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MOVIMENTOS SOCIAIS, PARTICIPAÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO: A antropologia política de Ruth Cardoso

INTRODUÇÃO

O cenário desolador da vida sociopolítica do país sob o bolsonarismo e o horizonte pouco animador por ele trazido, ainda ameaçante, guardam semelhança com outra época já vivida por nossas comunidades epistêmicas. Vivida e sofrida: os personagens, as cenas com seus percalços, os medos de retrocesso que atravessaram o país, desde a primeira promessa de distensão política - “lenta, gradual…” - em meados dos anos 1970 até a eleição de ninguém menos que Fernando Collor de Mello, em 1990, interpelaram de modo indelével nossa antropologia, sociologia e ciência política. Quais apostas fazer? Em quem confiar nessas apostas: nos sindicatos, nos partidos, nos movimentos então em voga? Mais especialmente, como chegar a um termo de análise adequado na balança entre legados teóricos e expectativas políticas? Ou, dito de outro modo, o que fazer com as expectativas projetadas sobre os sujeitos e casos analisados? E, não fosse isso suficiente, como entender a eleição do “caçador de marajás” 1 1 Fernando Collor se autointitulou “caçador de marajás”, denominação amplamente utilizada em sua campanha para a Presidência da República para enfatizar seu compromisso com o combate à corrupção e a moralização do serviço público. “Marajá” era uma denominação pejorativa do funcionalismo público, destinada a enfatizar os altos salários pagos a funcionários que pouco ou nada trabalhavam. e suas implicações aparentemente corrosivas para as apostas realizadas. Dilemas de peso que então, e mais uma vez recentemente, nos colocam sob a pressão dos paradoxos próprios às responsabilidades e escolhas entre ciência e política - para utilizar a conhecida formulação de Max Weber (1998Weber, Max. Ciência e política: duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1998.).

Foi nessa quadra histórica, ao longo de toda a década de 1980, que se deu boa parte da produção intelectual de Ruth Cardoso. Em meio àqueles dilemas teórico-normativos, suas respostas e apostas foram elaboradas por meio de múltiplas interlocuções: dentro e fora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sempre a partir de uma perspectiva que, nas trocas e afinidades com Eunice Durham (cf. Magnani, 2012Magnani, José G. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.), lançou luz sobre um objeto e um ator pouco apreciados pela antropologia brasileira até meados dos 1970: migrações e movimentos sociais urbanos. Do lado de sua formação: a antropologia.

Do outro lado: a interlocução constante com a ciência política no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, onde, junto com Durham, dialogou com Francisco Weffort, Lucio Kowarick, Juarez Brandão Lopes e Gabriel Cohn, para mencionar nomes que também deixariam legados às nossas ciências sociais.

Neste artigo, comentamos duas intervenções de Ruth Cardoso: “Isso é política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno” e “Participação política e democracia”, ambas publicadas na revista Novos Estudos em março de 1988 e março de 1990, respectivamente. A primeira destinada a iluminar, no contexto da Constituinte, o lugar da participação popular e das apostas políticas do campo democrático na pós-transição - campo outrora unificado contra o autoritarismo. A segunda, interessada em elucidar a eleição de Collor, cuja vitória pelo voto popular parecia colocar em xeque as expectativas desse campo. Ambas, plenamente inseridas na compreensão e disputa do horizonte histórico aberto com a redemocratização.

A partir dessas reflexões, queremos mostrar como a produção de Ruth Cardoso, ao mesmo tempo que é atravessada pelos dilemas de então, levanta uma crítica aos seus interlocutores contemporâneos e aos intérpretes de movimentos sociais que é até hoje pertinente às nossas análises. Ao ter se deparado com a performance de atores e atrizes populares, ela escolheu uma espécie de balança realista na qual tanto o contexto institucional e, sobretudo, a mudança observada nas configurações locais (nomeadamente nos executivos municipais) quanto as mudanças na sociedade (sua pluralidade e reconfiguração sob o avanço de novas gerações) deviam ganhar peso analítico.

Nesse sentido, ao dar destaque ao fator institucional nas equações analíticas, podemos dizer que nossa autora antecipou alguns dos principais insights dos teóricos do processo político. Mais ainda, em relação à sua compreensão da sociedade, argumentamos que Cardoso não se rendeu às promessas e expectativas projetadas sobre a mobilização popular, em grande medida, por sua ênfase, na contramão dos chamados estudos de comunidade, em uma leitura centrada na mudança histórica e nos conflitos. Bem observado, este esboço de história intelectual das interlocuções e apostas ao redor de sua reflexão poderá nos levar, esperamos, a uma qualificação adequada de sua “antropologia política” - tal como ela própria um dia preferiu nomeá-la (Cardoso, 1978Cardoso, Ruth Correia Leite. “Os ‘símbolos’ e o ‘drama’ na antropologia política”. Anuário Antropológico, v. 2, n. 1, 1978, pp. 317-26.) 2 2 Dizer que a obra de Ruth Cardoso está na gênese de uma antropologia política por certo não significa que inexistem outras antropologias da política no Brasil.Cf.Karina Kuschnir (2007) e Paula Montero, José Mauricio Arruti e Cristina Pompa (2012). .

O texto segue este percurso: no primeiro tópico, apresentamos os principais pontos de “Isso é política?” e “Participação política e democracia”, destacando posturas e temas convergentes entre eles; em seguida trazemos à baila alguns dos interlocutores de Ruth Cardoso e mostramos em que medida essa interlocução nos fala dos dilemas dos cenários de encanto e sucessivo desencanto da Constituinte e das eleições de 1990; na terceira e última parte revisitamos algumas das principais teses e críticas de Cardoso ao redor das formas populares de mobilização. Como um todo, nosso texto argumenta que parte expressiva da reflexão de Cardoso, em grande medida em virtude do seu diálogo com a ciência política, 3 3 Nas palavras da própria Ruth Cardoso: “Provavelmente, se eu tivesse continuado na antropologia, o meu percurso teria sido outro” (Cardoso, 1998, p. 161). constitui legado imprescindível para nossas agendas contemporâneas acerca de movimentos sociais, participação e institucionalização.

POLÍTICA, PARTICIPAÇÃO E REDEMOCRATIZAÇÃO

O fim da década de 1980 exigiu fôlego e paciência das e dos intérpretes da política brasileira, inclusive daquelas e daqueles inseridos na academia. Depois de uma Assembleia Constituinte e de uma Carta Constitucional consideradas realizações relativamente exitosas por parte significativa dos atores que disputaram a transição - a despeito do investimento conservador do chamado Centrão 4 4 Cf. Daniel Marcelino, Sérgio Braga e Luiz Domingos (2009). -, a eleição de Collor em 1990 foi como uma “pá de cal” sobre as expectativas de numerosos analistas. “Diante dos resultados da eleição presidencial tão desejada, gerou-se uma certa perplexidade que para alguns fundamenta uma desilusão, e para outros cria uma certa ansiedade” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 15). Por certo, tais sentimentos não soam tão estranhos se considerarmos que parte significativa dos analistas em desencanto compunha os quadros das agremiações partidárias, nomeadamente o PT e o PSDB, criadas em nossa longa redemocratização. Contra tal desencanto, Cardoso pede, entretanto, afastamento e propõe uma “análise mais desapaixonada sobre o processo político dentro do qual a eleição é um episódio” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 15).

Postura análoga é demandada no texto de 1988. “Não estamos em momento de balanços otimistas nem de visões catastrofistas” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 80). Ali não se tratava das eleições, mas de um diagnóstico demasiado normativo que decretava um suposto “refluxo” dos movimentos sociais no Brasil; onde “já é lugar-comum falar do esfacelamento das forças que resistiram aos governos autoritários e do refluxo dos movimentos sociais. Para alguns, cooptação pelo Estado, para outros, desencanto diante das resistências institucionais” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 77). Contra esse catastrofismo, a antropóloga critica a série de “acusações”, termo dela, dirigida aos movimentos: “novo clientelismo” e “novo populismo” eram evocados “sem situar bem estes fenômenos” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 77).

Mas a quais fenômenos ela se referia? Grosso modo, Cardoso critica tais rótulos devidos à incompreensão de processos por ela observados desde fins da década de 1970, quando passou a analisar, tanto no Cebrap como em paralelo no Centro de Estudos e Documentação para a Ação Comunitária (Cedac), 5 5 O Cedac foi fundado por ela e por seus colegas em 1981. Cf. Teresa Pires do Rio Caldeira (2011, pp. 36-7). as formas populares de mobilização. Reatualizado ao longo de suas reflexões nos anos 1980, esse foi um ponto firme em sua argumentação: “Ao enfrentamento [popular] começa a suceder o encaminhamento das demandas pelos canais competentes” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 78). Mais: a mobilização não aguardou a retomada de eleições livres e democráticas para entabular relações com os atores institucionais, “antes delas, os grupos organizados de todas as classes já estabeleciam relações diferentes com os partidos, o Legislativo e o Executivo” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 17). Afinal, “o lado expressivo dos movimentos que geram discursos radicais e unificados contra o autoritarismo (e não o Estado) sempre se somou ao lado reivindicativo e negociador” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 78). Segundo o mote consagrado, passava-se de la protesta a la propuesta - e o Brasil não parecia diferente da América Latina. Tal como criticou nas páginas da Revista Brasileira de Ciências Sociais, “entre os estudiosos dos movimentos sociais, [não prosperou] uma análise mais cuidadosa das modificações das relações entre Estado e Sociedade em nossos países” (Cardoso, 1987).

As formas pelas quais organizações da sociedade civil e movimentos populares crescentemente negociavam com partidos e poderes, tanto municipais como estaduais, não cabiam, a seu ver, em rótulos ou categorias de acusação. Quer dizer, o contexto de redemocratização complicava ainda mais a compreensão das interações dos movimentos com as instituições, bem como de suas estratégias e demandas. Na contraface do processo de institucionalização, cuja gênese fora capturada por Cardoso, dava-se outro processo igualmente complexo e politicamente relevante: a pluralização dos grupos e interesses internos à sociedade brasileira. Em vez de rebaixar e acusar o eleitorado brasileiro que acabava de eleger Fernando Collor, e longe de permanecer restrita àquela figura individualmente tomada, é por outra chave e por outros dilemas que ela prefere ler a sociedade brasileira pós-transição.

Como vimos, as paulatinas mudanças transcorridas nos padrões de relação entre sociedade e Estado “criaram espaço para engajamentos e desengajamentos diferentes daqueles que caracterizavam o bloco monolítico de oposição durante o período autoritário” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 16). Para Cardoso, o resultado eleitoral era mais surpreendente para os defensores de uma “polarização entre o tempo do autoritarismo militar e o tempo da democracia civil” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 17). Polarização que era “preciso abandonar”, em boa medida, em consequência daquelas mudanças, mas também por causa da temporalidade demasiado estendida da redemocratização - pois mais de uma década separou a Constituinte das primeiras promessas de distensão. “A lentidão de nossa transição nos mantém afastados dos modelos clássicos […], ao mesmo tempo que muitas mudanças nas relações dos cidadãos com o poder começaram a ocorrer durante o governo militar” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 23). Em vez de anseios, pede “flexibilidade, para que seja possível captar os conceitos e preconceitos que aparecem no ideário dos cidadãos” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 23).

Quer dizer, analogamente aos movimentos sociais que foram transformados ao longo da transição e por ela, também a sociedade brasileira pós-transição estava, na conjuntura das eleições de 1990, transformada, em uma palavra, pluralizada. Ao ler aquele desastroso resultado eleitoral, Cardoso resistiu a uma dupla tentação: “tanto à tentação de acentuar a disparidade das opiniões para mostrar uma sociedade desarticulada [hoje diríamos polarizada] quanto à de exaltar as maiorias democráticas considerando-as eixos das mudanças futuras” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 23). Deixadas de lado uma pretensa virtù democrática e as supostas faltas do eleitorado (falta de consciência ou conhecimento etc.), ela acentua as diversas clivagens e desigualdades nele operantes. Ora enfatizando as diferenças regionais, ora destacando discrepâncias etárias e desigualdades escolares quanto a percepções políticas, Cardoso lança luz sobre esse universo e suas profundas ambiguidades, sem respostas taxativas. Preocupa-a o afastamento manifesto de faixas mais jovens em relação à política, embora ao mesmo tempo reconheça que liberdade e igualdade são apreciadas.

É de déjà vu a sensação disparada por seu diagnóstico. De modo semelhante ao momento atual, “aqui, como em outros países, o sistema representativo está desacreditado” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 24). E uma das soluções para tal descrédito poderia vir justamente das trajetórias de mobilização da redemocratização. Segundo as pesquisas de opinião, “a participação popular [era vista] como panaceia” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 24). Solução, aliás, criticada por Cardoso, pois para que essa “vaga demanda por participação se cristalize em expectativas políticas definidas é preciso que diminua o desencanto com a política” (Cardoso, 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24., p. 24). Convergentemente, sua reflexão anterior também não a celebra sem mais. “A participação”, diz, “aparece nas propostas políticas democráticas como o único instrumento disponível para a manifestação legítima daqueles que recebem o impacto das decisões governamentais e que desejam que sua voz seja ouvida” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 74). Se os apelos participacionistas se apresentam assim, isto é, como “instrumento para afirmação de desejos coletivos” e como “regulador do sistema”, eles só podem ganhar sentido dentro do rol de mecanismos e ajustes “capazes de manter a ligação entre a administração da coisa pública e a sociedade cada vez mais pluralista” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 75).

Operando simultaneamente como dado e premissa, a sociedade brasileira tinha já se pluralizado, e falar de seus grupos, eleitores, cidadãos, interesses, classes, movimentos e partidos era, para Ruth, não apenas reconhecer necessariamente essa pluralização, mas apresentar o desafio de seu diagnóstico. Daí, então, sua acuidade em rechaçar, no plano analítico, conceitos que supunham homogeneidades imaginárias e polares. As mudanças na política e na sociedade impuseram a dissolução da oposição simples entre duas entidades homogêneas: “democratas populares e anti-status quo” versus “oligárquicos e conservadores”. “A quebra desta polaridade”, diz ela, “não se explica pelo esgotamento dos discursos oposicionistas, mas sim pelo novo contexto em que se desenrolam as ações coletivas” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 77) - é essa analítica relacional que vamos, mais adiante, aproximar de Sidney Tarrow.

Como se pode notar, os pontos centrais e convergentes desses dois artigos de Ruth Cardoso sintetizam alguns de seus argumentos a respeito não só dos movimentos populares, mas da política e da sociedade brasileiras. Se não eram fáceis os dilemas políticos enfrentados por nossa autora e seus contemporâneos, as alternativas e as escolhas analíticas por ela propostas recusavam polaridades fáceis. Contra diagnósticos que prolongavam a radicalização dos “anos de chumbo” e investiam numa participação idealizada como caminho para o futuro, sugeriu lentes mais modestas e realistas para entender a variedade das formas de participação e ação da sociedade civil, pois “as ações coletivas, lançando seus dardos sobre objetivos restritos nem sempre conjugados, cumprem um papel na construção e alargamento da democracia possível” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 80, grifo nosso). No lugar de explicações globais, ela enfatizava a pluralidade mesma da nossa sociedade, com todas as suas ambiguidades e desigualdades. Vejamos a seguir como o rol das interlocuções por ela travadas nos permite somar mais uma camada na compreensão de seus diagnósticos e do que estava então em jogo.

INTERLOCUTORES E OBJETO DE DISPUTA

Hoje, para um leitor situado no fim do primeiro quartel do século XXI, quiçá pareça estranha a alusão ao diagnóstico da pós-modernidade na argumentação de “Isso é política?” - alusão já consignada no subtítulo. Estranha não apenas porque o auge do debate sobre as teses do pós-modernismo ocorreu na filosofia ou em outros âmbitos de especialização como a arquitetura ou a crítica estética, mas sobretudo porque as críticas pós-modernistas e o eventual advento de uma “sociedade pós-moderna” remetem a um plano macro de reflexão - “das questões maiores” - que parece distante das exigências de uma análise da conjuntura da Constituinte, especialmente em se tratando de uma autora, como Ruth Cardoso, crítica das explicações globais e seus efeitos de dedução sobre a caracterização da sociedade, substituindo o conhecimento histórico da complexidade social e sua transformação pelo exercício da lógica. De fato, ela é explícita a esse respeito: “Vamos deixar de lado os rótulos [‘sociedade pós-moderna’] e procurar o significado das ações coletivas sem supor que este desempenho esteja condicionado por mudanças evolutivas” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79), pois, afinal, “a melhor maneira de continuar trilhando este caminho [das questões maiores] parece ser olhar mais de perto o modo como está sendo construída a teia concreta da política” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 77).

Esse e não outro é o convite estendido na sua análise de 1990 ante a multiplicação de diagnósticos que, deduzindo as escolhas eleitorais dos cidadãos quer dos interesses inscritos na estrutura econômica, quer da efetividade subliminal dos símbolos encarnados na figura de Collor, apressavam-se em oferecer explicações que ora esconjuravam, ora convocavam o fantasma da regressão autoritária, assumindo a fixidez unitária do povo ou das estruturas, em vez de se preocupar em caracterizar as mudanças ocorridas na sociedade ao longo dos anos da ditadura. Mudanças flagradas, em “Participação política e democracia”, no exame das diferenças na compreensão da política e na avaliação de suas instituições por diferentes faixas etárias de eleitores. A interpretação dos resultados do survey que informa o artigo, é claro, também foi realizada por seus contemporâneos visando esconjurar o autoritarismo, reafirmando o caráter democrático do povo ou denunciando o fracasso na aposta da sociedade democrática. Ante uma ou outra explicação, “fácil demais e incompleta”, sua escolha, conforme já apontado, envolve exercício de reflexividade: os instrumentos analíticos que prolongavam a oposição entre democracia (civil) e autoritarismo (militar) como polos que dotavam os atores de unidade - de unicidade até - demandavam revisão, pois não mais eram apropriados para entender o momento da pós-transição.

Por que, então, dialogar com as teses gerais do pós-modernismo, se a conjuntura exigia análises concretas, sensíveis às mudanças do momento histórico? Duas linhas de indagação permitem iluminar os propósitos e alcances dos argumentos avançados em “Isso é política?”. Primeiro, no plano da arquitetura do argumento, esse diálogo permite sincronizar o debate no Brasil, na conjuntura da Constituinte, com o debate internacional, evidenciando paralelismos. “Sincronizar”, pois se trata de dois momentos distintos: nos Estados Unidos e na Europa, a radicalidade e utopias dos anos 1960, reivindicando novos modos de vida; no Brasil, a radicalidade do fim dos anos 1980, demandando a democratização do Estado. No primeiro caso, conclama-se à politização da vida sob a premissa de que “tudo é político” (“panpoliticismo”): “Todas as atividades, a arte, a ciência, a religião ou o lazer, têm seu lado político, o que impõe a todos os cidadãos a condição de doubles dos políticos profissionais” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 75). Já no segundo, a participação é chamada não apenas a fundar a ordem democrática, mas também a desempenhar o papel de principal instrumento, se não único, para fazer com que as políticas públicas expressem os anseios da população e atendam às necessidades coletivas. Em ambos os casos, o engajamento virtuoso de indivíduos na ação coletiva aparece não só investido de potencialidades para transformação social, mas também como o caminho privilegiado dessa transformação.

Pois bem, as teses pós-modernistas são, no argumento de nossa autora, não um diagnóstico global do novo estágio das sociedades, mas as “novas roupagens” que reatualizam velhas preocupações liberais e liberal-conservadoras acerca do caráter plural e descentrado das sociedades, não passível de síntese em algum projeto utópico ou compreensão unitária da política. A crítica pós-moderna às grandes narrativas passa também pela desconstrução da ideia de “bem-comum” e, por conseguinte, pela destituição da política como a atividade por excelência para sua encarnação. À política dessacralizada, própria dos diagnósticos pós-modernistas, não mais cabe a construção da nova sociedade, mas a tarefa menos brilhante e certamente árdua de negociar, construir e manter compromissos sempre provisórios, mas, em alguma medida, satisfatórios.

É nesse plano, diante do horizonte histórico aberto pela transição e especificamente pela Constituinte, que “é preciso situar a função e o alcance da participação como instrumento de mudança e de controle” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 76). Assim, ao sincronizar esses dois momentos, abre-se o terreno em que Cardoso interpela seus contemporâneos a definir o papel da participação na pós-transição. Afinal, ao invocar os debates entre “o moderno e o pós-moderno”, é dos “dilemas da participação” e da relação desta com a política que nossa autora quer falar. Voltaremos a isso na seção seguinte, pois a questão antecipou em quase duas décadas o registro analítico que o campo de estudos da participação viria a adotar no país. Por ora, cabe abordar a segunda linha de indagação relativa a seus interlocutores.

Três autores são explicitamente citados em “Isso é política?”: Peter Berger, Ludolfo Paramio e Norbert Lechner. Aquele, liberal-conservador; estes últimos, de esquerda. O primeiro, trazido ao texto por seu ceticismo cauteloso acerca do caráter inerentemente virtuoso da mobilização social e do engajamento político, promovidos como tais no ambiente dos anos 1960; os segundos, por seus diagnósticos sobre as transições e a perda de orientação da esquerda após as ditaduras. Os interlocutores explícitos permitem produzir a sincronização já apontada, mas interessa agora a conexão mais funda com esses diagnósticos, que diz especificamente respeito à conjuntura em que é escrito o texto de 1988. Cultura política y democratización, volume que contém - no primeiro e último capítulo - as ideias de Paramio e Lechner citadas, foi publicado apenas um ano antes, em 1987Paramio, Ludolfo. “Del radicalismo reivindicativo al pluralismo radical”. In: Lechner, Norbert (org.). Cultura política y democratización . Buenos Aires: Clacso , 1987, pp. 17-23., com o intuito de explorar o papel da cultura na proliferação das ditaduras na América Latina e na desejável construção de sociedades democráticas nas pós-transições. O foco na cultura é em si o efeito de um balanço crítico em relação às deficiências das teorias da mudança social que, à direita e à esquerda, descansavam em uma ideia de progresso impulsionada pela transformação da estrutura socioeconômica. Assim, “cultura” comparece mais como intenção analítica do que como conceito: atentar para a complexidade e diversidade das sociedades que cederam ante ou respaldaram as ditaduras e, sobretudo, atualizar o diagnóstico dessa complexidade e extrair-lhe as implicações para as possibilidades da política em sociedades que, naquele momento, encontravam-se em transição para a democracia. É em diálogo com essa intenção analítica e preocupada com o horizonte da democratização a ser politicamente disputado na pós-transição que Cardoso mobiliza as ideias de ambos os autores. E é em torno dessa disputa que gira o diálogo com os interlocutores implícitos, ao qual voltaremos adiante.

Novamente, há um jogo de temporalidades interessante. A transição espanhola ocorreu na segunda metade dos anos 1970, de modo que a leitura de Paramio sobre seu país e, em termos mais gerais, sobre a esquerda europeia coloca-se como um espelho possível para mirar o futuro do Brasil. Esse é o “modelo clássico” de desfecho rápido ao qual se alude em referência à “lentidão”, à transição mais longa ocorrida aqui - e certamente na maioria das ditaduras latino-americanas. Por sua vez, a leitura de Lechner não é de seu país, o Chile - cuja transição é coetânea à do Brasil, embora com traços muito distintos e marcada por importantes constrangimentos institucionais -, mas das possibilidades de uma cultura política democrática na América Latina. Paramio, com posição francamente crítica às teses pós-modernas e explorando essas teses mais como um ambiente cultural internacional do que como um diagnóstico de época, sustenta argumentos que ecoam notavelmente não apenas no texto de 1988, mas na análise da eleição de Collor.

A experiência da esquerda na transição espanhola oferece um vislumbre dos anos por vir no Brasil em dois argumentos de Paramio. Primeiro, a longa ditadura franquista de quase quatro décadas e a bonança econômica de parte dos anos 1960 e 1970 teriam estimulado, nos movimentos sociais e operário e na esquerda, um “radicalismo reivindicatório” em que as mais diversas demandas distributivas eram projetadas contra o governo, independentemente de sua viabilidade. De fato, as mais diversas reivindicações encontravam uma equivalência geral pela centralidade do conflito democracia versus ditadura. Durante os dez primeiros anos da transição, a mudança mais notável na cultura política da esquerda teria sido aquela para um discurso em que a política aparece como uma busca de compromissos possíveis, despida de ambições utópicas. Em segundo lugar, a perda da utopia era traço compartilhado pela esquerda na Europa, e aquela, como ocorrido na Espanha, enfrentava o desafio de reconhecer politicamente e assimilar teoricamente o pluralismo social. O Brasil teria de esperar uma década de aprendizado para que o discurso político dos atores que se engajaram nas lutas contra a ditadura registrasse essa inflexão? E quanto mais para que esse reconhecimento animasse diagnósticos lúcidos?

Olhando para América Latina, Lechner oferece interpretação similar por caminhos diferentes e, sobretudo, exprime com clareza meridiana uma tese cara às interpretações de Cardoso de ambos os momentos no Brasil (1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80. e 1990Cardoso, Ruth Correia Leite. “Participação política e democracia”. Novos Estudos Cebrap , n. 26, 1990, pp. 15-24.). Começando pela segunda, debruçar-se sobre a cultura política era desafiador não apenas porque as interpretações estruturalistas haviam se mostrado insuficientes, e porque ela condicionaria o futuro das democracias na região, mas também porque era uma lacuna na compreensão do presente. As transformações ocorridas nas sociedades sob ditadura demandavam diagnóstico urgente: “a ditadura não é um simples parêntese” (Lechner, 1987Lechner, Norbert. “La democratización en el contexto de una cultura postmoderna”. In: Lechner, Norbert (org.). Cultura política y democratización. Buenos Aires: Clacso, 1987., p. 254); a população, seus valores e crenças, inclusive em relação à política, transformaram-se de modo heterogêneo ao longo desses anos. Do ponto de vista mais geral, e em sintonia com um clima cultural internacional (“pós-moderno”), nos diferentes países da região parece clara a ausência de macrorreferências coletivas amplamente compartilhadas, quer dizer, a crise de projetos, reduzindo a capacidade de encantamento da política como síntese da vida e tornando-a uma atividade delimitada em que, certamente, a criatividade é possível. Entender como a sociedade no Brasil havia mudado durante e pela ditadura era uma tarefa incontornável para tornar a política produtiva na nova quadra histórica aberta pela transição e, é claro, pela nova ordem constitucional. Entender as possibilidades da política como atividade delimitada era um caminho para reduzir o “desencanto com a política” institucional.

Assim, essas interlocuções explícitas operam a serviço de outras de índole implícita. É o horizonte da democratização no país, a ser adequadamente compreendido e politicamente disputado na pós-transição, que constitui o objeto de disputa; as interlocutoras e interlocutores implícitos são aquelas e aqueles que perante esse horizonte efetuam suas apostas intelectuais e políticas no espectro das esquerdas. O momento exige lucidez: que política institucional interessa e é possível construir? Qual o lugar institucional da participação? Que formas institucionalmente mediadas de relação entre movimentos sociais e atores políticos são possíveis? Demandar a subordinação da política à participação popular parece próprio de um momento em que o “radicalismo reivindicatório” - parafraseando Paramio - desempenhou um papel político importante, mas está longe de oferecer orientação para a construção da ordem institucional que condicionará aquilo que a política, como atividade institucionalmente delimitada, é capaz de produzir. Note-se, o título do artigo escrito na conjuntura da constituinte é uma pergunta - “Isso é política?” - e agora parece claro que ela está dirigida a esses interlocutores implícitos, instando-os a travar a disputa pela política que o momento demanda. Do mesmo modo, torna-se claro porque “Participação política e democracia” é um exercício de caracterização da forma como a heterogeneidade social - a sociedade pluralizada - se relaciona com e organiza as compreensões da participação, no momento das primeiras eleições democráticas para a Presidência da República, em vez de um prognóstico sobre o futuro da nova democracia. Esse futuro não pende das projeções de eventos do presente como prefigurações do futuro, tampouco está ao alcance de um projeto geral de transformação social, mas a política como atividade delimitada pode alargar ou restringir a democracia.

ANTECIPAÇÕES DO DEBATE: MOVIMENTOS SOCIAIS E INSTITUCIONALIZAÇÃO

A produção de Ruth Cardoso, especificamente sobre movimentos sociais e institucionalização, ultrapassa os textos aqui sob escrutínio. Ao lado das reflexões sobre feminismos, gênero e mulheres, 6 6 Um volume que congrega, de modo póstumo, parte expressiva da produção de Ruth Cardoso é Obra reunida (Caldeira, 2011). Dividido em oito seções, o livro reúne treze textos na seção “Movimentos sociais, Estado e democracia” e dez reflexões na seção “Mulheres, direitos e democracia”, sendo seu segundo maior tópico. o tema dos movimentos populares e sua relação com as instituições da política e das políticas tomou boa parte de sua agenda, em especial ao longo da década de 1980. Nessa seara, três títulos de peso foram: “Movimentos sociais urbanos: um balanço crítico”, datado de 1983; “Movimentos sociais na América Latina”, originalmente publicado em 1987 na Revista Brasileira de Ciências Sociais; e “A trajetória dos movimentos sociais”, que veio à luz na década seguinte.7 7 Publicados, respectivamente, em Bernardo Sorj e Maria Hermínia Tavares de Almeida (1983, pp. 313-50), Ruth Cardoso (2011b [1987]) e Evelina Dagnino (1994, pp. 81-90). Somados aos dois textos centrais aqui escrutinados, esses títulos permitem mostrar a continuidade de suas escolhas analíticas de fundo, para além dos diagnósticos, pois estes, em coerência com tais escolhas, são mutáveis. Contribuições como as veiculadas nesses títulos e a partir de espaços de reflexão em nada restritos à academia, como era o caso do Cebrap, mas também do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e outras organizações civis, nutriram o debate no Brasil sobre atores coletivos, Estado e institucionalização, cujos efeitos cognitivos podem ser retraçados e sentidos até hoje (cf. Szwako, 2009Szwako, José. “Os sentidos da democracia: crítica, aposta e perplexidade na produção do Cenedic”. Lua Nova, n. 78, 2009, pp. 251-303.; Szwako; Araujo, 2019Szwako, José; Araujo, Ramon. “Quando novos conceitos entraram em cena”. Estudos Históricos, v. 32, n. 67, 2019, pp. 469-99.).

Nesta seção queremos argumentar que a reflexão de Cardoso plantou insights que anteciparam em mais de uma década a evolução do debate nacional, o qual nem sempre traçou sua conexão com os legados teóricos relevantes ou, quando o fez, não raro colheu e acolheu tais insights como contribuições originais produzidas em outras latitudes. Mais: algumas de suas formulações mais agudas sobre a autonomia e a institucionalização dos movimentos sociais e, em termos mais gerais, sobre a relação entre Estado e sociedade civil, não apenas anteciparam desenvolvimentos teóricos hoje consagrados, como seguem atuais e com implicações críticas de vulto à produção contemporânea (Gurza Lavalle; Szwako, 2015Gurza Lavalle, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, 2015, pp. 157-87.).

Como vimos na primeira seção, em “Isso é política?” nossa autora se recusava a falar de um suposto refluxo que, à época, estaria atravessando a ação popular: “não quero avaliar a ascensão e a queda dos movimentos sociais. Prefiro”, ela diz, “pensar em contextos institucionais e políticos que redefinem as formas de manifestação da vontade popular” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79). Essa escolha analítica permeia praticamente toda a reflexão de Cardoso. Já na primeira metade dos anos 1980, em crítica àqueles autores que queriam ver na autonomia e no espontaneísmo dos movimentos sociais seu traço distintivo, isto é, único, genuíno e inovador, ela dizia: “Sua ação reivindicativa, ainda que autêntica, é positiva, porém fragmentada e limitada pelo próprio aparelho do Estado” (Cardoso, 1983Cardoso, Ruth Correia Leite. “Movimentos sociais urbanos: balanço crítico”. In: Sorj, Bernardo; Almeida, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 313-50., p. 347).

Seu raciocínio traz, de maneira original, um modo relacional de pensar a dinâmica dos movimentos populares, pois para “compreender essa dinâmica é imprescindível aprofundar a análise das relações entre o aparelho de Estado e a sociedade civil” (Cardoso, 1983Cardoso, Ruth Correia Leite. “Movimentos sociais urbanos: balanço crítico”. In: Sorj, Bernardo; Almeida, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 313-50., p. 349). Se essa relação podia ser menos evidente em movimentos voltados contra estruturas sociais de discriminação e, por conseguinte, orientados para a politização de fenômenos inscritos na “vida privada” - movimento feminista ou movimento negro (Cardoso, 1994Cardoso, Ruth Correia Leite. “A trajetória dos movimentos sociais”. In: Dagnino, Evelina (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense , 1994, pp. 81-90.; 2013) -, ela se impunha de modo incontornável no caso dos movimentos populares, engajados no enfrentamento de carências que cabia às agências públicas atender. Contra análises autonomistas e espontaneístas, sua leitura relacional e realista constata que, como decorrência da crescente aproximação a prefeituras e outros atores coletivos, os movimentos “tinham de enfrentar divisões internas originadas em diferenças partidárias, religiosas etc.” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 80, grifo nosso). Dito de outro modo, a raiz explicativa das dinâmicas movimentalistas não está dentro dos próprios movimentos. As mudanças ocorridas em sua ação e composição originam-se preponderantemente nas relações que eles travam com outros atores - partidários, governamentais, religiosos ou outros - em função do contexto político. A raiz, é claro, também não se encontra fora deles, mas nas relações que se alteram junto com o contexto político.

Ora, a esse enquadramento analítico, um grupo de teóricos estadunidenses apenas somaria uma especificação conceitual: em função das oportunidades conquistadas e/ou abertas no contexto político - mais precisamente da estrutura de oportunidades, formulada por Sidney Tarrow (1998Tarrow, Sidney. Power in Movement: Social Movements and Contentious Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.) com influência reconhecida do trabalho de Charles Tilly.

Assim como os outros primeiros proponentes da perspectiva geral, tanto Tilly quanto McAdam argumentaram que o momento e o destino final dos movimentos eram fortemente moldados pelas oportunidades variáveis proporcionadas aos adversários pelas mudanças na estrutura institucional dos sistemas políticos e pela alteração das preferências e alianças políticas. (McAdam; Tarrow, 2018McAdam, Doug; Tarrow, Sidney. “The Political Context of Social Movements”. In: Snow, David A. et al. The Wiley Blackwell Companion to Social Movements. 2ª ed. Hoboken: John Wiley & Sons, 2018, pp. 17-42., p. 20; tradução nossa)

São instigantes as afinidades entre a postura realista de Cardoso e a agenda do conflito político. Enquanto Doug McAdam e Sidney Tarrow (2011)McAdam, Doug; Tarrow, Sidney. “Movimentos sociais e eleições: por uma compreensão mais ampla do contexto político da contestação”. Sociologias , v. 13, n. 28, 2011, pp. 18-51. pedem atenção à “relação recíproca entre eleições e movimentos sociais”, Ruth Cardoso observara que “a volta das eleições e a passagem da administração pública para as mãos da oposição redefiniram as inserções de vários grupos (partidários ou não) no campo da política” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79). Embora permaneça em alguma medida subteorizada, sua ênfase relacional lhe permitiu notar as implicações da insistência na autonomia e no espontaneísmo movimentalista para a agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais no país, especialmente no contexto dos anos 1980, em que a progressiva abertura trouxe consigo mudanças nas relações entre atores políticos, governamentais e movimentos. “Já os rearranjos suscitados pelas mudanças de regras na administração pública […] foram menos estudados, apesar de incidirem diretamente sobre os modos de apresentar e encaminhar as demandas sociais” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79, grifo nosso). A desatenção a esses rearranjos era o preço pago pelas ênfases analíticas adotadas, que acabaram por “imobilizar os cientistas sociais” no contexto da abertura (Cardoso, 1994Cardoso, Ruth Correia Leite. “A trajetória dos movimentos sociais”. In: Dagnino, Evelina (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense , 1994, pp. 81-90., p. 87).

Assim, Cardoso se antecipou à grade teórica do conflito, mas não permaneceu analiticamente refém das expressões e formas contenciosas - inclusive as violentas - de mobilização, optando por uma via não disjuntiva de análise: “o lado expressivo dos movimentos que geram discursos radicais e unificados contra o autoritarismo”, diz, “sempre se somou ao lado reivindicativo e negociador” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 78). Nessa chave, negociação e protesto são duas faces do mesmo processo, historicamente crescente ao longo da abertura - e podemos acrescentar a posteriori também ao longo dos anos 1990 e 2000 -, pelo qual se deu o aumento das chances de interlocução com autoridades locais e, ainda, no qual parte dos movimentos se tornaram “interlocutores capazes de dar sustentação ao diálogo entre certas agências públicas e seus possíveis usuários” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 78). No processo não há um acoplamento, mas uma “comunicação descontínua que obriga os movimentos a enfatizar em algumas situações seu lado negociador ou seu lado contestador” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 78).

Nesse debate, há uma crítica por ela poucas vezes explicitada. Ao longo de sua produção nos anos 1980, Cardoso se opôs a leituras marxistas (pós ou neomarxistas) das formas então emergentes de mobilização e associação. “Essa atitude contestatória foi, com frequência, interpretada como uma manifestação localizada de uma vaga ‘consciência de classe’ que renascia sob nova forma” (Cardoso, 2011aCardoso, Ruth Correia Leite. “Os movimentos populares no contexto da consolidação da democracia”. In: Caldeira, Teresa Pires do Rio (org.). Ruth Cardoso: obra reunida . São Paulo: Mameluco , 2011a, pp. 310-25., p. 311). Com efeito, sua crítica mais bem-acabada se dirige àqueles cientistas sociais e políticos que, reunidos ao redor do Cedec, 8 8 Para o legado do Cedec no debate brasileiro,cf.José Szwako e Ramon Araujo (2019). valeram-se da chave weffortiana do populismo para fazer sua apropriação do debate europeu dos chamados “movimentos urbanos”. Analogamente àquela noção vaga, outros atributos eram rapidamente imputados a personagens e cenas de protesto observadas. Por exemplo, os “quebra-quebras são considerados ‘momentos elementares do processo de formação da consciência das classes populares’” (Cardoso, 2011bCardoso, Ruth Correia Leite. “Movimentos sociais na América Latina”. In: Caldeira, Teresa Pires do Rio (org.). Ruth Cardoso: obra reunida . São Paulo: Mameluco , 2011b, pp. 280-300., p. 287). No diapasão marxista aggiornato à época, um pequeno dicionário de categorias normativas era atualizado e projetado sobre os atores em cena: novidade, autonomia, independência, consciência, potência, emancipação, transformação - a lista é longa. No entanto, para Cardoso, como para nós, “a atribuição de uma potencialidade revolucionária aos movimentos urbanos é”- diremos: ainda hoje - “mais a expressão de um desejo utópico dos analistas que o resultado da observação sistemática” (Cardoso, 2011bCardoso, Ruth Correia Leite. “Movimentos sociais na América Latina”. In: Caldeira, Teresa Pires do Rio (org.). Ruth Cardoso: obra reunida . São Paulo: Mameluco , 2011b, pp. 280-300., p. 290). Contra o desiderato projetivo, nossa autora finca o pé numa abordagem que, como visto, não descura do contexto político-institucional nem aceita análises disjuntivas. “Cada contexto determinará os caminhos da negociação e incluirá possibilidades e bloqueios específicos, que dependem das alianças vistas como factíveis tanto para os favelados quanto para os poderes constituídos” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 291). Bem observada, toda essa mudança nas chances de aliança e intensificação da comunicação socioestatal não trazia efeitos apenas para a sociedade civil. O diálogo tem dois lados e “as agências públicas [que] não sabiam muito bem como lidar com tudo isso” (Cardoso, 1994Cardoso, Ruth Correia Leite. “A trajetória dos movimentos sociais”. In: Dagnino, Evelina (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense , 1994, pp. 81-90., p. 89) também são modificadas no processo. “Diálogo” e “comunicação” remetem à participação, não àquela do “radicalismo reivindicatório”, mas à criação de espaços que lhe conferem um papel institucional na provisão de serviços públicos. Como vimos, é ao desafio de definir e ampliar esse papel que Cardoso atenta na conjuntura da Constituinte, interpelando seus contemporâneos. A mirada arguta surpreende: já na virada dos anos 1980, Cardoso identifica claramente as implicações de reconfiguração das relações entre sociedade civil e Estado expressa na criação de “espaços” que institucionalizam o diálogo, ou melhor, uma nova configuração para essas relações. O crescimento exponencial desses “espaços” mediante a regulamentação das disposições constitucionais em matéria de participação e o desenvolvimento de sistemas de políticas sociais levou, ao longo dos anos 1990, ao surgimento de um campo de estudos debruçado sobre essas instâncias que acabaram ganhando a nomenclatura de “instituições participativas”. Mais recentemente, os traços cada vez mais nítidos dessa reconfiguração levaram ao desenvolvimento de agendas de pesquisa focadas nas mudanças nos “dois lados do diálogo” em termos do desenvolvimento de capacidades estatais e ação coletiva. O trecho em que a institucionalização do diálogo é identificada é longo, mas a citação vale a pena:

os movimentos populares forçaram a comunicação com as empresas estatais prestadoras de serviços e… foram sendo criados espaços próprios para o diálogo entre os grupos organizados e alguns órgãos públicos. Indico apenas alguns exemplos: na segunda metade dos anos 70, em São Paulo, os movimentos pela extensão da rede de água acabaram por institucionalizar seu contato com a Sabesp, através de funcionários designados para receber os futuros usuários destes serviços. Em 1978, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo criou os Conselhos Comunitários de Saúde, discutindo com os Movimentos de Saúde a regulamentação destes órgãos de representação popular. O movimento pró-creches estabelece um diálogo com a Prefeitura de São Paulo no qual pretende influir no gerenciamento das creches. (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 78)

Quer dizer, as instituições estatais e autoridades eleitas eram também transformadas pelo processo de institucionalização identificado como signo de uma reconfiguração emergente. “Essas iniciativas tiveram o sentido de constituir legítimos interlocutores tanto do lado da sociedade como do Estado” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79). Mais: o sentido dessa reconfiguração não é unívoco e não permite interpretações simplistas de oposição ou reconciliação. Longe de reproduzirem duas lógicas polares e separadas, tal como vistas pelo prisma predominante, tanto o Estado como a “órbita da política partidária cruza[m] o campo de atuação das outras organizações civis” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79), de maneira, como vimos, a aumentar o conflito e as divisões movimentalistas. Assim, as mudanças nos movimentos não se explicam pelo esgotamento das um dia chamadas energias utópicas nem dos radicalismos de oposição, “mas sim pelo novo contexto [político-institucional] em que se desenrolam as ações coletivas” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 77), que introduz outros conflitos entendidos em registro relacional.

Os conflitos são relacionais não apenas pelo truísmo de, por definição, suporem um outro, mas, em sentido mais profundo, pelas tensões produzidas pelo cruzamento de lógicas que a redefinição das relações produz. Isso é peculiarmente claro no exemplo da “questão da representação”. Os “espaços de institucionalização do diálogo” tornavam os movimentos sociais representantes em órgãos públicos, mas essa posição e o exercício de suas potenciais funções causavam estranhamento “pela própria autoimagem dos movimentos e também pela imagem que fizemos deles” (Cardoso, 1994Cardoso, Ruth Correia Leite. “A trajetória dos movimentos sociais”. In: Dagnino, Evelina (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense , 1994, pp. 81-90., p. 87). Diga-se de passagem, a antecipação é novamente notável: o papel de atores sociais nas instituições participativas só passou a ser pensada em termos de representação em meados dos anos 2000.

Mais uma vez, é impossível não notar o sentimento de déjà vu dessa antropologia notadamente política. À diferença de outras antropologias - sociologias e ciências políticas à parte -, Cardoso não isola o Estado em suas performances e rituais institucionais para etnografá-lo. Além das advertências metodológicas em A aventura antropológica, mandou outro recado à sua seara disciplinar: “é fundamental os antropólogos refinarem um pouco a sua própria análise”, disse em entrevista - refinarem “a análise do próprio contexto político onde essas coisas [a luta por direitos de minorias] estão se desenrolando” (Cardoso, 1998Cardoso, Ruth Correia Leite. “Entrevista com Ruth Cardoso”. Cadernos de Campo. n. 7, 1998, pp. 149-66., p. 165). E disse ainda mais: “eu sempre defendi que, se um antropólogo não for capaz de dar um curso de introdução à ciência política, as coisas vão mal, pois é fundamental que ele tenha esse trânsito” (Cardoso, 1998Cardoso, Ruth Correia Leite. “Entrevista com Ruth Cardoso”. Cadernos de Campo. n. 7, 1998, pp. 149-66., p. 160).

Ruth Cardoso escolheu, assim, pôr o contexto político-institucional no cerne de sua explicação. Nessa abordagem, para dizê-lo de algum modo, antropopolitológica, ela incorporou a política real: as relações com partidos políticos e os aparelhos de Estado, suas agências e seus funcionários, no jogo de suas conexões, desconexões e tensões com seus respectivos públicos. Flagrava assim, quase ao vivo, os primeiros passos daquela institucionalização dos direitos e demandas de grupos específicos que muito tempo depois se impôs como desafio incontornável de pesquisa e inflexão nas agendas de estudo dos movimentos sociais, da participação e da institucionalização no país (Abers; Von Büllow, 2011Abers, Rebecca; Von Büllow, Marisa. “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?”. Sociologias, v. 13, n. 28, 2011, pp. 52-84.; Gurza Lavalle et al., 2019Gurza Lavalle, Adrian et al. “Movimentos sociais, institucionalização e domínios de agência”. In: Gurza Lavalle, Adrian et al. (orgs.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: Iesp/Eduerj/CEM, 2019, pp. 21-87.). “Foram criados Conselhos de Condição Feminina, Secretarias de Meio Ambiente, Conselhos da Comunidade Negra, que tinham como objetivo expresso o encaminhamento das reivindicações dos movimentos, e que vieram também cumprir a função de definir um espaço, no interior do aparelho do Estado, para o diálogo com estes setores sociais” (Cardoso, 1988Cardoso, Ruth Correia Leite. “Isso é Política? Dilemas da participação. Entre o moderno e o pós-moderno”. Novos Estudos Cebrap, n. 20, 1988, pp. 74-80., p. 79).

Emblematicamente, Cardoso organizava a trajetória dos movimentos sociais e, reflexivamente, da forma como foram pensados na academia em duas fases: uma “fase heroica”, marcada pela ênfase na autonomia e no espontaneísmo dos atores - em sintonia com apostas político-intelectuais sobre o papel que esses novos atores viriam a desempenhar -, e uma fase de institucionalização, marcada pelas denúncias de refluxo e cooptação dos movimentos sociais em consonância com a “perplexidade” e a “imobilização” produzidas pelas mudanças nas relações entre atores coletivos e estatais - mas que ela preferia caracterizar em termos de “institucionalização” em face desses diagnósticos negativos. O termo era empregado por ela com plena consciência de suas implicações e não sem esclarecer de modo rápido e prudente a seus interlocutores do momento: “eu não [o] uso em sentido pejorativo” (Cardoso, 1994Cardoso, Ruth Correia Leite. “A trajetória dos movimentos sociais”. In: Dagnino, Evelina (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense , 1994, pp. 81-90., p. 82).

Os artigos de Cardoso aqui comentados à luz de suas interlocuções no momento histórico em que foram escritos e de suas escolhas analíticas de fundo perfilam, como se vê, análises sobretudo relacionais, e com boas doses de realismo, que nos deixam uma lição de peso: movimentos sociais seguem e forçam o ritmo das mudanças no contexto político por meio do arco de suas alianças e estratégias, transformando o Estado e, simultaneamente, sendo por ele transformados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Weber, Max. Ciência e política: duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1998.
  • 1
    Fernando Collor se autointitulou “caçador de marajás”, denominação amplamente utilizada em sua campanha para a Presidência da República para enfatizar seu compromisso com o combate à corrupção e a moralização do serviço público. “Marajá” era uma denominação pejorativa do funcionalismo público, destinada a enfatizar os altos salários pagos a funcionários que pouco ou nada trabalhavam.
  • 2
    Dizer que a obra de Ruth Cardoso está na gênese de uma antropologia política por certo não significa que inexistem outras antropologias da política no Brasil.Cf.Karina Kuschnir (2007)Kuschnir, Karina. “Antropologia e política”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 64, 2007, pp. 163-7. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69092007000200014>. Acesso em: 12/3/2024.
    https://doi.org/<https://doi.org/10.1590...
    e Paula Montero, José Mauricio Arruti e Cristina Pompa (2012)Montero, Paula; Arruti, José Mauricio; Pompa, Cristina. “Para uma antropologia do político: questões emergentes e agendas de pesquisa”. In: Gurza Lavalle, Adrian (org.). O horizonte da política. São Paulo: Unesp, 2012, pp. 145-84..
  • 3
    Nas palavras da própria Ruth Cardoso: “Provavelmente, se eu tivesse continuado na antropologia, o meu percurso teria sido outro” (Cardoso, 1998Cardoso, Ruth Correia Leite. “Entrevista com Ruth Cardoso”. Cadernos de Campo. n. 7, 1998, pp. 149-66., p. 161).
  • 4
    Cf. Daniel Marcelino, Sérgio Braga e Luiz Domingos (2009)Marcelino, Daniel; Braga, Sérgio; Domingos, Luiz. “Parlamentares na Constituinte de 1987: uma contribuição à solução do ‘enigma do Centrão’”. Política Hoje, v. 18, n. 2, 2009, pp. 239-79..
  • 5
    O Cedac foi fundado por ela e por seus colegas em 1981. Cf. Teresa Pires do Rio Caldeira (2011Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Apresentação. Ruth Correia Leite Cardoso: a intelectual e seu tempo”. In: Caldeira, Teresa Pires do Rio (org.). Ruth Cardoso: obra reunida. São Paulo: Mameluco, 2011, pp. 9-38., pp. 36-7).
  • 6
    Um volume que congrega, de modo póstumo, parte expressiva da produção de Ruth Cardoso é Obra reunida (Caldeira, 2011Caldeira, Teresa Pires do Rio. “Apresentação. Ruth Correia Leite Cardoso: a intelectual e seu tempo”. In: Caldeira, Teresa Pires do Rio (org.). Ruth Cardoso: obra reunida. São Paulo: Mameluco, 2011, pp. 9-38.). Dividido em oito seções, o livro reúne treze textos na seção “Movimentos sociais, Estado e democracia” e dez reflexões na seção “Mulheres, direitos e democracia”, sendo seu segundo maior tópico.
  • 7
    Publicados, respectivamente, em Bernardo Sorj e Maria Hermínia Tavares de Almeida (1983, pp. 313-50), Ruth Cardoso (2011bCardoso, Ruth Correia Leite. “Movimentos sociais na América Latina”. In: Caldeira, Teresa Pires do Rio (org.). Ruth Cardoso: obra reunida . São Paulo: Mameluco , 2011b, pp. 280-300. [1987]) e Evelina Dagnino (1994Dagnino, Evelina (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil . São Paulo: Brasiliense , 1994., pp. 81-90).
  • 8
    Para o legado do Cedec no debate brasileiro,cf.José Szwako e Ramon Araujo (2019)Szwako, José; Araujo, Ramon. “Quando novos conceitos entraram em cena”. Estudos Históricos, v. 32, n. 67, 2019, pp. 469-99..

Editora responsável:

Renata Francisco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024
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