Open-access Ideologias da forma

Ideologias da forma

Entrevista com Yve-Alain Bois

RESUMO

Reconhecido por reavivar a polêmica sobre o formalismo, o crítico e historiador da arte Yve-Alain Bois discute nesta entrevista questões relativas à arte contemporânea. O autor reflete sobre o contextualismo na crítica de arte, tece considerações sobre as disputas no meio acadêmico, problematiza o conceito de pós-moderno e relembra o convívio com a artista plástica brasileira Lygia Clark.

Palavras-chave: Lygia Clark; formalismo; estruturalismo; arte contemporânea; Clement Greenberg

SUMMARY

Recognized for reviving the polemic about Formalism, art critic and historian Yve-Alain Bois discusses in this interview important issues related to contemporary art. Bois reflects about the contextualist art criticism, points out academic blackmails, puts into question the concept of post-modern and remembers his relationship with the Brazilian artist Lygia Clark.

Keywords: Lygia Clark; Formalism; Structuralism; contemporary art; Clement Greenberg

Yve-Alain Bois se propõe a realizar uma tarefa que, apesar de parecer justa e coerente, carrega o inconveniente fardo dos desentendimentos. Ele procura trabalhar com uma certa noção de limite entre forma e sentido, buscando os significados dessa relação. Parece simples, mas tem gerado muitos mal-entendidos: alguns o consideram um neo-formalista em busca da expiação do formalismo greenbergiano. Rebatendo essa crítica, ele afirma que seu formalismo associa o estruturalismo de Roland Barthes, com quem estudou em Paris nos anos 1970, aos preceitos de Bertolt Brecht, para quem forma e conteúdo são inseparáveis.

O currículo de Yve-Alain Bois soma trabalhos bibliográficos sobre artistas como Henri Matisse, Pablo Picasso, Piet Mondrian, Ellsworth Kelly, Roy Lichtenstein, Robert Rauschenberg, Ed Ruscha, Donald Judd e Barnett Newman a trabalhos como curador em uma retrospectiva sobre Mondrian, em exposições sobre a relação entre Matisse e Picasso e na importante mostra L'informe: mode d'emplois, realizada com Rosalind Krauss no Centre Georges Pompidou (Paris), que trouxe novos significados a vários conceitos da arte moderna. Além disso, foi professor de história da arte na Universidade Harvard por mais de 15 anos e agora é membro do Instituto de Estudos Avançados, uma instituição privada e independente ligada à Universidade Princeton que já acolheu estrelas como Albert Einstein, John von Neumann, Kurt Gödel e Erwin Panofsky. Mais conhecido como The Institute, trata-se do próprio olimpo acadêmico, lugar onde se deve buscar "desinteressadamente" o saber, sem nenhuma obrigação, em princípio, de ensinar ou mesmo de publicar. Para completar a soma curricular, é co-editor da revista October, talvez a mais influente publicação sobre artes e novas mídias dos nossos tempos.

Yve-Alain Bois nasceu em Constantine, na Argélia. Depois de estudar em Paris, mudou-se para os Estados Unidos, nos anos 80, onde começou a lecionar e encontrou um universo teórico bem particular (e ao mesmo tempo trivial), contra o qual resistiu energicamente: o dos dogmatismos acadêmicos. Em seu livro Painting as model (MIT Press), defende uma posição contrária a uma série de chantagens (blackmails) intelectuais, entre elas teorizar em excesso ou ser contrário à teoria; as obrigações de ser antiformalista e de oferecer uma explicação sociopolítica; e uma espécie de sintoma que foi denominado por Barthes de "assimbolismo", ou seja, a incapacidade de perceber as múltiplas possibilidades de significação de uma obra. Refere-se aqui à influência da iconologia ao modo de Panofsky, que persegue uma interpretação com sentido unívoco da obra. Assim, partiu para a defesa do formalismo, mas não do formalismo de Clement Greenberg, e sim do formalismo russo de Iuri Tinianov e Roman Jakobson, lembrando que a forma é sempre ideológica. Parte desses argumentos está publicada no artigo, traduzido para o português, "Viva o formalismo (bis)" — em Clement Greenberg e o debate crítico (Jorge Zahar) —, no qual também comenta a chantagem da psicocrítica, que faz Picasso mudar de estilo cada vez que muda de mulher.

Seu livro mais recente, Art since 1900 (Thames & Hudson), escrito com Rosalind Krauss, Hal Foster e Benjamin Buchloh, todos da revista October, tem suscitado aclamações, mas também muitas reclamações. Elogiado pelo seu formato inovador, com minicapítulos que evocam a dialogia intertextual, é também acusado de ser um manual de oficialização de uma arte "October", o que traz de volta os fantasmas do modernismo oficializado por Greenberg.

Uma pequena parte desta entrevista foi publicada no caderno "Mais!", da Folha de S.Paulo, em 6 de fevereiro de 2006. Mas muitos comentários importantes sobre arte e, principalmente, sobre sua relação com Lygia Clark ficaram de fora. Com a publicação integral, pode-se não apenas compreender seu ponto de vista sobre a obra de Clark mas também analisar um deslocamento que talvez tenha sido crucial para o jovem estudante francês: do Mondrian como "monge" para a estrutura de Mondrian, do clichê psicocrítico ao próprio formalismo estruturalista. Em outros assuntos abordados na entrevista, como as bienais, a pós-modernidade e os estudos culturais, pode-se também perceber sua luta em bancar aquilo que considera importante e que pode facilmente ser desprezado em nome de modismos.

Desde que saiu de sua residência em Cambridge (Inglaterra), onde mantinha obras de Matisse e Lygia Clark e se mudou para uma fazenda na região de New Jersey, nos EUA, Yve-Alain Bois tem falado com muito carinho de seu encontro com "Lygiá" (com acento francês), sobre quem tem escrito com certa freqüência (na October, na Artforum, em catálogos). Sobre aquilo que não compreende em sua obra, principalmente os trabalhos finais, tem guardado um significativo silêncio, com respostas e textos evasivos, que consideram a possibilidade de um "não-sentido". (Jane de Almeida)1

Jane de Almeida —O senhor disse que em sua juventude, em Paris, interessava-se especialmente pelos artistas latino-americanos. Além do exotismo da situação e das longas conversas com Sérgio Camargo e Lygia Clark, do que mais se recorda? O que ainda permanece como referência para o senhor, como historiador da arte?

Yve-Alain Bois — Lygia Clark é quem realmente permanece. Conheci os artistas latino-americanos ainda muito jovem, quando tinha 14 anos, por meio de Jean Clay, na época um crítico de arte muito famoso em Paris. Ele era defensor da arte cinética e me apresentou a [Jesus-Raphael] Soto, a Carlos Cruz-Diez, a um grande número de pessoas. Muitos deles eram latino-americanos, mas em princípio não havia brasileiros, porque Lygia ainda não estava em Paris. Eu assistia a todas as exposições e visitava muitos artistas. Alguns deles eram bons, outros nem tanto.

Quando conheci Lygia, dois ou três anos depois, eu já havia perdido o interesse por esse tipo de arte — e creio que Jean também. Ela deve ter desempenhado um papel significativo ao dizer a Jean que aqueles trabalhos eram meros gadgets. Isso deve ter sido importante em sua própria educação, embora ele fosse 15 ou 20 anos mais velho que eu. Lygia foi muito importante na minha educação artística.

Jean Clay fundou o periódico Robho, e o primeiro número foi quase inteiramente dedicado à arte cinética. Na penúltima edição, em 1968, foi publicado um grande dossiê sobre Lygia Clark. Na última, publicada, acho, em 1969, havia também um pequeno artigo que eu mesmo escrevi sobre Lygia, além de um texto escrito por ela, que eu ajudei a verter para o francês. Essa edição realmente marcou a despedida definitiva de Jean Clay do "cineticismo". Ele também era muito mais politizado naquele tempo, e havia muitas coisas politicamente interessantes na época. Por isso, essa última edição foi completamente diferente. Depois disso, a publicação terminou.

Lygia também deve ter representado para ele, de um certo modo, um meio de se livrar da arte cinética, que havia se tornado extraordinariamente comercial. Havia uma galeria em Paris, chamada Denise René, que funcionava como um tipo de centro para a arte cinética e que fez grande sucesso na segunda metade dos anos 60. A galeria forçava os artistas a se repetirem, fazendo objetos vendáveis, e deliberadamente ignorava suas propostas mais interessantes. Elas foram ficando piores, e é incrível como o movimento se esgotou rapidamente.

Lygia chegou com uma atitude mental inteiramente diferente. Eu a conheci quando ela estava voltando de Veneza, depois de expor na bienal daquela cidade. Ela acabara de chegar, e seu apartamento estava quase vazio (pouquíssima mobília, nada nas paredes), a não ser pelo monte de caixas, pois ela estava recebendo suas coisas de Veneza. Lygia estava muito deprimida, porque seu ex-marido havia falecido naquela época. Acho que tinha ficado traumatizada com o comercialismo que havia visto em Veneza, e, além disso, o ano de 1968 foi um momento politicamente complicado. A edição da Robho dedicada a ela ainda não havia saído, mas eu tinha visto algumas fotos e lido alguns textos dela, que Jean havia me dado, e queria conhecê-la. Quando Jean disse a Lygia que eu iria telefonar — e Camargo também — ela deve ter ficado um pouco intrigada com a idéia de que um adolescente francês queria conhecê-la. Eu tinha 16 anos na época e morava em Toulouse, onde fazia bicos, como lavar automóveis. Pegava o trem noturno para Paris toda vez que conseguia guardar dinheiro suficiente para o bilhete.

Quando fui visitá-la, pensei que não ficaria mais que meia hora por lá, porque ela tinha dito que estava um pouco doente. Então começou a abrir suas caixas, empurrando as coisas para mim. Recordo que a primeira era uma pedra com um airbag. Ela soprou o saco, o colocou em minhas mãos — lembro-me de ser quente e muito delicado — e equilibrou uma pedrinha no canto, de modo que a menor pressão de minhas mãos fazia a pedrinha subir e descer. Havia vários tipos de pedra, com elásticos, em cima da mesa.

Então ela começou a desempacotar todos os Bichos, todas aquelas coisas como Respire Comigo — foi extraordinário para mim, porque pude vê-la mergulhando na coisa. Fiquei fascinado.

Depois disso, passei a visitá-la toda vez que ia a Paris, até que fui passar um ano na América, para participar de um programa de intercâmbio estudantil. Começamos a nos corresponder, mesmo que seu francês ainda não fosse tão bom.

O senhor ainda possui essas cartas?

Sim. Não tantas quanto gostaria. Eu provavelmente joguei algumas fora, mas guardei muitas outras. Várias delas são bem interessantes. Então, quando voltei, após passar um ano miserável em Pau, para onde meus pais haviam se mudado, iniciei o processo de admissão para estudar na Escola de Altos Estudos, com Roland Barthes. Foi então que fui para Paris e pude realmente conhecer Lygia melhor. Por estranho que pareça, isso está indiretamente relacionado a seu processo de psicanálise.

O senhor enxerga alguma influência lacaniana em Lygia Clark? Porque parte do trabalho dela se assemelha à topologia lacaniana do inconsciente.

Não. Ela passou longos períodos de sua vida fazendo análise, sempre com analistas muito conhecidos, mas não gostava de Lacan. Ela tinha feito análise com Daniel Lagache, nêmesis de Lacan, durante sua estadia anterior em Paris. Seu analista naquela época era Pierre Fédida, então membro do grupo de Laplanche e Pontalis. Fédida morava em uma pequena rua, onde também vivia Miterrand e onde eu possuía um quarto. Lygia costumava ver Fédida cinco vezes por semana e almoçar num pequeno café na place Maubert, por isso eu a via o tempo todo. Ela comia sempre o mesmo prato, com dois belos ovos fritos, o que não devia ser muito bom para sua saúde, por causa do colesterol. Nos finais de semana, seu apartamento estava sempre aberto para os amigos e, quando estava deprimida, me chamava para jogar baralho. Aos domingos, ela sempre dava uma pequena festa, muitas vezes fazia uma feijoada. Às vezes me pedia para ajudar com algumas coisas, até mesmo comprar as coisas na feira. A televisão francesa, naquela época, tinha apenas dois ou três canais e, aos domingos à noite, passava filmes. A programação geralmente era extraordinária, brilhante mesmo. Vimos muita coisa ali. Recordo-me de A sala de música [1958], de Satyajit Ray, que era fantástico. Acho que é um dos filmes mais belos que já foram feitos. Quando o filme era muito entediante, nós dizíamos: "O.k., vamos jogar baralho outra vez, ouvir música ou fazer qualquer outra coisa".

Mas ela nunca usava filmes em seus trabalhos.

Não, mas ela sabia muito sobre filmes. Seu gosto era bastante estranho. Ela abriu meus horizontes, porque minha educação, em termos de cinema, era muito nouvelle vague. Eu era um pouco dogmático, mas não tanto quanto os Cahiers. Os Cahiers du Cinéma naquela época haviam se tornado maoístas, completamente ridículos.

Lygia me fazia assistir a filmes que provavelmente jamais teria visto por conta própria, filmes antigos de Hollywood. Ela conhecia absolutamente tudo de cor. Gostava especialmente de A Condessa descalça [1954], de Joseph Mankiewicz, com Ava Gardner.

Por isso, nós fomos ver muitos filmes. Lembro-me de arrastá-la para ver diversos filmes de que ela realmente não gostava. A cerimônia [1971], um dos primeiros filmes de Nagisa Oshima, por exemplo, ela detestou. Nossos gostos eram por vezes diferentes, mas ela estava sempre lendo e discutindo as coisas. Ela me ajudou a fugir completamente de uma interpretação muito rígida e fraudulenta da abstração, em especial de Mondrian, figura dominante na Europa de então. Foi ela quem me pôs na trilha de um Mondrian que nada tem a ver com aquele monge neoplatônico, mas que era mais algum tipo de destruidor antiformalista.

Essa perspectiva foi importante para o senhor?

Sim, foi uma virada total, porque para mim Mondrian foi um dos primeiros artistas de quem gostei, quando tinha 14 anos, e foi ele quem me levou a descobrir a arte. Topei com um livro de Michel Seuphor, que foi em grande medida responsável por aquela idéia de Mondrian, o Monge, e foi o primeiro grande livro sobre o pintor, publicado na década de 1950. Custava muito caro para mim na época, então pedi a meus avós de presente quando fiz a crisma. Só então pude finalmente lê-lo. Como foi o primeiro livro de arte que li, aceitei toda a retórica, até mesmo cheguei a falar com Seuphor.

Mas Lygia mudou totalmente minha visão a respeito desse tipo de abordagem. Ela também achava [Joseph] Albers surrealista e não sabia, assim como eu, que algumas outras pessoas pensavam o mesmo (estou pensando, por exemplo, no crítico de arte americano Gene Swenson). Eu nunca tinha pensado em Albers como surrealista, mas, quando ela explicou, fez sentido para mim. Ela também me fez compreender que a postura adotada na época (especialmente por Seuphor) entre o gesto e a geometria era simplesmente falida intelectualmente. Foi ela quem me apresentou ao trabalho de Martin Barré, sobre quem acabei escrevendo um livro. Ela era muito aberta em relação a coisas que não tinham nada a ver com seu próprio trabalho. Sabe, minha cultura artística era grande para um garoto daquela época, mas ainda assim era muito limitada, e ela me abriu a cabeça para muitas coisas. Além disso, tínhamos discussões intelectuais sobre muitos assuntos. Eu estava lendo sobre o estruturalismo, o pós-estruturalismo... Agora estou falando sobre uma época um pouco posterior, no início dos anos 1970, quando fui viver como estudante em Paris. Eu ainda me entusiasmava muito com aquilo, mas ela não estava interessada. Ela preferia Merleau-Ponty, sobre quem conversamos muito, mas me fez ler Winnicott e outras coisas do gênero.

Como o senhor vê o trabalho de Lygia hoje?

É complicado, porque há duas partes em seu trabalho, e não sei o que fazer com a parte mais recente. Sabe, esse filme que nós vimos, Memória do corpo, de Mário Carneiro, simplesmente não sei o que fazer com ele. Algo de que estou absolutamente certo é que ela não iria querer que fosse exibido em um contexto artístico, porque não seria a melhor maneira. Acho os trabalhos de sua primeira fase fantásticos. E existe uma lógica mesmo perto do fim. Percebe-se essa lógica pela maneira como o trabalho decorre da parte inicial, mas simplesmente não sei o que fazer com o final dele. Vejo que há um desenvolvimento. Pode-se ver isso das coisas geométricas aos Bichos, aos Trepantes, ao Caminhando. Percebe-se uma evolução gradual fora do objeto e para dentro de algum tipo de prática e para algum tipo de trabalho coletivo que ela fez em Paris, na Sorbonne. Isso era extraordinário na época, e ainda é impressionante que essas coisas tenham acontecido. É fácil entender por que o trabalho dela acabou, um pouco, se tornando uma espécie de mitologia. Porque, francamente, é fantástico. Chamo de "posterior" o trabalho que ela fez depois, que era terapia. Essa é a parte com a qual realmente não sei o que fazer. Mesmo antes disso, todas aquelas coisas que ela fez e que ainda não eram terapia, eu não sei do que elas tratam de fato. Não eram performances, porque não havia espectador. Ela chamava aquilo de "as aulas", mas não eram aulas.

O senhor acha que o exílio voluntário do mundo da arte foi também uma reação contra o mercado de arte? Foi uma maneira, para ela, de ser uma alteridade como artista?

Bem, acho que o mercado de arte é algo muito corrupto e que ela nutria uma certa aversão à Bienal de Veneza. Mas não me parece que seja essa a causa principal. Acho que a causa principal é simplesmente uma espécie de lógica do argumento. Você passa do Plano para os Bichos, e o objeto torna-se interativo com o espectador — mas ela não usava essa palavra, ela usava "participante" — e, num certo momento, o objeto deixa de ser necessário. O principal estava na interação entre o participante e o objeto, que vai se tornando mais um acessório de palco que qualquer outra coisa. Então, isso é lógico, muito coerente, creio eu. E todo mundo vem escrevendo sobre isso. Ela passa por um limiar quando decide fazer disso uma espécie de "cura" ou algo do gênero. E eu não sei, simplesmente não sei — quero dizer, não faço idéia — se isso tem alguma validade como terapia. Reservo meu julgamento. Acho que seria preciso uma boa discussão com um psicanalista sobre isso, porque não sei o que pensar a respeito. Parece-me um pouco como brincar com fogo. Você não sabe o que faz, mas os psicanalistas brincam com fogo o tempo todo, embora às vezes a coisa termine mal.

Vamos falar sobre formalismo. O senhor sempre foi identificado, tanto pelos amigos como pelos inimigos, justa e injustamente, de maneira positiva ou negativa, como formalista. O que significa seu formalismo?

Minha formação é estruturalista, Barthes foi meu professor e, basicamente, a idéia por trás dessa forma de crítica e desse modo de análise é que não se podem separar forma e conteúdo, pois essa é uma separação equivocada, inexistente. A forma sempre carrega um significado, e o significado mais profundo, ou mais importante, está sempre no nível da forma, não no nível do referente ou do conteúdo iconológico. Digamos que a forma da Flagelação, de Piero della Francesca, a perspectiva monocular, seja mais importante que a representação da flagelação para a análise do que a arte queria dizer naquele tempo. Ou tomemos outro exemplo: a forma de uma Madona de El Greco e o mesmo tema, Madona e Filho, de Bellini. Apesar de a cena ser exatamente a mesma, as telas são completamente diferentes, e seus significados são totalmente diferentes. Quero dizer, os dois personagens são exatamente os mesmos, a Virgem Maria e o Filho. Porém, enquanto no caso de El Greco há essa pessoa atormentada, que está prestes a se dissolver em chamas, no outro, a Madona vai se tornar um grande manto protetor do mundo.

Barthes e Foucault foram fortes defensores do formalismo, ao contrário do que as pessoas pensam. Mas foi também por meio de Barthes que os formalistas russos foram traduzidos na França. Não diretamente por ele, mas por seus alunos, como Todorov e, um pouco mais tarde, Kristeva. Ela também traduziu Bakhtin, que, por sua vez, inclui críticas ao formalismo, mas ainda assim integra o mesmo grupo epistemológico. E, para Barthes, havia também Brecht, como alguém profundamente interessado na função ideológica da forma.

Mas eles fazem parte de um formalismo europeu, e então o senhor se mudou para os EUA e encontrou o formalismo greenberguiano...

Sim, e o interessante sobre o formalismo de Greenberg, sob o ponto de vista francês, era o fato de ele ser bastante preciso naquilo que tinha a dizer sobre trabalhos de arte, muito embora eu hoje pense que isso não seja verdadeiro, quando olhamos para esse fato em detalhes. Enquanto na França daquele tempo a crítica de arte era pura asneira, escrita por poetas que simplesmente não sabiam sobre o que estavam falando. E ainda é exatamente a mesma coisa, por sinal. Muito de nossa atividade crítica na América hoje em dia também ocorre do mesmo modo. Mas Greenberg era quem se opunha, na América, à turma beletrista da Art News, a Thomas Hess e a pessoas como essas, que ainda são muito poderosas. Ainda hoje temos Dave Hickey, crítico e curador de arte, que escreve para Art in America e The Village Voice, e Peter Schjeldahl, da revista New Yorker. É absolutamente sem consistência, não há nada lá. Quero dizer, nenhum rigor, nem na descrição nem na interpretação.

Então, Greenberg costumava dizer: "O.k., eu vou descrever". E ele era razoavelmente bom em certas coisas, mas lentamente compreendi que havia dois pontos que eram um perigo. Um deles era que ele não estava interessado de modo algum no processo, no próprio material das obras de arte. Na verdade, ele freqüentemente cometia erros inacreditáveis no tocante à descrição do material. Quando ele descrevia uma pintura, poderia estar descrevendo uma fotografia: para ele a forma não incluía a matéria. Isso está relacionado à sua ideologia, que gradualmente cresceu e se consolidou no começo dos anos 50. Uma interpretação muito mais estreita do que a pintura deveria ser. E também está relacionado à sua idéia de "opticalidade": um modo de ilusionismo equilibrado, que desemboca em uma série de interpretações equivocadas de sua parte, mas também em uma tendência muito forte. Ele sempre agiu como se estivesse descrevendo, mas não estava. Sempre disse que não estava prescrevendo, mas estava. Mas, em comparação com a mediocridade da crítica francesa daquele tempo, era atordoante ler Greenberg. Quando eu estava fazendo o jornal chamado Macula, nós publicamos todos os textos de Greenberg sobre Pollock. Seu cânon realmente só se solidificou em 1955 ou 1956, mas em seus primeiros trabalhos ele não sabia o que fazer. É maravilhoso vê-lo lutando com Pollock, sem saber o que fazer. O all-over tornou-se esse tipo de grande marca do panteão de Greenberg. Bem, em princípio, ele não estava tão certo de que isso fosse uma boa idéia. Foi muito interessante para nós descobri-lo um pouco mais tarde. O mais divertido é que, quando publicamos esse material na França, no meio dos anos 70, muitos de nossos amigos americanos disseram: "Vocês estão loucos?!". Naquele tempo, Greenberg havia se tornado politicamente muito reacionário, havia sido acusado de corrupção, em conluio com o mercado.

Falando sobre o que o senhor escreveu sobre os blackmails acadêmicos, seria o contextualismo uma forma de chantagem? Quando o senhor escreveu seu livro Painting as model, não considerou o contextualismo exatamente uma chantagem, mas tem sido interpretado dessa forma.

Quando vim para a América para ensinar, no início dos anos 80, havia uma moda realmente estranha na academia, uma fascinação pelo desenvolvimento intelectual francês do final dos anos 60 e dos 70, freqüentemente apelidado de La pensée 68'. O que me marcou profundamente foi que os estudantes americanos (e não raro seus professores) devoravam muito rapidamente textos complexos de Lacan, Derrida, Lyotard, Althusser, Kristeva, Barthes, Deleuze etc. e colocavam essas pessoas no mesmo saco, fazendo um tipo de caldo disso tudo. Mas, conforme eu havia testemunhado na França durante meus anos de estudante, esses autores não estavam exatamente em concordância uns com os outros. Bem, não apenas esses estudantes americanos citavam todos esses pensadores como um todo, como se eles possuíssem uma voz comum, mas também se sentiam na obrigação de citar essa enorme massa textual. Coisa que nenhum trabalho daria conta sem zilhões de citações dessa vasta e complexa série de textos, que tinha sido lida demasiadamente rápido para uma digestão completa. Isso era puro fetichismo, um tipo de invocação desnecessária.

Isso realmente me faz pensar no que Barthes disse, em sua aula inaugural no Collège de France: a língua é fascista porque ela nos força a dizer coisas e a ela enviá-las de uma certa maneira. E um certo tipo de história da arte social tinha o mesmo tipo de estrutura castradora. Por que eu deveria ler uma centena de páginas sobre a história da lavanderia no século 19 para entender Degas se em cinco parágrafos eu poderia perceber que as lavadeiras eram exploradas, pobres e tomadas por escravas sexuais? Não precisamos aprender tudo sobre a sociologia e a história da lavanderia para dizermos algo relevante sobre as pinturas de lavadeiras feitas por Degas. Mas havia um período em que, se não fizéssemos isso, seríamos considerados estetas reacionários.

Mas, às vezes, parece que o senhor tem solicitado cada vez mais o contexto.

Certamente, porque sou um historiador. Estou interessado nas condições de possibilidade dessa ou daquela arte nesse ou naquele tempo. O que eu não concordo é com a noção de que haja uma relação imediata entre o contexto social e a arte que é produzida. Foucault também era contra a idéia de uma completa e imediata similitude. Existe uma mediação, e devemos descobri-la. Não podemos fazer essa descoberta até que tenhamos uma forte análise estrutural do próprio trabalho, do modo como ele significa. E não é o referente que nos dará uma pista de sua significação. O significado não é o referente; ele é apenas o nível superficial. Ele é parte da estrutura do significado, mas a menos interessante de muitas maneiras, a menos reveladora. O que é a significação estrutural? Como ela funciona? O que fiz em trabalhos mais recentes parte de uma concepção mais bakhtiniana do trabalho de arte se dirigindo ao contexto mais diretamente, como em um diálogo. Penso que o livro sobre Matisse e Picasso seja mais bakhtiniano nesse sentido.

E o conceito de pós-modernismo? É chantagem?

Não, não creio que seja chantagem, mas sim que foi equivocadamente pensado. Trata-se de um conceito cozido às pressas, por pessoas que não pensavam muito. Pegou. Porque era novo. Foi interessante o modo como ele veio à tona, em dois tempos e campos diferentes: primeiro seriamente, na arquitetura, área em que o conceito de modernismo não existia naquele tempo. Depois, na arte — quero dizer, na América —, o conceito de modernismo foi roubado por Greenberg. Ou seja, o que as pessoas entenderam por modernismo era Greenberg. E o que Greenberg quis dizer com esse conceito acabou sendo, nos anos 60, basicamente uma soma de quatro ou cinco artistas que ele admirava, apenas isso. Conseqüentemente, tudo o mais foi denominado de pós-modernismo, por contraste ou em reação a Greenberg. Então esse é um conceito que se tornou muito vazio. E ficou ainda mais vazio com as pessoas que acreditavam estar pensando sobre ele, porque elas fizeram uma incrível generalização.

Quando lemos o volumoso livro de [Fredric] Jameson, que é uma espécie de Bíblia sobre o assim chamado pós-modernismo, sua descrição é tão extensa que não entendemos mais o que é moderno. Se Godard é pós-moderno, se Joyce é pós-moderno, então o que é moderno? Quero dizer, o conceito torna-se absurdo. Se você tem um elemento de reflexividade no trabalho artístico, se você não imagina a arte como uma linguagem transparente, sem nenhuma opacidade material, você está lidando com um trabalho modernista e, assim, não precisa do conceito de pós-modernismo. Penso que "pós" queira significar "isso se foi". Mas isso não é verdade. Não quer dizer que estejamos agora na mesma era em que estávamos há 50 anos. Mas o conceito de reflexividade e a dúvida quanto ao imediatismo da linguagem ainda estão conosco, mesmo que estejam presentes nos trabalhos que detesto. Eu não gosto, você sabe, de David Salle, mas aquilo não é pós-moderno, até onde eu possa ver. Aquilo é retrógrado, mais como velho moderno do que como pós-moderno, no que me diz respeito. Não vejo o que seja "pós" naquilo e sempre me impressionei pela falta de rigor do conceito. Eu nunca o utilizei ou, se o fiz, foi sempre entre aspas e, se não houver aspas, é porque algum editor as removeu.

O senhor escreveu que o fenômeno da "estrangeiridade" dá ao estranho a liberdade de olhar para um sistema cultural complexo e não ter a obrigação de seguir as regras do jogo, pois ele pode escolher aquilo que considera mais vibrante e controvertido de uma dada cultura. Considerando a globalização, em que medida isso ainda é possível?

Essa é uma boa pergunta. Não sei exatamente como respondê-la. Há vários níveis de globalização, e há um, por exemplo, no universo da arte: aquele que é pesadamente fundado na esfera comercial da arte, na bienal e tudo mais.— quero dizer, é a mesma bobagem no mundo todo. Nesse nível, temo que a globalização irá se tornar um instrumento de equiparação total, dada a história do capitalismo. Parece-me que é exatamente isso o que já está acontecendo e que, em um certo ponto, todas as culturas serão absolutamente idênticas. Se esse pesadelo continuar real, todas as culturas serão iguais. Não haverá "estrangeiridade", mas isso é um pesadelo sinistro. Claro que há cenas locais que são provavelmente muito interessantes, mas não estou seguro de que elas possam resistir de fato à equiparação generalizada de tudo.

Bem, as bienais já são as mesmas em todas as partes, são todas iguais. Por isso é tão deprimente para mim visitá-las. Elas são apenas mais uma armadilha para turistas, inventadas para o turismo, para trazer receitas para uma cidade. A primeira cidade que realmente entendeu isso foi Kassel [Alemanha]. Ninguém quer ir a Kassel, que é uma das mais abomináveis cidades do mundo. Mas sua economia vive inteiramente da — e para a —Documenta. A Documenta faz a cidade. Kassel era muito bonita no século 18, com belos parques, e foi inteiramente destruída na Segunda Guerra Mundial — tendo sido reconstruída posteriormente. Isso é abominável. Imagine que decidam abrigar uma exposição de arte internacional na cidade mais feia da América. Isso seria muito estranho. E agora várias cidades ao redor do mundo estão fazendo a mesma coisa.

Hoje o senhor faz parte do Instituto de Estudos Avançados, onde Einstein e Panofsky estiveram e onde é livre para fazer o que quiser , pois não possui obrigação de ensinar. A partir de agora os artistas e teóricos deverão temer ainda mais suas críticas?

Não, eu sou muito gentil. Não há razão para que eu seja mais agressivo do que antes. Nunca deixei de escrever uma crítica que julgasse necessária. Escrevo o que escrevo, sem mais considerações. Escrevi aquele artigo sobre o MoMA e recebi uma carta dizendo: "Oh, quanta coragem!". Eu disse: "Que coragem?". Mesmo na América de Bush ainda não estamos no fascismo; portanto, você pode declarar o que bem entender. Não vejo porque as pessoas deveriam ter medo de mim. É isso que você pensa, que vou lançar ataques camicase?

Mas às vezes eles o temem.

Não acho que as pessoas tenham medo de mim...

Mas os estudos culturais e os estudos da mulher, por exemplo, foram tendências que o senhor considerou como uma espécie de chantagem.

Nunca ataquei os estudos da mulher. Quanto aos estudos culturais, parece-me que eles são uma desculpa para não estudar — o que matou o estudo dos filmes. Ao invés de olhar para o filme como um tipo de linguagem que possui toda uma estratificação diferenciada de significação, eles lidavam com as "lavadeiras", por assim dizer. O estudo dos filmes era um campo muito bom e, embora estivesse apenas começando a se estabelecer na América, havia excelentes pessoas, como Annette Michelson e Noël Burch. Mas ele foi completamente suplantado pelos estudos culturais, que demandam muito menos energia intelectual. É um tipo de "disciplina" vaga (que não tem nenhuma disciplina em absoluto), o tipo de coisa que engloba tudo, pois tudo pode ser posto no mesmo nível. Nesse enfoque, não existe diferença entre um grande trabalho de arte e uma bobagem. Tudo é tratado como documento, e nunca como monumento, para emprestarmos a oposição de Foucault em A arqueologia do saber. Tudo é exatamente nivelado, e penso que isso seja um desastre. Pois, se tudo está no mesmo nível, não há nada que seja mais importante e, portanto, nada é de fato importante. Para mim, criticar significa distinguir, separar. Se colocamos tudo no mesmo caldo, acabamos com algo sem cor nem sabor, sem nenhuma diferenciação.

O que o senhor tem visto que o agrada em termos de arte ultimamente?

Não há uma grande quantidade de coisas que tenham me agradado ultimamente, mas eu raramente escrevo sobre coisas de que eu não gosto. Não gosto de despender muito tempo fazendo crítica de arte. Escrever contra alguém ou algo consome muita energia. Mas também porque é muito difícil ser um artista. Por isso, quando vejo algo de que gosto, escrevo sobre ele.

A última vez que vi algo que realmente me impressionou foi em Londres. Foi um show chamado Quartet, do videoartista e músico suíço Christian Marclay. Uma peça extraordinária. São quatro vídeos e quatro telas, em que ele utiliza pequenas partes de filmes como trilha para a peça, ou melhor, ele utiliza fragmentos de todos os tipos de filmes, como se esses fragmentos (imagem e sons) fossem as notas de uma peça para quarteto. Ou seja, ele usa filmes como instrumentos. Por exemplo, se uma determinada nota é dada pela voz de Marilyn Monroe em um tom bastante alto, nós a vemos cantando a mesma coisa cada vez que a nota aparece na composição musical de Marclay. Isso é absolutamente extraordinário... Realmente brilhante, musical e estruturalmente... E eu fui com Rosalind Krauss, quando estávamos ambos em Londres para o lançamento do enorme livro sobre arte no século 20 que escrevemos com Benjamin Buchloh e Hal Foster [Art since 1900]. Ela também estava completamente fascinada. Talvez algum dia eu escreva sobre esse trabalho.

Quais são seus planos futuros?

Como agora terei algum tempo, quero acabar meu volumoso livro sobre Barnett Newman e escrever um outro sobre Ellsworth Kelly. Preciso elaborar minha coleção de ensaios sobre não-composição e gostaria de reabrir meu livro a respeito da projeção axonométrica. Quem sabe faça algo sobre Matisse. Tenho tempo, você sabe...

Recebido para publicação em 05 de setembro de 2006.

Jane de Almeida é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da PUC-SP.

  • [1
    ] A entrevista foi conduzida por Jane de Almeida. A tradução, do inglês, é de Marco Grimaldi.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2006
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