, as quais podem, sem afetá-lo, ter perdido em paixão e verossimilhança. Mesmo os que não se interessam pela política e pela sociedade sedimentadas nos poemas, todos reconhecem que A rosa do povo é uma obra-prima. Como foi possível que fosse reconhecido e canonizado, à esquerda e à direita, como uma alta realização da poesia política e também como modelo de responsabilidade ética e social, em país tão conservador como o Brasil? O sempre impressionante engajamento poético de Carlos Drummond de Andrade, original como poucos, pede que situemos o seu teor de negatividade e irresolução a partir da complexidade de sua forma. Mas a análise individual dos poemas também tem a ganhar caso consideremos a inteligência artística plasmada na arquitetura rigorosa do livro, que articula poema a poema, estrofe a estrofe, verso a verso, imagem a imagem. É o que, no meu modo de ver, distingue a permanência dessa meditação estético-política na reverberação dos poemas, tão entrelaçados uns aos outros.
Com olhos de hoje, venho propor que a força e a qualidade de Arosa do povo ultrapassam os marcos do empenho político de Drummond naquele momento histórico da guerra mundial contra o nazifascismo. A realização poética de mais alto teor político da obra drummondiana é mais complexa do que uma filiação antifascista ou simpatia política comunista, pois na composição dos poemas se acumulam tensões histórico-sociais novas e impressentidas, que pressionam para vir à tona e que, até hoje, tentamos identificar e nomear. A flor desbotada e insegura que nasce na rua nasce do ódio do poeta - do ódio de classe, do ódio a si mesmo, da opressão cotidiana da vida na cidade cinzenta sob o ritmo do capitalismo que avança -, é uma flor que oferece uma “esperança mínima” e talvez a uns poucos. O ódio é a semente da flor que emblematiza em “A flor e a náusea” a crença do poeta numa saída, ainda que mínima, tanto que, para despontar,a flor precisa furar o “asfalto, o tédio, o nojo”.A poesia precisa portanto lidar com a experiência urbana, os limites do mundo burguês e sua falta de perspectivas; precisa lidar com formas de frustração e insatisfação do sujeito, de repulsa a si e desprezo por esse horizonte social rebaixado. Drummond trava uma guerra próxima e renhida com o mundo burguês, até consumar uma espécie de traição de classe, que tinge de angústia e incerteza o seu sentimento do mundo. Ao passo que a guerra e a necessidade de reunir os homens para derrotar o nazismo criam, ao contrário,um horizonte alto, que dignifica o canto e sublimiza a tarefa contemporânea do poeta - numa perspectiva desigual, sujeita a desequilíbrios de proporção e enganos de visão, uma vez que sabemos que a grandiosidade da guerra não se opõe à mediocridade da vida burguesa e da experiência imediata. E é a própria guerra que suscita um heroísmo de compensação em autor tão pouco heroico, inseguro de transformar a sua revolta em decisão ideológica.2 Nesse sentido, a política antiburguesa formulada em vários planos, pelo menos desde Sentimento do mundo, encaminhava a poesia moderna para o contexto dos acontecimentos da guerra e para pensar a experiência da poesia na atualidade política e social. O poeta sabe que precisa dispor de uma estrutura literária nova para participar dos destinos da história na Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que, tendo um passado oligárquico, experimenta a sua subjetividade a partir da memória da família e da infância, com a qual não deseja simplesmente romper.3 Sem nos esquecermos que há poemas que se abrem a questões do tempo e da morte em termos metafísicos, o que reverbera na composição mais empenhada de A rosa do povo colorindo linhas deslocadas, aparentemente alheias à viagem poética do engajamento. Mas o poeta tem muito presente que essas questões se entremeiam, que tudo está em tudo e que é impossível uma pureza subjetiva tanto quanto uma pureza comunista. Do ponto de vista dos procedimentos de composição ocorre semelhante processo de entrelaçamento e contaminação, visto que a expansão discursiva do verso, cheio de prosa, longo, narrativo, solicitada pela objetivação de fatos e acontecimentos do presente, não se limita aos poemas de combate e a outros tantos de cunho político e social, mas comparece, com igual força, nos poemas de memória, de exposição dos percalços da subjetividade, comparece intrometendo-se no lirismo individual e até mesmo nas composições mais secretas. Enfim, o livro é uma caixa de ressonância onde todos esses elementos se cruzam e se transformam: A rosa do povo se estrutura para produzir reverberações e perturbações entre tópicos, temas, materiais e formas de seus poemas.
Essa caixa de ressonância favorece uma ideia avançada do trabalho poético, em que o lirismo está junto da política, os maus sentimentos junto dos recursos do sublime, os mecanismos de recalque junto das promessas de libertação, a procura de uma nova dimensão da história junto de um exame pungente do passado. As inquietudes drummondianas, para usar a palavra-chave de Antonio Candido,4 não permitem que o engajamento político e/ou ideológico sobreleve cada um desses aspectos - de fato, precisamos pensar a relação que o ciclo de poemas sobre o pai e Minas mantém, por exemplo, com a atualidade do mundo e como as penitências amorosas se relacionam com o remorso onipresente.
Cada variação de foco e interesse, nesse conjunto de 55 poemas, ajusta a consciência crítica à órbita de temas pouco usuais à literatura política. É o caso da perquirição da memória que implica o autoexame incomplacente da subjetividade e do fardo da herança - sem o que, sugere Drummond, o futuro da emancipação humana não pode se cumprir. Assim como o exercício da memória e do autoexame, o engajamento do poeta se constitui na experiência histórica da passagem da classe senhorial à presente condição burguesa, ainda fresca do passado rural. As transformações brasileiras da tradição, família e classe, arrastadas para o olho do furacão, colocadas por Drummond na amplitude do andamento poético de A rosa do povo, são reinterpretadas por assim dizer pelas solicitações políticas do momento. Uma atualidade de sentimentos em que essas experiências, repito, podem se aproximar e se correlacionar, enriquecendo e multiplicando o engajamento em direções menos evidentes e inesperadas que ponderam os custos da transformação do mundo.
Minha intenção é identificar, ou ao menos rastrear, os termos do engajamento político-social de um poeta moderno brasileiro, aos quarenta anos, no desenrolar da Segunda Guerra. Insisto: o fato gigantesco da guerra, o sublime da época, digamos, não dá a direção do processo de composição dos poemas, mas se entrelaça à nucleação obsessiva de temas mais pessoais e cifrados. Por exemplo, não será um paradoxo que “Áporo”, tratado geralmente como um dos poemas mais enigmáticos do livro, apresente uma figuração do bloqueio local, tirando uma alegoria nacional das possibilidades dicionarizadas do que significa ao mesmo tempo inseto, orquídea, problema de solução difícil? Da mesma forma que os balanços e retrospectos do passado individual, a autoanálise metódica não compõem uma poética intimista à parte, mas são perturbados pela guerra e pelas condições nacionais.
O que vou expor a seguir é um balão de ensaio que procura alinhavar algumas das direções que mobilizam o rigor de composição desse livro - um livro que é um múltiplo de formas, não a resultante de uma evolução formal única, ou de uma linhagem protagônica, tal como defendida, por exemplo, pelos programas neovanguardistas que se seguiram.
1.
Se a grandiosidade da guerra mundial não é o que direciona a composição dos poemas, embora dê a tônica a alguns (são cerca de cinco), o que dizer da eminência desses poemas? São poemas de adesão emocionada às vitórias militares dos soviéticos e de esperança na transformação do mundo, que, logo mais, seria frustrada pela Guerra Fria. Basicamente “Telegrama de Moscou” e “Carta a Stalingrado”, como dizem os títulos, são mensagens urgentes, sob a forma de poemas de circunstância, em que o “eu todo retorcido” do poeta se deixa sensibilizar pelos acontecimentos e, proferindo solidariedade com mortos, feridos e cidades destruídas, redime-se - não tenho outra palavra - da tortura da própria poética.5 Note-se em registros menos presos à circunstância, como no caso de “Notícias”, que o sujeito poético se movimenta muito, fazendo suas todas as más notícias e os comunicados das baixas na guerra para, só então, reconstruir no íntimo ferido pela abstenção e impotência uma irmandade outra e mais solidária.6 Os fatos da guerra têm uma grandeza em si, que enobrece o canto e permite que o poeta, dando a ver a barbárie, a destruição e o sofrimento, extraia das misérias grandes e pequenas um imaginário de esperança concreto e menos partidário. A idealização de uma nova ordem do pós-guerra, ao colocar ênfase na inevitabilidade da tragédia para a superação do nazifascismo, celebra o esforço comunista de guerra e o heroísmo da resistência. Mas a conflagração penetra em poemas menos marcados pela circunstância histórica, tornando igualmente dramática e intensa a relação com o presente mais próximo, a ponto de incluir na mesma interpelação crítica a poesia, a linguagem, a palavra, a memória, o rumo da modernização e a posição de classe do poeta, como, por exemplo, em “Consideração do poema”, “A flor e a náusea”, “Nosso tempo”, “Idade madura” ou “Resíduo”, entre outros.
Por visionar uma nova ordem, após a vitória comunista, Drummond recai, numa ou noutra passagem, na idealização do futuro. Todavia, há uma confrontação sistemática dos fatos com a fragilidade individual, como se esta pedisse, no contexto da guerra - algo difícil -, um coletivismo protetor. Para sentirmos a evolução dos acontecimentos no calendário da guerra, lembro que “Passagem da noite” retifica em palinódia “A noite dissolve os homens”, de Sentimento do mundo. Ambos apresentam o mesmo movimento que contrasta noite e dia (simetricamente em duas estrofes longas), saudando a vitória da luz sobre a escuridão, porém a matéria individualista configurada em “Passagem da noite” é exatamente o oposto da visão coletivista e cheia de esperança no amanhecer de “A noite dissolve os homens”. Aqui a propaganda antifascista de uma nova era, que exigia por volta de 1938 a coragem da luta e a preparação para o sofrimento e o sacrifício da guerra (“e o sangue que escorre é doce, de tão necessário”, vaticina), não se ideologiza no anúncio-clichê da Aurora, tanto que o poeta, desconfiado do heroísmo, enraíza a Vitória na fraqueza, na fragilidade e no medo.7 Ideal político e entidade que cura, a Aurora dissipa a noite fascista e exige dos fracos uma coragem que não costumam manifestar, escapando desse modo do lugar-comum da propaganda comunista (“Havemos de amanhecer”). Não há pacifismo na poesia de guerra de Drummond, a qual, aliás, prima por expor sem anteparos o custo da autodefesa e da liberdade. O timbre soturno se transmudou em “Passagem da noite”, cujo título já diz que a noite é passageira, pois, como num blecaute de cidade bombardeada, há momentos repentinos de compreensão, solidariedade, conforto igualitário, enquanto se espera o desenlace da luta. O dia que surge é bem simples, um dia que ressalva o comum da vida, isto é, as caminhadas, os passeios de bicicleta, a entrega do pão, redescobertos em sua materialidade. Em “Passagem da noite” o curso da guerra possibilita ao sujeito condicionado pelo mundo burguês converter o autodesprezo e o individualismo à vida e à descoberta do “nós” num carpe diem meio hedonista, meio desesperado. Aliás, algo dessa aurora também reverbera no sarcasmo e nas amplificações surreais do poema anterior, que é “Passagem do ano”, em que um sujeito sem ilusões é restituído às compulsões e à estupidez burguesa numa festa de Ano-Novo.8 A culpa e o ódio ressurgem num impulso agressivo à espera ou à procura de um alcance coletivo, porém esse impulso, em sua negatividade feroz, nos devolve à solidão remordida do indivíduo e à rotina de uma pequena burguesia sem outra perspectiva senão o sempre igual.
2.
O envolvimento à distância nos acontecimentos da guerra redobra as esperanças políticas e sociais em A rosa do povo, e engrandece a possibilidade de intervenção da poesia - o que é paradoxal em poeta tão cético. Digo isso porque Drummond, e não raras vezes, assume as suas próprias limitações como limitações da poesia, e vice-versa, num autoexame agoniado e permanente. Salvo engano, foi o primeiro poeta brasileiro a incorporar à poesia a problemática da comunicação, ou seja, a traduzir sua consciência formal em consciência crítica, a se perguntar em público sobre a pertinência das formas e a tomar como matéria os limites de seu programa e propósitos. Tudo isso permeado por um sentimento quase diria heroico de insuficiência, que tanto podia se referir à vigência da poesia moderna no Brasil quanto à própria situação de classe do autor. É assim que Drummond interioriza no fazer poético a crise burguesa, desenvolvendo uma sensibilidade aguda de autorreflexão. O que não é só metalinguagem, mas desconfiança de que na condição social contemporânea, mais ainda no curso de uma guerra mundial, a única efetividade que a poesia pode ter é se expor materialmente por uma analítica do sofrimento e do medo. A matéria comunicativa é glosada largamente em A rosa do povo, ao mesmo tempo que a criação drummondiana se remorde em constatações de que o poema é solitário e incomunicável e que a transfiguração poética é imperfeita, para frisar talvez o quanto a fluência poética está socialmente travada, não obstante as frestas de esperança na transformação do mundo.
Comunicação no seu caso, menos do que transmissão ou troca de mensagens, significa paradoxalmente sentimento de que a poesia como realidade estética se comunica insuficiente e desesperadamente. Ou, como formula de modo desconcertante numa entrevista de 1949: “Não acho que a poesia seja meio para se comunicar qualquer coisa, senão que ela própria é algo que comunica”.9 Drummond não é um entusiasmado pela mensagem como tal e pelo poder coletivista da comunicação, mas acredita que esse algo que comunica existe como decalques físicos de existências que se deixam vislumbrar num fragmento - um osso, uma unha, um nome. Cada um desses pedaços de seres e coisas, de que está cheia a sua poesia, ganha uma vida fantasmática e os membros do esquartejamento valem como metonímias indiciadoras, como em “Resíduo”, de uma relação com a vida ao mesmo tempo de resistência e expectativa. “Pois de tudo fica um pouco./Fica um pouco de teu queixo/no queixo de tua filha” - até essa metonímia da relação pai-filha vale para tecer a rede de esperanças e opressões a que está pateticamente preso o sujeito.
A elucubração sobre a insuficiência comunicativa vai por aí porque o absoluto poético precisa se desmanchar no relativo de uma forma mais objetiva e, de preferência, autoconsciente de sua organização verbal, sem se furtar a investir com irreverência contra tópicos fundamentais do lirismo tais como o eu e o amor. A objetividade verbal acentua a irracionalidade terrível e superada do “eu”, assim como a necessidade de amar é exposta como uma mecânica perversa de demandar e mutilar o outro. É sob esse horizonte de experimentação comunicativa que o “eu” é amiúde acusado de ser uma entidade arcaica que necessita de uma estrutura psíquica menos repressiva. De igual modo, o amor, que é uma estrutura de insatisfações e carências, está enredado no comércio e nas regras do casamento e do sexo. Nessa sociedade, o amor se rebaixa a lazer, que compensa a rotina do trabalho para, salvando-se do sono e do cansaço, esquecer a alienação geral, da qual não está isento (“Nosso tempo”).Em “O mito”, Drummond escreveu uma farsa do eterno feminino rebaixado à vulgaridade de Fulana, uma perua maravilhosa, rica, maquiada e vestida para a sedução, com tudo o que moda, mito, gíria e o cinema americano oferecem. Maior gozação impossível na crítica da paixão sem reciprocidade, feita do ângulo de um pegador desvairado que intelectualiza perversamente sua fantasia libidinal, trazendo à tona automutilações, violências, perspectivas barateadas e, quem diria, o neoplatonismo amoroso da alta tradição ocidental. O conceito de amor em “O mito” não só é arcaico como é outra fonte de sofrimento, o que fica escondido sob a aparência cômica de uma farsa que descreve como é viver no moderno capitalismo sob o ponto de vista libidinal. E não podemos esquecer que o happy end com Fulana ocorre na Lua, lugar em que o par enfim conciliado implanta o socialismo - essa transferência do socialismo para a Lua dá o que pensar.
Em suma, a autoconsciência comunicativa do “poeta do finito e da matéria” identifica o mal-estar da condição burguesa a se reproduzir sob muitas formas, e a própria poesia acaba como parte desse mal-estar, inscrita sem dó na opacidade da vida. Mesmo antes de A rosa do povo, Drummond sempre ousava publicizar sua insatisfação (ou culpa) de classe, tanto quanto os impasses de sua poesia, por meio de uma dramatização que atendesse às dimensões históricas da atualidade.10 Falando assertivamente: na sua poesia as opções estéticas e ideológicas dos anos 1930 resolvem-se dialeticamente, uma vez que seu subjetivismo é feito de literatura social e sua literatura social é feita de subjetivismo. Ele criou um método de elucidação dos conflitos de ordem subjetiva, social e expressional que o assaltavam desde o início de sua produção, os quais todavia são levados em A rosa do povo para dentro da forma poética, exacerbando-se como insistente pensamento crítico. É comum no nosso meio o uso da expressão “poesia pública” para se referir à tradição dessa poesia com envergadura política e social explícita. Porém, em A rosa do povo, tudo o que se torna público - não custa repisarmos - é precisamente o mais íntimo e a cidadania não é uma entidade abstrata, confrontada que fica pela singularidade privada do desejo, do sonho, da frustração, da alegria adiada, do amor decepcionado, o que comprova o quanto a noção de engajamento de A rosa do povo foge à pauta da retórica comunista e não faz concessões a uma estética padrão.
Coube justamente a A rosa do povo dar o passo adiante e lançar tal lucidez remordida a um patamar condizente com a hora histórica e com uma noção de engajamento que não rebaixasse a complexidade moderna da poesia. Hoje é quase impossível avaliar o quanto o verso “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais” impulsionava um programa antiliterário e demandava da efusão lírica, da expressão polida, do verso bem torneado, mas fechado ao contemporâneo, uma inspiração autenticamente antielitista, politizada e coletivista, aberta à atualidade da vida - um programa de vanguarda, seja dito.11 Drummond representou àquela altura a expressão por excelência da crise do verso (que vai ser saturado de prosa, sintática e ritmicamente),o reconhecimento de certo arcaísmo da literatura e da poesia, como se então precisasse buscar fora das duas o que é mais necessário e urgente para atualizar a experiência da poesia.12 É sob a perspectiva angustiada e autocrítica do processo comunicativo que A rosa do povo apresenta eu, amor e poesia como instâncias históricas, desfiguradas pela sociedade burguesa e brasileira, suscetíveis no entanto de reforma e transformação.
3.
A rosa do povo colhe o depoimento das coisas contra o trabalho do tempo, que as dissolve. É por isso que existe no livro uma teoria do resíduo, dispersa em muitas passagens e concentrada no poema “Resíduo” - uma das obras-primas do conjunto. Mais que noutros, aqui ressalta a inteligência do poeta que é capaz de impor a um texto discursivamente conciso, praticamente reduzido a uma sucessão de repetições, uma meditação sobre a presença das coisas no tempo. Tudo é reminiscência nessa seca e fragmentária relação de resíduos, que, pela repetição, tece a trama de uma memória maior que a individual, e tende, por acumulação e escala, à universalização do processo. O efeito universalizador do verso de sintaxe pobre é reforçado pelas referências demarcadoras de interlocução, tempo e espaço, vinculando detalhes e objetos esquecidos e dispersos a diálogos antigos, a situações que se interromperam, a lampejos de sentimentos que mal vêm à luz (e, por isso, seguindo as indicações do poeta, são tão significativos). Esses objetos díspares estão enredados a algum “tu” (outra máscara do eu em muitas ocorrências), a um “vós” mais solene, ou então à primeira pessoa, todos meros pronomes que se multiplicam como as coisas catalogadas, que valem (imagina-se) tanto quanto elas, pois os resíduos humanos só têm existência por causa da insignificância inesquecível das coisas. Ou como “Versos à boca da noite” formula em tom mais pausado e sentencioso: “Lá onde não chegou minha ironia,/[...]/ficaste, explicação de minha vida,/ como os objetos perdidos na rua”.
“De tudo ficou um pouco” é uma constatação de miséria existencial do que realmente ficou, que se desdobra eventualmente em litania para que alguma coisa que valha fique - no primeiro caso, as coisas, por resistirem à dissolução do tempo, são sobras; no segundo, as coisas só chegam a ser porque o tempo as devassou. A resistência ao que ficou e a entrega ao desejo de que algo fique ocorrem tanto no presente quanto no passado - basta a alteração do tempo verbal para restabelecer a continuidade da vida que se desgasta sem rumo. Gente e coisa são resíduos que contam estórias, cada um sinaliza, em que tempo for, o que pode ser terrível e nada agradável (“pessoas e coisas enigmáticas, contai”, propõe “Nosso tempo”). Entretanto, na repetição, até a mesquinharia do pouco é modulada: nenhum pouco é igual ao outro e tudo é muito pouco. Pouco é o que o sujeito poético retém dos acontecimentos, aprisionado ao infinito desse ritmo, dentro do qual, por refluxo, a enumeração nesse caso não caótica esboça, em retrospecto, uma identidade. Ainda que rarefeita, tal identidade acusa o fracasso do sujeito, que tirou tão pouco de tudo e cujo espólio não passa de uma lista, como se a vida, no fundo, não passasse de uma propriedade sem valia.
Não sabemos no ritmo das reiterações com suas variações (inversão gráfica, mudança de posição de palavras, interrupção e retomada do encadeamento) o que é anônimo e o que é íntimo - os resíduos são uma coleção de elementos soltos que, em sua impenetrabilidade, falam à interioridade do sujeito, podendo deixar um rasto quase biográfico de uma experiência inesquecível ou traumática, de uma decisão custosa ou lembrança sentimental. A ênfase é fria e objetivante e o que “fica um pouco” aparentemente não se sabe a quem se refere - se a um, se a muitos. A familiaridade próxima e estranha com o mundo alienado iguala subjetivo e objetivo, seres e coisas; uns e outros emaranhados nesse inventário, a sugerir que a vida psíquica é uma espécie de guerra, cuja única imagem são justamente os indícios humanizados do que sobrou (lá fora há guerra, dentro do sujeito também).“Resíduo” nos conta fria e combinatoriamente que o sentido nasce de uma série casual que se torna necessária e, pela compulsão à repetição, parece ficar sempre em aberto. Ante a possibilidade de que fique um pouco, o fecho do poema gera esperança (botão de flor ou um objeto o mais insignificante - botão de roupa?) e nojo: “Às vezes um botão. Às vezes um rato”.
Drummond pretende restaurar a memória das coisas como uma parte da experiência geral, mas a contabilidade do sujeito é tão degradada como o mundo. As coisas precisam, sim, ser nomeadas e recuperadas subjetivamente na sua condição espectral de resíduo (“Como fugir ao mínimo objeto/ou recusar-se ao grande? [...]”, pergunta-se em “Consideração do poema”). O resíduo não é a desrealização ou o aniquilamento do objeto à maneira de Mallarmé, que, tirando-o da circulação social, o faz reverberar na sua pura materialidade verbal.13 Estamos no polo oposto do esteticismo do Néant e Drummond não está recusando o sistema de troca da linguagem em busca de uma palavra intransitiva, mítica em sua pureza. A conhecida definição do verso do poema “Fragilidade”, “[...] apenas um arabesco/em torno do elemento essencial - inatingível”, isto é, uma forma caprichosa e vazia, entregue a seus próprios desígnios, completa-se linhas adiante com a ideia de que, justamente por ser “[...] apenas um arabesco/ abraça as coisas, sem reduzi-las” - o que muda completamente o significado do arabesco drummondiano, alheio à divagação da forma retorcida sobre si como uma serpente, portanto, distante de uma filiação a Mallarmé. Drummond não acredita na autonomia poética, nem em absoluto algum de linguagem, ao contrário, quer voltar às coisas mesmas para surpreender o fantasma dos fragmentos tornados tão significativos e inapagáveis para o inconsciente. A coisa na sua poética tem uma presença tão forte quanto a palavra: “Calo-me, espero, decifro./As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas!”, escreve em “Nosso tempo”, com ironia talvez para assinalar que, na alienação da cidade moderna, elas valem aí tanto quanto os seres. Tampouco as coisas drummondianas se encobrem em mistério, nem são sacralizadas, como em muitas obras surrealistas, uma vez que nestas o objeto mágico libera a imaginação e o desejo. A Drummond interessa a economia psíquica da permutabilidade de ressentimentos e frustrações, os quais, com sua malignidade vivida, não se dissolvem ao acaso da enumeração, mas exigem uma analítica do recalque e do sofrimento. O inventário das coisas, mesmo que produzido por um imaginário associativo, não é libertário. Se a poesia não é meio de comunicação, mas “algo que comunica”, como vimos, esse poeta expõe o funcionamento do tempo e da sociedade no relativo dos seus resíduos-signos. O residualismo lida pois com as marcas, as cicatrizes, os decalques físicos da impotência, da fraqueza, do medo, para sem sucesso atenuá-los ou, por um mecanismo de defesa, disfarçá-los - “Oh abre os vidros de loção/e abafa/o insuportável mau cheiro da memória”.14
4.
Resíduo contém tempo, atesta o toque humano e, no seu durar, anuncia um fim. Por isso, voltamos sempre em A rosa do povo à experiência do tempo, que arrasta a dimensão mais privada do sujeito e, de dentro, o põe à prova com seu andamento de dissolução e morte. Aliás, em “Ontem”, Drummond identifica a interiorização do tempo como necessária ao movimento da própria escrita: “Tudo foi breve/e definitivo./Eis está gravado/não no ar, em mim,/que por minha vez/escrevo, dissipo”. Mas não precisamos tratar essa experiência do tempo como uma metafísica, visto que coisas e seres, passado e presente, real e imaginação estão especificados em horizonte histórico discernível, no qual os conflitos ganham espessura e têm funcionalidade. Oscilando entre presente e passado, mas também fundindo-os, os poemas do livro deixam nítida a especificidade de um e outro: o presente é a guerra mundial, refletida numa sociedade que se moderniza sob o autoritarismo do Estado Novo; o passado é a experiência do patriarcalismo rural, ainda cheia de segredos para a sensibilidade de seus descendentes, que, parecendo encerrada, se transforma e custa passar. Mesmo tendo galvanizado as nações do mundo, as consequências que a guerra vai impor em larga escala à organização da vida não se deixam divisar, ao passo que os fatos do passado, preservados como memória de família, convidam à imaginação e à reelaboração, como um substrato que afeta a experiência atual do sujeito. 15A guerra dinamiza de tal maneira a inércia brasileira que a tudo ela transmite esperança e transformação, como se intensificasse a industrialização, a participação política nos destinos do mundo, o debate ideológico, a necessidade de uma nova moral. Mesmo que o sujeito se entregue à subjetividade, enredado no passado da casta, o presente está lá a fustigá-lo. “O passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os olhos ainda cheios de presente”, lê-se numa crônica de Confissões de Minas,16 que sugere como convivem precária e dilaceradamente dentro do sujeito uma fidelidade à tradição e um desejo de rebelião que não se concretiza, o que agrava a impotência e a fragilidade. Os dois tempos compõem uma experiência burguesa em continuidade pouco reconhecível, tantas foram as mudanças e tantas necessidades de ruptura despontaram entre um e outro, estimulando alguma fantasia de superação.
Vejamos duas dramatizações do tempo que valem na sua relação com a experiência como modalidades de viagem - uma, mais fechada, individualista e reflexiva, no quarto; outra, expansiva, coletiva e irracionalmente explosiva, viagem no mundo.17 O poema “Desfile” é o balanço da acomodação burguesa de um homem maduro - ainda espantado com o vivido e no entanto cioso do desenlace bem-sucedido da sua trajetória (“[...] Tenho cicatriz./E tenho mãos experientes./Tenho calças experientes./Tenho sinais combinados”). Desencadeadas pela vigília, cenas e imagens de uma vida desfilam como uma preparação para a morte. O poema em versos heptassílabos regulares tem um impulso de balada com seu ritmo anestésico que iguala lembranças, coisas, imagens, no ir e voltar do tempo. A cadência do ritmo é um elemento acentuador do autocontrole que o sujeito manifesta ao fazer um retrospecto de sua vida que, a despeito da incerteza, passou com suavidade. Podemos também depreender que esse “Desfile” resume a perspectiva materialista de quem sedimentou “um certo modo de ver” (um poeta?) e que se prepara para a morte num conformismo não se sabe se lúcido ou autopunitivo: “O tempo fluiu sem dor./O rosto no travesseiro,/fecho os olhos, para ensaio”. Todavia, o patamar burguês e a experiência conquistados enterram no passado o jovem insubmisso, autodestrutivo e sem disciplina que ele foi, afastando-o de si como um outro: “o corpo era bem pequeno/para tanta insubmissão”. O jovem possuía um elemento de anarquia e força, antes de ser domado pelo emburguesamento, o que imprime à rememoração um elemento de dissonância e culpa. Aparadas as arestas da rebeldia, o adulto parece ter achado o rumo, enquanto o poema vai desnudando a fragilidade e a inércia da aparente estabilidade. É a mesma falta, roída pelo remorso, que ele sente em “Versos à boca da noite”: “Hoje estou só. Nenhum menino salta/de minha vida, para restaurá-la”. É curioso que a retrospecção desemboque em “Desfile” numa resignação rara em A rosa do povo, a qual envolve a própria poesia: “Se eu morrer, morre comigo/um certo modo de ver./Tudo foi prêmio do tempo/e no tempo se converte”.
Todavia a aceitação da finitude e mediocridade individuais em “Desfile” não implica melancolia, blue devils ou espírito saturnino, tão em moda na nossa clínica literária, porque a consciência do fracasso gera um remorso ativo e autocrítico, forte em reflexão, jamais solidário consigo mesmo e com sua classe social. O eu drummondiano é parte do que o conflito social tem de mais encarniçado e não se coloca em A rosa do povo a salvo de nada. O burguês que reexamina a vida e desconfia do próprio apaziguamento, reconhecível pelo smoking e pela carreira (“[...] mas tudo/se resolveu em dez anos”), age como potencial suicida que deseja naufragar na sequência das imagens novas e antigas e, assim, escolhe a morte e o silêncio. Drummond transforma a própria pequena história, despersonalizada nas suas referências autobiográficas, num balanço de sua classe e das possibilidades de seu tempo.
Mas há outro tipo de balanço existencial em A rosa do povo que permite rompantes violentos e reflexões desatinadas sobre a premência de desaprender o aprendido, tão inútil se tornou a lucidez ganha na madureza - refiro-me a “Idade madura”. O eu que fala para outros parece se explicar e prestar contas, desmente toda a aparente suficiência e serenidade do homem maduro pela revelação de uma fragilidade a mais completa. Dentro de um poema em que pulsam revolta e acomodação, a prestação de contas refere-se também aos usos que fez da poesia ao longo da vida. Situado no presente, o sujeito sente ódio de ser capaz de formular o feixe de contradições do que vivencia dentro de si mesmo e o que parecia mérito da poesia, saber formulá-lo, provoca um rodízio de atração e rejeição pela poesia, pela palavra e pela expressão. Entre crença e descrença, o balanço da vida confunde-se com um balanço da atividade poética, que pulveriza seu mundo, é anônima e se entrega à dispersão da cidade (“Mas eu sigo, cada vez menos solitário,/em ruas extremamente dispersas,/transito no canto do homem ou da máquina que roda [...]” ). A expressão desse balanço é quase irracional, envolve a explosão do grito, o desabafo da embriaguez e a imaginação do instinto e do aleatório - como muito antes antecipara Mário de Andrade ao comentar Alguma poesia: “Poesia feita de explosões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes, às vezes os versos, são explosões isoladas”.18 No mundo fragmentado em que lembranças se presentificam num fluxo associativo, impiedade e impotência, humano e maquínico, instinto e cálculo engolfam o sujeito. A suficiência burguesa aprofunda o sentimento de derrota pela proliferação caótica de identidades, cujo carrossel de contradições gira sem sair do lugar, reiterando a mesma e conhecida impotência. Nessa retrospecção, à véspera de uma explosão, tudo está vivo e indelével dentro do eu, pressionando-o sem trégua para que passe logo à ação (qualquer ação) e admita também o nonsense desta: “Dentro de mim, bem no fundo/há reservas colossais de tempo,/futuro, pós-futuro, pretérito,/há domingos, regatas, procissões,/há mitos proletários, condutos subterrâneos,/janelas em febre, massas de água salgada, meditação e sarcasmo”. Sem a resignação de “Desfile”, esse é um poema em que o vivido, todo ele, se tornou uma peça de acusação, colocando o sujeito entre o desânimo da completa fraqueza e certo automatismo de resistir custe o que custar, mas ainda assim capaz de inconformismos, correr riscos e passar ridículo: “Ninguém me fará calar, gritarei sempre/que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,/negociarei em voz baixa com os conspiradores,/transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,/serei, no circo, palhaço,/serei médico, faca de pão, remédio, toalha,/serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,/serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:/tudo depende da hora/e de certa inclinação feérica,/viva em mim qual um inseto”. Inseto significa pobre-diabo, e é o bicho que em “Áporo” cava kafkianamente com obstinação e cegueira à procura de saída. Mas inseto pode, nos versos de “Idade madura”, significar a menor partícula do tempo que metaforicamente desencadeia a vida - entendida aí como processo de dissolução e resistência, capaz de quebrar com ânimo mágico e explosivo a cadeia do passado e abrir o significado das palavras. Estou sugerindo que inseto (ou áporo) é a unidade de tempo da poesia drummondiana, concebida contraditoriamente como força e fraqueza, vida e morte, lucidez e insuficiência, sob um horizonte mesquinho que desafia a capacidade orgânica de resistir e sonhar de um bicho mínimo.
Tanto “Idade madura” quanto “Desfile” figuram os impasses da realização burguesa como impulsos paradoxais de autodestruição e desejos recalcados, uma arapuca que lhe veda as vias de escape. Ao longo dos anos 1930, o escapismo se tornou para Carlos Drummond de Andrade um problema intelectual a ser enfrentado poeticamente com suas contradições, negações e escamoteios num tempo escorregadio como o do inconsciente, atraído simultaneamente pelo passado e pelo presente. Ele se distanciou, como se vê, daquela fantasia coletiva que tomou a poesia modernista no começo dos anos 1930 e a que Mário de Andrade deu o nome engraçado de “vou-me-emborismo”: uma tentativa barulhenta, às vezes demagógica, de fugir aos enquadramentos e frustrações da vida burguesa, tentativa então assumida euforicamente por escritores que confessavam completa indisposição para a vida prática.19 Sugiro que as duas viagens - uma no quarto, outra no mundo - demonstram que o “vou-me-emborismo” tornou-se impossível. Os duros balanços do presente burguês, sistematicamente feitos por Drummond em A rosa do povo, contêm uma nota de desespero, inutilidade da experiência, lucidez da irresignação, que demostram o quanto a esperança de emancipação e liberdade já não estava tão firme na convicção daqueles escritores inconformistas, integrados à sociedade, ao Estado e, direta e indiretamente, convertidos em mentores de uma modernização imprevisível. O que tampouco os impedia de se contemplarem com autodesprezo, fúria e fantasias de autotortura e violência.
5.
Nesse movimento em que coletivo e individual, presente e passado, esperança e desalento coexistem e se cruzam, vou me deter em “Mário de Andrade desce aos infernos”, um elogio fúnebre da figura de Mário de Andrade no movimento modernista e de sua perseverança em totalizar todas as experiências de Brasil, em captar ecumenicamente a presença social e cultural das vozes do país. É uma homenagem ao mestre que iniciou Drummond na paixão pelo conhecimento do Brasil, que é também uma forma de autoconhecimento, um modo de ver com realismo e imaginação as vicissitudes de uma formação nacional inacabada. A ação exemplar de Mário representa um projeto cultural de ampla dimensão, voltado não só para o conhecimento científico e cultural do país, mas que, fundado na matéria amplamente popular, almejava uma unidade mais culta e atualizada, capaz de superar o processo da má formação, presa de tantas desigualdades e encruzilhadas, ao léu das colonizações e dos imperialismos. O ânimo geral era de deselitização, espelhamento mútuo, progresso moldado pelos próprios passos, testando as ideias da modernidade cultural no confronto com a experiência brasileira.
Lida nos seus augúrios, a morte de Mário é nesse poema um ponto de inflexão, ou madureza de um longo processo de esclarecimento sobre a lógica das dependências do progresso e sobre a capacidade de o país mestiço, saído da escravidão, se integrar ou resistir aos rumos do capitalismo. A ocasião fúnebre propicia a Drummond celebrar uma figura tão central no itinerário de sua vida e obra e, ao mesmo tempo, reconsiderar o projeto e a realização modernistas, seu alcance e legado. A rosa do povo é o modernismo, e a metáfora do abrir-se e despetalar-se da rosa marca o projeto e o fim de uma época, enquanto se consumam os primitivos e poéticos ritos fúnebres que conduzem o corpo de Mário por catacumbas e um rio infernal à maneira dos gregos, mas que não deixa de lembrar os meios de penetração usados pelos bandeirantes. Ofertada pelo amigo e mestre, a beleza delicada e frágil da rosa, agora do povo e do país, zelada em conjunto pelo grupo de “companheiros esparsos”, é atestada numa cerimônia de vitória contra a morte - uma rosa portanto eternizada na matéria indestrutível de “tuas palavras carbúnculo e carinhosos diamantes”.20
A rosa do povo modernista pertence à galeria de emblemas de esperança e solidariedade que habitam o tempo presente e que estão aqui representados por Carlito, Stalingrado após a vitória, a humanidade reiventada na luta antifascista, o elefante e outros que podem ser e não ser, tamanha incerteza os cerca. Drummond obstina-se tanto em se questionar e se negar, aparentando não ter maior estima por si e pelo que escreve, que esse fio de positividade se perde em meio aos demais sofrimentos e dilaceramentos autocríticos. Noutro poema, em que as referências à rosa do povo modernista dialogam diretamente com o universo de Mário, Drummond apresenta a própria obra como um fracasso: “Guardei-me para a epopeia/que jamais escreverei./[...] O que escrevi não conta./O que desejei é tudo”. “Cidade prevista” por conseguinte transfere o trabalho coletivo de construção da rosa para o próprio povo, uma delegação da utopia que não pôde ser realizada pelos modernistas: “Este país não é meu/nem vosso ainda, poetas./ Mas ele será um dia o país de todo homem”.
Assim como se espelha no corpo do morto, Drummond define a própria poesia a partir de seu vínculo com uma “viola desatinada”, a de Mário ou então a sua própria: “É preciso tirar da boca urgente/o canto rápido, ziguezagueante, rouco,/feito da impureza do minuto/e de vozes em febre que golpeiam/esta viola desatinada/no chão, no chão”. “[N]o chão, no chão” - a repetição musical do ponteio indica tanto o lado rente à vida dessa poesia, a sua ligação com a terra, com as jazidas insuspeitas na geologia, “enlace de noite,/raiz e minério [...]”, onde jazem os mortos, a herança ancestral e as esperanças da nova semeadura. Sabemos que A rosa do povo é um livro de mortos, com mortes e mortes a cada página, uma procissão de corpos que atravessam diferentes experiências, países e épocas.
Mas agora a imagem da rosa do povo parece desfeita e a aspiração modernista de transformar o país está em perigo, não só porque o amigo está morto, mas porque sua obra foi uma vitória individual. O exemplo do labor bem-sucedido de Mário não consumou o projeto coletivo de beleza e justiça, mesmo que sua obra continue enviando sinais e a experiência modernista faça contato com as gerações seguintes. São sinais todos frágeis, têm algo de uma alvorada indecisa, de um grito que ainda não foi ouvido, de um choro de criança. Ainda assim, vinda da obscuridade interior do poeta, a rosa se abriu à espera de uma sociedade que a confirme e a pratique, ou, na expressão de “Cidade prevista”, uma sociedade que alongue seu sentimento com gente simples e poetas populares.21 Todavia, o futuro da rosa é tão incerto quanto o destino que os rumos do capitalismo reservarão, depois da guerra, a um país em que a modernização recente não se completou, nem superou a má formação anterior. O impulso artístico-cultural do modernismo, que foi um modo de trabalhar a “nossa pesada herança político-moral”, para usar expressão de Roberto Schwarz, ficou inconcluso,22 como se agora só contasse com outras gerações às quais pudesse ser delegado o bom desse desejo igualitário e liberador. Ou, como lemos em “Cidade prevista”, a realização da utopia ficará para um futuro remoto: “Um mundo enfim ordenado,/uma pátria sem fronteiras,/sem leis e regulamentos,/uma terra sem bandeiras,/sem igrejas nem quartéis,/sem dor, sem febre, sem ouro,/um jeito só de viver,/mas nesse jeito a variedade,/a multiplicidade toda/que há dentro de cada um”. Digamos que A rosa do povo é concebida para entender também esse processo e para que a aspiração nacional da experiência modernista não se torne tão logo outro aguilhão de remorso, ou mancha de fracasso (remorso definido em “Carrego comigo” como um nó de liberdade individual e missão coletiva: “Sou um homem livre/mas levo uma coisa”). É o sinal da continuidade do passado, que corrói o desejo transformador de quem o carrega como uma condenação pesada contra a própria revolta, por ser fraca e anárquica. Mesmo que o remorso seja a nação do poeta, Drummond recolhe os sinais da experiência modernista em sua plenitude de possibilidades.
Mas “Mário de Andrade desce aos infernos” também nos aproxima de certos temas como o uso da herança, o sentido do legado e a reconciliação com o passado, tal qual outros diálogos com semivivos ou semimortos de A rosa do povo. O espectro de Mário está associado a uma casa que voa, viaja e navega, ocupando o Brasil inteiro com seu acolhimento de casa grande patriarcal, o que, sem forçar a nota, nos leva ao mundo gregário da família mineira e das oligarquias da República Velha.23 Uma sociedade em que a ordem da casa governa todo o destino e a figura clânica do pai, o maior de todos os eus, dirige os afazeres, pratica a lei e plasma as relações com sua autoridade inconteste. A forma fantasiosa e onírica da visão da casa da rua Lopes Chaves, multiplicadora de encontros e possibilidades, criadora de vasos comunicantes, reequilibraria a “pesada herança político-moral”, a qual no entanto reaparece com seu lado obscuro e secreto, se não tenebroso, nas relações familiares de Drummond.
A casa modernista é uma espécie de família expandida e depurada de personalismo e sem laços de sangue, situada numa paisagem brasileira desgeografizada, como a concebeu Mário. Por isso, a gente que a percorre o faz com uma liberdade nova, descobrindo na casa um coletivismo baseado na amizade, na curiosidade intelectual e na experimentação artística. A responsabilidade esclarecida toma, posso supor, o lugar da austeridade despótica do pai nesse esboço de socialismo brasileiro. Digamos que no território surreal da casa da rua Lopes Chaves surge uma outra sociedade, aberta à gente e à cultura do povo, na qual uma e outra podem se integrar ao lado dos intelectuais, artistas e vanguardistas, costurando as partes contrastantes e largadas de um país inconcluso - a “imundície de contrastes” de que falava Mário. Vale lembrar que em “Cidade prevista”, talvez o poema mais utópico de A rosa do povo, a promessa do socialismo e liberdade parece vir do imaginário modernista de integração social e cultural do país (“território de homens livres”, “uma pátria sem fronteiras,/sem leis e regulamentos”),muito mais que da política e da revolução. Essa visão de sociedade avançada também o é porque reforma o eu, livrando-o de atavismos e recalques, libertando o afeto, lançando uma noção de justiça que enfrenta a culpa proprietária e o fardo do passado. “Mário de Andrade desce aos infernos” ainda vai além ao celebrar a vitória materialista da obra feita - a rosa do povo - sobre a morte. No rito obscuro e poético de renascimento pela obra legada, o Orfeu manqué, que é Mário, desce aos infernos para completar sua humanidade inteiriça e irreligiosa.
Do ciclo de poemas do pai, interessa destacar “Como um presente”, em que o “secreto latifúndio” do país dos Andrades surge em confronto explícito de pai e filho. O poema sugere que a figura e a casa paternas pertencem a uma ordem mais tranquila porque extinta, uma ordem cujo autoritarismo se fundava no não dito, na precariedade das leis, no mutismo insondável. Descobre-se que a morte afinal esculpiu uma figura completa do pai, que, em vida, pouco se dava a ver ao filho, mas cuja autoridade avultava em cada gesto, cada expressão, cada objeto pessoal, cada hábito, como se no passado houvesse moldado com seu corpo o mundo existente. A figura do pai está envolta pelo desempenho do mando, absorvida pelo trabalho, pelo uso costumeiro da violência e do silêncio, com seu domínio absoluto sobre tudo e todos. Ainda que haja reverência e afeto, a simpatia está excluída porque é próprio do pai submeter e aterrorizar. Mas nessa elegia à aproximação com seu fantasma o poeta propõe, ao mesmo tempo que confessa, o desejo de fugir do torrão escravizador, uma estranha forma negativa de reconciliação e amor em que o entendimento finalmente se dá post mortem: “Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te/mas curioso:/já não estás, e te sinto,/não me falas, e te converso./E tanto nos entendemos, no escuro,/no pó, no sono”. Drummond reconcilia-se, chegando a uma forma de amar que não é uma obrigação atávica de casta, em que o eu escravizado ao outro do pai consegue afinal reconquistar e manifestar a sua autonomia, poupando-se da constante violência contra si mesmo. O encontro e o diálogo unilateral com o morto desenterram-no para o presente, visto que o filho necessita que o paternalismo lhe sopre um fio de vida e continuidade. Tal qual o pacto do “canto rápido, ziguezagueante, rouco,/feito da impureza do minuto/e de vozes em febre [...]”,que une o verso drummondiano à rosa do povo modernista, a reconciliação com o pai ocorre “no chão, no chão”.
São paralelismos difíceis de interpretar, mas, a despeito da obscuridade que nos desafia, gostaria de inscrevê-los nos impasses daqueles anos. São índices de que as esperanças trazidas pelo fim da guerra e as promessas de redemocratização são ilusórias? São sinais de que a transformação do país é incerta? É impossível dissociar a rememoração obsessiva de Drummond dos compromissos assumidos no presente que trabalham, queira-se ou não, para a permanência do paternalismo numa sociedade mais moderna e integrada. Pois, como sugeriu Mário de Andrade, a ditadura interna e a tragédia da guerra encobriram numa cortina de fumaça o crescimento dos “imperativos econômicos da inteligência”, em face dos quais não há muita margem de manobra para o intelectual inconformista e crítico.24 Recapitulando, a poesia estava na encruzilhada de duas alegorias de rosas desfeitas: a rosa do povo modernista e a rosa burguesa. A primeira se desfez antes de socializar-se, sem consumar seu alcance nacional; a outra, rica e comercial, delicada e perfumada, aurilavrada, já não pode contar com uma audiência burguesa e tampouco tem a audiência da cultura de massa, que só reconhece as rosas industriais - como se lê em “Anúncio da rosa”.
6.
Reconstituídos, em parte, o movimento e as perturbações de A rosa do povo, chegou o momento de tomar algum recuo para discutirmos o conceito de engajamento aí entranhado. Sabemos que a mais influente e polêmica teoria do engajamento, a de Sartre, não levou até o fim o engajamento da poesia, porque, adotando, via Mallarmé e Valéry, a teoria da não instrumentalidade da linguagem poética, colocou-a ao lado da pintura, da escultura e da música, fora do âmbito transitivo da fala e da prosa, do signo enfim. Para Sartre, a poesia se detém nas palavras com ânimo presentificador e objetivador que as transforma em coisas, ou frases-coisas. A linguagem poética apreende a estrutura das coisas de dentro, sem compromisso de expressão e comunicação, exibindo o que ele chama de “rosto carnal” da palavra, uma face que vale em si mesma, isto é, em sua materialidade sonora, verbal, sintática, gráfica, visual.25
Afirmando que, de início, na sociedade burguesa a poesia é uma finalidade em si, é a realização maior do desinteresse, essa teoria também descreve como os poetas na modernidade, às vésperas do século XX, passaram a assumir o fracasso como uma empresa heroica e miticamente exemplar para a afirmação existencial do homem contra as estruturas anônimas e gigantescas que o esmagam. Alienando-se nas palavras, a poesia conquistaria desse modo a liberdade na falta geral de liberdade, assumindo de antemão o risco e a impotência. Outra contraparte desse fracasso, também exposto como uma chaga social, seria o remorso do poeta moderno.
Pode-se discutir se os termos estético-políticos que Drummond impôs ao próprio engajamento têm alguma semelhança com a teoria sartriana. Já vimos que, para ele, a poesia não é um meio para a transmissão de mensagens, mas algo que, desesperadamente, comunica - conceito que pode nos devolver às palavras-coisas de Sartre. Ou nos seus termos: “O homem que fala está para lá das palavras, perto do objecto; o poeta está para aquém”, porque não se serve das palavras e deixa mallarmeanamente que estas tomem a iniciativa.26 Todavia também vimos: o arabesco drummondiano não destrói o estrato referencial e o significado das coisas tem tanta fisicalidade quanto o das palavras. Outrossim, a autocrítica burguesa desenvolvida em A rosa do povo parte de uma situação nacional bem configurada, o que altera com seu particular concreto os termos do engajamento sartriano, marcado pelo universalismo e pelo individualismo abstratos. Compõem esse particular tanto um âmbito interior bem mineiro, cheio de fantasmagorias e feridas não curadas, quanto outro mais exterior em que impera a atualidade do mundo, incluída aí a inércia brasileira. Aparentemente, o ódio de classe e a autoviolência são os mesmos da poesia europeia, mas a experiência histórico-social a que correspondem é outra. À maneira da lição de Mário de Andrade, Drummond radicaliza o seu individualismo para condená-lo. Ou seja, quebrando o impulso lírico, mas sem isolar a esfera subjetiva, nosso autor espessou o veio autoanalítico para enfrentar uma situação existencial de falta de liberdade e culpa bem particulares, em que a própria experiência se despersonaliza e se expande numa figuração objetiva. E, comparativamente ao remorso em Sartre, o remorso em Drummond infecciona suas relações com a sociedade, amiúde divididas entre a repartição e o prédio de apartamentos, a guerra à distância e a injustiça próxima, o que lhe dá uma palpabilidade nada filosófica e na sua objetividade extrapola a moral privada.
A despersonalização implica não absolutizar, como faz o existencialismo, a escolha, nem sacralizar a grandeza da decisão íntima. Drummond não idealiza a liberdade humana nem heroiciza os gestos, ao contrário, apresenta a dificuldade da mentalidade burguesa de sair de si, transformar-se, perder a crosta de autossuficiência, e tanto é seu ceticismo que descrê na própria transformação. Tampouco a ideologia política resolve os problemas do sujeito burguês, nem o libera dos compromissos passados. Nem a participação política nem a fé socialista atenuam a dureza das escolhas e a opacidade do mundo: “Este é tempo de partido,/tempo de homens partidos”.Portanto, a dimensão subjetiva é concebida socialmente e tende a explorar, com a consistência realista de detalhes oníricos, às vezes fantásticos, a guerra interior de um escritor de esquerda com sua bagagem modernista e formação patriarcal. Pode-se por isso dizer que o subjetivismo drummondiano, por desvendar a formação de classe dos sentimentos íntimos e secretos, se especifica numa trama histórico-social mais densa que a de um projeto individual existencialista.
Mais adiante, em 1961, Adorno desenvolverá longamente no ensaio “Engajamento” sua crítica às formas existentes de engajamento, sobretudo a partir do funcionamento do existencialismo no teatro de Sartre e da trajetória de Brecht, das peças didáticas às últimas realizações.27 Há um desacordo fulcral, diz Adorno, entre o engajamento concebido pelo escritor como programa político e a situação contemporânea sob a ameaça da bomba atômica, ou seja, um mundo rachado pelas hostilidades mútuas dos dois blocos e, no caso da Alemanha, anestesiada pelo milagre econômico. É uma conjuntura que, ao mesmo tempo que estimulava simplificações ativistas e manifestações aparentemente radicais de arte política, impedia que se abordasse a perda do primado do estético, a mercantilização total, o sofrimento recente da guerra e Auschwitz. Os dois lados não se enxergavam, nem percebiam como estavam implicados num combate mútuo fabricado pela propaganda e pela corrida nuclear. Adorno, ao contrário, apresenta nesse ensaio uma proposta dialética de pensar engajamento e autonomia como duas parcialidades culturais contemporâneas que não devem ser separadas e excluídas uma da outra. A formulação dialética de uma unidade desse tipo seria discutida mais abstratamente, em várias situações concretas, na constelação conceitual de sua Teoria estética, em que se tornam alternativas mais arraigadas à formação moderna da arte do que meras tendências conjunturais.
Tentarei transportar sumariamente algumas afirmações e/ou problematizações de Adorno nesse debate para o caso de A rosa do povo.
Uma das suas objeções à arte e à literatura engajadas é que elas praticam uma noção de significado pobremente referencial e unívoca, incapacitadas de expor o quanto a incerteza é o elemento central do capitalismo contemporâneo e, inelutavelmente, a experiência básica da literatura moderna (as inquietudes drummondianas correspondem precisamente à função da incerteza conceituada por Adorno).É o que abala os pressupostos do romance, do caráter dramático das personagens; é o que condena a imediatez das subjetivações da poesia lírica ou a superfície coesa em que correm as estórias realistas. Também ele demonstra como o primado da teoria, tão importante para a estética do engajamento, consome aos poucos o funcionamento complexo das obras e torna abstratos seus conteúdos. Adorno, na sua defesa da arte radical, retoma paradoxalmente a ideia de autonomia, dessa feita contra a integração ao mercado e a abstração da vida contemporânea. E desse modo procura uma formulação dialética que conserve tanto a negação esteticista da realidade quanto a experiência concreta da realidade numa tensão formal irresolvida, em que as marcas do real, o sofrimento, o terror apareçam juntos como mediação e problema para o impulso de autonomia, pois, como ele explica, “a separação da obra de arte da realidade empírica está ao mesmo tempo mediada por essa realidade”.28
Se trouxermos agora os dilemas exploratórios adornianos para o contexto da literatura brasileira, poderemos comparativamente mostrar certas estratégias da composição dos poemas de A rosa do povo para identificar o seu teor de engajamento e autonomia.29 O movimento discursivo do poema drummondiano se faz pela configuração da forma, independentemente de uma teoria ou uma filosofia pronta. Por isso, podemos sugerir que Drummond não sobrevaloriza nem subestima a forma, uma vez que os núcleos de sentido fundamentais do livro são inerentes a ela. Por exemplo, o sentimento de bloqueio e persistente perfuração que atravessa “Áporo”, transmutando alquimicamente o labirinto em orquídea, não depende de uma explicação anterior sobre os elementos envolvidos na operação, mas depende do fato de esse sentimento estar integralmente contido na redução ao soneto, portanto, numa equação límpida do que é obscuro. Digamos que Drummond, como o seu inseto, expõe com seu imaginário poético a cegueira que lhe foi imposta pelo presente, seus limites, seus bloqueios. Jamais personaliza a culpa, nem reduz o processo histórico a causas e a responsáveis fáceis de serem reconhecidos - notem, por exemplo, o que ele faz com a imagem do pai ou com o medo da morte no avião se convertendo em notícia.
No seu ensaio, Adorno se preocupa muito em dissipar o erro que é tomar a posição das vítimas e falar por elas, pois, ao transfigurar esteticamente o sofrimento, a arte logo se afasta dele, convertendo-o em espetáculo, como se a catástrofe, o campo de concentração, a perseguição fossem demonstrações de que a humanidade é imbatível e eterna na sua capacidade de resistir e sobreviver. Bastante prevenido contra a produção artística de esquerda que faz o elogio do humano em situações extremas, Adorno valoriza as obras que vinculam o feio, a perversão, o desespero à vida presente - sem transfigurá-los. Em suma, obras que falam de dentro, sem falso recuo, quebrando a ilusão estética da transfiguração. Ou, como adverte: “Mesmo quando o genocídio se torna propriedade cultural da literatura engajada, esta pode com mais facilidade continuar a obedecer à cultura que propiciou o crime”.30
Nisso tudo ressalta o dom que Drummond possui de encenar uma “exposição mitológica do eu” (a expressão é de Antonio Candido) como uma experiência do sofrimento, construída por uma estilização que nunca é estranha e insensível à voz que fala, o que talvez possa identificar sua poesia à arte radical na concepção de Adorno. Mas é preciso observar que a sua obra tem uma inserção nacional diversa ao articular uma atmosfera de autoesclarecimento e fundar uma negatividade sobriamente exemplar, que não agride nem subestima o público, dado o inacabamento da formação brasileira.
Outra vez, muitos anos após ter escrito um livro sobre A rosa do povo, cabe-me aqui validar a amplitude dessa experiência radical de engajamento estético-político, cujo risco dá consistência e fibra a uma poesia que se emancipou da estreiteza ideológica e poética e soube tirar proveito artístico do exame de seus limites e de sua ação, das estratégias de autoacusação, mas também buscar novas alianças de classe fora da pequena burguesia brasileira. Penso que a imaginação política necessária a essas alianças radica-se na invenção de comunidades novas, figuradas na galeria de pobres, loucos, trabalhadores, suicidas, párias, mulheres abandonadas, funcionários, soldados russos, gente de pé no chão, cantores tupis, violeiros e outros que povoam o horizonte de inconformismo e revolta de seu tempo.
Engajar-se nesse caso implica desconfiar do que se escreve, aceitar o mal-estar e a contradição de fazer poesia à sombra do mundo em chamas e em um país inconcluso, mas com coragem, muita coragem, de revelar temores e aflições, fraquezas e irresoluções, para assumir insubordinadamente uma moral literária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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- Pignatari, Décio. “A situação atual da poesia no Brasil”. In: ______.Contra comunicação. São Paulo:Perspectiva,1971.
- Ribeiro, Larissa Pinho Alves (Org.). Encontros: Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Azougue, 2011.
- Sartre, Jean-Paul. Situações II. Tradução de Rui Mário Gonçalves. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968.
- Schwarz, Roberto. “Um minimalismo enorme”. In: ______. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
- Simon, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática, 1978.
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Uma versão abreviada deste ensaio foi apresentada dentro do simpósio internacional “Poetry, War, and Citizenship: 70th Anniversary of Carlos Drummond de Andrade’s Arosa do povo” em duas ocasiões — na Princeton University, em abril de 2015,e na Universidade de São Paulo, em agosto de 2015 —, ambas a convite de Vagner Camilo e Pedro Meira, seus organizadores. Pude nessas oportunidades testar minhas hipóteses e refazê-las no curso das discussões e apresentações dos colegas, das quais muito me beneficiei. Meus agradecimentos a Vinicius Dantas e a Roberto Schwarz pelas leituras minuciosas e pelas muitas sugestões que me ofereceram.
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Já em Alguma poesia a guerra havia sido matéria de uma colagem mesclada de registros variados, escrita com galhofa, anticivismo e consciência da insignificância da história local, em clima bem diverso de A rosa do povo. Trata-se de fatos vividos com desconfiança e anti-heroísmo por experiência direta durante a Revolução de 1930 — uma revolução que não se acredita que vá alterar grande coisa (“Outubro 1930”).
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“[...] é sem dúvida curioso que o maior poeta social da nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o grande cantor da família como grupo e tradição. Isto nos leva a pensar que talvez este ciclo [de poemas sobre a família] represente na sua obra um encontro entre as suas inquietudes, a pessoal e a social, pois a família pode ser explicação do indivíduo por alguma coisa que o supera e contém” (Candido, 1995, p. 130).
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“[...] de um lado, a preocupação com os problemas sociais; de outro, com os problemas individuais, ambos referidos ao problema decisivo da expressão, que efetua a sua síntese. O bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que proveem umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo, têm como consequência uma espécie de exposição mitológica da personalidade” (Candido, 1995, p. 112).
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A título de informação, lembro que Drummond não incluiu nenhuma das líricas de guerra na sua Antologia poética, de 1962.
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Assinalo que no último poema do ciclo, “Com o russo em Berlim”, em meio à descrição da cidade retomada, a vitória enseja que o poeta pratique a costumeira projeção autocrítica.
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Graças à cuidadosa edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães (Andrade, 2012), conhecemos as datas das primeiras publicações dos dois poemas: “A noite dissolve os homens”, em julho de 1938, “Passagem da noite”, em 18 de outubro de 1942.
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A crítica ainda não estimou a poderosa influência da psicanálise e do surrealismo na concepção de rebelião na poesia de Drummond, cujos processos compositivos incorporaram com independência uma e outro, como nos esclarece o poeta: “Sim, o surrealismo ataca e subverte as bases psíquicas do mundo burguês: à lógica falsa do consciente, opõe o profundo sentido do subconsciente de nossa vida. Esse conceito, apoiado cientificamente na psicanálise de Freud, que tampouco se acha esgotada, reveste-se também de uma expressão dialética, e aí temos o surrealismo não apenas como seita literária, mas como atitude vital, meio de ação, instrumento de combate. Limpando-se de um certo béguin pelo ocultismo, que a meu ver poderia trazer a liquidação dos seus esforços por uma total liberdade de espírito, o surrealismo, com sua base psicológica e seu conteúdo sociológico, está apto a exercer um papel formidável na literatura dos tempos que virão” (Andrade, 1977).
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Andrade, 1949, p. 18. Há pouco tempo essa entrevista foi publicada em versão mutilada, na qual justamente a passagem foi omitida (ver Ribeiro, 2011).
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Vagner Camilo aborda amplamente as particularidades e as raízes históricas da culpa social na obra drummondiana, destacando a passagem da fase social à frustração do empenho político em Claro enigma (Camilo, 2001, p. 243-261).
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É nessa linha de questionamento antiliterário que Drummond escreve no “Prefácio” a Confissões de Minas: “Rapazes, se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, como todas as utopias avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. Já não é possível viver no clima das obras-primas fulgurantes e... podres, e legar ao futuro apenas este saldo dos séculos. Reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem o espetáculo novo de que estão participando” (Andrade, 1964, p. 506). Na conjuntura conservadora de nossos dias, a crítica retradicionalizadora e atrasadinha tem subestimado o impulso antiliterário de A rosa do povo em prol de uma valorização da neoclassicização de Claro enigma — como se o primeiro fosse simplesmente o anúncio do grande Drummond que virá...
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Antonio Candido assinalou em passagem admirável as implicações da forma do verso drummondiano: “[...] é preciso considerar também que a sua maestria [de Drummond] é menos a de um versificador que a de um criador de imagens, expressões e sequências, que se vinculam ao poder obscuro dos temas e geram diretamente a coerência total do poema, relegando quase para segundo plano o verso como unidade autônoma. Ele reduz de fato esta autonomia, submetendo-o a cortes que o bloqueiam, a ritmos que o destroncam, a distensões que o afogam em unidades mais amplas. Quando adota formas pré-fabricadas, em que o verso deve necessariamente sobressair, como o soneto, parece escorregar para certa frieza. Na verdade, com ele e Murilo Mendes o modernismo brasileiro atingiu a superação do verso, permitindo manipular a expressão num espaço sem barreiras, onde o fluido mágico da poesia depende da figura total do poema, livremente construído, que ele entreviu na descida ao mundo das palavras” (Candido, 1995, p.145).
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Como no passado inscrevi as tensões de A rosa do povo na tradição mallarmeana, acompanhando Décio Pignatari em “A situação atual da poesia no Brasil” (Pignatari, 1971, p. 91-109) e a crítica que, desde os anos1960,estavarenovandoaleitura da poesia modernista, aproveito para deixar uma nota autocrítica, pois, como se vê, afastei-me dessa linha de interpretação. Nesse sentido, também foram decisivas as observações feitas pelo próprio poeta, quando me disse que a sua paixão pela poesia de Paul Verlaine foi sempre maior do que um suposto diálogo com a magia verbal de Mallarmé.
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A análise de “Resíduo” foi pensada e redigida em colaboração com Vinicius Dantas.
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Outro modo de trabalhar o imaginário paternalista, assinalando como ele se reproduz e se atualiza na formação brasileira, pode ser lido no jogral arrebatador de “Caso do vestido”, em que o tempo adquire uma motricidade quase surreal, acentuando a parte de fantasia que há na realidade, e vice-versa, e cuja afinidade com o realismo maravilhoso do posterior romance latino-americano é grande. Lembraria que a falação da esposa traída nesse relato vero-imaginário tem um quê de devaneio nascido do trauma conjugal e da frustração sexual — parece ter ocorrido em tempo arcaico mas é contemporâneo, parece rural mas é urbano. O marido, protagonista dessa narrativa, pode perfeitamente não ter abandonado a casa, nem a traição se consumado tal como narrada pela imaginação alterada da mãe numa cultura de afetos travados, em que a perversão masculina cala as femininas.
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16
Andrade, 1964, p. 562.
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17
Simon, 1978, p. 136.
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18
Andrade, [s.d.], p. 33.
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19
Andrade, [s.d.], p. 30-32.
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Numa tese recente sobre A rosa do povo, meu orientando Marcelo F. Ferreira de Oliveira indicou que elementos como o carbúnculo, o rubi, o diamante, de cor vermelha, estão associados na tradição alquímica à panaceia perfeita de uma vitória sobre a morte e ao triunfo da transmutação dos metais vis em ouro (Oliveira, 2013, p. 169).
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Mas, no sistema do livro, a rosa do povo modernista também se opõe a outra rosa, aquela individualista e torneada em alta ourivesaria de “Anúncio da rosa”. Produto de muito lavor e perfeição, essa rosa poética já não se endereça a ninguém, pois não tem público nem admiradores “no começo da era difícil” em que “a burguesia apodrece”. O artesão-poeta se transformou, como se vê, num pregoeiro de uma rosa-problema, que ninguém sabe avaliar nem pode pagar, depois de passar por aflições, exílio e depurar seu artesanato. Obra única e aurática, a última rosa se desfolha e murcha em meio ao comércio de simulacros industrializados de uma “Rosa na roda,/rosa na máquina,/ apenas rósea”. O desalento dessa rosa burguesa, de um criador só e comerciante, opõe-se à esperança coletivista da rosa do povo.
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Schwarz, 2012, p. 142. Diferentemente de Roberto Schwarz, uso sua boa expressão para ressaltar o empenho crítico e ilustrado do modernismo, porque não penso que a euforia inicial com a modernização e a confiança nas possibilidades nacionais fossem impedimentos para a compreensão do funcionamento cultural e social brasileiro nem considero que o modernismo da primeira hora nos anos 1920 tenha sido tão inocente e apologético. Alguns modos de resolver, repensar e problematizar essa pesada herança já estavam no nacionalismo pitoresco e provisório de Oswald e Mário, e a poética de A rosa do povo só chegou aonde chegou graças ao objetivismo dos fatos e ao teor perverso da relação eu e mundo, tão marcantes no modernismo exuberante dos primeiros livros de Drummond.
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Como ele mesmo confessa, Drummond nunca esteve na casa da Lopes Chaves, e talvez por isso transporte o ambiente efusivo e a movimentação das noitadas no apartamento de Portinari (“a casa é um navio solitário na noite de Laranjeiras”) para a polidez tradicional da casa paulistana (ver Andrade, 1964, p.542).Em suma, essa projeção retrabalha internamente as relações do que é moderno com o que é tradicional.
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24
Andrade, [s.d.], p. 187.
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25
Sartre, 1968, p. 61-67.
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26
Sartre, 1968, p. 62.
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27
Adorno, 1992, p. 76-94.
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28
Adorno, 1992, p. 89.
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Com distância crítica, retomo a ideia de uma poética do risco que, em meu livro Drummond: uma poética do risco, questionava a tese sartriana de que o fracasso da poesia, ao contrário do êxito comunicativo da prosa, inviabilizaria o engajamento poético. Situava então a posição de A rosa do povo entre autonomia e engajamento, entre comunicação e fechamento, entre transparência e opacidade, com sua linguagem de alto risco ainda capaz de totalizações. Acho hoje imprescindível ampliar a ideia de risco e especificar o teor contraditório de suas oscilações entre politização e desesperança, revolta e desencanto na ação, autonomia poética e compromisso transformador, em suma, para mostrar de que maneira as tensões formais se alimentam de conteúdos histórico-sociais particulares. Operação essa que não cheguei a completar nos anos 1970, dada a técnica de análise baseada no formalismo russo.
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30
Adorno, 1992, p. 88.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Nov 2015
Histórico
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Recebido
09 Out 2015