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O triunfo do autômato: a individualização da desigualdade salarial na história do pensamento econômico

The Automaton's Triumph: The Individualization of Wage Inequality in the History of Economic Thought

Resumo

A desigualdade salarial é entendida, pela economia ortodoxa, a partir de um indivíduo cujas ações, insuladas e perfeitamente racionais, são invariavelmente autointeressadas. As escolhas e características produtivas desse indivíduo, sob as forças de mercado, determinariam sua remuneração. Ainda que objeto de recorrentes críticas, a perspectiva neoclássica continua a ignorar fatores sociais, alheios a essas características e escolhas. Neste artigo, investigamos as origens e a consolidação desse entendimento: quando e de que modo a sociedade foi apartada da compreensão da desigualdade salarial? O ensaio revisita o pensamento de autores da escola clássica e de precursores da teoria neoclássica com o objetivo de compreender em que medida fatores sociais eram atribuídos à determinação de salários. Concluímos que a atomização da desigualdade, estranha a pensadores clássicos, permaneceu incipiente na economia ortodoxa até meados do século XX. Examinamos o processo que levou esse entendimento a tornar-se hegemônico e elencamos fatores responsáveis por sua consolidação.

Palavras-chave:
desigualdade salarial; história do pensamento econômico; sociedade; individualismo; homem econômico

Abstract

According to orthodox economics, wage inequality must be understood from the perspective of an individual whose actions, insulated and perfectly rational, are invariably self-interested. The choices and productive characteristics of these individuals, under the law of supply and demand, would determine their earnings. Despite being the target of recurrent criticism, the neoclassical perspective continues to ignore the role of social factors. In this article, we investigate the origins and consolidation of this understanding: when and in what way was society separated from wage inequality? The essay revisits the thinking of classical school authors and precursors of neoclassical theory in order to understand the extent to which social factors were attributed to wage determination. We conclude that the atomization of wage inequality, strange to classical thinkers, remained incipient in orthodox economics until the mid-twentieth century. We examine the process that led this understanding to become hegemonic, considering factors responsible for its consolidation.

Keywords:
wage inequality; history of economic thought; society; individualism; homo economicus

1 Introdução

A perspectiva neoclássica, hegemônica em estudos econômicos, compreende a desigualdade salarial a partir de um indivíduo atomizado, destituído de relações sociais. As remunerações desses indivíduos, sob as forças de mercado, dependeriam de suas escolhas e da distribuição de suas características produtivas. Em que pese a pungência das críticas ao entendimento neoclássico da determinação salarial (e.g., Akerlof, 1980AKERLOF, G. A Theory of Social Custom, of Which Unemployment May Be One Consequence. The Quarterly Journal of Economics, v. 94, n. 4, p. 749-775, 1980.; Atkinson, 2015ATKINSON, A. Inequality: What Can Be Done? Cambridge: Harvard University Press, 2015.; Lydall, 1976LYDALL, H. Theories of the Distribution of Earnings. In: ATKINSON, A. (Ed.). The Personal Distribution of Incomes. Crows Nest: Allen & Unwin, 1976.; Solow, 1980SOLOW, R. On Theories of Unemployment. The American Economic Review, v. 70, n. 1, p. 1-11, 1980.; Stiglitz, 2013STIGLITZ, J. The Price of Inequality: How Today's Divided Society Endangers our Future. New York: W. W. Norton & Company, 2013.), o papel de fatores sociais, alheios a essas escolhas e características, continua a ser negligenciado pela ortodoxia.1 1 Para uma revisão sistemática de críticas à determinação salarial neoclássica, particularmente no que tange à teoria do capital humano, ver Tan (2014). O objetivo deste artigo é compreender as origens e a consolidação desse entendimento: quando, como e por quais razões a economia apartou a sociedade da compreensão da desigualdade salarial?

O artigo é dividido em três seções, além desta Introdução. A segunda seção apresenta a compreensão hegemônica da desigualdade salarial, associada à teoria do capital humano, e o “homem econômico” que a fundamenta. A terceira seção investiga a relação entre a agência individual e a determinação de salários para a escola clássica; revisitamos, sobretudo, o pensamento de Adam Smith e John Stuart Mill, dois autores aos quais se atribuem as origens do “homem econômico”. Na quarta seção, a) examinamos o papel de fatores sociais sobre a determinação salarial para Alfred Marshall, Arthur Pigou e John Hicks, precursores da teoria salarial neoclássica; e b) identificamos fatores responsáveis por consolidar, na segunda metade do século XX, o entendimento atualmente hegemônico. Concluímos que o contexto social era efetivamente considerado pela teoria salarial ortodoxa até meados do século passado. Seu atual negligenciamento deve-se à vitória de um entendimento particular e utilitário da agência individual, construído em explícita oposição a “explicações sociológicas”, que encontrou seu apogeu na teoria do capital humano.

Embora diversos estudos, alguns dos quais explorados a seguir, tenham se dedicado ao abrangente processo de abandono das relações sociais pelas ciências econômicas, desconhecemos outros trabalhos que tenham abordado exclusivamente o percurso de atomização da agência individual, especificamente no que diz respeito ao entendimento da desigualdade salarial, ao longo da história do pensamento econômico.

2 O entendimento hegemônico

Segundo a perspectiva neoclássica, a distribuição das rendas é determinada, endogenamente, pelo processo produtivo. O trabalho e os demais fatores de produção teriam seus preços estabelecidos, como qualquer commodity, pelas curvas de oferta e demanda. Como explica Hicks ([1932]1948, p. 1), precursor do entendimento neoclássico sobre o mercado de trabalho, “os salários são os preços do trabalho; e assim, na ausência de controle, eles são determinados, como todos os preços, pela oferta e demanda”. Que as remunerações respondem às forças de mercado é uma conclusão intuitiva, já apontada por autores clássicos. Com a virada marginalista, a partir do final do século XIX, reivindicou-se ideia mais abstrata: o salário de equilíbrio, aquele observado quando oferta e demanda se equivalem, corresponderia à produtividade marginal dos trabalhadores empregados.

Embora o papel de fatores sociais não fosse desconsiderado pela ortodoxia no início do século XX, o que discutiremos adiante, entre autores contemporâneos é comum a simples associação entre a remuneração do trabalhador e sua produtividade. Por exemplo, Mankiw (2001MANKIW, N. Principles of Microeconomics. Boston: Cengage, 2001., p. 431), autor de um dos mais lidos livros-textos de economia, afirma que, em mercados competitivos, “trabalhadores ganham um salário igual ao valor de sua contribuição marginal para a produção de bens e serviços”. As distâncias entre as remunerações decorreriam essencialmente das diferentes produtividades individuais.

Limitações desse entendimento são explicitamente admitidas: economistas que estudam a desigualdade salarial, explica Mankiw (2001MANKIW, N. Principles of Microeconomics. Boston: Cengage, 2001.), atêm-se a variáveis que podem ser medidas (como anos de estudo e de experiência, idade e outras características produtivas), mas essas variáveis, reconhece, explicam menos da metade da variação dos salários. À fatia não explicada, majoritária, são atribuídos predicados individuais não mensuráveis, como esforço e outras habilidades, ou a sorte. Fatores sociais, ou “não propriamente econômicos” - como tradição, costumes, normas ou convenções sociais - não são cogitados.2 2 A exceção apontada por Mankiw (2001) é a discriminação no mercado de trabalho, tema tradicionalmente explorado por economistas neoclássicos (ver Becker [1971] e Arrow [1972]). Como conclui Stiglitz (2013STIGLITZ, J. The Price of Inequality: How Today's Divided Society Endangers our Future. New York: W. W. Norton & Company, 2013., p. 37), para a teoria ortodoxa dominante “aqueles com maiores produtividades ganham salários maiores, que refletem sua contribuição maior à sociedade”.

Desde a ascensão da teoria do capital humano, a escola neoclássica tem atribuído a desigualdade salarial não apenas à produtividade dos indivíduos, mas também às suas escolhas. A teoria do capital humano moderna surgiu com trabalhos de Mincer (1958MINCER, J. Investment in Human Capital and Personal Income Distribution. Journal of Political Economy, v. 66, n. 4, p. 281-302, 1958.), Schultz (1961SCHULTZ, T. Investment in Human Capital. The American Economic Review, v. 51, n. 1, p. 1-17, 1961.) e Becker (1962BECKER, G. Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis. Journal of Political Economy, v. 70, n. 5, p. 9-49, 1962., [1964]1993a), economistas da Universidade de Chicago, no fim da década de 1950. Se a escolha individual era pouco relevante para entendimentos anteriores, os modelos de capital humano passaram a singularizar “o comportamento de investimento individual como fator básico para explicar a heterogeneidade das rendas do trabalho” (Mincer, 1970, p. 6). Esses investimentos, sobretudo em educação/qualificação, seriam “respostas racionais a um cálculo de custos e benefícios esperados” (Becker, 1993b, p. 17). Os salários corresponderiam à produtividade individual na medida em que essa produtividade refletiria a qualificação dos trabalhadores (Becker 1993b). Com a teoria do capital humano, as escolhas dos indivíduos sobre como e quando investir neles mesmos tornaram-se o principal determinante da desigualdade salarial (Atkinson; Bourguignon, 2000ATKINSON, A.; BOURGUIGNON, F. Income Distribution and Economics. In: ATKINSON, A.; BOURGUIGNON, F. Handbook of Income Distribution. Amsterdam: North-Holland Publishing Company, 2000. v. 1.).3 3 A teoria do capital humano concernia, sobretudo, à parte da oferta. O lado da demanda, negligenciado por suas primeiras abordagens, tornou a teoria alvo de críticas (e.g., Lydall, 1976; Tinbergen, 1975). Posteriormente, modelos neoclássicos passaram a assumir que a demanda por trabalhadores qualificados dependeria, fundamentalmente, de mudanças tecnológicas. Uma “corrida” entre educação e tecnologia explicaria mudanças na desigualdade salarial. Variações na demanda são também associadas à globalização e à liberalização do comércio internacional (Atkinson, 2015).

A teoria do capital humano tornou-se um paradigma arraigado, entre os mais reproduzidos em estudos econômicos. Segundo Lemieux (2006LEMIEUX, T. The “Mincer Equation” Thirty Years After Schooling, Experience, and Earnings. In: GROSSBARD, S. (Ed.). Jacob Mincer: A Pioneer of Modern Labor Economics. New York: Springer, 2006., p. 2), a equação construída a partir do modelo de Mincer (1974bMINCER, J. Schooling, Experience, and Earnings. New York: Columbia University Press, 1974b.) - que associa remunerações a variáveis de capital humano, como escolaridade (anos de estudo) e experiência -, “estimada em milhares de conjuntos de dados para um grande número de países e períodos”, figura como “um dos modelos mais amplamente utilizados na economia empírica”.

Embora desenvolvidos em diversos campos nas últimas décadas, os modelos de capital humano continuam a depender de entendimento bastante estreito da agência humana (Akerlof; Kranton, 2010AKERLOF, G.; KRANTON, R. Identity Economics: How our Identities Shape our Work, Wages, and Well-being. Princeton: Hachette Audio, 2010.). Como já constatava Lydall (1976LYDALL, H. Theories of the Distribution of Earnings. In: ATKINSON, A. (Ed.). The Personal Distribution of Incomes. Crows Nest: Allen & Unwin, 1976.), a teoria exige supor que o indivíduo, cujas ações seriam perfeitamente racionais e utilitaristas, tem completo conhecimento das possibilidades de investimento de que dispõe (em mercados de trabalho, educação e capital perfeitos) e calcula quanto a educação maximizaria seus ganhos futuros. Com a teoria do capital humano, a economia ortodoxa ignora a estrutura social: há apenas agentes insulados; a desigualdade salarial seria determinada por suas livres escolhas. Antes de investigar os caminhos que levaram a economia a tornar esse entendimento hegemônico, é preciso examinar as propriedades de seu principal insumo.

2.1 O “homem econômico” e a economia fora da sociedade

A economia neoclássica, fruto da revolução marginalista discutida adiante, baseia suas análises em um indivíduo isento de relações sociais que busca atender, invariavelmente, seus próprios interesses. Concebem esse indivíduo insulado três propriedades fundamentais, brevemente descritas a seguir, que ancoram o entendimento hegemônico da desigualdade salarial.

A primeira consiste, como explica Sen (1977SEN, A. Rational fools: A Critique of the Behavioral Foundations of Economic Theory. Philosophy & Public Affairs, v. 6, n. 4, p. 317-344, 1977., p. 343), em uma “definição arbitrariamente estreita da racionalidade” que reduz toda ação individual ao autointeresse. A racionalidade converte-se, assim, em uma delimitação conveniente à construção de modelos exequíveis. Com base nesse estreitamento, partes da economia moderna “tendem a classificar como ‘irracional’ qualquer comportamento que não seja - direta ou indiretamente - justificável em termos do autointeresse” (Sen, 1997, p. 749).

A segunda propriedade infere que os indivíduos tomam decisões não apenas perfeitamente racionais (e autointeressadas), mas também maximizadoras. Diante de um conjunto de alternativas, afirma Ruiz-Villaverde (2019, p. 19), o “homem econômico” teria a habilidade de “analisar as informações, realizar todos os possíveis cálculos e estabelecer uma ordem que lhe permite escolher a melhor alternativa para atender seus interesses”. Tal formulação da racionalidade, de otimização do autointeresse, antes de refletir constatações de disciplinas que se dedicam à compreensão da ação humana, “faz frequente paralelo à modelagem da maximização na física” e em outras ciências naturais (Sen, 1997SEN, A. Maximization and the Act of Choice. Econometrica: Journal of the Econometric Society, v. 65, n. 4, p. 745-779, 1997., p. 745).

Por fim, o “homem econômico” é também caracterizado por sua presumida universalidade. Ele não seria fruto de determinada sociedade ou época, mas estaria presente em todo tipo de evento, em qualquer tempo ou lugar (Bourdieu, 2005BOURDIEU, P. The Social Structures of the Economy. Cambridge: Polity Press, 2005.; Urbina; Ruiz-Villaverde, 2019URBINA, D.; RUIZ‐VILLAVERDE, A. A Critical Review of Homo Economicus from Five Approaches. American Journal of Economics and Sociology, v. 78, n. 1, p. 63-93, 2019.). Esse indivíduo universal (atomizado, maximizador e perfeitamente racional) não figura como premissa colateral; ele constitui elemento nuclear das abordagens ortodoxas. “Todas as instituições sociais e fenômenos coletivos”, conclui Ruiz-Villaverde (2019, p. 18), “são tratados como abstrações hipotéticas, necessariamente derivadas das decisões individuais”.

É a partir dessa leitura particular do homem que a economia ortodoxa, via a teoria do capital humano, atribui a distribuição salarial ao indivíduo e às suas escolhas. Contudo, ainda que hoje se encontre amalgamado à disciplina, esse entendimento não foi concebido junto a seus primeiros alicerces. Veremos que, entre as proposições das escolas clássica e neoclássica, há importantes distinções a respeito do papel conferido ao contexto social e sua importância para a compreensão do comportamento individual e da determinação salarial.

3 De volta aos clássicos

O “homem econômico” não é inerente à economia. Fundadores da disciplina não ignoravam o contexto social e seus efeitos sobre a ação individual. Premissas do entendimento neoclássico, no entanto, costumam ser estendidas às origens das ciências econômicas.

Embora a agência atomizada, autointeressada, seja recorrentemente apontada como proposição central da teoria de Adam Smith (e.g., Polanyi, [1944]2001; Urbina; Ruiz-Villaverde, 2019URBINA, D.; RUIZ‐VILLAVERDE, A. A Critical Review of Homo Economicus from Five Approaches. American Journal of Economics and Sociology, v. 78, n. 1, p. 63-93, 2019.), o autor escocês defende compreensão mais abrangente da natureza humana. Em Teoria dos sentimentos morais, Smith ([1790]1984, p. 110) argumenta que o comportamento individual, longe de ser reduzido ao autointeresse, responde ao parecer de um juiz que todos guardam em si. Esse “espectador imparcial” obriga-nos a imaginar como outras pessoas julgariam nossas ações. Embora a ação autointeressada constitua parte do motivo para a ação, ela é necessariamente ajustada por esse julgamento.

A faculdade de não responder apenas ao autointeresse, embora entendida como inata, seria necessariamente construída em sociedade. “Se fosse possível que uma criatura humana pudesse crescer até a idade adulta em algum lugar solitário, sem qualquer comunicação com sua própria espécie”, explica Smith ([1790]1984, p. 110), ela não poderia pensar em seu próprio caráter, nas propriedades e méritos de suas ações. A sociedade é o espelho de que o indivíduo precisa para avaliar sua conduta: “É aqui que ele vê pela primeira vez a adequação e a inadequação de suas próprias paixões, a beleza e a deformidade de sua própria mente.”

O espectador imparcial, “o homem dentro do peito, grande juiz e árbitro da conduta”, dificilmente pode ser desassociado dos olhos da sociedade. A sociedade passa a ser entendida como um espelho por meio do qual o homem toma consciência de si mesmo como agente moral (Berry, 2003BERRY, C. Sociality and Socialisation. In: BROADIE, A. (Ed.). The Cambridge Companion to the Scottish Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.; Cerqueira, 2006CERQUEIRA, H. Adam Smith e seu contexto: o iluminismo escocês. Economia e Sociedade, v. 15, n. 1, p. 1-28, 2006.).4 4 Esse entendimento, embora inusual ao mainstream econômico, encontra-se bem situado no contexto do iluminismo escocês (do qual fazem parte, além de Smith, David Hume, Francis Hutcheson, John Millar e Adam Ferguson), que então rompia com o individualismo contratualista. A sociabilidade humana como algo decorrente de um cálculo racional de custos e benefícios é refutada por esses autores (Berry, 2003; Cerqueira, 2006).

Não se pretende afirmar que, em Teoria dos sentimentos morais, a busca pelo autointeresse seja por Smith ([1790]1984) ignorada, e muito menos considerada nociva. Pelo contrário: na obra são explorados casos em que o empenho em progredir economicamente é aplaudido pela sociedade - e seu descaso, repudiado. Mas o elogio dessa busca deve ser mais bem entendido como reflexo dos valores daquela sociedade, naquele tempo, do que como descrição definitiva da natureza humana (Berry, 2003BERRY, C. Sociality and Socialisation. In: BROADIE, A. (Ed.). The Cambridge Companion to the Scottish Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.).

É certo que o “homem econômico” é amplamente associado a Smith graças à enorme influência de Riqueza das nações. Em sua magnum opus, contudo, Smith ([1789]1937) não tem como principal objetivo discutir a natureza do homem; a obra é, antes de tudo, propositiva: oferece teorias para o crescimento econômico, discute caminhos para a prosperidade de uma nação. A ação autointeressada desempenha papel central em Riqueza das nações, mas não por seu lugar como descrição da natureza humana e sim por constituir, quando livre de amarras, o meio pelo qual a prosperidade nacional seria mais bem alcançada; indivíduos não precisariam se lançar em outros motivos, que não o de buscar seus próprios interesses, para que a ordem econômica funcione e prospere. A natureza humana, quando considerada, encontra-se especialmente associada à propensão inata do homem à troca; a divisão do trabalho e o desenvolvimento econômico seriam decorrentes dessa propensão. O autointeresse, assim, é mais bem entendido como uma prescrição do que como a razão motivadora de todo comportamento humano (Smith, [1789]1937).

A origem do “homem econômico” na escola clássica é também associada a John Stuart Mill (1836) (Persky, 1995PERSKY, J. The Ethology of Homo Economicus. Journal of Economic Perspectives, v. 9, n. 2, p. 221-231, 1995.; Urbina; Ruiz-Villaverde, 2019URBINA, D.; RUIZ‐VILLAVERDE, A. A Critical Review of Homo Economicus from Five Approaches. American Journal of Economics and Sociology, v. 78, n. 1, p. 63-93, 2019.). Essa associação deve muito à seguinte passagem: “[A economia] não trata de toda a natureza do homem, como modificada pelo estado social, nem de toda conduta do homem em sociedade.” Segundo Mill (1836, p. 321), “ela se preocupa com ele somente como um ser que deseja possuir riqueza e que é capaz de julgar a eficácia comparativa dos meios para obter esse fim”.

Em trecho seguinte, contudo, com menor frequência considerado, Mill (1836) faz importante qualificação à asserção. Ele observa que a economia deve ignorar “qualquer paixão ou motivo humano”, apontando, no entanto, as exceções da “aversão ao trabalho” e do “desfrute complacente de prazeres dispendiosos no momento presente”, consideradas “perpetuamente antagônicas ao desejo de riqueza”. A economia precisaria considerar esses fatores em seus cálculos “porque eles não apenas meramente e ocasionalmente entram em conflito com a busca por riqueza, como outros desejos, mas sempre a acompanham, como uma draga ou impedimento, e estão, portanto, inseparavelmente misturados na consideração dessa busca”. A continuação parece deixar claro que as ações desse homem, mesmo no recorte da “busca por riqueza”, estão longe de ser desimpedidas. Como também constatam Urbina e Ruiz-Villaverde (2019URBINA, D.; RUIZ‐VILLAVERDE, A. A Critical Review of Homo Economicus from Five Approaches. American Journal of Economics and Sociology, v. 78, n. 1, p. 63-93, 2019., p. 64), “a ideia do homo economicus que foi adotada e intensamente usada na economia neoclássica é muito mais específica que aquela presente nos escritos de Mill”.

Smith e Mill, autores clássicos aos quais se atribuem as origens do “homem econômico”, parecem defender um entendimento da agência humana muito menos estreito do que aquele tomado como premissa pelos modelos neoclássicos.

3.1 A determinação salarial para pensadores clássicos

A oposição entre o pensamento clássico e a ortodoxia neoclássica, já contrastada pelo entendimento do homem, é evidenciada pela questão distributiva. Longe de entender a distribuição salarial apenas como reflexo das produtividades individuais e das forças de mercado, economistas clássicos sublinham o papel de fatores sociais, históricos e institucionais, também considerando relações de poder entre grupos sociais.

A começar novamente por Smith ([1789]1937), embora não haja dúvidas a respeito da importância por ele conferida ao papel das forças de mercado sobre as remunerações, o contexto social parece algo intrínseco a seu entendimento da determinação dos salários. Para percebê-lo, visitemos brevemente cinco circunstâncias que, segundo ele, promoveriam diferenciais salariais.

É graças a apenas uma dessas circunstâncias, referente aos custos de aprendizagem, que Smith ([1789]1937) passou a ser recorrentemente associado às origens da teoria do capital humano (Mincer, 1958MINCER, J. Investment in Human Capital and Personal Income Distribution. Journal of Political Economy, v. 66, n. 4, p. 281-302, 1958.). Trata-se de sua explicação sobre a diferença entre as remunerações do trabalho qualificado e do trabalho comum, que se funda no princípio de que os salários “variam com a facilidade e o baixo custo ou com as dificuldades e despesas para aprender a ocupação” (Smith, [1789]1937, p. 101).

Explorando outra dessas circunstâncias, Smith ([1789]1937, p. 100) explica que os salários também variam “segundo a facilidade ou dureza, a limpeza ou sujeira, o prestígio ou desprestígio da profissão”. A terceira circunstância evidencia, ainda em maior medida, a importância de fatores sociais. Smith ([1789]1937, p. 105) argumenta que os salários também variam de acordo com o “grau de confiança” que se deve depositar nos trabalhadores. “Confiamos nossa saúde ao médico; nossa fortuna e às vezes nossa vida e reputação ao advogado”. As remunerações desses profissionais “devem, portanto, dar-lhes a posição social que confiança tão importante exige”.

Além dessas três circunstâncias (custos de aprendizagem, facilidade ou dureza do ofício e grau de confiança conferida ao trabalhador), também são abordadas a constância ou inconstância do emprego e a probabilidade de sucesso da ocupação. Embora essas circunstâncias já revelem consideração ao contexto social, é quando Smith ([1789]1937) dedica-se a explicar efetivamente como os salários são determinados que o papel de fatores sociais se torna especialmente evidente.5 5 Livro I, Capítulo VIII, de Riqueza das nações (Smith, [1789]1937). O iluminista escocês afirma que os salários dependem, em todos os lugares, do “contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos interesses (...) de forma alguma são os mesmos”. De acordo com ele, trabalhadores e empregadores se associam para garantir o maior (ou menor) salário possível, observando que “não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e consegue forçar a outra a concordar com seus termos” (Smith [1789]1937, p. 66).

No mesmo sentido, os pagamentos mais baixos não seriam, segundo Smith ([1789]1937, p. 67), reflexo apenas das leis de oferta e demanda. Os valores mínimos aceitáveis seriam culturalmente determinados: “Embora nas disputas com os trabalhadores os patrões geralmente tenham vantagem, há um nível abaixo do qual parece impossível reduzir, por tempo considerável, os salários ordinários, mesmo se tratando dos trabalhos mais simples.” Embora as forças de mercado sejam certamente consideradas por Smith, sua compreensão da determinação salarial as coloca como fator a ser entendido necessariamente em conjunto com - e sob os limites de - instituições e convenções sociais.

David Ricardo (1821RICARDO, D. On the Principles of Political Economy and Taxation. 3rd e. Londres: John Murray, 1821.) também considera o contexto social em seu entendimento da determinação salarial. O “valor de mercado do trabalho”, ou o salário efetivamente pago, seria seguramente determinado pela “operação natural das proporções de oferta e demanda” (Ricardo, 1821, p. 87). No entanto, esse salário tenderia sempre a se igualar, como consequência de mudanças demográficas malthusianas, ao salário natural (a remuneração que permite ao trabalhador sustentar a si e sua família). O salário natural, por sua vez, seria determinado por fatores históricos e institucionais: “Varia em diferentes momentos em um mesmo país e (...) em diferentes países”, dependendo “essencialmente dos hábitos e costumes das pessoas” (Ricardo, 1821, p. 91). Assim como para Smith, as forças de mercado atuariam em conjunto e sob limites impostos por esses fatores.6 6 Embora em Princípios de economia política e tributação (Ricardo, 1821) fatores sociais/institucionais tenham sido, em relação a Smith ([1789]1937), menos explorados, sua importância é mais diretamente apontada em correspondências e trabalhos não publicados (ver Ricardo, 2005 e Stirati, 1992). De fato, Marshall já sublinhava, a respeito dos salários, a importância dada por Ricardo a hábitos e costumes. Marshall ([1920]2013, p. 421) observa que muitos leitores do pensador clássico “se esquecem que ele diz isso”, compreendendo a determinação salarial como uma “lei natural” que obedece apenas a mudanças populacionais.

A relevância do contexto social é especialmente evidente nas ideias de Stuart Mill. Entre críticas e complementos ao entendimento de Smith, Mill (1862MILL, J. S. Principles of Political Economy. 5th ed. London: Parker, Son, and Bourn, 1862., p. 469) faz questão de sublinhar que as distâncias entre os salários são também construídas socialmente. Segundo o autor, “tão completa tem sido a separação, e tão fortemente traçada a linha de demarcação entre as diferentes categorias de trabalhadores, que ela é quase equivalente a uma distinção hereditária de casta; cada emprego recrutando principalmente os filhos daqueles já neles empregados”.

Os efeitos de associações corporativas, legislação, barreiras de entrada, preconceito sobre a remuneração feminina, além da restrição de certas ocupações a determinadas categorias sociais, são outros pontos discutidos por Mill (1862MILL, J. S. Principles of Political Economy. 5th ed. London: Parker, Son, and Bourn, 1862.). Em especial, deve-se frisar o explícito lugar atribuído pelo autor ao “costume”. É notado, por exemplo, que certas ocupações teriam seus rendimentos determinados também pelo prestígio a elas atribuído: “Há tipos de trabalho”, conclui, “cujos salários são fixados pelo costume, e não pela competição” (Mill, 1862, p. 482).

De fato, para além da determinação salarial, era claro para Mill (1862MILL, J. S. Principles of Political Economy. 5th ed. London: Parker, Son, and Bourn, 1862., p. 292) que a divisão da produção é sempre “resultado de duas agências determinantes: competição e costume”. Segundo o autor, “é importante analisar a quantidade de influência que pertence a cada uma dessas causas, e de que maneira a operação de uma é modificada pela outra”. Em síntese, como também concluem Taubman e Wachter (1986TAUBMAN, P.; WACHTER, M. Segmented Labor Markets. In: ASHENFELTER, O.; LAYARD, R. Handbook of Labor Economics. Amsterdam: Elsevier, 1986. v. 2., p. 1187), contexto social e configurações institucionais, para Mill, são “muito prevalentes e importantes para serem caracterizados como meros desvios de um mercado, de outro modo, competitivo”.

Para que fique claro: de nenhum modo afirmamos que as forças de mercado ocupam lugar coadjuvante no entendimento da escola clássica acerca da determinação salarial. O ponto a ser destacado, acompanhando a conclusão de Stirati (2010STIRATI, A. Interpretations of the Classics: The Theory of Wages. University Roma Tre, Economics Department, Working Paper n. 116, 2010., p. 12), é que, para autores clássicos, normas ou convenções sociais, “embora não impeçam ou substituam a competição, estabelecem os limites dentro dos quais ela opera em determinado ambiente social”. Essa visão, ainda acompanhando a autora, implica um entendimento do comportamento humano diferente da concepção individualista que ainda prevalece na economia. Na perspectiva clássica, “a busca individual pelo autointeresse e o comportamento competitivo parecem ser limitados pelas convenções e normas vigentes na sociedade” (Stirati, 1992, p. 61).

4 A construção da perspectiva hegemônica e sua preservação

Se o contexto social era intrínseco à compreensão da desigualdade salarial para fundadores da disciplina, em que momento, e como, as relações sociais foram apartadas dos indivíduos? Como nas seções anteriores, investigaremos essa questão inicialmente a partir da agência individual, para então analisar o consequente entendimento da desigualdade salarial. O exame do papel do contexto social sobre as ações individuais no início da escola neoclássica se concentrará no pensamento de Alfred Marshall, principal responsável por consolidar essa perspectiva. Analisaremos o entendimento da desigualdade salarial pela escola neoclássica abordando, além de Marshall, John Hicks e Arthur Pigou, expoentes precursores da teoria salarial ortodoxa. Por fim, observaremos como as abordagens de determinação salarial passaram a compreender, com a teoria do capital humano, a agência individual a partir de meados do século XX. Argumentaremos que a atomização do indivíduo, apenas iniciada com a revolução marginalista, consolidou-se mais tarde, já na segunda metade do século passado, e tornou-se hegemônica junto (e graças) a uma nova compreensão da desigualdade salarial - que foi também responsável por difundir essa atomização em outras ciências sociais.

4.1 Marshall e o primeiro homem neoclássico

A destituição da sociedade não foi abrupta e já se anunciava antes da revolução marginalista. Entre os últimos pensadores clássicos, Stuart Mill (1862MILL, J. S. Principles of Political Economy. 5th ed. London: Parker, Son, and Bourn, 1862., p. 292) antevia razões que tornariam uma nova escola dominante. Após enfatizar, como observado, que a divisão da produção é determinada pelos princípios da “competição” e do “costume”, o autor constata que os economistas estavam se habituando a considerar, quase exclusivamente, o primeiro princípio. Isso se explicaria, afirma, pela intenção de se atribuir à economia caráter de ciência: “Na medida em que as rendas, os lucros, os salários e os preços são determinados pela concorrência, leis podem ser-lhes atribuídas.” Como uma ciência abstrata e hipotética, não se poderia exigir da economia nada além disso. Contudo, conclui Mill, a suposição de que outros fatores não cumprem papel, de que a competição exerce de fato essa influência ilimitada, “seria um grande equívoco sobre o curso real dos assuntos humanos”.

Em retrospectiva, sua reflexão parece precisa; o entendimento da economia que se assentaria no século XX, como veremos, acompanha de perto sua previsão. Esse entendimento se desenvolveria a partir da revolução marginalista, iniciada por Stanley Jevons, Carl Menger e Léon Walras e consolidada por Alfred Marshall.

A revolução marginalista, contudo, não foi responsável pela consolidação da atomização da agência individual. É certo que Jevons (1871JEVONS, W. Theory of Political Economy. London: Macmillan and Co., 1871.) se propõe “a tratar a economia como um cálculo de prazeres e dores”, em perspectiva notadamente insulada e hedonista. É também verdade que Menger ([1871]2007) e Walras (1874WALRAS, L. Éléments d'économie politique pure, ou Théorie de la richesse sociale. Paris: Guillaumin & Cie., 1874.), embora menos dependentes desse entendimento da agência humana, defendem uma abordagem “atomista”, descrita como a redução de fenômenos complexos a seus elementos mais simples, buscando aproximar a economia das ciências exatas. Mas são o pensamento e a abordagem de Marshall (1890MARSHALL, A. Principles of Economics. 1st ed. New York: Macmillan & Co., 1890.) os principais responsáveis por criar uma nova ortodoxia; é em referência a suas ideias que a teoria marginalista seria, mais tarde, entendida como “neoclássica” (Aspromourgos, 1986ASPROMOURGOS, T. On the Origins of the Term 'Neoclassical'. Cambridge Journal of Economics, v. 10, n. 3, p. 265-270, 1986.; Ruiz-Villaverde, 2019).

Marshall sugere entendimento amplo sobre o comportamento humano, a começar por sua definição de economia.

A economia é um estudo da humanidade nas atividades comuns da vida; ela examina a parte da ação individual e social que está mais intimamente ligada à obtenção e ao uso dos requisitos materiais do bem-estar. Assim, ela é, por um lado, um estudo da riqueza; e por outro lado, e mais importante, uma parte do estudo do homem (Marshall, [1920]2013, p. 1, grifo nosso).7 7 O reconhecimento da importância de fatores sociais aparece de modo menos explícito na primeira edição de Princípios de economia (Marshall, 1890). Parte das passagens incluídas a seguir encontra-se apenas em edições posteriores da obra.

Embora afirme que, por necessária simplificação, as peculiaridades individuais possam ser “provisoriamente negligenciadas”, Marshall ([1920]2013, p. 17) acredita que “não se deve supor que cada ação é deliberada e resultado de um cálculo”. O papel de hábitos e costumes sobre as ações econômicas é detidamente problematizado: deve-se “tomar o homem como ele é na vida comum, e na vida comum as pessoas não pensam de antemão os resultados de cada ação”. A consideração de Marshall ao contexto social, que o opõe a marginalistas pioneiros, não tem passado despercebida.8 8 Ver, por exemplo, Hodgson (2001). Aqui argumentamos, mais além, que as relações sociais não são apenas consideradas pelo autor, mas também constituem a base a partir da qual seu entendimento da utilidade marginal é construído.

Antes de apresentar sua teoria geral da oferta e demanda, que atuariam “como espinha dorsal” do raciocínio econômico, Marshall ([1920]2013) discute o caráter de desejos ou vontades, e o modo como seriam, embora inúmeros e variados, geralmente limitados e passíveis de serem saciados. O autor afirma que esses desejos se tornam cada vez menos desfrutados à medida que são acumulados, baseando-se largamente em relações sociais.

Com o exemplo da alimentação, explica, o homem teria passado, desde que dominou o fogo, a apreciar refeições cada vez mais variadas e dispendiosas. A partir de certo ponto, contudo, o desfrute seria gradativamente menor. Os mais ricos, no entanto, continuariam a exigir pratos mais extravagantes, mas não pelo apetite dos sentidos e sim como forma de “gratificar os desejos de hospitalidade”. Assim, embora afirme que as vontades passem a ser decrescentes, Marshall ([1920]2013) sublinha o caráter ilimitado do “desejo de distinção”, descrito como a mais poderosa das paixões humanas.

Contudo, mesmo nesse caso haveria um ponto em que o desfrute (da distinção) passaria a diminuir. O exemplo desta vez envolve as vestimentas: trajar-se bem consiste inicialmente em necessidade óbvia, e passaria a exigir cada vez maiores pompas, imperativas entre as classes sociais mais baixas. Entre as mais altas, no entanto, a necessidade de ostentação passaria a ser gradativamente menor: “Os homens verdadeiramente distintos por conta própria têm uma antipatia natural por parecer que reivindicam atenção sobre suas roupas” (Marshall, [1920]2013, p. 73). Assim, a partir do juízo, ainda abertamente defendido em seu tempo, de que as classes sociais mais altas detêm valores e comportamentos superiores, o autor conclui que mesmo o desejo de distinção, inescapável e inerentemente social, passa a ser decrescente.

Por quais razões Marshall ([1920]2013), acompanhando sua definição de economia, volta-se detidamente ao homem, estreitamente vinculado a relações sociais, e aos motivos de suas ações? Toda essa discussão é desenvolvida com o objetivo de apresentar a teoria da utilidade marginal, por ele entendida de modo análogo às vontades. É a partir da ideia de que todos os desejos ou vontades encontram limites que o autor conclui que “essa tendência familiar e fundamental da natureza humana pode ser apresentada como a lei dos desejos saciáveis ou da utilidade decrescente”. Na mais bem conhecida continuação, explica Marshall que

a utilidade total de uma coisa para alguém (isto é, o prazer total ou outro benefício que ela lhe proporciona) aumenta com cada aumento em seu estoque, mas não tão depressa quanto o aumento do estoque. Se o estoque aumentar a uma taxa uniforme, o benefício derivado dele aumentará a uma taxa decrescente. Em outras palavras, o benefício adicional que uma pessoa obtém de determinado aumento no estoque de uma coisa diminui com cada aumento no estoque que ela já possui (Marshall, [1920]2013, p. 78).

Esse processo soa paradoxal: como um princípio tão simples seria construído a partir da agência humana, entendida até então de maneira notadamente complexa? Marshall precisa recorrer a uma importante “condição implícita”. É necessário supor que “não é permitido ao tempo fazer qualquer alteração no caráter ou nas preferências do próprio homem”. Sem o cumprimento dessa condição, ele admite que em muitos casos o princípio não seria observado: quanto mais “boa música” um homem escuta, maior é seu desfrute dela; a avareza e a ambição são frequentemente insaciáveis; a virtude da limpeza e o vício da embriaguez podem não encontrar limites. Em todos esses casos, explica o autor, “nossas observações estendem-se ao longo de algum período de tempo, e o homem não é o mesmo no começo e no final desse período”. E conclui: “Se tomarmos um homem como ele é, sem dar tempo para qualquer mudança em seu caráter, a utilidade marginal de alguma coisa para ele diminui constantemente com cada aumento em sua oferta” (Marshall, [1920]2013, p. 79).

É a partir da natureza do homem, considerado a partir das relações sociais que o circundam, que Marshall explica a lei da utilidade marginal. Somente em páginas seguintes o autor passa a “traduzir essa lei da utilidade decrescente para os preços”; seu entendimento corre do comportamento do homem para as leis econômicas. É verdade que Marshall se vê obrigado a conceber um homem diferente daquele que inspirou essas leis; um homem que não se transforma com o tempo, estático em suas primeiras preferências - o único que permitiria a correlação de seu comportamento com o dos preços. O homem é, ainda assim, entendido em sua complexidade; longe de ignorar relações sociais, é a partir delas que a agência individual é compreendida por Marshall.

4.2 A primeira metade do século XX e a distribuição salarial

A compreensão de Marshall a respeito da agência individual, mais complexa do que aquela que, mais tarde, seria assumida pela ortodoxia, reflete-se em seu entendimento da distribuição salarial. Embora sublinhe a primazia das leis de oferta e demanda, Marshall ([1920]2013) reconhece que os salários, cuja determinação estaria sujeita a uma série de “peculiaridades”, não poderiam ser entendidos como as “commodities materiais”. Entre outros fatores, pertencer a “posições sociais melhores” também determinaria as remunerações. O autor destaca a atuação dos “costumes”, que afetariam “não meramente a forma, mas também a essência da ação das forças de oferta e demanda; e em certa medida limita[ria]m e dificulta[ria]m a livre ação dessas forças”. Costumes levariam a mudanças não apenas de curto prazo, mas também a transformações permanentes na distribuição salarial (Marshall, [1920]2013, p. 465).

Parece nítido, em seu entendimento, que os diferenciais salariais não dependem apenas das forças de mercado e de predicados individuais. Marshall ([1920]2013, p. 465) chega à conclusão, ecoada por críticos da determinação salarial neoclássica quase um século mais tarde, de que “o primeiro ponto para o qual é preciso direcionar atenção é o fato de que agentes humanos de produção não são comprados e vendidos como são a maquinaria e outros agentes materiais de produção”.9 9 Em crítica ao entendimento neoclássico da determinação salarial, Solow (1980), por exemplo, afirma que o mercado de trabalho não deve ser entendido a partir de modelos construídos para explicar “a compra e venda de tecidos”. No mesmo sentido, Atkinson (2015) argumenta que a distribuição salarial não deve continuar a ser explicada pelas regras que explicam o funcionamento do mercado de leite.

Arthur Pigou (1933PIGOU, A. The Theory of Unemployment. London: Macmillan & Co, 1933.), sucessor da perspectiva neoclássica marshalliana, enfatiza a importância de segmentações do mercado de trabalho e dos diferenciais salariais delas resultantes. Essas segmentações, entre outras razões, seriam determinadas por costumes e tradições. Pigou (1933) observa, ainda, que o salário (sobretudo o mínimo) é influenciado pela “opinião pública”; percepções sociais de equidade seriam reforçadas por pressão social e pela legislação.

Também John Hicks ([1932]1948, 1955), como observado um dos principais responsáveis por formalizar a teoria neoclássica da distribuição salarial, reconhece explicitamente que as remunerações são também determinadas por forças sociais.

Nunca foi a regra geral que os salários fossem determinados simples e exclusivamente pela oferta e demanda. Mesmo por razões puras de eficiência, é desejável que o salário oferecido seja aceitável, tanto para o trabalhador como para aqueles com quem ele trabalha. Consequentemente, sempre houve espaço para os salários serem influenciados por forças não econômicas - seja pelos costumes (...) ou por qualquer outro princípio que afete o que as partes na negociação salarial consideram ser justo ou correto. As forças econômicas afetam os salários, mas apenas quando são suficientemente fortes para superar essas forças sociais (Hicks, 1955HICKS, J. Economic Foundations of Wage Policy. The Economic Journal, v. 65, n. 259, p. 389-404, 1955., p. 390).10 10 O papel de forças sociais já era considerado pelo autor em obras anteriores (e.g., Hicks [1932]1948), embora de modo menos enfático.

A revolução keynesiana iniciada nos anos seguintes preservou o entendimento de que os salários são também determinados por fatores sociais. Embora não seja o caso de aqui explorar outras ideias de Keynes ([1936]2013), devemos observar suas reflexões sobre a rigidez na redução dos salários, que não responderiam necessariamente ao excesso da oferta de trabalhadores. Embora se afirme que Keynes não tenha tentado explicar essa rigidez, entendendo-a como um fenômeno exógeno (Pearce, 1993PEARCE, D. (Ed.). The Dictionary of Modern Economics. London: Macmillan Press, 1993.; Thurow, 1975THUROW, L. Generating Inequality. London: The Macmillan Press, 1975.), o autor sugere que ela pode ser derivada de fatores sociais: trabalhadores teriam profundas convicções a respeito dos salários relativos adequados entre diferentes ocupações, levando-os a resistir a mudanças que colocassem em xeque diferenciais salariais tradicionalmente consolidados (Akerlof, 2002AKERLOF, G. Behavioral Macroeconomics and Macroeconomic Behavior. American Economic Review, v. 92, n. 3, p. 411-433, 2002.; Solow, 1980SOLOW, R. On Theories of Unemployment. The American Economic Review, v. 70, n. 1, p. 1-11, 1980.).

Nos termos de Keynes ([1936]2013, p. 14), “qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos que consinta reduzir seu salário nominal em relação aos outros sofrerá uma redução relativa de seu salário real, o que é justificativa suficiente para que resistam a essa redução”. O interesse dos trabalhadores seria o de “proteger seu salário real relativo”. Por outro lado, reduções do salário real que afetam a todos os trabalhadores do mesmo modo, como resultantes da diminuição do poder de compra, não receberiam resistência, a menos que alcançassem níveis extremos. Isso ajudaria a explicar não apenas a rigidez salarial, mas também a persistência de diferenciais salariais há muito estabelecidos.

A agência individual sujeita ao contexto social era intrínseca à compreensão da determinação salarial de expoentes precursores neoclássicos, como Marshall, Hicks e Pigou, e estava também presente no pensamento de Keynes, na primeira metade do século passado.

4.3 A segunda metade do século XX e a expulsão da sociedade

A destituição de fatores sociais entre explicações para a distribuição salarial, consolidada na segunda metade do século XX, deve ser entendida como resultado - e o apogeu - do processo de atomização do indivíduo na economia ortodoxa. Para compreender como ocorreu essa destituição, precisamos considerar, ainda que brevemente, o papel de quatro fatores associados a esse processo de atomização: 1) o desaparecimento das análises sobre diferenças entre sistemas socioeconômicos, comuns antes da Segunda Guerra Mundial; 2) a ascensão de concepções ideológicas anticomunistas e apologistas do laissez faire; 3) a síntese neoclássica, que acatou seletivamente proposições keynesianas; e 4) a utilização do individualismo metodológico como meio para consolidar a abstração e matematização da economia - e seu afastamento das demais ciências sociais.

A respeito do primeiro fator, eram comuns à economia, desde Karl Marx e a Escola Histórica Alemã, abordagens dedicadas a diferenças locais e temporais em sistemas socioeconômicos. Essas abordagens, dificilmente conciliáveis com um indivíduo universal autointeressado, foram no início do século XX desenvolvidas pela escola institucionalista norte-americana, que então disputava com a escola neoclássica a hegemonia do pensamento econômico (Hodgson, 2004HODGSON, G. The Evolution of Institutional Economics: Agency, Structure and Darwinism in American Institutionalism. London: Routledge, 2004.).11 11 Precursores da escola institucionalista norte-americana (como Thorstein Veblen, John Commons, Wesley Mitchell e Walton Hamilton) abordavam a natureza e a evolução de certas instituições e seu papel sobre a economia, além do modo como essas instituições moldariam disposições individuais, opondo-se à perspectiva neoclássica (Hodgson, 2004). Essa disputa, especialmente pungente no que concerne ao funcionamento do mercado de trabalho, foi também um fator importante a impedir que, naquele período, a corrente neoclássica atribuísse a determinação salarial unicamente ao indivíduo e às forças de mercado (Taubman; Wachter, 1986TAUBMAN, P.; WACHTER, M. Segmented Labor Markets. In: ASHENFELTER, O.; LAYARD, R. Handbook of Labor Economics. Amsterdam: Elsevier, 1986. v. 2.). Após a Segunda Guerra e o rápido declínio do institucionalismo norte-americano, essas abordagens desapareceram das principais agendas de pesquisa da economia (Hodgson, 2004).

O segundo fator diz respeito ao papel de concepções ideológicas. Sugere-se que os primeiros economistas neoclássicos eram apologistas do laissez-faire e que, posteriormente, mesmo que de modo não deliberado, seus sucessores teriam construído teorias a favor da manutenção da ordem econômica vigente. John Bates Clark (1899CLARK, J. The Distribution of Wealth: A Theory of Wages, Interest and Profits. New York: Macmillan Company, 1899., p. V, 4), por exemplo, precursor autor neoclássico, afirma que o objetivo de seu trabalho era mostrar que a distribuição da renda, “controlada por uma lei natural”, atribuía aos trabalhadores sua contribuição exata para a produção de riqueza. O autor reconhece que essa constatação é importante porque, desse modo, “eles não buscariam revolucionar a sociedade”. A teoria da utilidade marginal teria sido continuamente defendida e preservada acompanhando os interesses das classes dominantes, mesmo que acadêmicos que a ideias ortodoxas aderissem, naturalizadas por sua formação, desses interesses não compartilhassem (Henry, 2012HENRY, J. The Making of Neoclassical Economics. Abingdon: Routledge, 2012.). Ruiz-Villaverde (2019, p. 13) afirma que a teoria neoclássica contribuiu “para o interessado esquecimento do conflito entre classes sociais (...), [transformando essas classes] em fatores de produção associados a um preço”. Esse processo teria se fortalecido, segundo Zweig (2015ZWEIG, M. Complicating the Labor Market as a Social Institution. Review of Radical Political Economics, v. 47, n. 4, p. 572-578, 2015.), com a literatura anticomunista desenvolvida após a Segunda Guerra, dentro da qual fatores históricos e socioinstitucionais passaram a ser ignorados.

O terceiro fator considerado decorre da síntese neoclássica. Após encontrar-se sob suspeita nas primeiras décadas do século XX, a teoria neoclássica viu-se obrigada a incorporar postulados keynesianos, que viriam a se tornar quase unânimes até meados dos anos de 1970. No entanto, a ortodoxia logrou, a despeito dessas concessões, ignorar as reflexões de Keynes ([1936]2013) (discutidas na seção anterior) a respeito do homem e da influência de convenções sociais sobre seu comportamento (Akerlof, 2002AKERLOF, G. Behavioral Macroeconomics and Macroeconomic Behavior. American Economic Review, v. 92, n. 3, p. 411-433, 2002.; 2007; Blanchard, 1991BLANCHARD, O. Neoclassical Synthesis. In: EATWELL, J.; MILGATE, M.; NEWMAN, P. (Ed.). The World of Economics. London: Macmillan Press, 1991.). Segundo Modigliani, um de seus mais importantes difusores, a síntese neoclássica integrou os “principais blocos edificadores da Teoria Geral de Keynes com a metodologia mais estabelecida da economia, que repousa sobre os postulados básicos do comportamento maximizador racional por parte dos agentes econômicos” (Modigliani, 1980, p. xi). Como observa Akerlof (2002), a síntese neoclássica destituiu da perspectiva keynesiana a ênfase em fatores sociológicos, como a reciprocidade, o senso de justiça e o status social. Em suma, construiu-se a percepção de que a economia se tornara mais realista e abrangente a partir do pós-guerra, mas sua premissa fundamental foi preservada; o indivíduo atomizado, movido pela otimização autointeressada, continuou a vigorar incólume.

O último fator envolve a consolidação de um emprego particular do individualismo metodológico. Em princípio, abordagens que partem do indivíduo, centrais na economia desde a revolução marginalista, não supõem ações e escolhas necessariamente destituídas do contexto social - o que observamos no entendimento da distribuição salarial entre economistas neoclássicos da primeira metade do século XX. Na segunda metade daquele século, contudo, a metodologia individualista exigiria que o homem se despisse de qualquer realismo e abdicasse de sua complexidade social. Somente esse homem permitiria a reivindicação de outro lugar epistemológico para a economia: o de ciência exata, abstrata e não realista.

É certo que essa reivindicação há muito se encontrava presente; vimos anteriormente que precursores marginalistas já a defendiam no fim do século XIX.12 12 Jevons (1871, p. viii), por exemplo, sugere abertamente que a economia deveria ser entendida como uma ciência exata: “Há muito penso que, como ela lida amplamente com quantidades, deve ser uma ciência matemática.” Ainda no início do século XX, Frank Knight (1921KNIGHT, F. Risk, Uncertainty and Profit. Boston: Houghton Mifflin Company, 1921., p. 3), principal fundador da Escola de Chicago, descreve a economia como a única das ciências sociais que aspira a pertencer às ciências exatas. Como tal, a economia deveria “aceitar as limitações e partilhar da dignidade desse pertencimento”. Como a física ou a matemática, a economia deveria ser necessariamente abstrata e irreal. Embora não possa ser tão exata quanto à física, ela asseguraria seu grau de exatidão “apenas à custa de uma irrealidade muito maior”. A própria concepção de uma ciência exata, conclui o autor, envolve abstração; “seu ideal é o tratamento analítico, e análise e abstração são virtualmente sinônimos”.

No entanto, somente mais tarde, com um discípulo de Knight, em contexto desencadeado pelos fatores elencados anteriormente, esse entendimento da economia encontrou sua máxima expressão. Milton Friedman (1953bFRIEDMAN, M. Essays in Positive Economics. Chicago: Chicago University Press, 1953b., p. 14) argumenta que os modelos econômicos, como abstrações da realidade, não devem inferir realismo. O realismo das premissas seria desnecessário se as previsões dos modelos forem precisas: “Hipóteses verdadeiramente importantes e significativas têm ‘premissas’ que são representações descritivas da realidade altamente imprecisas, e, de modo geral, quanto mais significativa uma teoria, mais irrealistas serão suas premissas.” A economia “positiva” de Friedman (1953b, p. 4), que nortearia os modelos neoclássicos, se caracteriza como “uma ciência ‘objetiva’, precisamente no mesmo sentido que qualquer uma das ciências físicas”. Com a crescente adesão a essa perspectiva, fatores sociais foram cabalmente expelidos das análises econômicas (Akerlof, 2007AKERLOF, G. The Missing Motivation in Macroeconomics. American Economic Review, v. 97, n. 1, p. 5-36, 2007.). Como resultado, observa Hodgson (2004HODGSON, G. The Evolution of Institutional Economics: Agency, Structure and Darwinism in American Institutionalism. London: Routledge, 2004., p. 4), a partir da década de 1950 “muitos economistas do mainstream passaram (...) a descrever qualquer versão mais ampla de sua disciplina, ou qualquer abordagem que não seja baseada na maximização da utilidade individual, como ‘não econômica’”.

É aqui que voltamos à desigualdade salarial, pois é precisamente desse contexto que surge a teoria do capital humano. Até a década de 1950, segundo Friedman (1953aFRIEDMAN, M. Choice, Chance, and the Personal Distribution of Income. Journal of Political Economy, v. 61, n. 4, p. 277-290, 1953a.), a perspectiva neoclássica não dispunha de teoria satisfatória que tratasse, para além da distribuição funcional da renda, da desigualdade salarial entre indivíduos. Os modelos de capital humano inaugurados pelos referidos pesquisadores da Escola de Chicago (Becker, Mincer e Schultz) passariam a insular a agência individual, reconhecendo direta influência das ideias de Friedman (1953a).

A teoria do capital humano desenvolveu-se em frontal antagonismo à perspectiva sociológica, opondo-se à possibilidade de que relações, grupos ou classes sociais possam explicar a distribuição salarial. No primeiro trabalho sobre a teoria do capital humano moderna, Mincer (1958MINCER, J. Investment in Human Capital and Personal Income Distribution. Journal of Political Economy, v. 66, n. 4, p. 281-302, 1958., p. 283-301) acompanha Friedman no entendimento de que “o ponto de partida de uma análise econômica da distribuição pessoal da renda deve ser uma exploração das implicações da teoria da escolha racional”. Toda a ideia proposta, de que a distribuição salarial depende das preferências individuais em investimento em capital humano, deriva de “um modelo teórico no qual o processo de investimento está sujeito à livre escolha”.

A ruptura com o entendimento de outras ciências sociais, já evidente nesse primeiro momento, passaria a ser explicitamente defendida na década de 1970. Mincer (1974aMINCER, J. Progress in Human Capital Analysis of the Distribution of Earnings. National Bureau of Economic Research, Working Paper Series, n. 53, 1974a., p. 1), após sublinhar oposição entre as perspectivas de economistas e sociólogos - a partir do velho adágio: os primeiros estudariam como as pessoas fazem escolhas, e os segundos, como não há escolhas a serem feitas -, afirma que, antes da teoria do capital humano, estudos sobre a distribuição de rendimentos eram “basicamente sociológicos”, pois enfatizavam “diferenças em oportunidade, habilidade e sorte como condições muito pouco afetadas pela escolha humana”. Assim, continua, “a dominância da abordagem do capital humano pode ser vista como uma reação de economistas a essa tradição não econômica”. Ao evidenciar o papel de decisões otimizadoras de indivíduos sobre investimentos em capital humano, aspectos fundamentais da determinação salarial teriam sido resgatados pela economia ortodoxa, “com o poder de suas ferramentas analíticas e econométricas”.

A mesma ruptura é sugerida nos primeiros trabalhos sobre capital humano de Becker (1962BECKER, G. Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis. Journal of Political Economy, v. 70, n. 5, p. 9-49, 1962., p. 48), para quem a abordagem forneceria “os meios para trazer a teoria da distribuição pessoal de rendimentos de volta à economia”. A implicação dessa proposição, segundo Lydall (1976LYDALL, H. Theories of the Distribution of Earnings. In: ATKINSON, A. (Ed.). The Personal Distribution of Incomes. Crows Nest: Allen & Unwin, 1976., p. 43), “é que qualquer explicação de fenômenos econômicos que não seja uma pura dedução das premissas usuais de agentes racionais maximizadores da utilidade, operando em um mercado perfeito, com conhecimento perfeito”, não seria econômica. A abordagem do capital humano construiu-se, assim, em “forte aversão a fatores institucionais ou sociais” (Lydall, 1976, p. 20).

É com a ascensão dessa abordagem que o processo de atomização do indivíduo encontrou seu apogeu. Como conclui Bourdieu (2005BOURDIEU, P. The Social Structures of the Economy. Cambridge: Polity Press, 2005., p. 209), o triunfo da teoria do capital humano, “fortemente carregada de suposições sociologicamente inaceitáveis”, apresenta-se como marco da reivindicação da perspectiva neoclássica como definição da teoria econômica. É também a partir da teoria do capital humano que esse entendimento particular da economia ambicionou difundir-se pelas demais ciências sociais. A partir dela, a abordagem econômica ortodoxa passou a ser utilizada para explicar todo o comportamento humano. Esse objetivo é abertamente defendido por Becker (1976BECKER, G. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: The University of Chicago Press, 1976., p. 8), para quem a “abordagem econômica” seria aplicável a qualquer ação: em “decisões repetidas ou pouco frequentes, maiores ou menores; com fins emocionais ou mecânicos; sobre indivíduos ricos ou pobres, homens ou mulheres, adultos ou crianças, brilhantes ou estúpidos, (...) empresários ou políticos, professores ou estudantes”.

Essa “abordagem econômica” é caracterizada pelo uso “implacável” e “inflexível”, segundo Becker (1976BECKER, G. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: The University of Chicago Press, 1976.), de três suposições: “comportamento maximizador”, “equilíbrio de mercado” e “preferências estáveis”. A respeito do “comportamento maximizador”, embora o autor admita que os agentes econômicos nem sempre possuem informação completa, a ação individual seria invariavelmente “racional e não volátil”. Sobre o “equilíbrio de mercado”, na “abordagem econômica”, afirma Becker, os preços e outros instrumentos de mercado desempenhariam “a maioria, senão todas, as funções atribuídas à ‘estrutura’ nas teorias sociológicas”. Por fim, as “preferências estáveis”, explica, “não mudam substancialmente ao longo do tempo, nem são muito diferentes entre pessoas ricas e pobres, ou mesmo entre pessoas em diferentes sociedades e culturas” (Becker, 1976, p. 5). A partir de Friedman e da teoria do capital humano, um homem-autômato - imune a quaisquer interações sociais, idêntico em qualquer cultura, lugar ou época - permitiria à “abordagem econômica fornecer uma estrutura aplicável a todo comportamento humano” (Becker, 1981, p. ix).

5 Considerações finais

Neste ensaio, investigamos os caminhos que levaram a economia a explicar a desigualdade salarial a partir de um indivíduo atomizado, destituído de relações sociais; exploramos as origens, a ascensão e a consolidação desse entendimento no pensamento econômico.

Descrevemos inicialmente a compreensão hegemônica da determinação salarial e o “homem econômico” que a alicerça. Verificamos que o contexto social ainda era considerado por pensadores da escola clássica, tanto no que se refere à agência individual como à determinação de salários. Em fins do século XIX, embora o plano de insulamento do indivíduo tenha acompanhado a revolução marginalista, ele não foi defendido pelo maior consolidador da perspectiva neoclássica. Marshall e outros expoentes autores ortodoxos que se voltaram ao mercado de trabalho na primeira metade do século XX não ignoravam a importância das relações sociais sobre a distribuição salarial. Foi a partir de meados do século passado que diversos fatores, elencados neste estudo, coadunaram-se para expulsar a sociedade da economia.13 13 Embora aqui nos atenhamos à história do pensamento econômico, é possível indagar em que medida transformações no capitalismo, capazes de efetivamente desvincular as relações econômicas da sociedade, podem ter contribuído para consolidar o entendimento discutido. Em outros termos, o papel de mudanças na própria natureza das relações econômicas sobre sua compreensão. É possível que transformações no mercado de trabalho (e.g., desindustrialização, dessindicalização, automação) sejam componentes relevantes, ainda que indiretamente, sobre os fatores que elencamos. Devemos essa oportuna observação a um dos pareceristas da revista. É fruto desse contexto a economia positiva de Friedman, que afastou a economia das ciências sociais e fincou os esteios da teoria do capital humano. A teoria do capital humano, desenvolvida em explícita objeção a qualquer “explicação sociológica”, hegemonizou-se a partir da ideia de que a desigualdade salarial depende dos indivíduos e suas livres escolhas; expandida a outros temas e disciplinas, ela levou ao apogeu o “homem econômico” sobre o qual se construiu.

Entender a distribuição salarial a partir desse indivíduo exige a sujeição a premissas admitidamente irrealistas. A desigualdade, e particularmente a desigualdade salarial, é um fenômeno econômico que, embora certamente seja também influenciado pelas decisões individuais, não pode ser desvinculado de estruturas sociais (arranjos institucionais, normas, convenções, costumes) que essas decisões condicionam, conduzem, limitam ou simplesmente interditam.14 14 Em revisão de ampla gama de experimentos sobre o comportamento humano, Bowles (2012, p. xii) conclui que o “homem econômico” tem sido massivamente rejeitado pelas evidências: “Grandes frações dos indivíduos sujeitos a estudos experimentais exibem o que se tem chamado de preferências sociais, como altruísmo, reciprocidade e até mesmo ‘aversão à desigualdade’”.

Trabalhos recentes argumentam que a desigualdade salarial tem sido legitimada por narrativas meritocráticas: a ideia de que as remunerações dos indivíduos dependem apenas de seus esforços e escolhas (Markovits, 2019MARKOVITS, D. The Meritocracy Trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite. New York: Penguin Books, 2019.; Piketty, 2020PIKETTY, T. Capital and Ideology. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2020.; Sandel, 2020SANDEL, M. The Tyranny of Merit: What's Become of the Common Good. Penguin: United Kingdom, 2020.). O entendimento da desigualdade salarial que se tornou hegemônico certamente contribuiu para a construção dessas narrativas, cujas implicações parecem claras: na medida em que as distâncias entre os salários dependem de esforços individuais, políticas (re)distributivas seriam contraproducentes ou injustas. Precisamente a contração dessas políticas (e.g., tributação progressiva, salário mínimo, organização sindical), que sucedeu à consolidação da teoria do capital humano, tem sido apontada como principal fator responsável pelo aumento da desigualdade salarial em países desenvolvidos (Atkinson, 2015ATKINSON, A. Inequality: What Can Be Done? Cambridge: Harvard University Press, 2015.; Piketty, 2020).

A individualização da desigualdade salarial, e o discurso meritocrático que a acompanha, conseguiu acomodar-se bem nas décadas seguintes à Segunda Guerra, quando as disparidades permaneceram estáveis, em patamares relativamente baixos (Atkinson, 2015ATKINSON, A. Inequality: What Can Be Done? Cambridge: Harvard University Press, 2015.; Piketty, 2020PIKETTY, T. Capital and Ideology. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2020.). O retorno da desigualdade salarial (cujos níveis extremos, aliás, nunca abandonaram países não desenvolvidos) compele o pensamento econômico hegemônico a reconsiderar compreensões estreitas de seus determinantes.

Agradecimentos

Devo especiais agradecimentos à Celia Lessa Kerstenetzky. Agradeço também a Maria Lucia Werneck Vianna, Fábio Waltenberg, Danielle Carusi Machado e João Luiz Maurity Saboia por leituras atentas de uma versão preliminar deste estudo. Sou grato, ainda, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e a dois pareceristas por suas contribuições anônimas.

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  • Códigos JEL:

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  • 1
    Para uma revisão sistemática de críticas à determinação salarial neoclássica, particularmente no que tange à teoria do capital humano, ver Tan (2014TAN, E. Human Capital Theory: A Holistic Criticism. Review of Educational Research, v. 4, n. 3, p. 411-445, 2014.).
  • 2
    A exceção apontada por Mankiw (2001MANKIW, N. Principles of Microeconomics. Boston: Cengage, 2001.) é a discriminação no mercado de trabalho, tema tradicionalmente explorado por economistas neoclássicos (ver Becker [1971BECKER, G. The Economics of Discrimination. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.] e Arrow [1972ARROW, K. Models of Job Discrimination. In: PASCAL, A. Racial Discrimination in Economic Life. Lexington: D. C. Heath, 1972.]).
  • 3
    A teoria do capital humano concernia, sobretudo, à parte da oferta. O lado da demanda, negligenciado por suas primeiras abordagens, tornou a teoria alvo de críticas (e.g., Lydall, 1976LYDALL, H. Theories of the Distribution of Earnings. In: ATKINSON, A. (Ed.). The Personal Distribution of Incomes. Crows Nest: Allen & Unwin, 1976.; Tinbergen, 1975). Posteriormente, modelos neoclássicos passaram a assumir que a demanda por trabalhadores qualificados dependeria, fundamentalmente, de mudanças tecnológicas. Uma “corrida” entre educação e tecnologia explicaria mudanças na desigualdade salarial. Variações na demanda são também associadas à globalização e à liberalização do comércio internacional (Atkinson, 2015ATKINSON, A. Inequality: What Can Be Done? Cambridge: Harvard University Press, 2015.).
  • 4
    Esse entendimento, embora inusual ao mainstream econômico, encontra-se bem situado no contexto do iluminismo escocês (do qual fazem parte, além de Smith, David Hume, Francis Hutcheson, John Millar e Adam Ferguson), que então rompia com o individualismo contratualista. A sociabilidade humana como algo decorrente de um cálculo racional de custos e benefícios é refutada por esses autores (Berry, 2003BERRY, C. Sociality and Socialisation. In: BROADIE, A. (Ed.). The Cambridge Companion to the Scottish Enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.; Cerqueira, 2006CERQUEIRA, H. Adam Smith e seu contexto: o iluminismo escocês. Economia e Sociedade, v. 15, n. 1, p. 1-28, 2006.).
  • 5
    Livro I, Capítulo VIII, de Riqueza das nações (Smith, [1789]1937).
  • 6
    Embora em Princípios de economia política e tributação (Ricardo, 1821RICARDO, D. On the Principles of Political Economy and Taxation. 3rd e. Londres: John Murray, 1821.) fatores sociais/institucionais tenham sido, em relação a Smith ([1789]1937), menos explorados, sua importância é mais diretamente apontada em correspondências e trabalhos não publicados (ver Ricardo, 2005 e Stirati, 1992STIRATI, A. Unemployment, Institutions and the Living Standard in the Classical Theory of Wages. Contributions to Political Economy, v. 11, n. 1, p. 41-66, 1992.). De fato, Marshall já sublinhava, a respeito dos salários, a importância dada por Ricardo a hábitos e costumes. Marshall ([1920]2013, p. 421) observa que muitos leitores do pensador clássico “se esquecem que ele diz isso”, compreendendo a determinação salarial como uma “lei natural” que obedece apenas a mudanças populacionais.
  • 7
    O reconhecimento da importância de fatores sociais aparece de modo menos explícito na primeira edição de Princípios de economia (Marshall, 1890MARSHALL, A. Principles of Economics. 1st ed. New York: Macmillan & Co., 1890.). Parte das passagens incluídas a seguir encontra-se apenas em edições posteriores da obra.
  • 8
    Ver, por exemplo, Hodgson (2001HODGSON, G. How Economics Forgot History: The Problem of Historical Specificity in Social Science. London: Routledge, 2001.).
  • 9
    Em crítica ao entendimento neoclássico da determinação salarial, Solow (1980SOLOW, R. On Theories of Unemployment. The American Economic Review, v. 70, n. 1, p. 1-11, 1980.), por exemplo, afirma que o mercado de trabalho não deve ser entendido a partir de modelos construídos para explicar “a compra e venda de tecidos”. No mesmo sentido, Atkinson (2015ATKINSON, A. Inequality: What Can Be Done? Cambridge: Harvard University Press, 2015.) argumenta que a distribuição salarial não deve continuar a ser explicada pelas regras que explicam o funcionamento do mercado de leite.
  • 10
    O papel de forças sociais já era considerado pelo autor em obras anteriores (e.g., Hicks [1932]1948), embora de modo menos enfático.
  • 11
    Precursores da escola institucionalista norte-americana (como Thorstein Veblen, John Commons, Wesley Mitchell e Walton Hamilton) abordavam a natureza e a evolução de certas instituições e seu papel sobre a economia, além do modo como essas instituições moldariam disposições individuais, opondo-se à perspectiva neoclássica (Hodgson, 2004HODGSON, G. The Evolution of Institutional Economics: Agency, Structure and Darwinism in American Institutionalism. London: Routledge, 2004.).
  • 12
    Jevons (1871JEVONS, W. Theory of Political Economy. London: Macmillan and Co., 1871., p. viii), por exemplo, sugere abertamente que a economia deveria ser entendida como uma ciência exata: “Há muito penso que, como ela lida amplamente com quantidades, deve ser uma ciência matemática.”
  • 13
    Embora aqui nos atenhamos à história do pensamento econômico, é possível indagar em que medida transformações no capitalismo, capazes de efetivamente desvincular as relações econômicas da sociedade, podem ter contribuído para consolidar o entendimento discutido. Em outros termos, o papel de mudanças na própria natureza das relações econômicas sobre sua compreensão. É possível que transformações no mercado de trabalho (e.g., desindustrialização, dessindicalização, automação) sejam componentes relevantes, ainda que indiretamente, sobre os fatores que elencamos. Devemos essa oportuna observação a um dos pareceristas da revista.
  • 14
    Em revisão de ampla gama de experimentos sobre o comportamento humano, Bowles (2012BOWLES, S. The New Economics of Inequality and Redistribution. Cambridge: Cambridge University Press, 2012., p. xii) conclui que o “homem econômico” tem sido massivamente rejeitado pelas evidências: “Grandes frações dos indivíduos sujeitos a estudos experimentais exibem o que se tem chamado de preferências sociais, como altruísmo, reciprocidade e até mesmo ‘aversão à desigualdade’”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2023
  • Aceito
    07 Fev 2024
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