Resumo
A transição energética é a principal política do Brasil no contexto de adaptação e mitigação das mudanças do clima, sobretudo a partir da instalação de projetos de energia eólica. Todavia, ao mesmo tempo, a transição energética é utilizada como uma estratégia de diversificação dos portfólios de investimentos de corporações transnacionais, resultando em impactos territoriais para as comunidades territorializadas nas proximidades destes projetos energéticos. O objetivo deste artigo é debater sobre como a transição energética resulta em impactos territoriais na comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado, localizada no município de Pedra Grande, no litoral do estado do Rio Grande do Norte. Para atingir este objetivo foram utilizadas metodologias quantitativas e qualitativas, incluindo a realização de trabalhos de campo na comunidade no ano de 2023. Com a pesquisa é possível concluir que a transição energética a partir do modelo de geração de energia centralizado tem sido efetivada a partir da violação de direitos territoriais de comunidades tradicionais, configurando a questão agrária. A questão posta é: transição energética ou uma nova fronteira para a expansão do capital?
Palavras-chave Transição energética; energias renováveis; impactos territoriais; questão agrária.
Abstract
The energy transition represents Brazil's primary policy initiative in the context of adapting to and mitigating climate change, with a particular focus on the installation of wind energy projects. Nevertheless, the energy transition is employed as a strategy to diversify the investment portfolios of transnational corporations, which has the consequence of exerting territorial impacts on communities situated in the vicinity of these energy projects. The objective of this article is to examine the territorial impacts of the energy transition on the traditional fishing community of Enxu Queimado, located in the municipality of Pedra Grande on the coast of the state of Rio Grande do Norte. In order to achieve this objective, a combination of quantitative and qualitative methodologies was employed, including the conduct of fieldwork in the community during the year 2023. The research indicates that the energy transition from the centralized energy generation model has been carried out in a manner that violates the territorial rights of traditional communities, thereby configuring the agrarian issue. The question thus arises as to whether the energy transition represents a new frontier for the expansion of capital.
Keywords: Energy transition; renewable energy; territorial impacts; agrarian question.
Resumen
La transición energética es la principal política de Brasil en el contexto de adaptación y mitigación del cambio climático, especialmente mediante la instalación de proyectos de energía eólica. Sin embargo, al mismo tiempo, la transición energética se utiliza como estrategia para diversificar los portafolios de inversión de las corporaciones transnacionales, resultando en impactos territoriales para las comunidades ubicadas en las cercanías de estos proyectos energéticos. El objetivo de este artículo es discutir cómo la transición energética genera impactos territoriales en la tradicional comunidad pesquera de Enxu Queimado, ubicada en el municipio de Pedra Grande, en la costa del estado de Rio Grande do Norte. Para lograr este objetivo se utilizaron metodologías cuantitativas y cualitativas, incluyendo la realización de trabajo de campo en la comunidad en el año 2023. Con la investigación se puede concluir que la transición energética desde el modelo de generación centralizada de energía se ha realizado a partir de la vulneración de derechos territoriales de las comunidades tradicionales, configurando la cuestión agraria. La pregunta es: ¿transición energética o nueva frontera para la expansión del capital?
Palabras-clave: Transición energética; energías renovables; impactos territoriales; cuestión agraria.
Introdução
"Estão roubando o nosso vento, estão roubando o nosso sol. Isso não é brincadeira".
(Nêgo Bispo, 2023, p. 99 - A terra dá, a terra quer).
Em um contexto de catástrofe ambiental, amplamente debatido no âmbito das mudanças climáticas, emergem quase que diariamente "novas" soluções, cujo objetivo é reduzir a quantidade de dióxido de carbono (CO2) emitido na atmosfera, auxiliando na redução do aquecimento global. A transição energética, isto é, a transferência de um modelo de produção e consumo energético de uma fonte de energia não renovável (como aquelas cujas matérias-primas são combustíveis fósseis) para uma matriz renovável, como a energia fotovoltaica e eólica, é posta como a única alternativa viável e necessária para conter as mudanças do clima. E, para isso, se estabelece uma agenda ambiental pautada em compromissos diplomáticos (vide os diferentes acordos internacionais assinados), em inovações tecnológicas e soluções via mercado e cada vez mais financeirizadas (Marques, 2023), como o clássico exemplo dos green bonds2.
A questão da transição energética posta como um imperativo (Cataia e Duarte, 2022) é oriunda da forma na qual a política das mudanças climáticas têm sido construída pelos múltiplos agentes envolvidos (Franco e Borras Jr., 2019) e apresenta algumas contrariedades. A primeira é que as mudanças climáticas não são resultados apenas da matriz energética não renovável ou somente da emissão de CO2. Ações como o desmatamento, o uso de agrotóxicos, a exploração mineral e o descarte indevido de resíduos sólidos são alguns dos exemplos que também contribuem para o aumento e aceleração do aquecimento global. De fato, conforme aponta Chomsky e Pollin (2020), na escala global a emissão de gases do efeito estufa é dada como a principal causadora das mudanças climáticas. Todavia, no Brasil a maior parte das emissões de CO2 não advém do setor energético, mas sim do chamado Uso da Terra, Mudança no Uso da Terra e Silvicultura (LULUCF3).
De acordo com o relatório do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima, publicado em 2023, o Brasil segue aumentando a emissão líquida de gases de efeito estufa, uma vez que em 2021 foram emitidos 1,76 GtCO2e, contra 1,49 GtCO2e em 2020 (Observatório do Clima, 2023). As emissões referentes ao ano de 2021 no Brasil estavam concentradas na mudança do uso da terra e na agropecuária, com 49% e 25% das emissões, respectivamente. O setor energético foi responsável por 18% das emissões no referido ano. Ou seja, a agropecuária (que é levada a cabo pelo agronegócio) e a mudança do uso da terra (resultado de processos de desmatamento e incêndios florestais) foram responsáveis por 74% das emissões de CO2 no Brasil em 2021. A partir deste panorama a transição energética como única forma possível de reduzir a emissão de GEE não se sustenta. Vale ressaltar que 47,4% da matriz energética brasileira é composta por fontes renováveis. Enquanto que em escala global as fontes renováveis representam somente 15,0% da matriz energética (EPE, 2021). Quando o debate é a matriz elétrica a do Brasil é ainda mais renovável, representando 82,9% das fontes de energia. O atual modelo de transição energética desenvolvido no Brasil está focado na adição de fontes de geração de energia (Cataia e Duarte, 2022), como eólico, fotovoltaico e expansão do uso de agrocombustíveis, como o etanol oriundo da cana-de-açúcar e do milho.
Sobre este último é interessante pontuar que no Brasil a expansão da produção de agrocombustíveis, sobretudo a partir da cana-de-açúcar historicamente obteve apoio do Estado, o que remete à criação do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL) durante os choques do petróleo na década de 1970, que incentivou por meio de uma série de benefícios concedidos ao setor, a construção de destilarias anexas às usinas de produção de açúcar, impulsionando a produção e utilização do álcool hidratado como combustível, o etanol (Bray; Ferreira; Ruas, 2000). No entanto, a redução do preço do barril de petróleo na década de 1990, a opção das usinas pela produção de açúcar com preços mais rentáveis no mercado externo, dentre outros fatores, contribuíram para o descrédito dos veículos movidos a etanol tanto por parte dos consumidores como das montadoras de automóveis, culminando na extinção do programa. No início dos anos 2000, a criação do veículo flexfuel promoveu mais uma vez a expansão da produção de etanol, desta vez, alicerçada no discurso da sustentabilidade, apostando numa fonte de energia renovável e limpa se comparada ao uso de combustíveis fósseis.
Em seu primeiro mandato (2003-2006), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva propalou em seus discursos oficiais, o potencial brasileiro de produção de agrocombustíveis, incentivando a competitividade do etanol de cana-de-açúcar frente ao etanol de milho produzido nos EUA. Nesse período novos projetos de usinas de produção de açúcar e etanol foram implantados ou mesmo retomados com a participação de grupos nacionais e estrangeiros não tradicionais nesse setor, acessando o crédito disponibilizado por bancos públicos e privados, dentre eles, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A crise financeira de 2007/2008 afetou diretamente o setor sucroalcooleiro, que passou a denominar-se sucroenergético, pois produz açúcar, etanol e bioeletricidade (consome a biomassa residual gerada em seus processos),desta forma, as fusões e aquisições entre grupos econômicos tradicionais ou não no setor, a formação de joint-ventures, bem como os pedidos de recuperação judicial tornaram-se comuns. Atualmente há uma Frente Parlamentar do Etanol criada no Congresso Nacional composta por mais de cem parlamentares, cuja proposta é ampliar as vantagens do combustível como fonte de energia limpa e com esse discurso manter as vantagens e benefícios que o setor sempre obteve por parte do Estado brasileiro.
Ainda como parte do emprego da narrativa da descarbonização, projetos de usinas que processam o milho para fabricação de etanol também foram implantados, inicialmente no estado de Mato Grosso. Os modelos instalados podem operar processando apenas o milho como matéria-prima, mas também como usinas flex, que originalmente produzem etanol de cana-de-açúcar e são adaptadas para produzir etanol de milho no período de entressafra e os projetos flexfuel, que são usinas de produção de etanol de cana-de -açúcar que montam em paralelo unidades produtoras para o processamento do milho. O Brasil possui 19 usinas de etanol de milho, 12 delas no estado de Mato Grosso e as demais no estado de Goiás, São Paulo e Paraná e uma unidade em construção em Mato Grosso do Sul.
A segunda questão é que na realidade não está prevista uma substituição das fontes de combustíveis fósseis para as fontes renováveis, mas sim uma transição energética pautada na adição. Conforme aponta Cataia e Duarte (2022, p. 766), "a história da energia é uma história marcada não por transições, mas por adições sucessivas de novas fontes de energia primária". Ao passo que a transição energética é posta como política de mitigação, o fomento aos combustíveis fósseis no globo alcançou US$ 697,2 bilhões em 2021, o que corresponde a um aumento de 92,4% em comparação ao ano anterior (INESC, 2022). O terceiro ponto é que embora as fontes eólica e fotovoltaica sejam inesgotáveis, para a transformação destas em energia elétrica é necessária a utilização de recursos finitos, desigualmente distribuídos no globo (Milanez, 2021). A transição energética aumenta a demanda por materiais minerais, sobretudo aqueles conhecidos como minerais críticos, resultando em impactos, conflitos territoriais e, especialmente, no aumento da emissão de gases do efeito estufa4, além de reforçar padrões históricos de exploração (Soto Hernandez e Newell, 2022).
A quarta e última questão contraditória é referente aos impactos territoriais decorrentes da instalação de projetos eólicos. Embora as energias eólica e fotovoltaica sejam consideradas limpas, renováveis e com menor impacto (considerando que não envolve a remoção de populações e alagamento de áreas para construção de barragens, como a geração de energia hidrelétrica), estes modelos energéticos não estão livres de externalidades. A partir da Geografia e de uma perspectiva multidimensional e multiescalar do território (Fernandes, 2009), os impactos territoriais são compreendidos como alterações negativas ocorridas nas dimensões ambiental, econômica, social e cultural, modificando a territorialidade e a vida das populações territorializadas nas proximidades destes projetos. Estes impactos ocorrem na escala local e comumente não são expostos no momento de divulgação destes projetos.
A partir deste contexto, o objetivo deste artigo é debater sobre como a transição energética em curso também resulta em impactos territoriais, sobretudo na escala local. Para isso, analisamos a comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado, que há mais de um século está territorializada no litoral do município de Pedra Grande, no estado do Rio Grande do Norte, principal produtor de energia elétrica a partir da cinética dos ventos5. É importante destacar que há uma expansão vertiginosa de projetos eólicos e fotovoltaicos, cada qual com seus impactos, entretanto, as análises deste manuscrito serão direcionados para a instalação de projetos eólicos. Esta decisão não é aleatória, mas decorre do fato dos projetos eólicos corresponderem a um modelo energético centralizado e com alta quantidade de capital fixo investido.
Para atingir este objetivo diferentes procedimentos metodológicos foram utilizados. Além da revisão da literatura sobre a temática, foram realizados levantamentos de dados quantitativos em bases oficiais, como o Sistema de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica (SIGA) e o Sistema de Informações Geográficas do Setor Elétrico (SIGEL). A pesquisa documental foi fundamental, sobretudo referentes a documentos produzidos no âmbito das instituições multilaterais e aos acordos internacionais cuja mudança do clima é pauta. Por fim, foram realizados trabalhos de campo no município de Pedra Grande, com foco na comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado no decorrer do ano de 2023. Nestas pesquisas de campo outras metodologias foram empregadas, como a realização de entrevistas e observação participante durante reuniões organizadas pela comunidade.
O artigo está organizado em três tópicos, para além da introdução e considerações finais. Primeiramente será debatido o marco da transição energética, com o objetivo de introduzir o debate sobre os acordos internacionais sobre a mudança do clima, especialmente sublinhando os compromissos assumidos pelo Brasil. Em seguida será discutido o papel do Brasil na chamada transição energética, com o foco, sobretudo, na expansão da energia eólica. Por fim, será apresentado o estudo de caso da comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado, evidenciando os impactos territoriais e as contradições do atual modelo energético pautado na energia eólica.
O marco da transição energética
Desde as últimas décadas do século XXI instituições multilaterais trazem em suas pautas o desenvolvimento sustentável, um exemplo efetivo é a própria organização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco-92 ou Rio-92, no Rio de Janeiro, que, segundo Oliveira (2011), foi central para a consolidação do conceito de desenvolvimento sustentável. Esta narrativa adquire força à medida que as crises ambiental e climática avançam. Aqui é importante reforçar que neste cenário de catástrofe ambiental e climática duas posturas emergem. A primeira relacionada ao fato do próprio sistema capitalista ser o responsável pela situação do clima, considerando seu modelo predatório e histórico de acumulação. E a segunda está vinculada ao fato de que as ditas crises ambiental e climática podem ser oportunidades para negócios, como o Banco Mundial aborda.
Um exemplo disso é o próprio "Relatório Stern: a economia das mudanças climáticas", publicado em 2006 por Nicholas Herbert Stern e Barão Stern de Brentford, sendo uma encomenda do governo Britânico. Este documento, segundo Moreno (2016, p. 266) "conseguiu traduzir em termos econômicos os custos - mas também as oportunidades de negócios e lucros - das mudanças climáticas e fazer a questão ambiental/climática um caso econômico sério". A partir disso, as crises ambiental e climática têm sido tratadas a partir da ótica das soluções via mercado, nas quais o avanço tecnológico e os acordos diplomáticos são suficientes para reduzir a emissão de gases do efeito estufa e, consequentemente, reduzir o aquecimento global.
Estes acordos internacionais, bem como os documentos/relatórios de recomendações elaborados por instituições multilaterais refletem na geopolítica do desenvolvimento sustentável (Oliveira, 2011). Em uma tentativa de delimitar no tempo estes eventos6 foi possível organizar uma linha com os principais marcos para a compreensão de como o imperativo da transição energética foi construído, conforme expressa o quadro 1. Aqui é importante realizar duas ressalvas. A primeira é que os documentos listados não se referem à totalidade de acordos/relatórios sobre a temática, são apenas aqueles assinados em escala global e que são importantes para atingir o objetivo delimitado neste artigo. A segunda observação é referente ao fato de haver alguns documentos que não estão relacionados diretamente às crises ambiental e climática, mas que são fundamentais para o debate entre avanço das relações capitalistas, da incorporação de territórios e do dito desenvolvimento sustentável.
Principais eventos em escala internacional responsáveis pela inserção da pauta ambiental/climática nas agendas governamentais.
Estes eventos foram precursores para que a transição energética fosse posta como um imperativo e como a única solução possível para as crises climática e ambiental (Cataia e Duarte, 2022; Marques, 2023). A partir do quadro 1 é possível verificar a longa trajetória da institucionalização das questões climática e ambiental (Porto-Gonçalves, 2004) já em um momento de um regime neoliberal. A transição energética, é uma pauta antiga, sobretudo debatida no âmbito da necessidade de diversificação da matriz energética a partir da primeira e da segunda crise do petróleo, em 1973 e 1979, respectivamente. Contudo, no século XXI a transição energética assume uma nova roupagem resultante de um momento específico na crise do capital.
Este marco é justamente a crise financeira de 2007/2008, permeada pelas crises ambiental, alimentar, climática e energética, o que pesquisadores tendem a designar como convergência de múltiplas crises (Borras Jr. e Franco, 2010). Em um contexto de crise de sobreacumulação, processo iniciado ainda na década de 1970 (Harvey, 2005), os agentes capitalistas necessitam diversificar suas carteiras de investimentos e, para isso, incorporam novos espaços e estabelecem novos mercados. Há uma narrativa predominante entre instituições multilaterais, (vide Banco Mundial), governos e empresas de que tais espaços são vazios, quando na realidade são territórios de vida de diferentes povos e comunidades tradicionais e que possuem outras lógicas não alienadas ao capital. É nesta circunstância que o interesse na transição energética emerge e encontra na região Nordeste do Brasil um potencial espaço para a acumulação do capital.
É interessante lembrar que ainda é 2001, mediante um contexto de crise no abastecimento de energia elétrica no Brasil, o Estado estabeleceu uma diversidade de normativas para possibilitar a diversificação da matriz energética. Exemplos são programas federais como o Programa Emergencial de Energia Eólica (PROEÓLICA) e o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA), datados de 2001 e 2002, respectivamente; além da flexibilização no processo de licenciamento ambiental e financiamentos públicos via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Pereira, 2023). Mesmo com tantos incentivos, não houve a diversificação esperada pelo Estado, porém criou-se um ambiente propício para atender às futuras demandas das empresas de energia eólica (Lima, 2022).
No Brasil, atualmente, a transição energética é marcada por duas fontes renováveis principais: eólica e fotovoltaica. Segundo os dados do Sistema de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica (SIGA), até a data de 1º de setembro de 2023 haviam 19.541 projetos de geração de energia fotovoltaica no Brasil, somando 138.090.933,14 kW de potência outorgada. É importante ressaltar que a geração de energia a partir da fonte UFV apresenta um duplo caráter: centralizado e descentralizado, ou seja, há microgeradores de energia cujo objetivo é gerar energia para pequenas unidades consumidoras. Considerando os projetos outorgados acima de 10.000 kW12, há no Brasil o quantitativo de 3.224 parques, somando 137.639.464,61 kW de potência. No que tange a energia eólica, na mesma data havia 1.588 projetos outorgados no país, totalizando 53.478.845 kW de potência. É neste contexto que precisamos entender qual o papel do Brasil na transição energética e as contradições resultantes deste novo imperativo.
Energias renováveis: qual o papel do Brasil na transição energética?
O Estado brasileiro segue a agenda ambiental a partir de compromissos diplomáticos estabelecidos, como o exemplo do Acordo de Paris. Aqui é importante fazer a ressalva de que durante o governo de Jair Messias Bolsonaro (PL) (2019-2022) ocorreu um massivo desmonte nas múltiplas dimensões da política ambiental. O desmantelamento aconteceu nas legislações, na ausência de fiscalização, na militarização dos órgãos, no corte de recursos, nas declarações negacionistas e de ataque aos povos e comunidades tradicionais, entre outros (De Olho nos Ruralistas, 2022a). Esta política reverberou em recordes: maiores taxas de desmatamento em diferentes biomas, maior quantidade de incêndios e o garimpo no centro do debate, invadindo, inclusive, terras indígenas (De Olho nos Ruralistas, 2022b). Concomitantemente, o governo "passou a boiada" na questão agrária (Pereira, Coca e Origuéla, 2021). Tudo isso contribuiu para a péssima imagem do Brasil na política internacional, resultando no corte de apoios financeiros para a preservação da Amazônia, por exemplo.
O governo mudou e com ele veio a retomada da política ambiental comprometida com diminuição do desmatamento e no combate às mudanças climáticas. Junto ao nome do Ministério do Meio Ambiente foi acrescentada a expressão "Mudança do Clima". Desde a campanha presidencial havia uma disputa de narrativa em torno da política ambiental. A transição energética é a promessa do Partido dos Trabalhadores, a proposta é reinserir na agenda política internacional o Brasil a partir da posição de líder da transição energética no Sul Global. Justamente por isso, tanto em escala federal, quanto na estadual (sobretudo nas unidades da federação governadas pelo PT), a transição energética é inserida como a principal pauta. Os desafios são muitos, especialmente pelo fato do estrago nos últimos quatro anos ter sido imensurável.
É nesta conjuntura que as energias renováveis emergem ainda mais como central para a transição energética. Antes de adentrar aos dados da produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis é importante lembrar os compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris (2015). Na intenção de Contribuição Nacionalmente Determinada (sigla em inglês intended Nationally Determined Contribution - iNDC) de 2015, documento no qual o governo brasileiro registrou os principais compromissos e contribuições do Brasil para o Acordo de Paris (2015)13, os pontos estipulados em relação a energia foram: i) alcançar uma participação estimada de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030, com a expansão do uso de fontes renováveis, para além da energia oriunda da fonte hídrica, na matriz total de energia para uma participação de 28% a 33% até 2030; ii) expandir o uso doméstico de fontes de energia não fóssil, aumentando a parcela de energias renováveis (além da hídrica) no fornecimento de energia elétrica para ao menos 23% até 2030, incluindo o aumento da participação de eólica, biomassa e fotovoltaica (Brasil, 2015).
É importante mencionar que a Contribuição Nacionalmente Determinada elaborada pelo Brasil passou por duas atualizações nos anos de 2020 e 2022. Na versão mais recente foram apresentadas as seguintes atualizações: i) mitigação de 37% das emissões de GEE até 2025 e redução de 50% até 2030 (ano base 2005); ii) alcançar emissões líquidas zero em 2050 e; iii) e alcançar desmatamento ilegal zero em 2028. Tal revisão foi decorrente do Pacto Climático de Glasgow, assinado durante a 26ª Conferência das Partes (COP26) da UNFCCC, em 2021, expresso no quadro 1. Segundo documento elaborado pelo BRICS Policy Center (mar. 2023), em comparação com a primeira NDC do Brasil (2015), há regressão da ambição brasileira, a partir de uma mudança na base de cálculo das emissões brasileiras no ano de 2005, com a NDCatual a possibilidade é que o Brasil emita mais Gases do Efeito Estufa do que havia proposto em sua meta inicial ainda em 2015.
Como já referenciado, a matriz energética brasileira já é centrada nas fontes renováveis de energia. De acordo com o Balanço Energético Nacional (BEN) referente ao ano de 2022, publicado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a participação das energias oriundas de fontes renováveis na matriz elétrica brasileira foi de 87,9%. A capacidade instalada para a geração fotovoltaica apresentou um crescimento de 82,4% em relação ao ano de 2021, enquanto a geração eólica teve uma expansão de 14,3%. Quando analisamos a geração de energia elétrica a partir das fontes fotovoltaica e eólica temos o panorama apresentado nas tabelas 1 e 2.
Brasil - Projetos fotovoltaicos (com potência acima de 10.000 kW) outorgados de acordo com a unidade da federação e situação do empreendimento (2024).
Brasil - Projetos eólicos outorgados de acordo com a unidade da federação e situação do empreendimento (2024).
Analisando estes dados dois pontos se destacam. O primeiro é a expressividade da quantidade de projetos fotovoltaicos e eólicos planejados, ou seja, cuja o status na ANEEL é "em construção" ou "construção não iniciada". No que tange aos projetos fotovoltaicos de grande porte (excluindo a micro e minigeração), apenas 9,11% dos outorgados já estão em operação. Quando consideramos a potência outorgada nestes projetos, somente 7,75% de fato está sendo gerada. Em relação aos projetos eólicos, 38,76% dos parques ainda não tiveram sua construção finalizada ou, até mesmo, iniciada e 47,63% do potencial eólico outorgado ainda não está no Sistema Integrado Nacional (SIN). Desta forma, a expansão destas energias será ainda maior e terá uma incidência na matriz energética nacional.
O segundo aspecto que merece destaque é o papel de centralidade que a região Nordeste assume na transição energética. Considerando somente os projetos fotovoltaicos outorgados (operação e planejados), 63,03% estão localizados na região Nordeste, representando 61,43% da potência outorgada. No caso da energia eólica, o quantitativo de 1.485 parques aprovados pela ANEEL estão localizados na região Nordeste, o que corresponde a 90,21% do total de projetos de energia eólica no Brasil. Em relação a potência outorgada, 91,64% está no Nordeste. A territorialização de empresas de energia eólica no Nordeste iniciou no litoral e está em um processo de expansão em direção às serras localizadas no semiárido.
A partir dos dados de instalação de projetos eólicos e fotovoltaicos, além destas duas questões levantadas, uma hipótese emerge: haverá uma expansão de Centrais Geradoras Híbridas (UGHs), isto é, projetos nos quais a geração de energia elétrica ocorrerá através do aproveitamento eólico e fotovoltaico. Em 06 de dezembro de 2021 foi regulamentada a Resolução Normativa ANEEL n. 954, marco que autoriza a implantação de Centrais Geradoras Híbridas (UGHs) e Centrais Geradoras Associadas (Associadas) para energia obtida por meio de fontes renováveis. Em março de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da inauguração do primeiro projeto híbrido autorizado pela ANEEL, o Parque Chafariz, de propriedade do grupo espanhol Neoenergia, localizado no município paraibano de Santa Luzia.
Comumente as empresas acessam o território a partir dos contratos de arrendamento (Maia et al., 2024). Já é de conhecimento que empresas de energia eólica, ao realizar o arrendamento de imóveis rurais, preveem no contrato a possibilidade futura de implantação de placas fotovoltaicas. Justamente por isso o cercamento do território ocorre. Em trabalho de campo realizado em um assentamento de reforma agrária localizado no município de São Miguel do Gostoso, litoral potiguar, foi relatado que os contratos de arrendamento apresentados pelas empresas terceirizadas de prospecção de áreas para a medição anemométrica, apresentavam cláusulas informando sobre futuras instalação de placas fotovoltaicas. Ao mesmo tempo que este modelo de projeto de geração de energia elétrica é interessante e, em termos de aproveitamento, resulta em mais impactos para as populações atingidas, sobretudo pelo fato da energia fotovoltaica ser uma atividade que utiliza uma quantidade considerável de agrotóxicos e água.
Projetos eólicos da comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado (Pedra Grande/RN)
O município de Pedra Grande está localizado no território da cidadania e identidade rural do Mato Grande14, localidade na qual foram instalados os primeiros projetos eólicos do estado, com a primeira outorga datada de 2001. Em janeiro de 2024 haviam 166 parques outorgados pela ANEEL no Mato Grande, sendo 137 em operação e 29 planejados, o que corresponde a aproximadamente 43% dos projetos de todo o estado. Conforme evidencia-se nos dados da ANEEL (2024) em termos de espacialização de projetos eólicos, no município de Pedra Grande existe um quantitativo de 16 parques de energia eólica, totalizando 4.867,82 hectares de terra ocupada. Deste total, 14 parques encontram-se em operação e dois em fase de planejamento. Assim, a população do município já conviveu com as diferentes alterações promovidas pela energia eólica nas diferentes fases de instalação.
A comunidade de Enxu Queimado, localizada a 10 quilômetros da sede municipal, recebeu a maior ocupação territorial por parte destes projetos, tendo o primeiro parque eólico outorgado pela ANEEL em 2011. Dentre o total dos projetos em operação no município, a comunidade de Enxu Queimado possui nove projetos em operação e um planejado, sendo todos os projetos de responsabilidade do Grupo Serveng, que controla o Complexo Eólico União dos Ventos. A empresa controla 2.794,24 hectares de terra para a geração de energia eólica na comunidade de Enxu Queimado. A chegada dos primeiros parques no território seguiu a lógica comum a outras localidades nas quais a exploração do potencial eólico é uma realidade: as promessas de geração de postos de trabalho e renda através do arrendamento de parcelas das pequenas propriedades sem a perda da terra e sem a necessidade de realizar o trabalho na agricultura, tudo isso promovendo a geração de uma energia "limpa". Essas propagandas foram rapidamente refutadas.
Como o processo de licenciamento ambiental foi simplificado a partir da lacuna da Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) n. 279, de de 27 de junho de 200115, não houveram audiências públicas para a implantação dos projetos eólicos. Segundo relatos de um grupo de pescadores da comunidade durante a pesquisa de campo a empresa somente realizou uma visita em uma escola municipal localizada na comunidade para a divulgação dos benefícios da instalação de projetos eólicos. O não respeito da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é usual no processo de territorialização dos projetos eólicos, especialmente nos primeiros, momento no qual não se tinha uma dimensão dos reais impactos destes empreendimentos.
Durante a pesquisa de campo, foi possível perceber que a geração de energia eólica não é livre de impactos negativos conforme já apontado em estudos pretéritos (Lima, 2022; Meireles, 2011; Gorayeb, 2019; Hofstaetter, 2021; Pereira, 2021; Vital, 2023). Na comunidade de Enxu Queimado, evidencia-se a contradição da narrativa hegemônica que vem sendo construída sobre as energias renováveis no contexto brasileiro, seja ela por meio da energia eólica ou fotovoltaica, de que são energias “limpas”, e necessárias para a redução de CO2. A energia eólica, pode até ser renovável em termos de emissões, no entanto não é limpa como apresentada, especialmente a partir do modelo no qual a mesma tem sido desenvolvida.
Os impactos iniciam já no processo de construção dos parques, como por exemplo: aterramento de lagoas, mortandade das dunas, mudança nas paisagens, alteração no modo de vida social e cultural nas comunidades nas comunidades onde se instalam (Lima, 2022). Em Enxu Queimado, além destes fatores, ocorreram conflitos e conflitualidades no território tradicional onde se instalaram os projetos eólicos, situações que permanecem cada vez mais latentes. As alterações ocorreram em múltiplas dimensões (ambiental, cultural, social e econômica) e, justamente por isso, que é utilizado a designação de impactos territoriais, considerando o território a partir de sua multiescalaridade, multidimensionalidade e multiterritorialidade (Fernandes, 2009).
A territorialização dos projetos eólicos foi acompanhada das promessas de potencializar a economia do município com geração de empregos e desenvolvimento local. O discurso hegemônico por parte da empresa e das gestões municipais era (e continua sendo) de que as empresas ao adentrarem no território criam empregos e aumentaram a renda dos moradores, contribuindo para o crescimento econômico do município. No entanto, passando-se quase dez anos da implantação do primeiro projeto na comunidade é possível perceber que as situações de vulnerabilidades não foram superadas, assim como o desemprego e consequentemente o desenvolvimento local não obtiveram o êxito prometido por ambos.
Na geração de energia eólica os postos de trabalho são temporários e de baixa qualificação e remuneração, atuando, sobretudo na construção dos projetos (Lima, 2022). Quando a construção do parque eólico é finalizada, as vagas de emprego geradas cessam. Em trabalho de campo houveram relatos de moradores da comunidade que deixaram o ofício da pesca artesanal para ocupar postos de trabalho na construção dos parques eólicos que cercam a comunidade. Quando a obra terminou, estes voltaram para a pesca. Inclusive, uma das preocupações com a possibilidade de projetos eólicos offshore16 (marítimos) é com o cercamento do mar, resultando na impossibilidade de exercer a atividade pesqueira. Uma das falas mais representativas durante uma roda de conversa com pescadores foi "quando a construção do parque eólico terminou eu voltei para o mar, se o parque eólico for construído no mar eu vou trabalhar onde?". O estado do Rio Grande do Norte possui quatorze parques eólicos offshore em processo de licenciamento ambiental, destes sete incidem sobre o litoral da comunidade tradicional de Enxu Queimado, somando 921 aerogeradores, cerca de 55% do total de torres previstas para serem implantadas no litoral potiguar (IBAMA, 2024).
O que se percebe são impactos, violações de direitos, conflitos e conflitualidades no território, ponto que merece destaque pela situação de insegurança que vive a comunidade de pescadores artesanais de Enxu Queimado devido a inexistência de titularidade da terra. A ausência de documentação legal quanto à posse das terras favoreceu a inserção dessa empresa no território tradicional, que de acordo com os estudos de Lima (2022) e Vital (2023) aproveitou-se deste fator para arrendar ou comprar as terras antes mesmo do início da construção dos parques, assim como agravar as questões sociais e conflitualidades no território.
A narrativa sobre as soluções para garantia da segurança energética no Brasil, associada à “energia limpa” em conjunto com a urgência no avanço para o cumprimento dos prazos pactuados no Acordo de Paris (2015), facilitou a construção dos parques de energia eólica em todo o Brasil, sobretudo a partir da possibilidade do licenciamento ambiental apenas com estudos simplificados, aprovando a construção de empreendimentos com impactos territoriais “não previstos”, sejam eles no âmbito ambiental, social, econômico ou até mesmo cultural. Para além dos impactos observados durante a pesquisa de campo, a comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado sofre com a perda das conexões materiais e imateriais resultadas da construção dos projetos eólicos. Além da transformação da paisagem, a comunidade foi amplamente atingida com a ocupação do solo, seja pelas turbinas ou pelo cercamento.
Com a construção desses parques, o território que até então não tinha sofrido modificações oriundas da intervenção humana progressiva, pois possuía apenas com a presença de pescadores e agricultura de subsistência, passou a contar com construções, que descaracterizam a paisagem, alterando as tradições e a identidade da comunidade, gerando a segregação por meio do cercamento das terras, impedindo ou dificultando o acesso aos espaços de uso coletivo, reduzindo o território original dessa comunidade. Um ponto importante é que esses empreendimentos não reconhecem o território da pesca da comunidade e a importância do uso do espaço comum para vida, trabalho e lazer que vem sendo negado pela empresa, desde a fase de instalação dos parques na comunidade. O cercamento do território resulta na alteração do uso do mesmo, culminando em alterações em múltiplas dimensões e transformando sistemas sociais (Stock, 2022). As figuras 1 e 2 evidenciam o território tradicional cercado, incluindo os espaços de uso coletivo, como as vazantes e a lagoa de sal, local que era utilizado para pesca de artemia, uma espécie de microcrustáceo utilizada pelos membros da comunidade para a atividade pesqueira e comercialização.
Cercamento dos espaços de uso comum (dunas, lagoas e vazantes) pela empresa de energia eólica na comunidade tradicional pesqueira Enxu Queimado, Pedra Grande/RN.
Enxu Queimado era um território no qual não existiam cercas. Na atualidade, como pode ser observado nas figuras 1 e 2, o acesso ao território é proibido. Não sendo bastante as placas, os cadeados, as cercas e a vigilância armada, valas foram cavadas para impedir a circulação dos moradores, dos transportes sobre as dunas e até mesmo dos animais. Assim, há uma proibição de acesso às lagoas, as vazantes, as dunas e até mesmo as plantas frutíferas (que estão localizadas nas áreas de construções dos parques) podem ser caracterizadas como processo de desterritorialização, conforme aponta Lima (2022).
No Relatório Ambiental Simplificado do Parque Eólico União dos Ventos 1417 consta a informação da baixa ocupação territorial dos projetos eólcios, sendo ressaltada a "convivência pacífica com outras atividades, como pecuária, agricultura, piscicultura, carcinicultura, etc, evitando-se, através do uso compartilhado do terreno, as desapropriações" (Biogeo Gestão e Projetos, 2015, p. 20). Neste relatório a empresa utilizou uma imagem de um projeto eólico localizado no município de Palmas, no interior do estado do Paraná, como um exemplo desta convivência pacífica. Todavia, o parque eólico Eólio - Elétrica de Palmas, que não faz parte de um complexo eólico, possui somente cinco aerogeradores, enquanto o parque eólico União dos Ventos 14 tem dez torres, sendo que todos os projetos eólicos do complexo localizados na comunidade de Enxu Queimado totalizam 70 aerogeradores, ou seja, uma proporção mais elevada do que aquela utilizada de ilustração no Relatório Ambiental Simplificado.
O território que antes era da comunidade e utilizado através de práticas de socialização ou como fonte de renda, foi transformado em propriedade privada (Pereira, 2021). É interessante ressaltar que este processo não é exclusivo do caso aqui analisado, Stock e Birkenholtz (2024) relataram sobre a privatização de áreas comuns na Índia através da instalação de projetos fotovoltaicos. Dito isso, conforme apontado por Vital (2023) o espaço coletivo passou a ser uma propriedade “privada”, na qual a comunidade até os dias atuais, para ter acesso, realizam o corte das cercas (ato de resistência), como uma forma de reivindicar o acesso ao território historicamente ocupado pela comunidade, além de ser uma forma de negar a propriedade privada. Destaca-se que instaladas as torres de energia eólica a comunidade ficou completamente cercada pelos aerogeradores. Atualmente membros da comunidade estão organizados para o enfrentamento, no entanto, encontra-se cercado por situações de violência praticadas por agentes externos e por danos ambientais, sociais e econômicos que violam o seu modo de vida (Vital, 2023).
O que significa este cercamento? Marx (2013[1867]) ao debater a acumulação primitiva já pontuava que os enclosures (cercamentos) ocorridos na Inglaterra no século XVII resultaram no monopólio dos grandes arrendamentos, na elevação dos preços dos meios de subsistência, na produção do despovoamento e na usurpação da terra comunal. No boom da corrida mundial por terras na primeira década do século XXI foi chamada a atenção para observar este processo como new enclosures, ou seja, novos cercamentos (White et al., 2022; Cotula, 2013). A partir da realidade atual é urgente a reflexão sobre os cercamentos promovidos pelos projetos eólicos e justificados pelo imperativo da transição energética, sendo o caso de Enxu Queimado emblemático.
Considerações finais
As mudanças climáticas são uma realidade urgente e que precisam ser debatidas em todas as escalas. As questões destacadas neste texto são referentes às soluções via mercado, que na sua essência continuam reproduzindo a lógica capitalista e reforçando os padrões históricos de extrativismo. Isto garante a possibilidade de lucro independente dos impactos territoriais gerados e/ou sofridos em âmbito local. A transição energética não é uma pauta recente, a sua ascensão no debate geopolítico internacional remete às crises do petróleo na década de 1970, já sob o auspício neoliberal, principalmente para impulsionar a diversificação da matriz energética, diminuindo a dependência de fontes não renováveis, como o petróleo. É a própria crise do capital, apontada como a convergência de múltiplas crises que retoma o debate da transição a partir da disseminação da narrativa das energias “limpas” e neste ínterim as energias eólica e fotovoltaica surgem com amplas possibilidades de atenderem aos anseios do discurso da transição energética a partir da ampliação do uso de energias renováveis ao passo que também proporcionam a diversificação da carteira de investimentos dos agentes capitalistas.
No Brasil, a crise de abastecimento energético de 2001 endossou normativas que tentaram fomentar a diversificação da matriz energética, tais medidas não foram efetivas no período subsequente, mas certamente contribuíram para o ambiente propício à instalação de parques eólicos atualmente. A região Nordeste e o seu conhecido potencial eólico possibilitaram que inúmeros projetos fossem instalados, no primeiro momento na parte litorânea dos estados, sobretudo o Rio Grande do Norte e Ceará e, aos poucos adentraram o interior. Na comunidade pesqueira de Enxu Queimado no município de Pedra Grande, são perceptíveis os impactos territoriais causados pela instalação de projetos eólicos, sejam materiais ou imateriais, destacando-se a privação do uso de espaços coletivos com o estabelecimento de cercamentos por parte da empresa que administra os parques como um processo de desterritorialização, alicerçada na insegurança jurídica, pois os moradores da comunidade pesqueira não possuem a titularidade de suas terras.
A ocupação do espaço rural por esses grandes projetos de geração de energia inserem a necessidade de debater o redimensionamento da corrida mundial por terras e as consequências deste modelo para a questão agrária brasileira. A estrutura fundiária, as relações de propriedade, de produção e trabalho são profundamente modificadas, culminando, em última instância, na desterritorialização das populações do campo. O modelo de geração centralizado no qual a geração de energia eólica e fotovoltaica tem sido desenvolvida é intensivo em terras e o cercamento, como evidencia o caso da Comunidade Tradicional Pesqueira de Enxu Queimado, é eminente. Este modelo imposto para a diversidade de comunidades tradicionais resulta no aumento da concentração fundiária e de renda, agravando a pobreza, a insegurança alimentar, a violência e gerando conflitos sociais, entre outros agravantes. Por isso o argumento de que a transição energética nos moldes postos na atualidade é uma nova fronteira para a acumulação do capital, não se configura em uma solução para a crise climática e ambiental, mas sim em uma tentativa de resolução para garantir a existência do sistema capitalista de produção.
O artigo foi iniciado com uma frase do livro "A terra dá, a terra quer", de autoria do mestre Nêgo Bispo. Em passagens deste livro são enfatizados os impactos da territorialização de projetos eólicos e fotovoltaicos no território de Nêgo Bispo, localizado no estado do Piauí. O argumento utilizado pelo quilombola é justamente o cercamento de seu território a partir da apropriação de bens comuns, como o vento e o sol, dando continuidade ao histórico colonialismo. Quando o debate é a territorialização de projetos eólicos o roubo através do cercamento é uma concretude de todos os territórios nos quais os cataventos gigantes, como Nêgo Bispo designa, se fazem presentes.
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1
Este artigo é resultado de múltiplas pesquisas, sendo estas: "As resistências socioterritoriais em uma comunidade tradicional pesqueira: as marés de conflitos e as disputas em Enxu Queimado/RN", que resultou na dissertação de mestrado em Estudos Urbanos e Regionais com o título homônimo; do pós-doutorado "Do global ao local: a produção de conflitualidades na territorialização de projetos eólicos no Nordeste brasileiro" concluído no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e financiado pela Pró-reitoria de Pesquisa da UNESP (edital 13/2022); da pesquisa de doutorado em Geografia em desenvolvimento na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual Paulista (UNESP) intitulada "Análise das relações agroalimentares entre Brasil e China a partir da abordagem teórico-metodológica dos regimes alimentares" e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da pesquisa de incidência política e regional articulada na esfera da plataforma Land Matrix (ponto focal América Latina e Caribe). Ademais este artigo reflete os debates realizados na Rede Brasileira de Pesquisas das Lutas por Espaços e Territórios (Rede DATALUTA), sobretudo na categoria de estrangeirização da terra.
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Os chamados títulos verdes são entendidos como um instrumento financeiro de renda fixa cujo objetivo é para financiar projetos verdes, isto é, que tenham benefícios ambientais e/ou climáticos.
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Sigla correspondente a Land Use, Land-Use Change and Forestry.
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De acordo com Wanderley e Rocha-Leão (2023), as emissões de dióxido de carbono referentes à extração mineral mundial cresceram 50% entre os anos de 2005 e 2018. Considerando somente a produção de alumínio, em escala global a emissão de CO2 quase duplicou entre 2005 e 2018 e já representa 2% do total de emissões em todo o mundo.
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Considerando apenas a potência eólica outorgada e em operação.
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6
Entendemos o conceito de evento a partir de Milton Santos (2002), pautado, sobretudo, na relação espaço e tempo. Segundo o autor, “os eventos mudam as coisas, transformam os objetos, dando-lhes, ali mesmo, onde estão, novas características” (Santos, 2002, p. 144).
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Na Rio 92 também foram aprovadas as seguintes convenções: Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação e Mitigação dos efeitos da seca.
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Tradução nossa: Programa Assistente de Gestão do Setor Energético.
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Tradução nossa: Aumento do interesse global nas terras agrícolas: será possível produzir benefícios sustentáveis e equitativos?
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Tradução nossa: Crescimento verde inclusivo: o caminho para o desenvolvimento sustentável.
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Contribuição Nacionalmente Determinada. No Acordo de Paris consta que estes documentos devem ser revistos e reeditados a cada cinco anos.
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12
A Lei n. 14.300, de 6 de janeiro de 2022, define os microgeradores como aqueles projetos que geram até 75 kW de energia por meio de fontes renováveis em unidades consumidoras como telhados, condomínios e sítios. Minigeradores são aqueles que geram de 75 kW até 10.000 kW de energia por meio das fontes renováveis.
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13
O documento foi apresentado como intenção, o que tornou a NDC oficial a partir do momento no qual o Acordo de Paris entrou em vigor, em 2016. Em 03 de novembro de 2023, um pouco antes da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2023 (COP 28), o Brasil apresentou a quarta versão da NDC.
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14
Possui dezesseis municípios potiguares: Bento Fernandes, Caiçara do Norte, Ceará-Mirim, Jandaíra, Jardim de Angicos, João Câmara, Maxaranguape, Parazinho, Pedra Grande, Poço Branco, Pureza, Rio do Fogo, São Bento do Norte, São Miguel do Gostoso, Taipu e Touros (Vital, 2023).
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15
Esta normativa não estabelecia que projetos eólicos deveriam passar pelo processo de licenciamento ambiental simplificado. A mesma delimitou esta simplificação aos projetos de baixo impacto ambiental, porém a definição de baixo impacto deveria ser estabelecida pelo órgão ambiental estadual. A maior parte dos projetos eólicos aprovados até 2014 utilizaram desta interpretação equivocada para facilitar o licenciamento ambiental.
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16
Não há projetos eólicos offshore no Brasil. Há processo de regulamentação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em andamento desde 2019. De acordo com mapa disponibilizado pelo IBAMA, em abril de 2024 97 projetos de complexos eólicos offshore aguardavam a regulamentação da atividade.
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Embora seja um documento que deva ser publicizado, o acesso a este relatório ocorreu via Lei de Acesso à Informação.
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Como citar este artigo
PEREIRA, Lorena Izá; VITAL, Miriam Moura; FONSECA, Roberta Oliveira da. Impactos territoriais e a instalação de projetos eólicos na comunidade tradicional pesqueira de Enxu Queimado (Pedra Grande/RN): transição energética ou uma nova fronteira para a acumulação do capital? Revista NERA, v. 27, n. 3, e10314, jul.-set., 2024.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
24 Fev 2024 -
Aceito
29 Maio 2024 -
Publicado
17 Jul 2024