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MEMÓRIA OU JUSTIÇA? O conflito entre o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e a Comissão Nacional da Verdade

Memory or Justice? The Conflict between the Torture Never Again Group/RJ and the National Truth Commission

RESUMO

O artigo analisa a relação entre o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e a Comissão Nacional da Verdade a partir do arcabouço teórico sobre a institucionalização, explorando a relação entre Estado e movimento social. Argumenta que a utilização de enquadramentos diferentes de reparação levou o Grupo Tortura Nunca Mais a se afastar da Comissão Nacional da Verdade na luta pelos direitos humanos.

Palavras-chave:
Grupo Tortura Nunca Mais; Comissão Nacional da Verdade; direitos humanos; institucionalização; justiça

ABSTRACT

The article analyzes the relationship between the Torture Never Again Group/RJ and the National Truth Commission and explores the relationship between the State and social movement. It argues the application of different frameworks of reparation has led the Torture Never Again Group to distance itself from the National Truth Commission in the struggle for human rights.

Keywords:
Torture Never Again Group; National Truth Commission; human rights; institutionalization; justice

INTRODUÇÃO

Fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) é considerado uma referência na luta pelos direitos humanos. Seus três pilares de atuação são: o esclarecimento das circunstâncias de morte de militantes políticos; a manutenção e a recuperação da memória histórica daquele período; e o afastamento imediato de cargos públicos de pessoas envolvidas em tortura 1 1 Disponível em: <https://www.torturanuncamais-rj.org.br/quem-somos/> Acesso em: 9/9/2023. . O GTNM/RJ também foca na denúncia pública de casos de tortura, inclusive recentes, ocorridos muitas vezes em favelas do Rio de Janeiro. Assim, a militância do GTNM/RJ pelos direitos humanos funciona “ontem e hoje”, como costumam dizer seus membros (Salgado; Grabois, 2017Salgado, Lívia de Barros; Grabois, Victória. “O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ: um olhar etnográfico”. História Oral, v. 20, n. 2, 2017, pp. 59-79., p. 66).

Instituída pelo governo brasileiro, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) iniciou suas atividades em maio de 2012 com o objetivo de produzir um relatório sobre os crimes cometidos pela ditadura militar brasileira. O relatório final foi publicado em dezembro de 2014, num contexto político complexo de ascensão da direita e críticas à presidente Dilma Rousseff (que acabariam resultando em seu impeachment). Dadas as circunstâncias, o trabalho da CNV foi relativamente pouco divulgado.

Ao longo de toda a sua atuação, a CNV sofreu críticas de membros do GTNM/RJ. Para o grupo, reparação sem “responsabilização dos torturadores, respondendo onde, quando e como aconteceram tais crimes” e sem identificação da “continuidade nos dias de hoje da tortura”, não teria valor, seria apenas “uma chantagem do possível” (Coimbra; Grabois, 2015Coimbra, Cecília; Grabois, Victória. “Comissão Nacional da Verdade: acordos e limites”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 27 mar. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/comissao-nacional-da-verdade-acordos-e-limites/ >. Acesso em: 14/8/2023.
https://www.torturanuncamais-rj.org.br/a...
). Vale salientar que a CNV recebeu críticas também de outros grupos (Gallo, 2015Gallo, Carlos Artur. “A Comissão Nacional da Verdade e a reconstituição do passado recente brasileiro: uma análise preliminar da sua atuação”. Estudos de Sociologia, v. 20, n. 39, 2015, pp. 327-45.), mas, para o propósito deste artigo, focarei nas críticas realizadas por membros do GTNM/RJ.

O objetivo deste artigo é analisar a relação entre o GTNM/RJ e a CNV a partir do arcabouço teórico sobre institucionalização, enfatizando principalmente “as capacidades cognitivas” e a “dimensão simbólica” (Szwako; Lavalle, 2019Szwako, José; Lavalle, Adrian Gurza. “‘Seeing Like a Social Movement’: Institucionalização simbólica e capacidades estatais cognitivas”. Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 2, 2019, pp. 411-34.). Porém, abordo um caso em que o processo de institucionalização não tem o sucesso de “encaixe institucional” esperado pelo órgão do Estado. Apropriando-me da conceituação de Robert Benford e David Snow (2000Benford, Robert D.; Snow, David A. “Framing Processes and Social Movements: An Overview and Assessment”. Annual Review of Sociology, v. 26, n. 1, 2000, pp. 611-39.), argumento que a utilização de enquadramentos diferentes de reparação levou o grupo a se afastar da CNV na luta pelos direitos humanos. A reparação formulada pela comissão foi considerada insuficiente pelo GTNM/RJ, na medida em que incorpora somente a dimensão simbólica da memória, mas não a da justiça. Essa análise é importante, pois mostra a relação entre Estado e movimento social como um processo que pode ser construído pelo próprio movimento social, que escolhe se aproximar ou não dos órgãos estatais. No caso em questão, o movimento social optou por antagonizar a atuação do Estado, acreditando que esta não estava de acordo com seus valores. Apoio esse argumento na análise de dez textos produzidos e publicados pelo GTNM/RJ em seu site institucional durante a atuação da CNV, em entrevistas concedidas por membros do GTNM/RJ na época e textos acadêmicos sobre o grupo.

Na primeira seção deste artigo, abordo a relação histórica entre Estado e movimentos sociais na área dos direitos humanos no Brasil e a criação da CNV dentro desse contexto. Em seguida, apresento, respectivamente, a posição da CNV e a aproximação latente do GTNM/RJ com a comissão, além de outros órgãos do Estado brasileiro. Ressalto, neste momento, que há certa ambiguidade nessa relação, pois ao mesmo tempo que a CNV é vista de maneira crítica pelo GTNM/RJ, ela ainda serve de referência para algumas discussões deste último. Muitas vezes a própria CNV buscou uma aproximação, convidando membros do GTNM/RJ para participar dos trabalhos, assistindo às reuniões e dando depoimentos. Por isso, aponto que o distanciamento não ocorreu por iniciativa do Estado, foi o próprio grupo que escolheu não participar da maioria dessas reuniões e não dar seu depoimento (Pinto, 2015Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.).

Por fim, procuro expor a posição do GTNM/RJ e distinguir os diferentes enquadramentos utilizados pelo grupo e pela comissão para lidar com a reparação das vítimas da ditadura militar. Mostro que, enquanto a CNV sublinha o aspecto redentor da memória e defende que ela própria é capaz de servir como reparação simbólica ao divulgar publicamente a verdade dos crimes da ditadura e abrir espaços para que as vítimas possam contar o que sofreram, para o GTNM/RJ isso não é suficiente: é necessário o aspecto punitivo da justiça. Como apontarei, publicações no site do GTNM/RJ relacionadas à CNV, assim como entrevistas de membros do grupo para jornais, reforçam esse aspecto, enfatizando a necessidade de responsabilizar os torturadores e, ao mesmo tempo, sublinhando que as pesquisas feitas pela CNV sobre os crimes cometidos já teriam sido feitas anteriormente pelo grupo e não apresentariam nenhuma novidade para a sociedade brasileira.

ATIVISMO E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: ESTADO E SOCIEDADE CIVIL

No Brasil, o aparecimento do ativismo pelos direitos humanos está estreitamente ligado ao golpe militar de 1964 (Engelmann; Madeira, 2015Engelmann, Fabiano; Madeira, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil”. Caderno CRH, v. 28, n. 75, 2015, pp. 623-37.). Quando houve a suspensão da ordem jurídico-parlamentar, a defesa dos direitos humanos surge como uma das estratégias mais efetivas de enfrentamento político e jurídico ao regime militar. Os casos de tortura levaram à necessidade de denúncia e de uma retórica focada nos direitos humanos (Joffily, 2018Joffily, Mariana. “A política externa dos EUA, os golpes no Brasil, no Chile e na Argentina e os direitos humanos”. Topoi, v. 19, n. 38, 2018, pp. 58-80., p. 69), tornando o Brasil um dos precursores desse debate no mundo (Kelly, 2014Kelly, Patrick. “‘Magic Words’: The Advent of Transnational Human Rights Activism in Latin America’s Southern Cone in the Long 1970s”. In: Eckel, Jan; Moyn, Samuel (orgs.). The Breakthrough: Human Rights in the 1970’s. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2014, pp. 88-106.).

Com o fim da ditadura militar, houve uma redefinição da agenda de lutas. Segundo Fabiano Engelmann e Lígia Madeira (2015Engelmann, Fabiano; Madeira, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil”. Caderno CRH, v. 28, n. 75, 2015, pp. 623-37.), a partir das décadas de 1990 e 2000 percebe-se uma consolidação de estruturas institucionais que projetam os direitos humanos como política de Estado, assim como uma diversificação nas políticas de direitos humanos - “o que fica evidenciado a partir da maior articulação entre movimentos militantes e a burocracia governamental, resultando na expansão regional de programas específicos ancorados na esfera estatal” (Engelmann; Madeira, 2015Engelmann, Fabiano; Madeira, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil”. Caderno CRH, v. 28, n. 75, 2015, pp. 623-37., pp. 623-4).

É nessa fase, mais precisamente em 1985, que se forma o GTNM/RJ. Este e outros movimentos sociais formados por vítimas da ditadura mobilizaram-se em favor da revisão da Lei da Anistia, o que não ocorreu até hoje, mas algumas vítimas da ditadura receberam indenização do Estado. Para Sérgio Adorno, houve demora na legitimação da agenda dos direitos humanos no Brasil, justamente porque ela era associada “à defesa dos direitos de bandidos, à utopia de militantes que imaginavam uma sociedade despida de violência ou ainda à sede de vingança por parte de quem havia sido perseguido durante a ditadura militar” (Adorno, 2010Adorno, Sérgio. “História e desventura: O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos”. Novos Estudos Cebrap, v. 29, n. 1, 2010., p. 5). Nessa fase, é possível notar também uma crescente ampliação do significado da defesa de direitos humanos no Brasil, passando a abarcar tanto a defesa dos direitos das minorias quanto o direito à vida contra a violência policial.

Durante a redemocratização, os movimentos sociais lutaram pela incorporação de direitos na nova Constituição Federal e pela institucionalização de entidades da sociedade civil. Segundo Ilse Scherer-Warren, “parte dos antigos militantes ou lideranças dos movimentos passaram a participar da esfera governamental”, o que implicou um “refluxo dos movimentos contestatórios” (Scherer-Warren, 2007Scherer-Warren, Ilse. “Movimentos sociais no Brasil contemporâneo”. História: Debates e Tendências, v. 7, n. 1, 2007, pp. 9-21., p. 12).

Apesar de a Constituição de 1988 já sinalizar a questão, apenas em 1996 é publicado o I Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH I). No ano seguinte é criada a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça. Mas é no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso que a pauta se torna oficialmente “assunto de Estado” (Engelmann; Madeira, 2015Engelmann, Fabiano; Madeira, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil”. Caderno CRH, v. 28, n. 75, 2015, pp. 623-37., p. 627). Nesse primeiro momento, o PNDH reconhece o papel e as obrigações do Estado como promotor dos direitos humanos, considerados universais. No entanto, ainda não há referência a questões de gênero e orientação sexual, sendo privilegiada a redução da violência e do crime.

O PNDH II é lançado no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 2002, e amplia os direitos protegidos, entre eles “direitos à educação, à saúde, à previdência e à assistência social, à saúde mental, aos dependentes químicos e portadores de hiv/Aids, ao trabalho, ao acesso à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer” (Adorno, 2010Adorno, Sérgio. “História e desventura: O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos”. Novos Estudos Cebrap, v. 29, n. 1, 2010., p. 12). Questões de gênero e raça são incluídas dessa vez.

O PNDH III é lançado já no governo Luiz Inácio Lula da Silva, em 2009. Mais uma vez os direitos são ampliados, propondo agora a descriminalização do aborto, a união civil homoafetiva e a laicidade do Estado, entre outros. Ademais, pela primeira vez, militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) são indicados para a Secretaria de Direitos Humanos, até então ocupada exclusivamente por juristas (Engelmann; Madeira, 2015Engelmann, Fabiano; Madeira, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil”. Caderno CRH, v. 28, n. 75, 2015, pp. 623-37.). Após críticas, alguns pontos do programa foram reelaborados, principalmente a questão do aborto, cuja descriminalização não foi abertamente apoiada pelo governo, mas passou a ser vista como um problema de saúde pública.

É do PNDH III a proposta de criação de uma Comissão Nacional da Verdade (Schincariol, 2011Schincariol, Rafael. “A Comissão da Verdade no Brasil”. In: IV Seminario Internacional Políticas de la Memoria: Ampliación del campo de los derechos humanos. Memorias y Perspectivas. Buenos Aires, 2011.), mas somente em 2011 foi editada a lei que lhe deu origem (Gallo, 2015Gallo, Carlos Artur. “A Comissão Nacional da Verdade e a reconstituição do passado recente brasileiro: uma análise preliminar da sua atuação”. Estudos de Sociologia, v. 20, n. 39, 2015, pp. 327-45.; Dias, 2013Dias, Reginaldo Benedito. “A Comissão Nacional da Verdade, a disputa da memória sobre o período da ditadura e o tempo presente”. Patrimônio e Memória, v. 9, n. 1, 2013, pp. 71-95.; Bauer, 2015Bauer, Caroline Silveira. “O debate legislativo sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade e as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade da ditadura civil-militar brasileira”. Anos 90, v. 22, n. 42, 2015, pp. 115-52.). Segundo o GTNM/RJ, foi a condenação do Brasil pela Corte Interamericana que acelerou o processo, sendo reconhecida a responsabilidade do país por não ter localizado os corpos dos guerrilheiros do Araguaia nem julgado os militares responsáveis por seu desaparecimento (Salgado; Grabois, 2017Salgado, Lívia de Barros; Grabois, Victória. “O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ: um olhar etnográfico”. História Oral, v. 20, n. 2, 2017, pp. 59-79., p. 67).

Vale a pena ressaltar outras políticas de memória implementadas nesse período para compreender a relação entre o GTNM/RJ e a CNV. É fundamental mencionar a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Também foi criada a Comissão de Anistia, em 28 de agosto de 2001, por medida provisória assinada por Cardoso, mas implementada em 2002, já no governo Lula. Ambas as instituições foram consideradas insuficientes por movimentos sociais, entre eles o GTNM/RJ.

Em relação à CEMDP, houve críticas à lei, que não obrigava o Estado a investigar as circunstâncias das mortes nem identificar os responsáveis por elas - muitos corpos não foram encontrados até hoje (Teles, 2005Teles, Janaína. Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Dissertação (mestrado em história social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.). Ao mesmo tempo, grande parte dos nomes divulgados pela CEMDP já havia sido dada pelo Dossiê de mortos e desaparecidos políticos (1995)Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos/Instituto de Estudo da Violência do Estado (Ieve)/Grupo Tortura Nunca Mais (RJ e PE). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995., escrito e publicado pelos próprios familiares das vítimas.

Em relação à Comissão de Anistia, foi denunciada pelo GTNM/RJ a insuficiência da reparação financeira - em que as vítimas recebem apenas uma indenização monetária. Nesse caso, vale notar o apoio do grupo à chamada “reparação psíquica” realizada em espaços de apoio psicológico destinados às vítimas da ditadura (Magaldi, 2022Magaldi, Felipe. “Saúde mental, direitos humanos e reparação na justiça de transição brasileira”. Antropolítica, v. 54, n. 2, 2022.). As clínicas foram criadas por iniciativa do próprio GTNM/RJ, havendo depois outras clínicas apoiadas pelo Estado. 2 2 Essas clínicas não existem mais.

A decisão de criar a Comissão Nacional da Verdade foi bastante controvertida: era defendida por familiares de mortos e desaparecidos políticos e criticada pelos conservadores (Dias, 2013Dias, Reginaldo Benedito. “A Comissão Nacional da Verdade, a disputa da memória sobre o período da ditadura e o tempo presente”. Patrimônio e Memória, v. 9, n. 1, 2013, pp. 71-95.). Também foram criadas comissões estaduais em diversos estados do país. Nesse momento, os membros do GTNM/RJ eram favoráveis à comissão, pois acreditavam que ela seria capaz de apurar os crimes da ditadura e processar aqueles que haviam violado os direitos humanos. Em outras palavras, acreditavam que ela teria prerrogativas jurídicas (Salgado; Grabois, 2017Salgado, Lívia de Barros; Grabois, Victória. “O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ: um olhar etnográfico”. História Oral, v. 20, n. 2, 2017, pp. 59-79., p. 67). Porém, não foi o que aconteceu. Repete-se então a insatisfação do GTNM/RJ com as políticas do Estado para a questão da ditadura, assim como aconteceu com a CEMDP. Em todos esses casos, houve apoio às iniciativas do Estado, porém elas foram consideradas insuficientes quando implementadas.

A CNV E A REPARAÇÃO PELA MEMÓRIA

Desde o início, a CNV enfrentou divergências internas. Paulo Sérgio Pinheiro, ex-diplomata e na época coordenador da comissão, acreditava que ela deveria trabalhar internamente e criticava as declarações públicas de seus membros. Enquanto isso, José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso e membro da comissão, antecipava publicamente seu veto a qualquer parecer que anulasse a Lei de Anistia, o que incluía não punir os torturadores. De sua parte, Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República no governo Lula, pediu demissão após criticar publicamente a declaração de Dias, dizendo-se favorável à revisão da anistia e à punição dos responsáveis pela repressão política (Gallo, 2015Gallo, Carlos Artur. “A Comissão Nacional da Verdade e a reconstituição do passado recente brasileiro: uma análise preliminar da sua atuação”. Estudos de Sociologia, v. 20, n. 39, 2015, pp. 327-45., p. 334).

Mesmo as divergências sendo muitas, alguns atos da CNV devem ser sublinhados. São eles: a exumação do corpo do ex-presidente João Goulart, morto no exílio durante a ditadura (Goulart, 2022Goulart, Barbara. “O PT esquece e relembra o passado: tensões e distensões nas memórias petistas sobre o governo João Goulart”. Revista Ciências Sociais Unisinos, v. 58, n. 1, 2022, pp. 24-33.), e a investigação do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, após ter sido levado para o DOI-Codi em janeiro de 1971. No caso de Goulart, os resultados foram inconclusivos: não foram encontrados vestígios de envenenamento, mas não era impossível que já tivessem se dissipado. Houve também uma reparação simbólica, quando Goulart recebeu as honras fúnebres de chefe de Estado que não pôde receber no momento de sua morte (Goulart, 2022Goulart, Barbara. “O PT esquece e relembra o passado: tensões e distensões nas memórias petistas sobre o governo João Goulart”. Revista Ciências Sociais Unisinos, v. 58, n. 1, 2022, pp. 24-33.). No caso de Rubens Paiva, os documentos e as entrevistas coletados pela CNV demonstraram que a versão dos militares, que negavam a ocorrência de tortura e assassinato, não era verdadeira, e o nome de dois agentes da repressão envolvidos no caso foram divulgados. Embora o Estado brasileiro já tivesse admitido sua responsabilidade desde 1995, a divulgação dos nomes dos envolvidos foi vista como um progresso (Gallo, 2015Gallo, Carlos Artur. “A Comissão Nacional da Verdade e a reconstituição do passado recente brasileiro: uma análise preliminar da sua atuação”. Estudos de Sociologia, v. 20, n. 39, 2015, pp. 327-45.).

Além desses atos específicos, a CNV produziu um relatório final de atividades, envolvendo a investigação de diversos casos de repressão ocorridos durante a ditadura militar. Com 2 mil páginas divididas em três volumes, o documento foi entregue no dia 10 de dezembro de 2014, Dia Internacional dos Direitos Humanos. O primeiro volume expõe os objetivos da comissão, apresenta um panorama histórico do período da ditadura, nomeia os responsáveis pelos crimes e faz recomendações. O segundo volume apresenta dados da repressão contra grupos sociais específicos e da atuação de civis que apoiaram o golpe e de grupos que participaram da resistência. O terceiro volume apresenta uma lista de 434 pessoas que foram reconhecidas como mortas ou desaparecidas em consequência da violência política (Gallo, 2015Gallo, Carlos Artur. “A Comissão Nacional da Verdade e a reconstituição do passado recente brasileiro: uma análise preliminar da sua atuação”. Estudos de Sociologia, v. 20, n. 39, 2015, pp. 327-45.). A CNV admitiu que essa lista era limitada e poderia ser revisada, porém muito pouco foi feito nesse sentido após a publicação do relatório.

É de se destacar o fato de que a CNV recebeu diversas críticas dos movimentos sociais. Não houve a abertura dos arquivos militares; os ataques aos povos indígenas foram pouco abordados; e temas como raça e gênero foram tratados apenas superficialmente (Pedretti, 2017Pedretti, Lucas. “Silêncios que gritam: apontamentos sobre os limites da Comissão Nacional da Verdade a partir do seu acervo”. Revista do Arquivo, v. 2, n. 5, 2017, pp. 62-76.). Apesar de buscar mostrar a “verdade” sobre o passado, pode-se dizer que a CNV ainda era marcada pela “ideologia da reconciliação” (Bauer, 2015Bauer, Caroline Silveira. “O debate legislativo sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade e as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade da ditadura civil-militar brasileira”. Anos 90, v. 22, n. 42, 2015, pp. 115-52., p. 133) e não rompeu com a Lei da Anistia.

Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, tornou-se praticamente impossível retomar o debate acerca da CNV. Porém, devemos salientar aqui alguns avanços promovidos pela comissão. Como foi apontado por Carlos Artur Gallo (2015Gallo, Carlos Artur. “A Comissão Nacional da Verdade e a reconstituição do passado recente brasileiro: uma análise preliminar da sua atuação”. Estudos de Sociologia, v. 20, n. 39, 2015, pp. 327-45.), em primeiro lugar, o Estado brasileiro reconheceu publicamente sua responsabilidade pelos crimes cometidos, admitindo que houve violação sistemática de direitos humanos durante a ditadura. Também foram incluídas no relatório, mesmo que superficialmente, informações sobre a repressão contra grupos sociais mais amplos, pouco mencionados quando se fala sobre a ditadura militar. Além disso, foi assinalado o apoio de diversos setores da sociedade civil à ditadura militar.

A CNV também abriu espaço para que as vítimas da ditadura pudessem relatar publicamente o que sofreram nas mãos da repressão, o que serviu também de reparação simbólica (Goulart, 2020Goulart, Barbara. “Reflexões sociológicas sobre memória e política”. Contemporânea, v. 10, n. 1, 2020, pp. 203-28.). Houve uma importante abertura de diálogo entre o Estado e a sociedade civil. Desse modo, o Estado brasileiro passou a “falar em nome” de causas, valores, bandeiras e direitos de pessoas afetadas pela ditadura (Hollanda; Israel, 2019Hollanda, Cristina Buarque de; Israel, Vinícius Pinheiro. “Panorama das Comissões da Verdade no Brasil: uma reflexão sobre novos sentidos de legitimidade e representação democrática”. Revista de Sociologia e Política, v. 27, n. 70, 2019.). A CNV foi um espaço importante de institucionalização das demandas de reparação e verdade dos movimentos sociais formados por vítimas da ditadura militar, apesar de grande parte desses movimentos considerar que esse processo foi insuficiente.

Como apontam Cristina Hollanda e Vinícius Israel (2019Hollanda, Cristina Buarque de; Israel, Vinícius Pinheiro. “Panorama das Comissões da Verdade no Brasil: uma reflexão sobre novos sentidos de legitimidade e representação democrática”. Revista de Sociologia e Política, v. 27, n. 70, 2019.), a CNV permitiu a construção de uma pedagogia política da verdade. Com um caráter fortemente normativo, pressupunha que a revelação dos crimes da ditadura fundasse as condições para que eles não se repetissem. Tinha como premissa a relação de causalidade entre o desconhecimento das violações passadas de direitos humanos e o cometimento de violações no presente. Além disso, sinalizava a necessidade de se associar democracia e direitos humanos, promovendo uma crítica implícita à realidade democrática brasileira.

Contudo, quando se investiga mais profundamente o caráter simbólico dessa premissa da CNV, nota-se que ela não considera a punição direta dos criminosos, mas a crença de que o próprio apontamento dos crimes já seria um progresso e uma reparação para a sociedade brasileira. Ou seja, a construção da memória do que “verdadeiramente” ocorreu durante a ditadura militar serviria como denúncia e prevenção de crimes no presente e no futuro (ironicamente, poucos anos depois, Jair Bolsonaro, que tem como ídolo o torturador Brilhante Ustra, foi eleito presidente do Brasil).

Processos políticos que envolvem a transição de regimes ditatoriais ou autoritários em direção a regimes democráticos de governo ou a transição de situações de conflito armado ou violência política em direção à paz são definidos pelo conceito de Justiça de Transição (Zamora, 2013Zamora, José Antonio. “História, memória e justiça: da Justiça Transicional à justiça anamnética”. In: Silva Filho, José Carlos Moreira; Abrão, Paulo; Torelly, Marcelo D. (orgs.). Justiça de transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013, pp. 21-46., p. 21). Nesses processos, os governos precisam passar pelo expurgo do passado traumático coletivo para que seja possível olhar para o futuro novamente, ou “virar a página” (Teitel, 2000Teitel, Ruti G. Transitional Justice. Oxford: Oxford University Press, 2000.). Com este objetivo, a Justiça de Transição articula três categorias básicas: verdade, justiça e reparação (Napolitano, 2015Napolitano, Marcos. “Os historiadores na batalha da memória: resistência e transição democrática no Brasil”. In: Quadrat, Samantha Viz; Rollemberg, Denise (orgs.). História e memória das ditaduras do século XX, v. 1. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2015., p. 96). Em primeiro lugar, é necessário recuperar a verdade do que aconteceu, o que foi ocultado pelo regime autoritário, e para isso é necessário coletar e divulgar o relato das vítimas. Em segundo lugar, é necessário fazer justiça a essas vítimas, punindo os responsáveis pelos crimes cometidos. E, em terceiro lugar, é necessário oferecer reparação a essas vítimas pelos danos causados pelo Estado. Essa reparação pode ser financeira, por meio de indenização monetária ou qualquer outra que permita a reconstrução dos laços sociais desses indivíduos com a sociedade, como um pedido de desculpas oficial do governo, por exemplo (Goulart, 2020Goulart, Barbara. “Reflexões sociológicas sobre memória e política”. Contemporânea, v. 10, n. 1, 2020, pp. 203-28.).

Quando a CNV deixa de considerar a punição direta dos criminosos, ela deixa de lado a aplicação da categoria de justiça pertinente à Justiça de Transição. Nas próximas seções, mostrarei como a divergência entre a CNV e o GTNM/RJ surge da percepção do GTNM/RJ de que a divulgação da memória é insuficiente para a reparação, pois, segundo o grupo, a reparação só pode ser completa com a punição dos responsáveis pelos seus crimes e, principalmente, a divulgação de seus nomes. Primeiro mostrarei como a CNV é importante por pautar de certo modo alguns debates do grupo e vice-e-versa. Em seguida aponto como e por que o grupo opta por se distanciar da CNV.

APROXIMAÇÕES LATENTES

O GTNM/RJ sempre criticou a CNV. Como disse Cecília Coimbra, presidente do grupo na época, a própria escolha dos membros da comissão foi isenta - segundo ela, era a “comissão do consenso” ou a “comissão do possível”. Para Coimbra, a comissão deveria escolher indivíduos mais engajados com a luta política, em vez de querer “agradar a todos os lados do conflito” (Pinto, 2015Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015., p. 34). Assim, a falta de representação de militantes e vítimas na comissão já era considerada bastante negativa pelo grupo. Além disso, é importante destacar a sua desconfiança em relação a tudo que é associado à atuação do Estado. Para os membros do grupo, seria necessário criar espaços de atuação fora do âmbito estatal (Pinto, 2015Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.). Entretanto, apesar de criticá-la e considerá-la “um erro”, eles ainda viam a criação da comissão como importante, já que durante todo o período de atuação da CNV as reuniões do GTNM/RJ, que antes eram quinzenais, passaram a ser semanais.

Desse modo, é possível notar certa ambiguidade nessa relação: há aproximações latentes entre o GTNM/RJ e órgãos do Estado brasileiro. Ao acompanhar as reuniões do grupo, vimos que até hoje há referências à listagem oficial de mortos e desaparecidos da CEMDP. Isso mostra que a lista reproduzida por um órgão de Estado ainda serve de ponto de partida para as atividades do grupo (mesmo que diga que a referência seja a lista da CEMDP e não da CNV). Como dito antes, essa lista foi inicialmente publicada no Dossiê de mortos e desaparecidos políticos (1995)Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos/Instituto de Estudo da Violência do Estado (Ieve)/Grupo Tortura Nunca Mais (RJ e PE). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995., organizado e publicado por familiares das vítimas e apoiado pelo próprio GTNM/RJ. Posteriormente, ela foi atualizada pela CEMDP, que a reapresentou na reedição do dossiê (2009), e retomada pela CNV, que realizou modificações e a utilizou em seu relatório final.

Durante esta pesquisa, acompanhei também as reuniões do GTNM/RJ em que foram definidos os homenageados com a Medalha Chico Mendes de Resistência 2023. Essa homenagem foi criada em 1988 como uma resposta à Medalha do Pacificador, condecoração criada pelo Exército brasileiro para comemorar os vinte anos do golpe militar de 1964 e entregue a indivíduos ligados à repressão. Como forma de resistência, a Medalha Chico Mendes é entregue a pessoas e grupos que lutam pelos direitos humanos. O evento ocorre na mesma data: o aniversário do golpe de 1964.3 3 Entretanto, enquanto os militares comemoram o golpe no dia 31 de março, o GTNM/RJ “descomemora” o golpe no dia 1-º de abril. Todo ano é criada uma lista de pessoas e grupos que serão homenageados. Essa lista é definida pelos membros do GTNM/RJ em conjunto com o PCB e entidades sociais que apoiam o grupo.

Alguns membros do GTNM/RJ enfatizam a importância de sempre incluir entre os homenageados indivíduos que estejam nas listas oficiais, enquanto outros lembram que é preciso ir além, justamente para mostrar como as listas são limitadas. Assim, seja para criticar, seja para apoiar, diversas menções são feitas durante as reuniões à lista oficial de mortos e desaparecidos da CEMDP e da CNV (também há polêmicas em relação a nomes que foram incluídos em uma lista e não em outra). Todas essas listas reproduzidas por órgãos do Estado brasileiro ainda servem de referência e ponto de partida para a escolha dos homenageados, mesmo que o objetivo seja ir além delas. Mesmo que de maneira crítica e latente, ainda é possível perceber a presença da CNV nas discussões do GTNM/RJ.

Ao mesmo tempo, o GTNM/RJ estava presente nos trabalhos da CNV. Ao ler o relatório final da CNV, podemos encontrar diversas referências ao GTNM/RJ. (Vale explicar que o GTNM de São Paulo está na lista de apoiadores oficiais da CNV, ao contrário do GTNM do Rio, e que todos os GTNM do Brasil operam de maneira independente, não havendo vínculos institucionais entre eles.) Depoimentos antigos - de membros do grupo e outros, realizados em período anterior à criação da CNV - são citados, assim como documentos do grupo que estão disponíveis para consulta no acervo do Arquivo Nacional. Portanto, apesar de o GTNM/RJ não ter dado depoimentos oficiais à CNV, diversas entrevistas realizadas anteriormente por e para seus membros são citadas no relatório. Ademais, a CNV cita quais vítimas foram homenageadas com a Medalha Chico Mendes, demonstrando respeito e, indiretamente, apontando a importância dessa homenagem como dado de pesquisa e prova jurídica de que os homenageados foram de fato vítimas da ditadura.

Na literatura clássica sobre a relação entre Estado e movimentos sociais é marcante o argumento habermasiano de que a sociedade civil deve operar fora das esferas de influência do Estado e do mercado, manter-se “autolimitada” para garantir a comunicação livre e o respeito mútuo (Cohen; Arato, 1992Cohen, Jean L.; Arato, Andrew. Civil Society and Political Theory. Cambridge, MA: MIT, 1992.). Nesse caso, a autolimitação é vista como necessária para que associações e grupos da sociedade civil possam se caracterizar como esfera pública, definida por Habermas como o espaço social “que se alimenta da liberdade comunicativa que uns concedem aos outros” (Habermas, 2003Habermas, Jürgen. “Direito e democracia: entre facticidade e validade”. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003., p. 93).

Autores posteriores passaram a criticar essa idealização habermasiana da sociedade civil - em que todas as relações seriam supostamente baseadas em reciprocidade e respeito mútuo - e a ideia de que seria impossível promover um diálogo produtivo com atores estatais. Pois, como afirmam Rebecca Abers e Marisa von Bülow (2011Abers, Rebecca; Bülow, Marisa von. “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?”. Sociologias, v. 13, 2011, pp. 52-84.), há um pressuposto normativo nessa proposta: “à medida que as associações e os grupos da esfera pública forem contaminados pela lógica concorrencial do mercado ou pelo poder hierárquico do Estado, a liberdade comunicativa seria prejudicada” (Abers; Bülow, 2011Abers, Rebecca; Bülow, Marisa von. “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?”. Sociologias, v. 13, 2011, pp. 52-84., p. 57). Grande parte da literatura que analisa de maneira mais positiva as relações entre Estado e sociedade focaliza situações em que de fato ocorreu uma “institucionalização” dos movimentos sociais, ou seja, onde houve uma aproximação entre Estado e sociedade civil (Lavalle et al., 2018Lavalle, Adrian Gurza et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018.). Entretanto, no caso do GTNM/RJ não ocorreu essa institucionalização em que o movimento social passa a se aproximar harmoniosamente do Estado. E isso não aconteceu de maneira inerente ou autoexplicativa, mas resultou de uma escolha política intencional desse movimento social. A perspectiva do GTNM/RJ preserva a ideia de um conflito inerente entre o Estado e a sociedade civil. Afinal, como as vítimas poderiam confiar na atuação do Estado, se ele próprio foi responsável pelos crimes da ditadura militar e pratica a “tortura institucionalizada” até hoje (Pinto, 2015Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015., p. 77)? Segundo os militantes do Grupo, todos as comissões da verdade - seja nacionais, seja estaduais - “são espaços viciados, pois são dotados de braços do governo e nele nenhum de nós confia mais” (Pinto, 2015Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015., p. 66).

POR QUE SE AFASTAR DO ESTADO? O ENQUADRAMENTO DA JUSTIÇA

Como escrevem José Szwako e Adrian Lavalle (2019)Szwako, José; Lavalle, Adrian Gurza. “‘Seeing Like a Social Movement’: Institucionalização simbólica e capacidades estatais cognitivas”. Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 2, 2019, pp. 411-34., “onde ocorre interação entre atores sociais e políticos - com graus diversos de colaboração, agonismo e antagonismo - circulam também ideais, valores e símbolos”. Assim, seria necessário “acessar o mundo das hierarquizações e das disputas e oposições simbólicas dos grupos e coalizões ao redor das políticas públicas” (Szwako; Lavalle, 2019, p. 421Szwako, José; Lavalle, Adrian Gurza. “‘Seeing Like a Social Movement’: Institucionalização simbólica e capacidades estatais cognitivas”. Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 2, 2019, pp. 411-34.). Na maioria das vezes em que se propõe isso, os autores dessa linha de pesquisa focam os processos de institucionalização das categorias dos movimentos sociais em esquemas estatais. De fato, isso também ocorreu na cnv, em que diversas demandas sociais anteriores foram incorporadas aos seus trabalhos, mas não plenamente. O que acontece quando não há o sucesso de “encaixe institucional” esperado pelo Estado? Ou quando um movimento social escolhe se manter longe do Estado? Nesse caso do GTNM/RJ, por que o grupo se afasta do diálogo, mesmo quando o próprio Estado abre espaço?

Para responder a essas questões, vale a pena retomarmos interações socioestatais anteriores. Como se sabe, a Lei da Anistia, promulgada em 1979, definia que a anistia seria “ampla, geral e irrestrita”. Enquanto os militares argumentam que esse modelo favoreceu os “subversivos” - que não seriam mais julgados pelos crimes que cometeram na luta armada -, outros setores da sociedade defendem que, na prática, os mais favorecidos acabaram sendo os torturadores e os chefes militares dos porões da ditadura, que nunca foram processados por seus crimes contra a humanidade (Goulart, 2020)Goulart, Barbara. “Reflexões sociológicas sobre memória e política”. Contemporânea, v. 10, n. 1, 2020, pp. 203-28.. O GTNM/RJ é um desses setores, como coloca Igor Alves Pinto (2015)Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015. em sua etnografia, nas reuniões sobre os trabalhos da CNV, os membros do grupo relembraram que:

durante todo o período democrático muitas Comissões foram criadas, porém nenhuma delas tinha o papel de dar a justiça que eles procuravam e, por sua vez, elas ainda tinham um papel desmobilizador muito forte na luta, pois muitos acabavam por considerar que aquelas iniciativas foram suficientes para deixar para trás as injustiças cometidas contra aqueles militantes e suas famílias. (Pinto, 2015Pinto, Igor Alves. O que lutar quer dizer: o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua luta por Justiça. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PPGD/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015., pp. 67-8)

Nessa mesma época, o GTNM/RJ publicou em seu site diversas notas criticando a atuação da cnv. Mencionaremos aqui algumas delas.

Em texto escrito pela vice-presidente do GTNM/RJ, Cecília Coimbra, afirma-se que desde o fim da ditadura houve uma grande diferença entre a “anistia que queríamos” e a “anistia que tivemos”. Isso faria parte da “lógica de funcionamento do Estado”, que apresenta uma anistia “do perdão, do esquecimento, do consenso, da reciprocidade, da pacificação, da reconciliação”. Desde a CEMDP, os desaparecidos ganham apenas “um atestado de óbito”.

Ou seja, apenas os declara mortos, sem no entanto esclarecer onde, quando e como ocorrem tais crimes e quem são os seus responsáveis. Em realidade, apenas um atestado de “morte presumida”. As provas de que esses mortos e desaparecidos estiveram sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por agentes deste mesmo Estado deveriam ser demonstradas por seus próprios familiares. Com isto, de modo perverso, coloca-se o ônus das provas nas mãos dos familiares: os arquivos da ditadura continuam trancados a sete chaves. (Coimbra, 2019Coimbra, Cecília. “Pacificação e reconciliação nacional: da Lei da Anistia à Comissão Nacional da Verdade”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 17 dez. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/pacificacao-e-reconciliacao-nacional-da-lei-da-anistia-a-comissao-nacional-da-verdade/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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)

Desde o início do diálogo, o GTNM/RJ critica a atuação do Estado em relação às vítimas da ditadura, pois não basta admitir que elas foram mortas pela ditadura, é necessário descobrir e declarar exatamente como elas foram mortas e quem esteve envolvido nesses crimes para que sejam responsabilizados perante a Justiça. Para compreender essa crítica, trabalho com o conceito de enquadramento ou framing (Goffman, 1974Goffman, Erving. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1974.). Os frames, ou quadros, permitem que um evento ou ocorrência seja considerado significativo, organizando a experiência do ator e guiando sua ação. Os collective action frames têm uma função interpretativa, “simplificando e condensando os aspectos do mundo externo de uma maneira que mobilize aderentes em potencial e constituintes, ganhando o apoio de observadores e desmobilizando os antagonistas” (Benford; Snow, 2000Benford, Robert D.; Snow, David A. “Framing Processes and Social Movements: An Overview and Assessment”. Annual Review of Sociology, v. 26, n. 1, 2000, pp. 611-39., p. 614).

O GTNM/RJ e a CNV têm enquadramentos diferentes para lidar com direitos humanos. Para o grupo é necessário que o próprio Estado investigue os crimes e puna os responsáveis - esse seria o enquadramento da justiça, defendida pelo GTNM/RJ -, e não que as vítimas ou seus familiares apenas declarem o que ocorreu - esse seria o enquadramento da memória, defendido pela CNV. Para apontar a limitação desta, Coimbra recupera o conceito de reparação, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2005, que “aponta para a necessária investigação, averiguação, publicização e responsabilização desses atos criminosos” (Coimbra, 2013Coimbra, Cecília. “Comissão Nacional da Verdade: acordos, limites e enfrentamentos”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 16 set. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/comissao-nacional-da-verdade-acordos-limites-e-enfrentamentos/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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). Assim, a reparação sem responsabilização - ou justiça - estaria incompleta.

Desse ponto de vista, o Brasil seria um dos países mais atrasados nesse processo, pois “apenas se faz a reparação econômica, não se investigando e publicizando os atos de terror e nem responsabilizando qualquer agente do Estado ditatorial” (Coimbra, 2013Coimbra, Cecília. “Comissão Nacional da Verdade: acordos, limites e enfrentamentos”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 16 set. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/comissao-nacional-da-verdade-acordos-limites-e-enfrentamentos/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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). Para Coimbra, a compensação econômica só tem sentido “se for parte integrante e o final de um processo”, caso contrário seria apenas um “competente cala-boca”. Ela sublinha que, inicialmente, a comissão se chamaria “Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça” (Coimbra, 2019Coimbra, Cecília. “Pacificação e reconciliação nacional: da Lei da Anistia à Comissão Nacional da Verdade”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 17 dez. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/pacificacao-e-reconciliacao-nacional-da-lei-da-anistia-a-comissao-nacional-da-verdade/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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). A questão da justiça teria sido retirada por pressões de setores contrários às investigações. Segundo Coimbra, “o Executivo cede à chantagem”. Com isso, a comissão “tornou-se, em realidade, uma grande mise-en-scène midiática” (Coimbra, 2013Coimbra, Cecília. “Comissão Nacional da Verdade: acordos, limites e enfrentamentos”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 16 set. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/comissao-nacional-da-verdade-acordos-limites-e-enfrentamentos/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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).

Outra questão criticada é a redução significativa da participação social na comissão, que adquiriu “caráter governamental”. Isso “impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes para que estas promovam a responsabilização” (Coimbra, 2013Coimbra, Cecília. “Comissão Nacional da Verdade: acordos, limites e enfrentamentos”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 16 set. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/comissao-nacional-da-verdade-acordos-limites-e-enfrentamentos/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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) - mais uma vez, Coimbra se utiliza do enquadramento da justiça para criticar a CNV. Não por acaso, desde as suas origens, o grupo se manteve apartidário, escolhendo não se aproximar de nenhum partido ou figura política. Isso fica claro quando analisamos a entrega da Medalha Chico Mendes de Resistência. Pois dentre as regras de escolha dos homenageados está a restrição de que nenhum candidato em ano de eleição pode ser homenageado, mantendo assim o distanciamento do grupo em relação ao Estado. 4 4 Curiosamente, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) é o único partido político convidado para as reuniões do GTNM/RJ e é considerado um parceiro do grupo.

O enquadramento da memória, tão enfatizado pela CNV, é visto pelo GTNM/RJ apenas como fatos “já fartamente documentados através de pesquisas feitas, sem qualquer apoio governamental, por muitos familiares e movimentos de direitos humanos” (Coimbra, 2013Coimbra, Cecília. “Comissão Nacional da Verdade: acordos, limites e enfrentamentos”. Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, 16 set. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/comissao-nacional-da-verdade-acordos-limites-e-enfrentamentos/ >. Acesso em: 12/8/2023.
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). Então, não seriam descobertas da comissão, mas fatos conhecidos pelos envolvidos que agora são “pelo menos, visibilizados pela grande mídia e tornados oficiais pelo Estado brasileiro”. O enquadramento da memória seria, na verdade, “sequestros de pesquisas realizadas anteriormente”, havendo principalmente “falta de vontade política” de fazer algo além disso. Vale a pena notar a participação do próprio GTNM/RJ nessas pesquisas, realizadas ainda nos fins dos anos 1980 e início dos anos 1990. Por meio dos trabalhos do grupo, de averiguações realizadas no Instituto Médico Legal (IML), no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, na Santa Casa de Misericórdia e em parte dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-RJ), foram descobertos catorze corpos de militantes no Rio de Janeiro (Campos, 2018Campos, Lucas Pacheco. “Políticas públicas e as lutas por memória e justiça: contradições e limites”. Revista TransVersos, n. 12, 2018., p. 41).

Outra questão a ser mencionada é a crítica do GTNM/RJ à escolha do termo “grave violação de direitos humanos” para caracterizar o objeto de investigação da CNV. Para o GTNM/RJ, essa seria “uma opção política”. Essa expressão foi a que prevaleceu no PNDH III e no texto da lei que deu origem à comissão, substituindo a expressão “crimes cometidos no período do regime militar”, utilizada na proposta inicial de criação de uma comissão da verdade, em dezembro de 2009. Para o GTNM/RJ, “esta mudança não se tratou de mera escolha técnica, pois diluiu e amenizou as ações do Estado” (Campos, 2018Campos, Lucas Pacheco. “Políticas públicas e as lutas por memória e justiça: contradições e limites”. Revista TransVersos, n. 12, 2018., p. 48).

No caso da interação apresentada aqui, as “categorias com que os grupos nomeiam, classificam e hierarquizam simbolicamente o mundo social e suas divisões” têm valor (Szwako; Lavalle, 2019Szwako, José; Lavalle, Adrian Gurza. “‘Seeing Like a Social Movement’: Institucionalização simbólica e capacidades estatais cognitivas”. Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 2, 2019, pp. 411-34., p. 417). A CNV e o GTNM/RJ produziram formas classificatórias e hierarquias distintas para compreender o processo de reparação às vítimas. Assim, é preciso considerar que tanto o GTNM/RJ quanto a CNV tiveram de fazer trabalhos de significação (meaning work), mobilizar e contramobilizar ideias e significados simbólicos. Esses atores políticos são agentes que criam significações e se engajam ativamente na produção e manutenção de significados simbólicos para seus membros, antagonistas, aliados e observadores (Benford; Snow, 2000Benford, Robert D.; Snow, David A. “Framing Processes and Social Movements: An Overview and Assessment”. Annual Review of Sociology, v. 26, n. 1, 2000, pp. 611-39.). Eles fazem parte de uma “política de significação” (Hall, 1982Hall, Stuart. “The Rediscovery of Ideology: Return to the Repressed in Media Studies”. In: Gurevitch, Michael et al. (orgs.). Culture, Society and the Media. Londres: Methuen, 1982.) e, por trabalharem com enquadramentos diferentes, esses dois atores não conseguiram atuar de maneira conjunta.

A relação entre Estado e movimentos sociais não deve ser vista de maneira normativa, como um pressuposto ou algo inerentemente bom ou ruim, mas sim como escolhas que são feitas pelos próprios movimentos sociais, que podem decidir - a partir de conversas internas, princípios pessoais ou até mesmo escolhas estratégicas - qual tipo de relação gostariam ou poderiam construir com o Estado. No caso aqui analisado, os membros do GTNM/RJ escolheram, desde o princípio, ter um posicionamento crítico em relação a qualquer atuação de órgãos estatais e também a qualquer aproximação com atores estatais por causa dos enquadramentos diferentes com que trabalham.

CONCLUSÃO

O debate sobre institucionalização mostra a importância de o Estado começar a “ver [as coisas] como um movimento social”, incorporando categorias de classificação a partir de sua interação com os movimentos sociais (Szwako; Lavalle, 2019Szwako, José; Lavalle, Adrian Gurza. “‘Seeing Like a Social Movement’: Institucionalização simbólica e capacidades estatais cognitivas”. Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 2, 2019, pp. 411-34.). Quando esse processo é bem-sucedido, ocorre um encaixe institucional (Lavalle et al., 2018Lavalle, Adrian Gurza et al. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Eduerj, 2018.). Porém, este artigo buscou mostrar que muitas vezes esse processo não ocorre da maneira esperada pelo Estado e os movimentos sociais se opõem à aproximação. No caso em questão, a CNV não foi capaz de incorporar categorias suficientemente fortes para conseguir o apoio do GTNM/RJ. Simbolicamente, a CNV não conseguiu incorporar o enquadramento da justiça, tão caro ao GTNM/RJ. Argumentei que a CNV e o GTNM/RJ têm interpretações diferentes do que significa fazer reparação às vítimas da ditadura militar. Enquanto a CNV se apoiava no enquadramento da memória, o GTNM/RJ buscava o enquadramento da justiça.

Mesmo assim, houve aproximações latentes. Era importante que o GTNM/RJ se mantivesse afastado da CNV, apesar de ela própria servir de referência para o grupo em reuniões internas. Ao mesmo tempo, embora os membros do GTNM/RJ não tenham dado depoimentos oficiais à CNV, depoimentos anteriores são citados diversas vezes no relatório final da CNV. Porém, apesar de algumas de suas preocupações serem as mesmas, as duas entidades se mantiveram afastadas, pois defendiam enquadramentos diferentes para a questão dos direitos humanos.

Concluo então que a disputa aqui apresentada demonstra a importância do aspecto simbólico do movimento para uma tentativa de encaixe institucional promovida pelo Estado brasileiro. Nesse caso, essa tentativa não foi bem-sucedida, pois o órgão estatal - a CNV - não foi capaz de promover - por motivos políticos, institucionais, legais, entre outros - um enquadramento que satisfizesse o movimento social em questão - o GTNM/RJ.

Vale a pena considerar também que a escolha do GTNM/RJ pelo enquadramento da justiça não é necessariamente apenas estratégica ou calculada, mas apresenta um forte componente moral, afetivo e emocional (Goodwin; Jasper, 1999Goodwin, Jeff; Jasper, James M. “Caught in a Winding, Snarling Vine: The Structural Bias of Political Process Theory”. Sociological Forum, v. 14, 1999, pp. 27-54.). A escolha por se manter afastado de um órgão estatal envolve também o fato de o próprio Estado ser visto por esse grupo como o responsável pelas torturas e mortes durante a ditadura militar. Portanto, a postura contra a institucionalização pode ser vista também como uma reação emocional e moral dos membros aos crimes cometidos por agentes estatais.

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  • 1
    Disponível em: <https://www.torturanuncamais-rj.org.br/quem-somos/> Acesso em: 9/9/2023.
  • 2
    Essas clínicas não existem mais.
  • 3
    Entretanto, enquanto os militares comemoram o golpe no dia 31 de março, o GTNM/RJ “descomemora” o golpe no dia 1-º de abril.
  • 4
    Curiosamente, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) é o único partido político convidado para as reuniões do GTNM/RJ e é considerado um parceiro do grupo.

Editado por

Editor responsável: Fernando Bee.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2023
  • Aceito
    10 Ago 2023
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