RESUMO
O objetivo do artigo é analisar a construção de representações críticas sobre a violência da ditadura militar nos anos 1970 diante da consolidação do vocabulário dos direitos humanos. Argumento, a partir de um diálogo crítico com a historiografia, que, no lugar de uma “memória hegemônica”, o que se constituiu no país foi uma gramática que fornece os enquadramentos para se abordar o passado ditatorial.
PALAVRAS-CHAVE: ditadura militar; memória; violência política; direitos humanos
ABSTRACT
This article aims to analyze the construction of critical representations about the violence of the military dictatorship throughout the 1970s, as a result of the consolidation of the human rights vocabulary. I argue, alongside a critical discussion of the historiography, there is a grammar, not only a hegemonic memory, that provides the frameworks for approaching the Brazilian dictatorial past.
KEYWORDS: military dictatorship; memory; political violence; human rights
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é analisar como, durante os anos 1970, a partir da emergência do vocabulário dos direitos humanos no mundo ocidental, foram construídas no Brasil distintas formas de narrar, descrever e denunciar a violência da ditadura militar iniciada com o golpe de Estado de 1964. O texto se propõe a analisar a construção de duas representações críticas distintas sobre a violência do regime: de um lado, a visão da oposição liberal-democrática; de outro, a vocalizada por setores de esquerda que haviam se juntado à luta armada. Apesar de chamar a atenção para as divergências entre essas representações, argumento que elas podem ser observadas como componentes de uma gramática comum, que nomeio gramática da violência política.
Para levar adiante esse objetivo, dialogo criticamente com a historiografia que se dedica ao tema da memória social da ditadura. A despeito dos avanços que essa literatura traz, sugiro que uma interlocução com abordagens das ciências sociais contribui para uma compreensão mais matizada sobre as representações da violência ditatorial. O artigo se baseia em pesquisa empírica dos acervos documentais e publicações de movimentos sociais, sendo resultado da minha tese de doutorado em sociologia (Pedretti, 2022a).
O artigo se divide em quatro partes. Na primeira, aponto o que considero os limites mais significativos das análises historiográficas baseadas no referencial teórico da memória social. Na segunda, analiso a emergência do vocabulário dos direitos humanos e como ele foi apropriado tanto por setores liberais quanto pelas esquerdas. Na terceira parte, observo como, em meados da década de 1970, a atuação de distintos grupos das oposições convergiu para uma campanha em torno da anistia. Por fim, na última seção do artigo, discuto, a partir de críticas de outros setores da sociedade às concepções que emergiram no vocabulário dos direitos humanos, a possibilidade de se falar da consolidação de uma gramática cujo núcleo fundamental é a noção de violência política.
HISTÓRIA E MEMÓRIA
Com a efeméride de quarenta anos do golpe de Estado de 1964, a historiografia brasileira começou a se interessar pelo tema da memória social da ditadura. A despeito das reflexões iniciais terem sido produzidas ao longo da primeira década do século xxi, a memória se tornou um eixo central do debate historiográfico à medida que se intensificaram, no Brasil, as discussões sobre a criação de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) na virada dos anos 2010. O aprofundamento dessa produção jogou luz sobre a existência de visões e representações profundamente conflitantes sobre os significados do golpe e da ditadura, que disputavam sua afirmação na arena pública. Surgiram, então, diversos trabalhos ancorados em uma abordagem cuja premissa fundamental é a de que as memórias acerca do passado são objeto de disputas políticas no presente.
Em um artigo baseado nessa perspectiva, Marcos Napolitano (2015) propôs uma interpretação inédita para a construção da memória social da ditadura no Brasil. No texto, o historiador argumenta que aqui se constituiu uma “memória hegemônica” do regime a partir de uma convergência entre as leituras feitas por setores liberais, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pelo que ele denomina Nova Esquerda, organizada especialmente em torno do Partido dos Trabalhadores (PT). Suas reflexões foram aprofundadas em texto mais recente (Napolitano, 2022).
No presente artigo, pretendo estabelecer um diálogo com a perspectiva de Napolitano, a partir do qual busco refletir criticamente sobre a validade analítica da categoria de “memória hegemônica”. Importa notar que essa noção é amplamente utilizada pela historiografia, não sendo uma ferramenta teórico-analítica exclusiva dos trabalhos de Napolitano. Aqui, a escolha por estabelecer essa interlocução direta com o autor deve-se ao entendimento de que esses seus dois artigos representam a mais bem fundamentada análise historiográfica da construção social de narrativas memorialísticas durante a transição brasileira.
Vale ressaltar que não busco sugerir uma recusa geral à possibilidade de operar com a noção de “memória”. Nesse sentido, não pretendo enfrentar uma discussão teórica com a extensa literatura que debate há décadas, e com enorme competência, as diversas dimensões da memória coletiva. O objetivo é mais sucinto: trata-se de argumentar pela dificuldade de apreender algo como uma “memória hegemônica” para o caso da ditadura brasileira. Entendo que a reconstrução empírica de Napolitano do complexo processo de aproximação entre setores sociais distintos na construção de uma oposição ampla à ditadura é acurada. Quero sugerir, no entanto, um enquadramento analítico diverso para a apreensão dos resultados político-discursivos práticos dessa aproximação. Isto é: aquilo a que o autor denomina “memória hegemônica” busco caracterizar como uma “gramática”.
Em seu texto de 2022, o historiador apresenta uma definição mais bem acabada para a expressão “memória hegemônica”. O termo é conceituado como “a narrativa sobre o passado que predomina na esfera pública, instituições político-jurídicas, imprensa, movimentos sociais, sistema artístico e sistema escolar de uma sociedade” (Napolitano, 2022). Em sua conceituação, o historiador reconhece que “pode haver variáveis ideológicas entre estas instituições diversas, mas a tendência é ficar preservado um núcleo valorativo e ético para dar sentido social aos eventos que pautam a narrativa” (Napolitano, 2022). Napolitano ressalta ainda que a ideia de “memória hegemônica” não significa a simples “memória da maioria”, tampouco se confunde com uma “história oficial”. Porém, mesmo diante das ressalvas, entendo que a expressão “memória hegemônica” possui limites analíticos importantes.
De início, destaco que, em geral, essa noção funciona, em primeiro lugar, como uma premissa. O conjunto de trabalhos que opera com ela não cuida de demonstrar, empiricamente, como essa “narrativa sobre o passado”, de fato, “predomina na esfera pública”. Napolitano apresenta uma descrição cuidadosa dos termos gerais dessa narrativa considerada “hegemônica”. O que não há, porém, é um percurso analítico por meio do qual se possa atestar esse predomínio.
Em segundo lugar, a categoria acaba por obliterar divergências e clivagens nas representações dos atores sociais que supostamente compartilham dessa “memória”. Napolitano tem uma preocupação em fazer a ressalva de que há “variáveis ideológicas” e “tensões internas” nas leituras apresentadas por diferentes atores. Indica, assim, não se tratar de uma leitura simplória, segundo a qual essa grande gama de agentes distintos carregaria uma visão absolutamente igual do passado. Ainda assim, o uso da expressão joga inevitavelmente o foco da análise sobre aquilo que Napolitano denomina um mesmo “núcleo valorativo e ético”, o qual fornece o sentido geral dessa “memória”.
Como consequência, o único conflito a ser tematizado é aquele entre a memória “hegemônica” e as “não hegemônicas”. Resta, com isso, pouco espaço para os trânsitos e as mútuas influências entre as representações apresentadas como dominantes e aquelas supostamente dominadas. Em seu texto de 2022, Napolitano analisa duas dessas “memórias não hegemônicas”: a dos grupos de direitos humanos e a dos militares de extrema direita. Mas, à luz da categoria analítica por ele mobilizada, resta pouco espaço para apreender, por exemplo, como as visões dos grupos de direitos humanos influenciaram parte da leitura da Nova Esquerda e, por outro lado, como noções construídas pela extrema direita militar impactaram a interpretação liberal.
Entendo, ainda, que a categoria “memória hegemônica” leva a uma compreensão de que a narrativa dominante na arena pública é o produto consciente e intencional da ação de um único ator ou um conjunto muito específico de atores. A formulação de Napolitano, nesse caso, é mais nuançada. Ele compreende que a “memória hegemônica” é resultado da convergência de três representações distintas: a liberal, a do PCB e a da Nova Esquerda. Ainda assim, a categoria tende a correlacionar a hegemonia de uma dada narrativa sobre o passado com a ação de um rol específico de grupos sociais. Perde-se, assim, capacidade de apreensão analítica das resistências, dos conflitos, das interações e dos intercâmbios que as muitas leituras sobre o passado necessariamente encontram ao serem levadas à esfera pública.
Esse limite fica mais evidente nos trabalhos de outros historiadores. Daniel Aarão Reis, por exemplo, em uma passagem bastante revisitada, sugeriu que “as esquerdas, derrotadas no campo dos enfrentamentos sociais, históricos, puderam ressurgir vitoriosas, nas batalhas de memória” (Aarão Reis, 2004, p. 40). As formulações de Aarão Reis levaram a toda uma produção historiográfica que partia da premissa de que a esquerda fora capaz de impor sua “memória” na arena pública, e que caberia à historiografia combater essa narrativa “militante” sobre o passado. Trata-se de uma leitura que atribui quase uma onipotência a um determinado ator - no caso, “as esquerdas” -, o qual emerge das análises como detentor de uma capacidade ímpar de tornar hegemônicas as suas representações.
As formulações de Aarão Reis levam, ainda, a um último limite que vejo no uso da categoria em questão, este de ordem político-normativa. Parte central dos discursos de apologia à ditadura que existem na arena pública se baseia no pressuposto de que a esquerda teria levado adiante uma “guerra psicológica” para impor à opinião pública sua leitura sobre o passado ditatorial, tornando-a a narrativa dominante. Nesse sentido, memória hegemônica é também uma categoria nativa, utilizada como instrumento de acusação contra a esquerda. Apresentando-se como derrotados nas batalhas de memória, os perpetradores dos crimes de lesa-humanidade reivindicam para si um lugar de vítimas de narrativas e inverdades, manipuladas por uma esquerda onipotente em sua capacidade de impor sua visão de mundo. Entendo que a mera coincidência de termos deveria ser suficiente para uma reflexão mais detida acerca das implicações do uso da expressão.
Diante dessas reflexões, quero propor, neste artigo, que o resultado das disputas político-discursivas da transição não originou uma única narrativa dominante, mas sim uma “gramática” que contempla narrativas e representações distintas.
Inspiram-me, para formular essa perspectiva, dois conjuntos de referências teórico-analíticas. A primeira se relaciona com a sociologia dos movimentos sociais, notadamente os trabalhos que têm apontado a necessidade de se compreender a gênese das políticas públicas a partir da interação e da “mútua constituição” entre sociedade e Estado (Gurza Lavalle et al., 2020). Há um debate específico no interior dessa literatura, relacionado à ideia de “institucionalização simbólica” (Szwako; Gurza Lavalle, 2019). Esses autores chamam a atenção para a importância de se analisar mais detidamente a construção das “categorias com que os grupos nomeiam, classificam e hierarquizam simbolicamente o mundo social e suas divisões” (Szwako; Gurza Lavalle, 2019, p. 3). Segundo sua leitura, os atores sociais produzem “formas classificatórias” que hierarquizam o mundo em “sintonia com ideias e compreensões” que esses mesmos atores possuem.
A segunda discussão que me inspira é originária da sociologia da violência, mais especificamente de uma reflexão de Luiz Antônio Machado da Silva. Esse campo de estudos passou por uma transformação profunda nos anos 1990, quando houve um deslocamento da noção de violência: esta deixou de ser tomada como conceito explicativo e passou a ser observada como objeto mesmo de análise (Hirata; Aquino, 2017, p. 109). Assim, ao analisar as representações da chamada violência urbana, Machado da Silva apontava que a violência não explicava, ela precisava ser explicada. Isso porque se tornara o centro de uma “gramática” própria, ou seja, uma linguagem prática, “que constitui a referência comum nas circunstâncias e permite um amplo, mas não infinito repertório de variações possíveis”, e cuja produção corresponde ao “enquadramento coletivo de um problema” (Machado da Silva, 2010, pp. 285-6).
Quero argumentar, neste artigo, que durante a transição diversos atores buscaram construir formas de enquadrar coletivamente - isto é, nomear, classificar e hierarquizar - o problema da violência de Estado. Embora tanto atores da sociedade civil quanto do Estado tenham elaborado seus enquadramentos, dado o escopo limitado deste artigo, meu foco são as tensões e divergências no interior da sociedade civil. Distintos grupos disputaram a afirmação de seus enquadramentos na arena pública, engendrando interações que foram ora mais, ora menos conflituosas. Como resultado dessas interações, foi estabelecida uma “linguagem prática” a partir da qual se passou a abordar publicamente o problema da violência ditatorial. A essa linguagem dou o nome de gramática da violência política. Entendo sua formação como o resultado não intencional de disputas e conflitos que se deram naquele momento, na medida em que ela não é a mera reprodução das representações de nenhum dos atores, tampouco a convergência das narrativas de alguns deles. Essa gramática é um conjunto de referências que oferece um “amplo, mas não infinito repertório” de formas de enquadrar o que foi a ditadura militar no Brasil.
A INVENÇÃO DOS “DIREITOS HUMANOS”
A ditadura militar que se iniciou com o golpe de Estado de 1964 foi marcada pela violência desde o momento de sua instauração, e já em seus primeiros dias surgiram denúncias públicas de atos arbitrários praticados pelos militares. A despeito disso, a virada da década de 1960 para a seguinte marcou uma mudança fundamental na forma pela qual essas denúncias eram realizadas. Naquele momento, crescia a força do vocabulário dos direitos humanos no mundo ocidental (Moyn, 2010).
Um dos eixos desse crescimento era a recém-criada Anistia Internacional. A novidade representada pela organização foi a constituição de um enquadramento das denúncias centrado na dimensão do sofrimento individual (Moyn, 2010, p. 130). A organização buscava dar publicidade a casos específicos, apostando que jogar luz sobre o sofrimento de pessoas em situação de violência seria uma forma de atingir seu público-alvo e despertar nele solidariedade e compaixão (Meirelles, 2016). Ao lado da Anistia Internacional, a Igreja católica entrou em cena para defender a perspectiva de que seria necessário oferecer limites morais aos conflitos políticos. O Concílio Vaticano II (1965-68) havia trazido para o primeiro plano dos debates da Igreja a questão da justiça social e dos direitos humanos. Por sua vez, em 1968, o II Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) levou à incorporação de tais questões por parte de setores mais progressistas do clero brasileiro (Gomes, 2010; Serbin, 2001).
Nesse quadro, a virada dos anos 1960 para os 1970 foi propícia para que começassem a circular denúncias sobre a ditadura brasileira. De fato, como observa o historiador James Green, foi em 1969 que teve início, no exterior, uma “campanha mais agressiva contra a tortura” praticada no Brasil (Green, 2009, p. 209). Ator central na organização dessa campanha foi a Frente Brasileira de Informações, uma entidade sem contornos muito claros que reunia brasileiros exilados e tinha como principal representante o ex-deputado Márcio Moreira Alves.
Descrito por Green como “articulado, fluente em inglês e francês, filho de família da elite e com pedigree de ‘barão do café’” (Green, 2009, p. 211), o político carregava os predicados necessários para estabelecer redes de contato com acadêmicos e religiosos no exterior a fim de transmitir as notícias que chegavam do Brasil e alimentar os circuitos de denúncias. Diante de uma rede dotada de significativos recursos materiais e simbólicos, capaz não apenas de ampliar o alcance dos relatos, mas fundamentalmente de legitimá-los diante da opinião pública internacional, as denúncias de crimes praticados por agentes da ditadura foram se avolumando e passaram a preocupar o regime (Green, 2009; Fico, 1997).
No plano interno, a afirmação dessas denúncias se deu de forma paulatina. Por exemplo, em 1972, durante a greve de fome dos detentos do Presídio Tiradentes, em São Paulo, os dois principais jornais da cidade entraram em uma querela que expressa bem as tensões então existentes. Em editorial publicado em 25 de junho, O Estado de S. Paulo defendeu uma solução para o “problema dos presos políticos no Brasil”. Ancorava seu argumento em um princípio liberal: “a punição não pode ultrapassar os limites do razoavelmente justo, devendo-se evitar infligir, aos condenados pela prática de delitos desta ordem, sofrimento maior do que aquele que requer a defesa da sociedade” (“A punição dos presos políticos”, 1972). Cinco dias depois, a Folha de S. Paulo publicou um editorial em resposta ao concorrente. Assumindo a posição de defesa do regime, a Folha responsabilizava as “esquerdas mundiais” por essa “distorção da verdade”. O texto defendia que havia liberdade de expressão no país e que “ninguém conhece a existência de um só homem de esquerda que esteja preso em decorrência exclusiva de seu pensamento” (“Presos políticos?”, 1972).
Tanto a Folha quanto o Estadão eram jornais historicamente vinculados ao pensamento liberal, e ambos haviam sido entusiastas e apoiadores do golpe de 1964. De fato, o golpe de Estado havia sido legitimado a partir de uma “coalizão ideológica de veto” (Cannone, 2022) que unia liberais e conservadores no diagnóstico de que era preciso impedir a continuidade do governo de João Goulart, mesmo que fosse necessário lançar mão de uma solução manu militari. Como nota Rodrigo Patto Sá Motta, desde a decretação do AI-5, algumas divergências entre as posições editoriais desses dois jornais vinham se tornando mais evidentes, com o Estadão assumindo uma postura mais crítica ao regime. Essa divergência aponta para um processo de afastamento de certos setores sociais do regime, especialmente em razão das denúncias de violações dos direitos humanos (Sá Motta, 2013). A emergência de uma classe média insatisfeita com a dimensão repressiva do regime abriria espaço para a constituição de uma oposição liberal-democrática, composta por atores que teriam papel central na definição do ritmo e da forma da abertura política, especialmente a partir da segunda metade da década.
Foi também em 1972 que surgiu a Comissão Justiça e Paz (CJP) da arquidiocese de São Paulo. Capitaneada por dom Paulo Evaristo Arns, o grupo tinha o objetivo de oferecer apoio e assistência aos presos e seus familiares. Pouco depois de sua constituição oficial, a CJP se veria envolvida em um caso que começaria a definir os rumos do regime: o assassinato do estudante de geologia da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Vannucchi Leme, em março de 1973. Apesar da hesitação inicial, dom Evaristo Arns aceitou celebrar uma missa em homenagem ao estudante na Catedral da Sé, no centro de São Paulo. A missa reuniu mais de 3 mil pessoas e foi a primeira mobilização social expressiva desde as passeatas de 1968 e a decretação do AI-5. Ainda que Vannucchi fosse próximo da Ação Libertadora Nacional (ALN), as forças repressivas não tiveram capacidade de apresentá-lo como um perigoso integrante da guerrilha (Serbin, 1998, pp. 8-9). A imagem que se tornou publicamente reconhecida foi a do jovem estudante, inocente, estudioso, dedicado e de família católica. Com isso, o caso se tornou um marco a partir do qual “a noção de direitos humanos passou de abstração a ação concreta” (Serbin, 2001, p. 404).
A partir daquele momento, seria cada vez maior a presença, na arena pública, de críticas ao regime, moldadas a partir da ideia de direitos humanos, por parte de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a já citada CJP. Ou seja, o conjunto de representações que vinha fornecendo as bases para as denúncias de violência feitas no exterior tornava-se também substrato para um certo tipo de ação dos atores políticos dentro do país. Ao lado do esgotamento do chamado “milagre econômico”, essas críticas à dimensão repressiva do regime estariam na base da inesperada vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido da oposição, nas eleições legislativas de 1974.
Mas, para além da oposição liberal-democrática, o vocabulário dos direitos humanos começou a reorientar a atuação das esquerdas. Uma das primeiras expressões públicas dessa mudança foi o documento - conhecido como Bagulhão - que fora produzido por presos políticos do Presídio Tiradentes, em São Paulo. Tratava-se de uma reação dos presos a uma declaração do presidente da OAB, que afirmara que a instituição estaria com dificuldades de reunir relatos de “fatos concretos, respostas objetivas, específicas” sobre as violações de direitos humanos ocorridas nos cárceres da ditadura (“OAB apronta as denúncias que fará a Geisel”, 1975). Como resposta, o Bagulhão era apresentado pelos signatários como um “relato objetivo e pormenorizado” das “vítimas, sobreviventes e testemunhas de gravíssimas violações aos direitos humanos no Brasil” (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva, 2014, p. 12). O documento se iniciava com um texto em primeira pessoa, no qual os signatários reforçavam a condição de “testemunhas” e “sobreviventes” - na medida em que todos haviam sido “vítimas de violência militar-policial” (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva, 2014, p. 12)
Após descrever casos individuais de violências perpetradas pelo regime, os signatários de Bagulhão afirmavam que, em face de “toda essa situação de extrema violência política dirigida contra os opositores do regime”, eles apoiavam “a luta pelos direitos da pessoa humana em nosso país, dela participando” (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva, 2014, pp. 54-5). Assumindo a condição de vítimas que participavam da luta pelos direitos humanos, os signatários do Bagulhão adotavam uma postura muito distinta da de documentos anteriores de denúncia produzidos por organizações revolucionárias, os quais mobilizavam noções como “heróis” e “combatentes” para designar os engajados nas ações armadas contra o regime.
Importa ressaltar, no entanto, que a afirmação do vocabulário dos direitos humanos não ocorreu necessariamente em detrimento dos ideais revolucionários. De fato, essas perspectivas coexistiam naquele momento (Benetti, 2013). Mas o processo iniciado no começo daquela década ganharia força apenas nos anos seguintes, e as esquerdas brasileiras - dos exilados aos presos, passando por aqueles que estavam na clandestinidade - enfrentariam a questão dos direitos humanos não apenas em termos táticos, mas também como objeto de reflexão e autocrítica. É difícil estabelecer quanto o texto do Bagulhão representou, então, o início de um processo de reavaliação política da experiência da luta armada, e quanto era apenas a utilização estratégica daquele vocabulário. Mas ainda que não adentremos o complicado terreno das intencionalidades originais dos autores, o certo é que os direitos humanos já significavam, naquele momento, uma ferramenta estrategicamente valiosa para os militantes obterem maior legitimidade pública para suas demandas, sinal da força que esse discurso angariava.
Em síntese, a partir da emergência do vocabulário dos direitos humanos na virada da década de 1960 para a seguinte, um duplo movimento se vislumbrou. Por um lado, liberais que haviam apoiado o golpe de 1964 afastaram-se do regime, diante da repercussão cada vez mais ampla dos casos de repressão. Por outro lado, a esquerda revolucionária incorporou a defesa dos direitos humanos em seus discursos.
A CAMPANHA PELA ANISTIA
Na segunda metade dos anos 1970, esses dois movimentos convergiram, encontrando expressão política na campanha em torno da anistia. É certo que, desde os primeiros dias de regime ditatorial, houve demandas para que as punições baseadas em atos de exceção fossem objeto de anistia (Lemos, 2018). No entanto, apenas naquele momento a demanda de anistia deixou de ser uma reivindicação apresentada de maneira isolada por alguns atores e passou a representar um objeto de ação coletiva.
O momento-chave dessa transformação da anistia em bandeira aglutinadora das demandas relacionadas aos direitos humanos foi o surgimento do Movimento Feminino pela Anistia (MFA) em março de 1975. O movimento tinha como figura proeminente Therezinha Godoy Zerbini, que havia sido presa duas vezes, em novembro de 1969 e em fevereiro de 1970, por ter cedido seu sítio em Ibiúna para a realização do congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE). Além disso, Therezinha era casada com o general Euryale de Jesus Zerbini, cassado em abril de 1964.
Até o início de 1977, o MFA vinha costurando sua rede de apoio com organizações integrantes da oposição liberal-democrática à ditadura, tais como a OAB, a ABI e setores da Igreja católica. No final daquele ano, contudo, mudanças na conjuntura amplificariam o alcance dessa demanda, consolidando a anistia como palavra de ordem também de setores mais à esquerda das oposições. Nesse quadro, foi criado, em dezembro de 1977, o primeiro Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), que marcou uma importante inflexão na campanha pela anistia. Desde sua fundação, o CBA atraía sujeitos mais vinculados às organizações revolucionárias que haviam atuado no início da década.
A partir daquele momento, a luta da sociedade civil brasileira pela anistia seria marcada por tensões e clivagens internas. Duas eram as divergências fundamentais, ambas relacionadas com a extensão da medida. A primeira era: a anistia deveria abarcar também os militantes que haviam participado da luta armada? Para a ditadura, certamente não; para o CBA, era evidente que sim. A segunda era: a anistia deveria abarcar os militares acusados de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados? Para o CBA, certamente não; para a ditadura, era evidente que sim.
No meio do caminho entre essas posições, diferentes organizações pertencentes ao campo da oposição liberal-democrática buscavam mediações diferentes. O MFA, por exemplo, embora sinalizasse que defendia a anistia também para os militantes da luta armada, deixava claro que não se oporia caso ela não os incluísse. Sobre isso, uma das lideranças do MFA da Bahia usaria a seguinte metáfora: “queremos o bolo inteiro, mas, se deram uma fatia apenas, não iremos recusá-la” (“A anistia em julgamento”, 1978). Esse debate era sintetizado pela inscrição ou não do termo “irrestrita” nas palavras de ordem da campanha pela anistia.
Quanto à extensão da anistia aos militares, um exemplo são as falas do general cassado pelo AI-5 Peri Bevilacqua. Filiado ao MDB, o militar declarou, no ato de lançamento do CBA do Rio de Janeiro, que “os torturadores de presos políticos, por exemplo, deverão ser abrangidos pela anistia, mesmo que as consequências do seu procedimento criminoso tenham sido a morte de suas vítimas” (“O discurso do general”, 1978). Defendendo a posição de uma anistia “recíproca”, mas também “irrestrita”, ele sintetizou: “os subversivos que por motivo político hajam cometido crimes semelhantes ou atentados contra a vida, em ações ditas, geralmente, terroristas, também deverão, no interesse da paz social, ser abrangidos pela Anistia, que deverá ser geral e recíproca para ser justa e poder desarmar os espíritos” (“O discurso do general”, 1978).
Esses dois exemplos deixam nítido que a questão da anistia não pode ser reduzida a um conflito entre ditadura versus oposições. Havia inúmeras clivagens e posicionamentos distintos no interior das organizações da sociedade que seriam bem expressos no Congresso Nacional pela Anistia. Realizado em setembro de 1978, o encontro congregou o conjunto desses atores. Eles buscavam, com a realização do congresso, ampliar a unidade discursiva e política na campanha pela anistia. Tratou-se de um espaço de debates e discussões que ajudou a consolidar a palavra de ordem que ficaria consagrada para a posteridade: “Anistia ampla, geral e irrestrita”. A despeito deste ter sido o slogan, as diferentes organizações continuaram aceitando negociar diferentes modulações na anistia.
Em 28 de junho de 1979, o ditador João Baptista Figueiredo enviou o Projeto de Lei de Anistia para o Congresso Nacional. Na mensagem de encaminhamento, lida por Jarbas Passarinho, o general afirmava: “a anistia tem o sentido de reintegrar o cidadão na militância política, e o terrorista não foi e não é um político, a menos que se subvertam conceitos em nome de um falso liberalismo” (Comissão Mista sobre Anistia, 1982, p. 22). Em 22 de agosto, foi aprovada a lei n. 6.638, a Lei de Anistia, sancionada por Figueiredo no dia 28 do mesmo mês. Seu teor incorporava a dimensão da anistia “recíproca”, por garantir a não responsabilização dos torturadores, mas não incluía os “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”, de modo que seu caráter não era “irrestrito”. Ao fim daquele processo, portanto, a anistia vigente era precisamente aquela desenhada pelo regime (Fico, 2010).
A despeito do resultado político objetivo, visto como suficiente por parte da oposição liberal-democrática e insuficiente pelo CBA, o importante aqui é destacar como a luta pela anistia foi um momento definidor para a consolidação das imagens que compõem as representações coletivas da ditadura no Brasil. Como a campanha criou um terreno fértil para a multiplicação de denúncias de tortura e violência, as representações críticas sobre a ditadura ganharam significativa legitimidade social nesse contexto, a despeito das clivagens internas.
A violência ditatorial passou a ser vista como ilegítima por setores cada vez mais amplos, o que a fez emergir a noção de que os alvos dessas violações eram vítimas. No entanto, como as formas de classificar a violência variavam, também variavam a imagens existentes sobre quem eram essas vítimas. De um lado, as entidades do campo liberal-democrático enfatizavam, em seus discursos e representações, os indivíduos atingidos por atos de exceção, como aqueles que haviam sido cassados e aposentados. De outro, as organizações de esquerda chamavam a atenção para os que haviam participado da luta armada, a partir de duas grandes categorias: os presos políticos e os mortos e desaparecidos políticos (Azevedo, 2018).
Havia aqui uma discussão clara, que remetia ao debate sobre a anistia “irrestrita”, à possibilidade de se atribuir o qualificativo de político às ações da luta armada. Para muitos integrantes da oposição liberal-democrática que faziam coro ao regime, a guerrilha não deveria ser enquadrada nesses termos e, portanto, os militantes revolucionários não deveriam ser vistos como prisioneiros políticos, mas sim como indivíduos que respondiam a crimes comuns. O presidente da CNBB, dom Aloísio Lorscheider, por exemplo, resumiu da seguinte maneira a posição da entidade sobre o tema: “a anistia não se destina aos que cometeram crime comum, pois não podemos perder de vista certas dimensões da Justiça. Não podemos condenar ninguém por ter esta ou aquela posição política. Mas, se ela prejudica o bem comum, deixa de ser justa” (“A anistia em julgamento”, 1978).
Certo é que havia um entendimento comum entre todos os atores. A anistia deveria beneficiar os atingidos por formas de violência política. A discussão se travava em torno de quais atos e sujeitos poderiam ser assim enquadrados, mas não se abria uma divergência, entre os grupos que hegemonizavam esse debate, em torno dessa premissa.
A GRAMÁTICA DA VIOLÊNCIA POLÍTICA
Voltemos a meados da década, quando o vocabulário dos direitos humanos se consolidou e abriu espaço para a demanda de anistia. Em 1975, mesmo ano em que foi publicado o Bagulhão, houve uma greve de fome no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Na ocasião, 33 presos políticos escreveram uma carta endereçada a parlamentares na qual exigiam sua transferência para algum estabelecimento localizado na cidade do Rio de Janeiro. Afirmavam que seu movimento era “motivo de interesse e preocupação da parte de todos aqueles que se batem pela defesa dos direitos humanos”. Diante da greve, as reivindicações dos militantes foram atendidas.
Poucos dias depois da transferência, uma nova greve de fome foi deflagrada na Ilha Grande. Dessa vez, no entanto, quem levou adiante o movimento não foram os presos políticos. Foram detentos que também haviam sido condenados pela Lei de Segurança Nacional por conta de assaltos a bancos, mas que não faziam parte de organizações da esquerda armada. Nesse sentido, a despeito de responderem ao mesmo tipo de crime, não eram reconhecidos pelos militantes como presos políticos, e tampouco eles se apresentavam dessa forma. Aliás, a forma pela qual eles se autodenominavam, na carta que elaboraram, lançava mão de uma fina ironia: “presos de origem Proletária”. Encabeçando a lista de assinaturas do documento, vinha o nome de William da Silva Lima, um dos fundadores do que viria a ser conhecido como Comando Vermelho.
Em seu livro de memórias, Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho, Lima afirma que essa forma de se identificar tinha “uma ponta de mágoa e provocação” contra o que eles, “presos de origem proletária”, consideravam um comportamento “elitista” por parte dos presos políticos (Lima, 2001, pp. 57-8). Sua percepção era de que os presos políticos lutavam para se “isolar” dos comuns porque estariam “interessados em garantir sua visibilidade para a opinião pública nacional e internacional” (Lima, 2001, p. 57). Assim, continua ele, “o desejo de isolamento indicava, entre eles, a hegemonia da classe média, cujos espaços de reintegração no sistema voltavam a se abrir, no contexto da política de distensão do regime” (Lima, 2001, p. 57). Ao contrário da greve dos presos políticos, aquela liderada pelos presos comuns não teve suas reivindicações atendidas. Mas a tensão explicitada por William da Silva Lima não desapareceria.
Em outra ocasião, mostrei como o Movimento Negro Unificado (MNU) apresentou uma leitura particular da luta pela anistia (Pedretti, 2022b). Em sua participação no Congresso Nacional pela Anistia, o MNU apresentou uma tese defendendo que a medida também deveria beneficiar os presos ditos comuns. Ao explicitar as razões socioeconômicas, políticas e raciais que justificavam as políticas de encarceramento no país, o movimento negro politizava as causas da criminalidade chamada comum e exigia anistia também para esses detentos. Essa posição foi evidentemente minoritária e não encontrou apoio nem por parte dos setores mais à esquerda, organizados em torno do CBA.
Já após a aprovação da Lei de Anistia, em dezembro de 1979, o Lampião da Esquina, primeiro jornal dedicado ao então chamado público gay, publicou uma matéria sobre o tema. No texto, elaborava uma crítica que convergia com as reflexões do MNU:
A questão é: que atitude costumam adotar os vários movimentos brasileiros pela anistia diante das prisões indiscriminadas de homossexuais? Parece-nos que nenhuma - a tendência é passar diante do cinema Iris e achar muito natural que lá estejam os “camburões” à espera de suas presas. [...]. Anistia realmente ampla, geral e irrestrita: não aquela destinada a beneficiar apenas os diletos filhos da classe média, mas a que arranque dos cárceres os negros da Baiada e evite mortes como a de Robson em São Paulo, ou a de Aézio no Rio; a que resgate dos desvãos escuros da Rua Rego Freitas, em São Paulo, ou da Rua do Lavradio, no Rio, pessoas ricas de humanidade como as travestis Flávia e Tatiana, de quem vocês lerão, nas páginas que se seguem, tocantes confissões. As senhoras e os senhores da anistia à brasileira que se preparem: muito mais que do Governo, é deles que iremos cobrar essa amplitude. (“Anistia apoia homossexuais”, 1979)
Uma anistia que contemplasse negros e travestis, e não apenas os “diletos filhos da classe média”, apenas esta poderia ser considerada, na visão do jornal, realmente “ampla, geral e irrestrita”.
As leituras que eram feitas pelo CBA, de um lado, e pela oposição liberal-democrática, de outro, eram marcadas por tensões, conflitos e divergências significativas. Mas possuíam um fundo comum cujo núcleo era a ideia da necessidade de se enquadrar uma violência como política para que fosse entendida como uma violação digna de ser reconhecida como ilegítima e beneficiada pela anistia. E, embora não seja o foco deste artigo, ao observarmos os termos utilizados pelo general ditador Figueiredo para caracterizar a Lei de Anistia, vemos claramente que essa premissa era compartilhada, de alguma maneira, pelo regime. A diferença era que, para os militares, o rol de condutas que poderiam ser caracterizadas como políticas era ainda mais restrito e limitado.
Essa premissa era questionada por atores como William da Silva Lima, o MNU e o Lampião da Esquina, que buscavam formas de reconhecimento da violência à qual eram submetidos e que passavam ao largo do enquadramento da violência política.
Fica evidente, portanto, que há uma fronteira discursiva que divide o conjunto de representações feitas pelos atores que dominavam o debate sobre a anistia, de um lado, e essas outras leituras, de outro. São precisamente as fronteiras que circunscrevem a gramática da violência política. Mas por que, afinal, “gramática” e não “memória”?
Ao operar com a noção de gramática, dá-se ênfase não à tentativa de identificar uma narrativa ou representação que já se supõe hegemônica. O foco é a definição da existência de uma linguagem prática mobilizada pelo conjunto de atores que abordam a ditadura na arena pública. Essa gramática fornece elementos discursivos a partir dos quais os atores disputam politicamente a afirmação de sua representação como a correta, tentando defini-la, aí sim, como hegemônica.
Ao afastar a premissa da hegemonia de uma dada narrativa sobre o passado que se estende no tempo, a ideia de gramática permite que se busque identificar, de forma mais situada e contextual, quais representações se tornaram dominantes em que momentos e em quais arenas. Com isso, a categoria nos ajuda a delinear com mais clareza disputas, divergências e clivagens, ampliando a capacidade analítica de apreensão dos conflitos político-discursivos que se deram desde a abertura política até o presente.
Além disso, ao contrário da ideia de “memória hegemônica”, a categoria de gramática não tende a correlacionar uma narrativa dominante com as representações produzidas por um ator ou conjunto específico de atores. Isto é, não se trata da “memória” do grupo A, B ou C que conseguiu se tornar hegemônica. A afirmação da gramática da violência política deve ser entendida como produto não intencional da interação - ora mais, ora menos conflituosa - dos variados atores e suas diferentes representações.
Essa gramática, cujo centro é a categoria social e historicamente construída de violência política, define fronteiras distintas daquelas que seriam percebidas entre uma leitura “hegemônica” e outras “não hegemônicas” sobre a ditadura. A gramática da violência política define, em linhas gerais, os termos a partir dos quais se fala da ditadura militar no Brasil, a despeito dos sentidos e valores atribuídos a eles pelos distintos atores. Por consequência, essa gramática cria também um universo de exclusão, definindo igualmente aquilo de que não se fala quando se fala de ditadura no país. Essa conformação discursiva produziu efeitos significativos ao longo das décadas, tanto na historiografia quanto nas políticas públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No artigo, busquei analisar como, a partir da virada da década de 1960 para a seguinte, com a consolidação do vocabulário dos direitos humanos, um conjunto de representações críticas sobre a violência da ditadura passou a ganhar força na cena pública. Longe de representar uma visão única, entraram em cena distintas formas de narrar e descrever o que ocorria naquele momento. Apontei que, a despeito das clivagens e divergências, elas possuíam uma premissa comum, qual seja, a afirmação de que era a violência política que deveria ser objeto de reconhecimento e reparação. Argumentei, enfim, que essas narrativas não fazem parte de uma “memória hegemônica”, mas compõem uma gramática. E que essa gramática cria também exclusões, estabelecendo limites no que significa e no que não significa falar da ditadura militar no Brasil - limites estes estabelecidos ao longo da redemocratização, mas que persistiram nas décadas posteriores.
Mais recentemente, muitos estudos têm se dedicado a questões que William da Silva Lima, o MNU e o Lampião da Esquina tematizaram na redemocratização, como as violações de direitos humanos contra a população negra (Pires, 2018) e LGBTQIA+ (Quinalha, 2017) durante o regime ditatorial no Brasil. Esses trabalhos afastam a marca da gramática da violência política, que por muito tempo determinou até mesmo a que objetos de estudo podia se dedicar quem se interessava pela temática da ditadura. Penso, nesse sentido, que a retomada da construção social e histórica dessa gramática da violência política pode nos ajudar a compreender o processo por meio do qual essas questões foram historicamente deixadas de lado pelas preocupações acadêmicas sobre a ditadura iniciada em 1964.
Ao mesmo tempo, em um momento de reconstrução da institucionalidade democrática do país, a percepção da existência dessa gramática pode contribuir para a reconfiguração das políticas de memória, verdade e justiça sobre novas bases, bases que incorporem setores e grupos até aqui parcial ou totalmente excluídos das formas de reconhecimento e reparação da violência de Estado.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
30 Set 2022 -
Aceito
03 Mar 2023