Open-access Papel dos fluxos financeiros e da poupança externa no desenvolvimento econômico: três abordagens no debate brasileiro

The role of financial flows and external savings in economic development: three theoretical approaches in the Brazilian literature

Resumo

O recebimento de fluxos financeiros do exterior sempre foi elemento crucial na discussão do desenvolvimento econômico no Brasil. Ao longo da história, explicita-se a complexidade da forma de associação entre financiamento externo e desenvolvimento econômico nacional, entendido nas suas dimensões de crescimento econômico, mudança estrutural e sustentabilidade das contas externas. O presente artigo busca, primeiramente, apresentar e sistematizar essas relações segundo as principais teorias presentes no debate brasileiro: a liberal convencional e a “novo-desenvolvimentista”. Em ambas as visões, o conceito de “poupança externa” adquire protagonismo, ainda que com efeitos diametralmente opostos. Em segundo lugar, a partir de contribuições de outros autores, busca-se apresentar e articular os elementos constitutivos de um enfoque alternativo, denominado “abordagem da escassez de divisas”. Pretende-se com isso delinear contornos de uma linha de pesquisa convergente com os desenvolvimentos empíricos mais recentes sobre o tema e contribuir para o avanço do pensamento econômico crítico brasileiro.

Palavras-chave: fluxos financeiros; financiamento externo; poupança externa; crescimento; desenvolvimento

Abstract

Throughout the analysis of the Brazilian economic history, one easily notes the complex association between external financing and the components of economic development (taken as growth, structural change and sustainable evolution of external accounts). Firstly, this article explores how these theoretical associations are made by the main theories in the Brazilian economic literature: the liberal / conventional and the new-developmentalist. In both of them, the concept of “external savings” plays a central role, although being predicted to generate the very opposite effects. Secondly, based on the contributions of other heterodox authors, it seeks to present some theoretical underpinnings as constituting of an alternative approach, which could be called the “scarce foreign exchange” approach. The purpose is to define the contours of a research program which is consistent with the most recent empirical findings in this field and, thus, to contribute to the advancement of the Brazilian critical economic theory.

Keywords: capital flows; external financing; external savings; growth; development

1 Introdução

Desde as formulações estruturalistas originais sobre a condição de atraso das economias latino-americanas, a questão externa foi apresentada como aspecto fundamental e incontornável (Bielschowsky, 2000). Na segunda metade do século XIX, a partir da inserção externa da região como “periferia complementar” ao desenvolvimento industrial inglês e sua grande integração financeira internacional, não apenas a dinâmica de acumulação seria ditada pelas economias do centro (no modelo designado pela CEPAL de desenvolvimento hacia afuera), como as crises se impunham externamente sobre a periferia de forma periódica e definitiva, sem que esta tivesse chances de se proteger, gerando um padrão de instabilidade cíclica sobre a economia doméstica.

Posteriormente, no modelo “mais fechado” de industrialização por substituição de importações, a problemática da restrição externa se imporia de forma renovada a cada ciclo, no movimento recorrente de estrangulamento da capacidade para importar (Tavares, 1972). Nesse aspecto, a questão do financiamento externo foi colocada, de formas diferentes em diferentes períodos, como um recurso (cuja disponibilidade foi amplamente variável) para a continuidade do projeto industrializante.

Bem mais à frente, após uma década de estagnação da renda per capita fruto dos efeitos da crise da dívida externa, os anos 1990 foram de retomada dos processos de abertura e integração financeira, com crescimento expressivo dos ativos e passivos externos. Ao longo das últimas três décadas, o registro é de ampla oscilação nas condições de acesso ao financiamento externo, e seus efeitos sobre a trajetória da economia brasileira permanecem controversos.

Debruçando-se sobre essa problemática, o presente artigo se propõe a identificar e sistematizar as diferentes visões teóricas sobre as relações entre fluxos financeiros externos e desenvolvimento econômico presentes no debate acadêmico brasileiro. Motivam o mapeamento aqui tentado não apenas a importância do tema, mas também a disseminação, no campo heterodoxo, de ideias com pressupostos e consequências muito distintas, cujos contrastes se julgam útil clarear.

“Desenvolvimento econômico” será tratado aqui especificamente em termos de crescimento, sustentabilidade das contas externas e mudança da estrutura produtiva doméstica. “Poupança externa” também será objeto de investigação, dada a sua recorrência e importância no debate brasileiro. O conceito decorre da igualdade contábil entre poupança e investimento numa economia aberta, podendo ser definido como o fluxo de financiamento externo que seria contrapartida a um déficit nas Transações Correntes na situação de variação nula nas reservas internacionais (ou no resultado do Balanço de Pagamentos).

O artigo está organizado, além desta Introdução e da Conclusão, em três seções. A primeira resume a abordagem convencional sobre o tema, predominante não apenas no Brasil, mas também na literatura internacional (embora com prestígio abalado nas últimas duas décadas). É contra ela que se apresentam duas outras visões, mais interessantes para os objetivos do trabalho. A formulação “novo-desenvolvimentista”, que floresceu no início dos anos 2000 como crítica ao “crescimento com poupança externa”, é tratada na seção II. Por fim, a seção III apresenta importantes críticas advindas da heterodoxia à abordagem novo-desenvolvimentista (e que não se confundem com a perspectiva liberal), propondo elementos constitutivos para uma visão alternativa, denominando-a “abordagem da escassez de divisas”.

2 Hiato de recursos, poupança externa, convergências: a abordagem convencional

No início de 1997, quando o Brasil apresentava um expressivo resultado negativo nas suas Transações Correntes,1 uma das principais autoridades econômicas encarava tal resultado com confiante tranquilidade:

Na verdade, eu acho que é melhor ter déficit do que superávit. (...) é melhor ter poupança externa do que despoupança externa. (...) o Brasil ainda não se acostumou com a ideia de ser um país normal. Parte da normalidade de uma economia emergente é ter déficits (...) o Brasil não tem excesso de poupança interna. Tem é escassez. É esquisito o Brasil exportar poupança.2

Mais do que vinculados àquela conjuntura específica ou ao seu porta-voz, tais argumentos exprimem com clareza as formulações teóricas convencionais sobre o tema deste artigo. Nelas, os fluxos de capital são vistos como decorrência da operação do “lado real” da economia receptora (representado pelas Transações Correntes). Um resultado negativo nessa conta ensejaria a “contribuição da poupança externa” ao desenvolvimento de países que, dessa maneira, poderiam consumir e investir mais do que o permitido por seus próprios esforços e recursos. A contrapartida seria a assunção de passivos externos, que seriam saldados posteriormente com as divisas geradas pelo avanço da estrutura produtiva, financiado desde fora. A argumentação é bastante difundida e desemboca na corriqueira promessa de convergência - da taxa de juros, das taxas de crescimento e da própria estrutura produtiva. Apesar de simples, vale detalhar um pouco mais o raciocínio, para realçar os aspectos que interessam mais de perto.

Do ponto de vista da oferta de recursos, as formulações decorrem dos princípios básicos da sabedoria convencional sobre trocas internacionais e fluxos financeiros: o capital abundante nos países desenvolvidos, desde que desimpedido, tende a se deslocar às melhores oportunidades de investimento e às mais elevadas taxas de remuneração das economias com escassez relativa de recursos para financiar a inversão.3 Quando se afirma, nesse arcabouço, que os fluxos de capital se guiam pelos diferenciais de taxas de juros, a origem “real” do raciocínio também não se esconde4. Só haveria tal diferencial em resposta a dotações distintas de poupança.

Trata-se de um dos resultados principais da aplicação da macroeconomia convencional à análise dos problemas do desenvolvimento: a identificação da carência de recursos previamente poupados como limitante para o montante do investimento. A solução é o apelo à contribuição da poupança externa, possibilitada pela eliminação dos entraves à livre movimentação do capital por entre as fronteiras, e que não só coloca à disposição maior quantidade de recursos como também reduz as taxas de juros e outras taxas de rendimento, além de representar um elemento disciplinador sobre a política econômica do receptor.5 6 Se a poupança doméstica é insuficiente para financiar o investimento, pode-se (ou deve-se) incorrer em déficits em Conta Corrente para suplementar os recursos poupados internamente.

Em outra formulação muito frequente, seria um perfeito exemplo de comércio intertemporal, com o país deficitário importando consumo presente e exportando futuro (quando efetuaria a liquidação dos passivos); e o país fornecedor da poupança fazendo a troca intertemporal no sentido contrário. Para além da sustentabilidade das contas externas, portanto, aqui há uma associação clara entre absorção de recursos e crescimento econômico, extrapolando os limites dados pelas dotações presentes de recursos.

Porém, o terceiro aspecto que interessa aqui também está presente no raciocínio: entre um ponto e outro no tempo, a “missão” da poupança externa não seria apenas contábil ou macroeconômica: o investimento por ela possibilitado ensejaria a transformação da estrutura produtiva que - auxiliada pela exposição à concorrência internacional e pela tecnologia geralmente importada junto com essa poupança - tornaria o país mais competitivo e eficiente, resultando em aumento das exportações. Um futuro déficit menor na Conta Corrente, quiçá superávit suficiente para servir o passivo externo e equilibrar intertemporalmente o Balanço de Pagamentos, está sempre desenhado.

Deste último aspecto é exemplo marcante a defesa contra as críticas ao Plano Real pela rápida deterioração da Conta Corrente na segunda metade dos anos de 1990 (Franco, 1998; Mendonça De Barros; Goldenstein, 1997): o déficit seria natural e transitório, os setores ineficientes estariam sendo saudavelmente eliminados, e o país recuperava o tempo perdido com pretensões equivocadas de autossuficiência ou substituição de importações. O mesmo raciocínio também pode ser lido nos diversos argumentos da reflexão liberal mais recente, acerca da “desindustrialização” (Bacha; De Bolle, 2015): a defesa de uma estrutura produtiva enxuta, especializada e integrada às cadeias produtivas globais parte do papel virtuoso não apenas das importações, mas também dos fluxos de investimento direto estrangeiro (IDE).

Em suma, os traços característicos da visão liberal estão sempre presentes - mesmo quando não explicitados, por fazerem parte de um quase “senso comum” - na reflexão de parte significativa dos economistas brasileiros. O resultado em Conta Corrente aparece como parâmetro determinante, ou balizador, dos fluxos de capital registrados na Conta Financeira. Ou, ainda: os fluxos de capital são, por definição, fluxos de financiamento externo, que só se justificam, obviamente, para países que precisam ser financiados. Ao participarem desse processo “normal” ou “natural” de importação de poupança, os países em desenvolvimento além de “fecharem” seu Balanço de Pagamentos, teriam alargadas as suas possibilidades de crescimento econômico no curto prazo e abririam caminho para um processo virtuoso de mudança estrutural (sempre guiada pela eficiência e produtividade) e reinserção competitiva na economia global, no longo prazo. Essas relações estão sintetizadas na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma com as principais relações teóricas da “abordagem convencional”

3 Insuficiência dinâmica, fragilização externa e desindustrialização: a poupança externa no novo-desenvolvimentismo

No início do século XXI, ainda sob os efeitos das dificuldades cambiais que se estenderam por todo o segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), o raciocínio resumido anteriormente passou a sofrer fortes críticas de economistas bem situados no debate brasileiro. Com o artigo de Bresser-Pereira e Nakano (2003), o que viria a ser denominado de “novo-desenvolvimentismo” dava seus primeiros passos em torno da ideia de que “poupança se faz em casa” (expressão já citada por Bresser-Pereira (2001) e que remete aos achados empíricos de Feldstein e Horioka, 1980). O ideário, mais recentemente sistematizado em Bresser-Pereira, Oreiro e Marconi (2016), reivindica as heranças keynesianas na esfera macroeconômica e estruturalista no âmbito produtivo. Numa síntese preliminar, é possível dizer que, de forma diametralmente oposta às formulações convencionais, o raciocínio novo-desenvolvimentista sustenta que o recurso à poupança externa tende a levar o país a menores taxas de crescimento econômico, à fragilização das suas contas externas e à regressão estrutural.

O ponto de partida dessa abordagem é a taxa real de câmbio, que inequivocamente se encontraria num nível sobrevalorizado ao coexistir com “poupança externa”. Essa posição pode decorrer de um quadro de doença holandesa (em que há a exportação de grandes volumes de bens primários) ou então de uma taxa de juros doméstica superior à internacional, que tende a atrair excesso de capitais externos (gerando, portanto, superávit na Conta Financeira e déficit nas Transações Correntes), em ambos os casos pressionando a oferta de dólares na economia doméstica. Mesmo que o influxo seja fruto de uma pressão advinda do exterior (um ciclo de liquidez favorável, por exemplo) e gere, apenas posteriormente, déficit na Conta Corrente, a aceitação passiva dessa condição significaria uma opção por parte do governo pelo “crescimento com poupança externa”. Diante dos resultados previstos, que serão apresentados nos parágrafos a seguir, os autores novo-desenvolvimentistas argumentam que essa estratégia, construída ativa ou passivamente pelo governo, estaria absolutamente equivocada e deveria ser abandonada em prol de outra com a proeminência da poupança doméstica.

Primeiramente, é necessário entender qual é o parâmetro adotado para determinar a “sobrevalorização” da moeda nacional. Para Bresser-Pereira e Gala (2007, 2008), a taxa de câmbio “de equilíbrio” ou “de referência” é aquela que, intertemporalmente, garante a zeragem da Conta Corrente. É uma conceituação por contraste com a taxa que opera num país que cresce com poupança externa, na medida em que “o déficit em conta corrente que ela implica tem como consequência necessária uma taxa de câmbio mais apreciada do que seria se esse déficit não existisse e houvesse equilíbrio na conta corrente” (Bresser-Pereira; Gala, 2008, p. 82). Em trabalhos posteriores, a corrente novo-desenvolvimentista adotou uma definição menos circular, introduzindo o referencial de “taxa de equilíbrio industrial” como a taxa que permitiria àquelas empresas que operam com tecnologia no “estado da arte” serem competitivas no mercado internacional (Oreiro; Marconi, 2016). Quaisquer níveis da taxa de câmbio mais baixos que esse referencial estariam, portanto, “sobrevalorizados” e afetariam decisivamente a competitividade das empresas domésticas produtoras de bens manufaturados.

Nessa trilha, o nível sobrevalorizado da taxa de câmbio tenderia a afetar negativamente as decisões de investimento privado e, devido à centralidade deste nas decisões de gasto, geraria uma situação de escassez de demanda efetiva, restringindo no longo prazo o próprio crescimento econômico. A função de investimento adotada (explícita ou implicitamente) nas formulações novo-desenvolvimentistas tem como variáveis determinantes a massa de lucros (no sentido de que grande parte dos investimentos são financiados a partir do reinvestimento de lucros retidos) e as oportunidades de investimento lucrativo - determinadas pela expectativa de crescimento da demanda, dados os custos de oportunidade do capital (ou seja, a taxa de juros) e o patamar da taxa de câmbio que garante o acesso a essa demanda. O ponto a destacar é que, nessa formulação, ambos os determinantes do investimento são negativamente afetados pelo nível inadequado da taxa de câmbio.

A massa de lucros, que pode ser tomada como o fator ligado à oferta (de fundos para o investimento), é discutida a partir do nível de poupança disponível para o investimento. A sobrevalorização da taxa de câmbio promove, por um lado, o aumento dos salários reais na medida em que barateia os bens comercializáveis e permite o aumento do consumo dos trabalhadores.7 Por outro lado, reduzem os lucros dos capitalistas ao limitar exportações e o investimento das empresas que enfrentam forte concorrência no mercado internacional. Em termos macroeconômicos, considerando que a propensão a poupar a partir dos lucros tende a ser maior do que a propensão a poupar a partir dos salários, a sobrevalorização do câmbio real, ao afetar a distribuição funcional da renda a favor dos trabalhadores, tende a produzir a ampliação do consumo agregado e a redução da poupança doméstica. Por isso, Bresser-Pereira e Gala (2008, p. 85) afirmam que “a poupança interna é função da taxa de câmbio”.

Diante desse quadro, poderia um país compensar essa queda na poupança doméstica recorrendo à “poupança externa” (facilitada pela própria apreciação cambial)? Segundo os autores, para que um país se desenvolva com poupança externa, a taxa de substituição8 entre poupança doméstica e poupança externa deve ser próxima de zero, ou seja, toda a poupança externa deve se converter em aumento de investimento. Para que isso ocorra, “seria preciso que uma conjugação favorável de externalidades e de aumento de demanda provocasse uma situação de grandes oportunidades de investimento, que se expressam por altas taxas de lucro esperadas (...)” (Bresser-Pereira; Gala, 2008, p. 89).9 Em termos históricos, os autores argumentam que essa taxa de substituição é próxima de 50%, sendo em muitos casos ainda mais elevada, o que significa que metade ou mais da poupança doméstica é substituída por poupança externa.10

Com relação ao determinante do investimento ligado à demanda, a visão novo-desenvolvimentista é bastante enfática sobre como as oportunidades de investimentos são decisivamente afetadas pelo preço da moeda estrangeira. A taxa sobrevalorizada afetaria de forma crucial o desempenho das exportações e inviabilizaria a lucratividade de projetos de investimento em setores comercializáveis, por se tornarem excessivamente expostos à concorrência internacional. O câmbio, nessa perspectiva, funcionaria “como um interruptor que liga ou desliga as empresas competentes do país tanto do mercado externo quanto do mercado interno” (Bresser-Pereira, 2014, p. 32).

Portanto, na formulação novo-desenvolvimentista, o patamar da taxa de câmbio afeta crucialmente as decisões de investimento da economia ao operar tanto pelo lado da oferta como pelo lado da demanda (Bresser-Pereira; Gala, 2008, p. 86). A “política de crescimento com poupança externa”, na medida em que gera sobreapreciação e redução das decisões de investimento, contribui para a persistência das condições de capacidade ociosa e de desemprego tipicamente observadas nos países em desenvolvimento (Bresser-Pereira; Gala, 2008, p. 80).

Na “macroeconomia desenvolvimentista”, também são dramáticos os resultados previstos do uso da poupança externa sobre a fragilidade financeira internacional do país (Bresser-Pereira, 2001). A estratégia de crescer com poupança externa gera, por um lado, um estoque de passivos externos a serem remunerados (implicando, nos períodos subsequentes, fluxos de remessas de juros, lucros e dividendos). Por outro lado, como não há aumento correspondente da capacidade produtiva do país, especialmente no setor exportador, essa estratégia reduz progressivamente a capacidade de gerar saldos exportáveis e, portanto, de arcar com aqueles compromissos no futuro. A tendência é a progressiva fragilização das contas externas (ou seja, das condições de liquidez e de solvência11) até o ponto em que os credores externos, ao desconfiarem da capacidade de pagamento do país, suspendem subitamente os financiamentos externos (inclusive a rolagem da dívida), culminando em crise no Balanço de Pagamentos, com brusca desvalorização cambial e moratória da dívida (ou resgate do FMI).12

Por fim, essa mesma formulação teórica é utilizada para explicar a tendência à “desindustrialização prematura” - ou seja, a mudança na estrutura setorial da economia com perda relativa no setor industrial, em detrimento dos serviços. A causa principal, está claro, seria o nível sobrevalorizado da taxa de câmbio, que torna atividades industriais menos competitivas no âmbito internacional (Bresser-Pereira; Marconi, 2008; Oreiro; Feijó, 2010; Oreiro et al., 2020).

Do ponto de vista normativo, os novos-desenvolvimentistas defendem políticas direcionadas a neutralizar as tendências crônicas de sobreapreciação cambial. Contribuiria também para essa meta a manutenção do equilíbrio fiscal, que evita a pressão altista da taxa de juros e, por essa via, a atração de capitais que afeta o câmbio (Bresser-Pereira; Oreiro; Marconi, 2016, p. 104-105).

Em suma, a manutenção da taxa de câmbio em torno do “nível de equilíbrio” seria compatível com a sustentação do crescimento econômico com poupança doméstica, a geração de saldos exportáveis que permitam a sustentabilidade externa e a competitividade da produção nacional nos segmentos que operam no “estado da arte” da indústria mundial. Na Figura 2, apresenta-se uma esquematização dessa combinação entre a centralidade da poupança externa, o pessimismo - macroeconômico e estrutural - sobre a absorção de financiamento externo e a taxa de câmbio como causa principal dos males do desenvolvimento.

Figura 2
Fluxograma com as principais relações da teoria novo-desenvolvimentista

4 Elementos constitutivos de uma terceira visão: a abordagem da escassez de divisas

No início de seu estudo sobre o endividamento externo brasileiro nos anos 1970, Cruz (1999) contestava a explicação então predominante de que o determinante do processo teria sido o "hiato de recursos" a exigir a "contribuição da poupança externa" na forma da tomada de empréstimos em moeda estrangeira. Do ponto de vista estrito (observado no agrupamento contábil então chamado "bens e serviços não fatores”, hoje, apenas "bens e serviços") não havia déficit relevante até o primeiro choque do petróleo em 1973:

(...) a tese de que a aceleração do endividamento externo brasileiro (…) foi determinada pela necessidade de “poupanças externas” ou por estrangulamentos do setor externo não encontra qualquer base de sustentação. Sendo assim, a contrapartida do significativo impulso sofrido pela dívida externa deve ser buscada na esfera das relações financeiras da economia brasileira com o “resto do mundo” e não na necessidade de superar “constrangimentos” do setor externo (...) o afluxo significativo de recursos (...) foi determinado, em última instância, pelas transformações ocorridas no mercado de euromoedas (...) a economia brasileira foi “capturada”, juntamente com várias outras economias, num movimento geral do capital financeiro internacional em busca de oportunidades de valorização (Cruz, 1999, p. 22-24).

Tratava-se, a um só tempo, não apenas de se contrapor ao otimismo oficial em relação ao endividamento, mas também de rejeitar a própria ideia de “determinantes reais” do movimento. Analisavam-se em detalhes a composição e os determinantes do déficit corrente e buscavam-se em outra ordem de fatores as explicações fundamentais.

É a partir desse tipo de análise que se pode identificar a existência de uma terceira visão sobre os temas abordados neste artigo. No debate brasileiro mais recente, ela aparece em alguns trabalhos do início da década de 2010 que questionavam o pessimismo "novo-desenvolvimentista" sobre os déficits nas Transações Correntes que voltavam a aparecer (Biancarelli, 2012). Mas, como se procurará argumentar, trata-se de um conjunto de ideias anteriores e posteriores àquela conjuntura específica e que agrega argumentos dispersos de vários outros autores. Ainda que não sejam declaradamente filiados a uma abordagem comum, os trabalhos possuem convergência teórica e, em alguns pontos, complementariedade com relação ao papel dos fluxos financeiros internacionais no desenvolvimento econômico.

De maneira geral, postula-se que a função dos fluxos financeiros no desenvolvimento econômico é relaxar a restrição externa, que constitui um dos entraves principais enfrentados pelos países não emissores da moeda de uso internacional. Essa restrição deve ser entendida como a escassez na disponibilidade de divisas para viabilizar as importações necessárias à manutenção ou aceleração do crescimento econômico (que, por sua vez, pode ou não envolver aspectos de mudança estrutural). Com isso, quer-se destacar que, independentemente de esses fluxos financiarem ou não o investimento doméstico, eles indubitavelmente possibilitam o acesso a um ativo escasso - e crucial - no processo de crescimento e desenvolvimento econômico: a moeda estrangeira.

Considerando a história dos países subdesenvolvidos, entende-se que o recurso ao financiamento externo pode representar uma grande oportunidade - ao permitir a expansão da taxa de crescimento e a viabilização de projetos de mudança estrutural - como também grandes riscos -, dada a recorrência de ciclos de absorção de passivos externos e posteriores crises cambiais. Porém, em contraste com as duas abordagens teóricas já vistas, afirma-se que o recebimento dos fluxos financeiros internacionais não gera, sobre a economia receptora, tendências unívocas sobre as condições efetivas de crescimento econômico ou de mudança estrutural; e tampouco leva inexoravelmente o país a uma crise de Balanço de Pagamentos.

O ponto de partida é o entendimento sobre a natureza e os determinantes dos fenômenos em tela. Diferentemente do que assume a visão liberal, os fluxos internacionais de capital não seguem uma lógica de alocação internacional de poupança, de acordo com a disponibilidade interna de fatores de produção. Tampouco podem ser entendidos como uma "opção" ou "estratégia" relativa ao financiamento do investimento, como fazem os novo-desenvolvimentistas, tratando poupança doméstica e poupança externa como recursos intercambiáveis/substituíveis e, a partir dessa perspectiva, atribuindo à primeira clara superioridade em relação à última. Na visão aqui apresentada, o influxo de capitais para um país é determinado por decisões, por parte de gestores globais de carteiras, acerca da alocação da riqueza existente e também de criação e destruição de ativos/passivos, envolvendo mais de uma jurisdição e moeda. Portanto, está associado a uma lógica essencialmente financeira, não necessariamente ligada às remunerações produtivas ou utilização de fatores nos locais de destino. Nesse sentido, a categoria "poupança externa", cujo uso é comumente vinculado ao lado real da economia, se revela pouco útil para refletir sobre o tema.

Ao menos quatro desdobramentos são vinculados a essa formulação mais geral:

  1. Os fluxos financeiros internacionais dependem da dinâmica do ciclo de liquidez global, decisivamente afetada pela política monetária nos países centrais (principalmente pela taxa de juros determinada pelo banco central americano - a Fed Funds rate) e pelas condições de incerteza e aversão ao risco dos investidores (Biancareli, 2007; Medeiros, 2008).13

  2. Existem assimetrias na inserção financeira internacional entre os distintos países, sendo que aqueles em desenvolvimento ou periféricos assumem uma posição de subordinação nos ciclos financeiros globais (Prates, 2005; Medeiros, 2008). Isso significa que esses países são destinos de fluxos financeiros em momentos de "busca por rendimentos" durante as fases de alta dos ciclos (desde que ofereçam remuneração atrativa, ou seja, que atendam à paridade coberta da taxa de juros); e são os primeiros a serem abandonados no contexto de reversão dos ciclos, aversão ao risco e "fuga para a qualidade" (Carneiro, 2008; De Conti, 2011).

  3. Essa assimetria decorre de outra relacionada às funções desempenhadas pelas moedas dos países fora do seu espaço nacional. A assimetria fundamental, que constitui a base do funcionamento do sistema monetário internacional vigente, é a que existe entre o dólar e as demais moedas nacionais (Serrano, 2002). As moedas emitidas por países periféricos são marcadas por uma fragilidade intrínseca como meio para preservação de riqueza (Medeiros, 2008) e se situam na base de uma hierarquia de moedas, com diferentes gradações no atributo de liquidez (De Conti, 2011; De Conti et al., 2014).

  4. Devido à determinação predominantemente externa dos fluxos financeiros, não há garantias de coincidência entre os volumes desses capitais e as necessidades contábeis estabelecidas pelo déficit em Transações Correntes. Estas últimas, por sua vez, têm determinações apenas parcialmente domésticas, sejam elas reais ou financeiras (Biancarelli, 2012; Serrano, 2000).

A partir desse alicerce, a relação entre os fluxos financeiros e o desenvolvimento econômico será explorada nos mesmos âmbitos considerados nas demais seções: crescimento, sustentabilidade das contas externas e mudança estrutural.

Em relação ao crescimento econômico, o papel do financiamento externo está mais relacionado ao relaxamento da restrição externa do que à viabilização financeira dos gastos que compõem a demanda efetiva da economia.

Em primeiro lugar, assume-se que o produto efetivo é determinado pelas decisões de gasto na economia, de acordo com as formulações keynesiana e kaleckiana do princípio da demanda efetiva. Evidentemente, as decisões de gasto dos agentes podem ser afetadas pelos influxos financeiros: seja diretamente, caso esses recursos se direcionem à realização de investimento ou consumo; ou indiretamente, à medida que as decisões de gasto sejam afetadas pelas oscilações da taxa de câmbio resultantes de tais influxos. Porém, entende-se que as condições que determinam as decisões de gasto da economia como um todo são muito mais gerais e dificilmente podem ser reduzidas à "condição liga/desliga" no acesso à demanda a partir do patamar do câmbio. Assim, não se estabelece uma relação causal direta e unívoca entre influxos financeiros (que, como argumentado, podem ou não coincidir em valor com a "poupança externa") e as condições efetivas de crescimento econômico.

Nessa formulação, o que poderia ser dito sobre a poupança externa? Em termos macroeconômicos, a determinação da renda a partir das decisões de gasto gera, ex post, o nível de poupança agregada. Assim, dadas as condições de gasto, o aumento da poupança externa em si não muda o PIB nem o montante da poupança agregada, afetando apenas a sua composição (ou seja, o aumento da poupança externa gera, em contrapartida, a redução da poupança do setor público e do setor privado) (Serrano, 2000).

Há, contudo, um aspecto central: os influxos financeiros permitem ampliar o nível do produto compatível com o equilíbrio do Balanço de Pagamentos. É importante reforçar o argumento de que, mesmo nesse caso, o nível do produto efetivo (determinado pelas decisões de gasto na economia) não necessariamente irá se igualar àquele que equilibra o Balanço de Pagamentos (Bhering; Serrano, 2014). Isso significa que, ao mesmo tempo que níveis mais altos do produto podem conviver com déficits correntes (a depender da disponibilidade de financiamento externo e das condições de sustentabilidade), é possível que o produto efetivo se mantenha em níveis inferiores àquele que equilibra as contas externas - e isso acontecerá caso a expansão dos gastos autônomos seja insuficiente (inclusive, a partir da intenção do país em reduzir seu passivo externo líquido ou acumular reservas internacionais) (Serrano, 2000). Em outras palavras, a taxa efetiva de crescimento pode ser menor, igual ou, dentro de certos limites (conforme será discutido a seguir), maior do que a taxa de equilíbrio do Balanço de Pagamentos.

Esse é o ponto de conexão para o tema da sustentabilidade das contas externas. Todo e qualquer país que não emite a divisa-chave do sistema monetário internacional está impossibilitado de perder reservas ou ampliar seu passivo externo líquido indefinidamente. Por isso, é necessário considerar as condições de sustentabilidade do endividamento externo (em sentido amplo), ou seja, analisar tanto a dinâmica dos fluxos como a dos estoques.

A capacidade de pagamento das obrigações externas de um país - que, no caso geral, é denominado em moeda estrangeira - depende da razão entre passivo externo líquido e exportações. Existe um limite para o nível desse indicador, a partir do qual os credores internacionais interrompem o financiamento do déficit de Transações Correntes. Portanto, do ponto de vista dos fluxos, a condição essencial de sustentabilidade consiste em o custo de financiamento do passivo externo, medido em termos de uma taxa de juros média, ser inferior à taxa de crescimento das exportações (Bhering; Serrano, 2014).

Essa é uma condição que pode ou não ocorrer. Não há uma tendência necessária à fragilização das contas externas, pois, diferentemente do que é assumido pela teoria novo-desenvolvimentista, o desempenho das exportações não depende exclusivamente do patamar do câmbio, que tende a se valorizar como resultado da entrada de fluxos financeiros do exterior.

De forma complementar, pode-se argumentar que a razão entre os passivos externos de curto prazo e as reservas cambiais constituem outro indicador fundamental, agora do ponto de vista dos estoques, da fragilidade financeira externa do país. Quando essa razão é muito alta, os credores externos podem se recusar a refinanciar essas obrigações e, a partir da disseminação de expectativas de desvalorização cambial, isso tende a gerar um processo especulativo com volumosas saídas de capital, podendo exaurir as reservas externas do país. Nesse sentido, torna-se relevante a análise não só do montante, mas da composição do estoque de obrigações financeiras externas, dissociando entre compromissos de curto prazo, de longo prazo e de investimento direto estrangeiro (Medeiros; Serrano, 2001).

Outro ponto crucial diz respeito à dinâmica própria dos estoques, que pode contribuir para agravar ou atenuar as condições de sustentabilidade de determinada trajetória. Por dinâmica própria, quer-se destacar a lógica de valorização e desvalorização dos estoques a partir de variações de preço ou de câmbio independentes dos fluxos. Nesse sentido, torna-se essencial analisar a moeda de denominação e as formas em que estão aplicados tais recursos (mercados de ações e títulos ou empréstimos) (Biancarelli, 2019; Rosa, 2016).

Por fim, os autores dessa abordagem não vinculam o recebimento de fluxos de capital diretamente a tendências na estrutura produtiva. Os efeitos sobre esta podem ser positivos, caso os recursos recebidos estiverem associados a investimentos ou se permitirem a disponibilidade de divisas necessárias para a modernização e investimentos no parque produtivo (e se de fato essas aplicações forem feitas). Por outro lado, há riscos evidentes de que, mediante a ocorrência de uma valorização cambial, esta possa gerar tendências regressivas sobre o parque produtivo, afetando especialmente os setores mais sensíveis à concorrência internacional. O efeito final dependerá de uma combinação entre os aspectos macroeconômicos (considerados de forma ampla), os aspectos estruturais da economia e dos incentivos das políticas industriais e tecnológicas adotadas.

Desse modo, se por um lado é preciso reiterar os elementos essenciais do estruturalismo, no sentido de que as estruturas produtivas do país determinam em última instância a trajetória de desenvolvimento sustentado no longo prazo, por outro é preciso esquivar-se de automatismos, especialmente com relação ao desempenho produtivo a partir das condições meramente macroeconômicas. E parece mais reducionista ainda resumir essas condições ao patamar da taxa de câmbio.

Os efeitos macroeconômicos do financiamento externo podem, de fato, influenciar as condições de rentabilidade, mas dificilmente definem por si só o destino das exportações e do investimento no setor industrial. Na tradição estruturalista e neoschumpeteriana, entende-se que a evolução da mudança estrutural depende decisivamente de fatores histórico-estruturais, institucionais e também das oportunidades e bloqueios associados ao padrão de acumulação e da concorrência internacional em cada momento.

Em suma, a abordagem da escassez de divisas reconhece que o financiamento externo possui um papel extremamente relevante no processo de desenvolvimento econômico, no sentido de permitir o afastamento da restrição externa. Contudo, afirma que tal recurso não condiciona rigidamente as condições efetivas de crescimento econômico ou de mudança estrutural. Os fatores de determinação desses processos são mais amplos e estudados por teorias específicas, nas quais o financiamento externo assume um papel coadjuvante. Com relação à questão do equilíbrio externo, essa abordagem teórica considera que é possível manter uma trajetória de crescimento econômico com déficit em Transações Correntes desde que as condições de sustentabilidade dos fluxos e a dinâmica favorável dos estoques sejam preservadas e que os riscos inerentes à inserção subordinada nos fluxos financeiros internacionais sejam reduzidos.14 A Figura 3 sintetiza as relações teóricas estabelecidas.

Figura 3
Fluxograma com as principais relações da abordagem da escassez de divisas

5 Considerações finais

Ao longo da história da economia brasileira, observam-se diferentes formas de associação entre as condições do desenvolvimento econômico e o recurso aos fluxos financeiros internacionais, sejam eles baseados na contratação de empréstimos, recebimento de investimentos diretos estrangeiros ou na alocação de capitais na modalidade de carteira. Os exemplos do Plano de Metas nos anos 1950, do endividamento externo ao longo dos anos 1970, da “crise da dívida” ou mesmo das fases de abundância e escassez de financiamento desde a reinserção do país nos anos 1990 ilustram uma variedade de combinações entre os aspectos abordados neste artigo: os resultados das contas do Balanço de Pagamentos (seja o de Transações Correntes ou Conta Financeira) e as tendências em termos de crescimento econômico, mudança estrutural e da própria sustentabilidade das contas externas.

Em contraste com essa aparente complexidade, as abordagens teóricas mais presentes no debate brasileiro atual sustentam a existência de relações bastante diretas entre esses fenômenos.

A partir de uma sistematização geral do que seria a “abordagem convencional”, identifica-se que o financiamento externo equivaleria ao “natural” recurso à poupança externa por parte de países com escassez relativa na dotação interna de capital. Esses recursos vêm se somar à poupança doméstica e geram diretamente mais investimentos/crescimento econômico, além de expandir as exportações, possibilitando, afinal, o próprio financiamento intertemporal sem grandes riscos à solvência externa do país. Essas expectativas fortemente “otimistas” têm sido, desde o início dos anos 2000, crescentemente questionadas com base nas experiências de diversos países em desenvolvimento que aderiram às reformas liberalizantes dos anos 1990.

Constituindo-se como uma crítica à visão convencional, a abordagem novo-desenvolvimentista condena firmemente a “estratégia” de crescimento com déficits em Transações Correntes. De acordo com essa formulação, o recurso à poupança externa gera (quase que inevitavelmente): aumento do consumo, em detrimento da poupança/investimento, reduzindo o crescimento econômico; progressiva fragilização financeira até a ocorrência de crise cambial; e tendência à desindustrialização prematura do país.

A abordagem da escassez de divisas se opõe ao “otimismo” da visão convencional, ao mesmo tempo que não compartilha do “fatalismo otimista” da visão novo-desenvolvimentista. Com este último termo, faz-se referência à ideia amplamente presente nas análises novo-desenvolvimentistas de que se, por um lado, o recurso à “poupança externa” gera inevitavelmente a deterioração nos três âmbitos mencionados, por outro lado, a esperada crise no Balanço de Pagamentos tenderia a gerar a correção do patamar do câmbio e, com isso, assegurar as condições de crescimento, de mudança estrutural e de sustentabilidade do Balanço de Pagamentos. Nesse sentido, a visão novo-desenvolvimentista é fatalista, mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser otimista com relação às condições necessárias para corrigir os rumos do desenvolvimento.

A abordagem proposta neste artigo destaca o caráter financeiro e fortemente exógeno dos fluxos internacionais, associados aos ciclos internacionais e à lógica especulativa, sendo que o resultado contábil da Conta Financeira não se associa diretamente às necessidades reais da economia (e, portanto, se distancia dos conceitos de poupança ou despoupança domésticas).

Longe de servir como um meio-termo entre a visão liberal e a novo-desenvolvimentista, a abordagem que denominamos “da escassez de divisas” oferece uma perspectiva crítica alternativa, reivindicando o conteúdo das teses estruturalistas e o princípio da demanda efetiva. Nessa perspectiva, o recebimento de fluxos financeiros internacionais não é necessariamente bom ou ruim: ele pode favorecer o crescimento econômico na medida em que gera a entrada de divisas internacionais, relaxando a restrição externa; mas, por outro lado, pode ser nocivo nos casos em que gerar fragilidade externa e crise cambial. Se há de fato indeterminações com relação aos seus efeitos sobre o desenvolvimento econômico, é porque este se configura em um processo complexo e não redutível a meros automatismos a partir de variáveis macroeconômicas.

Referências

  • AHMED, S.; ZLATE, A. Capital flows to emerging market economies: A brave new world? Journal of International Money and Finance, 48, p. 221-248, 2014.
  • ALVES, C. “Déficit não é ‘esquisito’, afirma Franco”. Folha de S.Paulo, 09 março, 1997.
  • BACHA, E.; DE BOLLE, M. (Org.). O futuro da indústria no Brasil: desindustrialização em debate. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
  • BASTOS, P.P.Z.; BIANCARELI, A. M.; DEOS, S. S. Controle de capitais e reformas liberais: uma comparação internacional. Economia e Sociedade, v. 15, p. 545-576, 2006.
  • BHERING, G.; SERRANO, F. A restrição externa e a “Lei de Thirlwall” com endividamento externo. In: Anais do XLII Encontro Nacional de Economia. ANPEC. 2014.
  • BIANCARELI, A. M. Integração, ciclos e finanças domésticas: o Brasil na globalização financeira. Tese (Doutorado) - Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, São Paulo, 2007.
  • BIANCARELI, A. M. A visão convencional sobre a abertura financeira e suas mutações recentes. Estudos Econômicos, v. 40, p. 917-942, 2010a.
  • BIANCARELI, A. M. A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico. In: MARCOLIN, L. Cláudio; CARNEIRO, R. (Org.). Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil: do Plano Real à crise financeira. São Paulo: Publisher Brasil; Editora Gráfica Atitude, p. 55-88, 2010b.
  • BIANCARELLI, A. M. Uma Nova realidade do setor externo brasileiro, em meio à crise internacional. Rede desenvolvimentista: texto para discussão n. 13, 2012.
  • BIANCARELLI, A. M. A velha senhora, em roupas novas: vulnerabilidade externa no Brasil atual. In: CHILLIATO-LEITE, M. V. Alternativas para o desenvolvimento brasileiro: novos horizontes para a mudança estrutural com igualdade. Brasília: CEPAL, 2019.
  • BIELSCHOWSKY, R. Cinquenta anos de pensamento na Cepal - uma resenha. In: BIELSCHOWSKY, R. (Org.). Cinquenta anos de pensamento na Cepal. Rio de Janeiro: Record, 2000.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. A fragilidade que nasce da dependência da poupança externa. Valor 1000, set. 2001.
  • BRESSER, L. C.; NAKANO, Y. Crescimento econômico com poupança externa? Revista de Economia Política, v. 23, n. 2 (90), abr.-jun. 2003.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C.; GALA, P. Por que a poupança externa não promove crescimento. Revista de Economia Política., v. 27 n. 1, São Paulo, 2007.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C.; GALA, P. Poupança externa, insuficiência de demanda e baixo crescimento. In: SICSÚ, C; VIDOTTO, C.; Economia do desenvolvimento - teoria e políticas keynesianas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C.; MARCONI, N. Existe doença holandesa no Brasil? In: FÓRUM DE ECONOMIA DE SÃO PAULO, IV., São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 2008. Anais...
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. Globalização e competição: por que alguns países emergentes têm sucesso e outros não. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. A construção política do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2014.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C.; OREIRO, J. L.; MARCONI, N. Macroeconomia desenvolvimentista: teoria e política econômica do novo-desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016.
  • BRUNO, V; SHIN, H. S. Cross-Border Banking and Global Liquidity. BIS Working Papers, n. 458, 2014.
  • CARNEIRO, R. Globalização e inconversibilidade monetária. Revista de Economia Política, v. 28, n. 4 (112), p. 539-556, 2008.
  • CRUZ, P. R. D. C. Dívida externa e política econômica: a experiência brasileira nos anos setenta. Campinas: Instituto de Economia, Unicamp, 1999.
  • DE CONTI, B. M. Políticas cambial e monetária: os dilemas enfrentados por países emissores de moedas periféricas. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, São Paulo, 2011.
  • DE CONTI, B.; PRATES, D. M.; PLIHON, D. A hierarquia monetária e suas implicações para as taxas de câmbio e de juros e a política econômica dos países periféricos. Economia e Sociedade, v. 23, n. 2, p. 341-372, 2014
  • DORNBUSCH, R. Purchasing Power Parity. National Bureau of Economic Research. NBER Working Paper, 1.591, 1985.
  • DORNBUSCH, R. Exchange rate and inflation. Cambridge: MIT Press, 1988.
  • FELDSTEIN, M.; HORIOKA, C. Domestic saving and international capital flows. Economic Journal, 90 (June), p. 314-329, 1980.
  • FRANCO, G. H. B. A inserção externa e o desenvolvimento. Revista de Economia Política, v. 18, n. 3, p. 121-147, 1998.
  • FRANCO, G. H. B. Capitais de motel. Veja, 29 set. 1999.
  • FREITAS, M. C. P; PRATES, D. M. Abertura financeira na América Latina: as experiências da Argentina, Brasil e México. Economia e Sociedade, v. 11, p. 98-173, 1998.
  • FRITZ, B.; PRATES, D. The new IMF approach to capital account management and its blind spots: Lessons from Brazil and South Korea. International Review of Applied Economics, v. 28, p. 210-239, 2014.
  • FRITZ, B.; PRATES, D. Capital account regulation as part of the macroeconomic regime: Comparing Brazil in the 1990s and 2000s. European Journal of Economics and Economic Policies: Intervention, v. 15, p. 313-334, 2018.
  • MEDEIROS, C. A. 2008. Financial dependency and growth cycles in Latin American countries. Journal of Post Keynesian Economics, v. 31, n. 1, 79-99, 2008.
  • MENDONÇA DE BARROS, J. R.; GOLDENSTEIN, L. Avaliação do processo de reestruturação industrial brasileiro. Revista de Economia Política, v. 17, n. 2, p. 11-31, 1997.
  • MIRANDA-AGRIPINO S.; REY, H. World asset markets and the global financial cycle. NBER Working Paper Series, n. 21.722. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, 2015.
  • OBSTFELD, M.; TAYLOR, A. M. Global capital markets: Integration, crisis, and growth. Cambridge: Cambridge Univesity Press, 2004.
  • OREIRO, J. L.; MARCONI, N. O novo-desenvolvimentismo e seus críticos. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 11, n. 19, p.167-179, 2016.
  • OREIRO, J. L. C.; FEIJO, C.; PUNZO, L.; MACHADO, J. P. H. Peripherical Financialization and Premature Deindustrialization: A Theory and the Case of Brazil (2003-2015). Post Keynesian Economics Society, Working Paper 2103, 2021.
  • OREIRO, J. L.; FEIJÓ, C. A. Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. Revista de Economia Política, v. 30, n. 2 (118), p. 219-232, 2010.
  • PESSOA, S. Há limite para a taxa básica de juros? Folha de S.Paulo, 12 jul. 2020.
  • PRATES, D. As assimetrias do sistema monetário e financeiro internacional. Revista de Economia Contemporânea, v. 9, n. 2, p. 263-288, 2005.
  • REY, H. Dilemma not trilemma: The global financial cycle and monetary policy independence. National Bureau of Economic Research. NBER Working Paper, 21.162, 2013.
  • ROSA, R. S. Passivo externo e "desdolarização": a vulnerabilidade externa brasileira em mutação. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, São Paulo, 2016.
  • SERRANO, F. A soma das poupanças determina o investimento? Archetypon, Rio de Janeiro, v. 8, p. 127-149, maio 2000.
  • TAVARES, M. C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
  • Códigos JEL:
    F30, F41, 010, F43
  • JEL Codes:
    F30, F41, 010, F43
  • 1
    Naquele ano, seguindo os dados do Banco Central do Brasil na metodologia antiga da contabilidade do setor externo (Manual de Balanço de Pagamentos n. 5, do FMI), o déficit foi de 3,4% do Produto Interno Bruto (PIB) e subiria até os 4,2% em 1999. O pior ano da série foi 1974, com déficit de 6,8% do PIB.
  • 2
    Gustavo Franco, então diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, em entrevista à Folha de S.Paulo em 09/03/1997 (Alves, 1997).
  • 3
    A literatura internacional sobre esse ponto é longa e antiga, e o espaço aqui insuficiente para dar conta dela. Anote-se, apenas, que os fundamentos do raciocínio remetem às teorias tradicionais de comércio exterior (com liberdade de movimentação de fatores e tendência ao nivelamento das taxas de remuneração) e, mais especificamente, sobre os fluxos de capital, à “Lei do Preço Único” e à discussão da Paridade do Poder de Compra como fundamentos para a determinação da “taxa de câmbio de equilíbrio” (ver, como referências clássicas, Dornbusch, 1985; 1988).
  • 4
    Para variar o contexto e o personagem, tome-se este trecho mais recente, também veiculado na imprensa: “Em geral, a equação de paridade deve valer: o juro doméstico corrigido pelo risco, somado à taxa de (des)valorização da moeda, tem que ser igual ao juro internacional. Ou seja, para que os juros domésticos em reais sejam baixos sem gerar saídas de capital, é necessário que os investidores esperem que o real se fortaleça. Para que isso ocorra, temos que partir de uma situação de superávit expressivo nas contas externas. A construção do superávit externo estrutural dependerá de um ajuste fiscal estrutural" (Pessoa, 2020).
  • 5
    Anote-se que essa argumentação acompanha quase que perfeitamente o raciocínio dos “benefícios teóricos” de uma ordem financeira internacional integrada (Obstfeld; Taylor, 2004, seção 1.1). Essa lista, na apreciação crítica feita em Biancareli (2010a), contém: (i) compartilhamento e diversificação internacional de riscos; (ii) financiamento de desequilíbrios passageiros de Balanço de Pagamentos; (iii) acesso à poupança externa para o financiamento do investimento e do desenvolvimento; e (iv) disciplina sobre a política econômica.
  • 6
    Sobre o argumento da disciplina, novamente Franco (1999), em artigo não acadêmico, fornece a melhor definição no debate brasileiro: “(...) toda e qualquer irresponsabilidade fiscal será punida exemplarmente, seja sob a forma de ataques especulativos, seja pelo exercício da mais absoluta indiferença. (...) se é isso que, ao fim das contas, perdemos com a globalização, a saber, a liberdade de fazer bobagem, fico me perguntando se tudo isso não é para o bem.”
  • 7
    Para os autores novo-desenvolvimentistas, essa melhora nos salários reais seria “artificial”. Para Bresser-Pereira e Gala (2008, p. 85), salários artificialmente elevados são aqueles “incompatíveis com sua produtividade, ou com a taxa de lucros satisfatória que mantém a economia crescendo”. O uso do câmbio para promover “ganhos artificiais” no poder de compra dos trabalhadores teria sido, ao longo da história brasileira recente, prática comum de “governos populistas e irresponsáveis” (Bresser-Pereira, 2009, cap. 4).
  • 8
    O conceito de taxa de substituição de poupanças surge nessa tradição em Bresser-Pereira e Nakano (2003).
  • 9
    Segundo Bresser-Pereira e Gala (2008, p. 86-87), a substituição da poupança doméstica pela poupança externa depende: do ponto de vista de oferta, da variação dos salários em relação ao câmbio, da variação dos lucros esperados dos investimentos para exportar, da propensão a consumir e do diferencial entre a taxa de lucros esperada e a taxa de juros; e do ponto de vista da demanda: da elasticidade das exportações ao câmbio e da elasticidade dos investimentos em relação às exportações.
  • 10
    Os autores parecem assumir, implicitamente, uma qualidade inferior da poupança externa para financiar o investimento, pois analisam negativamente a taxa de substituição “historicamente observada” de 50%, mesmo que tal número represente ainda um acréscimo líquido à poupança agregada em relação à situação de ausência de poupança externa. A preferência pela poupança doméstica parece estar apoiada na necessidade de pagamento dos compromissos externos (rendas líquidas enviadas ao exterior) e na crescente vulnerabilidade externa que, nessa visão, o recurso à poupança externa engendraria. Não obstante, Bresser-Pereira e Gala (2008) encontram evidências, para o período 1993-1999 da economia brasileira, de uma taxa de substituição superior a 100%, o que evidenciaria uma redução no montante da poupança agregada em termos absolutos.
  • 11
    “A restrição de liquidez está relacionada à capacidade de curto prazo do país de honrar suas obrigações correntes, enquanto se presume que, a médio prazo, ele será capaz de pagá-las; mas a restrição de solvência exige que o valor presente dos pagamentos futuros seja suficiente para resgatar o atual estoque da dívida” (Bresser-Pereira; Oreiro; Marconi, 2016, p. 140). Em passagem posterior, os autores citam que os credores usam, convencionalmente, a relação entre a dívida externa e as exportações para medir o grau de solvência do país e, segundo uma “regra prática amplamente aceita”, eles entendem que a situação é confortável quando essa relação é inferior a 2, incerta quando está entre 2 e 4, e crítica quando está acima de 4. A restrição financeira é tomada como a relação entre a dívida externa de curto prazo e as reservas internacionais em proporção de no mínimo 1 (p. 147).
  • 12
    Em Bresser-Pereira, Oreiro e Marconi (2016, p. 139-140), a crise do Balanço de Pagamentos também está associada a uma lógica financeira minskyana, em que os fluxos de capitais estrangeiros contribuem para a formação de bolhas de crédito e bolhas de ativos especulativos, e o país receptor vai progressivamente transitando para uma situação de insolvência, equivalente à finança ponzi.
  • 13
    Tanto a existência dos ciclos quanto seus determinantes predominantemente externos deixaram de ser, há tempos, exclusividade de análises heterodoxas sobre o tema, no plano internacional.Ver, por exemplo, Miranda-Agripino e Rey (2015); Rey (2013); Ahmed e Zlate (2014); Bruno e Shin (2014), entre muitos outros.
  • 14
    Por conta desses riscos - várias vezes materializados em crises ao longo da história de países periféricos -, tal visão defende uma postura cautelosa na inserção externa desse tipo de economia. Encaixam-se aqui a crítica ao endividamento externo, que foi a semente para a “crise da dívida” dos anos de 1980 (Cruz, 1999), e à abertura financeira nos anos de 1990, levada a cabo de maneira imprudente e desatenta ao componente cíclico dos fluxos de capital (Freitas; Prates, 1998; Biancareli, 2010). Do mesmo modo, a defesa de controles de capital (Bastos; Biancareli; Deos, 2006) e mesmo de uma regulação financeira mais abrangente (Fritz; Prates, 2014, 2018) também dialoga perfeitamente com a abordagem da escassez de divisas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2021
  • Aceito
    06 Maio 2021
location_on
Nova Economia FACE-UFMG, Av. Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte, MG, 31270-901, Tel.: +55 31 3409 7070, Fax: +55 31 3409 7062 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: ne@face.ufmg.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro